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Resumo
Resenha de Cassandra Pereira França, Disfunções sexuais, São Paulo, Casa do Psicólogo, 2005, 149 p.


Autor(es)
Sonia Maria Rio Neves
é psicanalista, coordenadora e professora do curso de Especialização em Psicossomática do Instituto Sedes Sapientiae.


Notas

1M. E. Pereira, Pânico e desamparo. São Paulo, Escuta, 1999.

2 Carlos Drummond de Andrade, Corpo. Rio de Janeiro, Record, 1984, p. 95.


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 LEITURA

Um olhar psicanalítico sobre as disfunções sexuais

Sonia Maria Rio Neves


Resenha de Cassandra Pereira França, Disfunções sexuais, São Paulo, Casa do Psicólogo, 2005, 149 p.

O texto “Sexualidade masculina: somatizações e impasses teóricos” – apresentado por Cassandra Pereira França na mesa-redonda sobre “Corpo e Sexualidade”, no iv Simpósio de Psicossomática Psicanalítica, realizado em São Paulo em outubro de 2007 – só reforçou a impressão positiva que a leitura de seu livro havia me dado. Nele, reencontra-se a desenvoltura e simplicidade com que fala sobre um tema difícil, apresentando, de forma especial, idéias e hipóteses de vários autores, posicionando-se em relação a eles e deixando no leitor uma vontade de continuar a pesquisar sobre tais temas. Uma leitura atenta permite rastrear também caminhos que auxiliam no estudo de várias patologias, não só as especificamente sexuais.

A sexualidade humana durante séculos foi um tema cercado de barreiras. Poder falar desse tema, com delicadeza, significa encontrar palavras para expressar vivências ligadas às inscrições corporais mais primitivas, ao campo das sensações, do indizível. No entanto, essa delicadeza se opõe às exigências culturais atuais: nunca se exigiu tanto um desempenho sexual perfeito e um corpo também perfeito, o que cria grandes angústias e reforça a necessidade de se conhecer mais sobre o tema. O próprio termo “disfunção sexual” utilizado pela terminologia médica, mesmo que pretenda não favorecer discriminações, aponta para um ideal nada fácil de assumir.

Para contextualizar as disfunções sexuais femininas, é útil um percurso histórico. Nessa passagem pela perspectiva histórica, a autora expõe a ascensão social da mulher até ela ter direito a exercer sua sexualidade, e analisa muitos dos elementos presentes na cultura, apontando para fatos e movimentos importantes em relação às mudanças que vão ocorrendo na forma como a mulher se vê ou é vista ao longo dos últimos séculos. De bruxa a “rainha do lar”, há um longo caminho. O século xix e boa parte do xx é dominado por essa visão da mulher como figura complementar ao homem, destinada ao casamento, à maternidade e cuja capacidade intelectual era considerada inferior. Só a partir da década de 1960 e 1970, com o advento da pílula anticoncepcional e a revolução sexual, é que mudanças profundas e intensas têm lugar.

A autora comenta brevemente as discussões atuais sobre as diferenças dos sexos e as descobertas das neurociências. Todo esse percurso é povoado de citações de autores que abordam a questão da identidade feminina e sua construção. O leitor é então remetido a várias dessas fontes, tais como filmes, livros e revistas que podem ser considerados marcos ou modelos da concepção de mulher e sua sexualidade na época atual. Adélia Prado, Martha Medeiros e Alice Gama estão no texto para dizer do “indizível” e transportar o leitor a outro nível de compreensão.

O desenho da mulher-mãe, romântica e contida, oposto ao da mulher desfrutável, vai, ao longo destes últimos anos, se aproximando de forma que o direito e o desejo ao orgasmo podem aparecer.

Essas mudanças no papel social feminino têm repercussões intensas no comportamento masculino e nas disfunções que o homem apresenta. Assim, parte das disfunções sexuais femininas só puderam vir à tona a partir dessas novas formas de ser.

O orgasmo entra em cena apenas após este longo percurso histórico e ocupa o centro da atenção com a questão da divisão em orgasmo vaginal e clitoridiano. Este será o tema do início do capítulo 3. O próprio Freud contribuiu para reforçar esta divisão que só foi questionada nos anos 1950, com as primeiras pesquisas sobre a sexualidade feminina (Relatório Kinsey – 1953 e Masters e Johnson – 1966), deslocando-se o acento para a inter-relação dos estímulos clitoridianos e vaginais.

Após essa introdução sobre o orgasmo, a autora analisa a classificação médica das disfunções sexuais femininas: frigidez, anorgasmia, vaginismo e dispareunia (dor na relação), definindo e comentando suas prováveis etiologias e pesquisas a respeito. Como as disfunções aparecem, com que freqüência e com que se relacionam é o tema do sub-item “Uma escuta possível”. Nele, Cassandra Pereira França se vale de relatos de ginecologistas experientes que dizem que a queixa mais comum, além da dificuldade de falar sobre a sexualidade em si, é a dificuldade de orgasmo e a ausência de desejo sexual. Outra das queixas freqüentes é o vaginismo.

As possibilidades de compreensão psicanalítica desses quadros iniciam-se com o interesse de Freud pela histeria, interesse este que o levou aos caminhos da sexualidade infantil e ao conceito de pulsão. A autora, a partir da leitura de um texto de Silvia Alexim Nunes (2002), traça três esboços de mulher, presentes nos textos de Freud: a mulher invejosa, a mulher-mãe e a mulher castradora.

O primeiro esboço – mulher invejosa – é função da concepção falo-centrada da sexualidade em Freud, na qual o feminino é resultante da falta. Ao se referir à necessidade de aceitação da castração e de mudança da zona erógena proposta por Freud, a autora mostra como é possível apreender o desenvolvimento da frigidez nessas passagens sem esquecer de destacar a importância das questões culturais da época. O texto “Moral sexual civilizada e doença nervosa moderna” (1908) mostra bem como o fator cultural pode ser importante no desenvolvimento da frigidez e da anorgasmia. Outro tema importante para a compreensão da sexualidade feminina é o complexo de Édipo e seus possíveis destinos nas mulheres. Algumas das críticas de que Freud foi alvo neste modelo de identidade feminina são citadas pela autora e há linhas de compreensão das disfunções sexuais a partir da concepção freudiana que podem ser deduzidas, embora ela não as exponha claramente.

O segundo esboço é o da mulher-mãe relacionado ao vínculo da menina com a mãe na fase pré-edípica e posteriormente com o pai. Interessante destacar aqui a ligação que Cassandra Pereira França faz com os problemas conjugais, muitas vezes reflexo das vivências edípicas e pré-edípicas e a sua repercussão na vida sexual do casal. Os textos freudianos, segundo ela, permitem desdobramentos interessantes tanto para as questões das vivências e dificuldades sexuais como para as questões conjugais marcadas por características sadomasoquistas. Põe ainda em destaque a importância da relação da menina com a mãe, as vivências de castração e suas possíveis influências nas depressões pós-parto. A autora faz referência a outros textos freudianos de forma que o leitor possa se orientar no aprofundamento desses temas. Aponta também para o fato de que o monismo fálico levou a um estreitamento dos destinos do feminino na teoria freudiana, deixando de fora o aspecto criador e positivo do corpo feminino pela ênfase no falo e na falta.

A meu ver, a autora não dá o destaque devido à idéia de Freud em “Análise terminável e interminável” (1937) sobre a questão da castração nas análises, embora cite Birman (apud Néri, 2002), que vê a feminilidade como uma experiência além da representação fálica, uma construção defensiva contra o desamparo original. Esta é uma idéia fecunda e que entre outras derivações pode auxiliar na compreensão dos quadros de pânico e sua maior incidência nas mulheres como mostra Pereira (2003) em seu livro Pânico e desamparo. [1]

O terceiro esboço é o da mulher castradora, representação da mulher forte e atemorizadora. Aqui a autora segue alguns textos freudianos onde esta representação de mulher pode ser observada; trata-se da mulher fonte de vida mas também de morte, a mãe-terra, que dá a vida e para onde se retorna. As questões da virgindade e da primeira relação sexual têm aqui a oportunidade de serem comentadas sob a luz dos mitos e fantasias.

A construção da feminilidade é abordada de outras maneiras a partir de Freud por vários autores. A escolha de alguns como Abraham, Ernest Jones, Karen Horney, Melanie Klein, Lacan e Joyce McDougall e a apresentação de uma síntese de suas idéias sobre a feminilidade é, como diz a autora, “uma entrada apetitosa” para a obra de cada um deles.

Se, ao introduzir o tema da sexualidade feminina foi necessário apontar para as mudanças históricas no papel da mulher de forma que sua sexualidade pudesse ser reconhecida, no âmbito da masculinidade, é importante situar as grandes mudanças no papel masculino a partir da revolução sexual nas décadas de 1960 e 1970. Estas passaram por todas as áreas que por décadas ou mesmo séculos se mantiveram inalteradas: o trabalho, o poder, a família, a aparência física e a sexualidade. Um novo homem que cuida também das tarefas domésticas, que é sensível e se emociona está surgindo; aqui também a sensibilidade da autora se faz presente na escolha de um poema de Tico da Costa (“Puxa vida”).

Como essas importantes mudanças se refletem na vida sexual dos homens? Seguindo a mesma linha de abordagem das questões femininas, a autora introduz a questão das disfunções sexuais masculinas segundo a clínica médica. A impotência é o primeiro tema a ser apresentado, em seu lado histórico, seja pelas citações de textos chineses, datados de quatro mil anos atrás, seja pela atribuição a maldições ou feitiçarias. O tema da impotência é antigo mas as terapias sexuais propriamente ditas só surgem por volta dos anos 1950, com os estudos de Masters e Johnson, quando, ao lado das abordagens psicanalíticas, surgem as terapias comportamentais e educacionais.

Os estudos sobre a sexualidade masculina evidenciam a importância da parceira quer nas definições de ejaculação precoce quer como auxílio importante nos tratamentos. O relacionamento do casal é também levado em consideração nos destinos do tratamento. Por outro lado, a inclusão desses estudos em equipes multidisciplinares ampliou as possibilidades de compreensão e atendimento.

O tratamento da disfunção erétil ganha força com o lançamento do Viagra pela Pfizer em 1998, cuja eficácia parecia colocar as questões psicológicas de lado. Porém, como a própria bula afirma, o efeito da medicação é eficaz se não houver alteração de libido; assim, como destaca a autora, “a medicação ajudou a entender o conceito de libido” (2005, p. 105).

Uma descrição simples sobre o funcionamento normal do processo erétil e os órgãos envolvidos, destacando a atuação oposta dos sistemas nervosos autônomos simpático e parassimpático, mostra como a ansiedade interfere neste funcionamento fisiológico. São apresentadas a seguir as disfunções sexuais masculinas, iniciando-se com a disfunção erétil, termo proposto, em 1992, pelo Instituto Nacional de Saúde Norte-Americano, em substituição à terminologia anteriormente usada: impotência sexual. São citadas causas tanto orgânicas como psicológicas para o quadro de disfunção erétil assim como os tratamentos mais comuns, clínicos e cirúrgicos.

A ejaculação precoce é outra disfunção sexual bastante comum. As demais (ejaculação retardada, retrógrada, anejaculação e a anorgasmia) são brevemente descritas. Encerrar este capítulo – O enquadre da sexologia – com o belo poema de Martha Medeiros evidencia a importância da parceira no tratamento das disfunções sexuais dos homens.

Como podem ser compreendidas essas questões à luz da psicanálise? E o que esses sintomas revelam? Essas são as indagações que antecedem o último capítulo. Os textos iniciais de Freud com seu foco na histeria destacam a influência da ejaculação precoce para o desenvolvimento da neurose de angústia na mulher. A compreensão psicanalítica da disfunção erétil e da ejaculação precoce tem como balizas a fixação na fase fálica, o complexo de castração e sua vinculação com o complexo de Édipo. Assim, o primeiro desenho freudiano – o homem fálico – dá elementos para a compreensão da ejaculação precoce e o segundo desenho – o homem castrado – favorece o entendimento da impotência masculina.

Na literatura psicanalítica, a ejaculação precoce está associada a uma defesa contra a sexualidade. A autora discute a importância dada por Freud à masturbação no desenvolvimento posterior da ejaculação precoce e as contribuições de Ferenczi e Abraham para esse aspecto. Destaca também a importância da fantasia na fase fálica, embora seus eixos de compreensão teórica liguem-se à correlação: objeto inces­tuoso­/Édipo/castração. Melanie Klein faz um acréscimo à teoria freudiana para a compreensão da ejaculação precoce na medida em que destaca a importância da ligação com a mãe e as ansiedades arcaicas despertadas.

A compreensão do complexo de castração conduz ao tema do narcisismo, importante e promissor no estudo das disfunções masculinas. Dentre alguns dos autores psicanalíticos atuais, a autora destaca a contribuição de Joyce McDougall nos estudos sobre as feridas narcísicas e sua influência em vários quadros-limite, nos quais as problemáticas sexuais masculinas podem se incluir, e chama a atenção para a oscilação de investimentos narcísicos e objetais, e as formas peculiares destes últimos nos homens com ejaculação precoce ou disfunção erétil. Apresenta um paralelo sobre as diferenças nos investimentos objetais para cada um dos dois quadros acima citados, assim como os pontos comuns relacionados à fragilidade do ego, à regressão à sexualidade pré-genital e à incapa­cidade de amar.

Pela riqueza das contribuições que traz, pelas inúmeras possibilidades que abre para o aprofundamento de vários temas ligados à sexualidade, quer nas disfunções, quer na formação da identidade sexual, não poderia concluir de outra maneira que não fosse seguindo a sensível trilha poética da autora:

Se procurar bem, você acaba encontrando
não a explicação ( duvidosa) da vida,
mas a poesia (inexplicável) da vida.

[ Carlos Drummond de Andrade ] [2]

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Percurso é uma revista semestral de psicanálise, editada em São Paulo pelo Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae desde 1988.
 
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