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Resumo
Resenha de Luiz Meyer, Rumor na escuta, organização de Belinda Mandelbaum, São Paulo, Editora 34, 2008, 301 p.



Referências bibliográficas

Ogden Th . H. (2007). Elements of analytic style: Bion's clinical seminar. International
Journal of Psychoanalysis, 88, p.II85 -200.




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 LEITURA

Luiz Meyer. Um estilo na psicanálise

[Rumor na Escuta]


Luiz Meyer. A style in Psychoanalysis

Em um dado momento, tratando das análises e da escrita freudiana dedicadas ao “caso Dora”, Luiz Meyer refere -se ao “trabalho de ourivesaria fi rme e delicado” realizado pelo mestre. A mesma apreciação nos merecem os 19 ensaios que compõem esta alentada coletânea. Estamos diante, sem sombra de dúvida, de um analista e escritor de primeira linha. Muitos psicanalistas escrevemos. Poucos somos escritores. Mas quando as duas artes se encontram, quando à arte do pensamento clínico se junta a da sua sutil e preciosa comunicação, é de ourivesaria que se trata.

Rumor na escuta, muito bem organizado por Belinda Mandelbaum e publicado pela Editora 34 (dá gosto manusear e ler um livro assim), divide -se em três partes: Clínica, Instituição e Cultura. Dentro de cada parte, os temas variam, embora se observem algumas ênfases e insistências, a que retornaremos adiante. Mas em todas o que sobressai é a habilidade do autor com o manejo das ideias psicanalíticas, com o material a elas “submetido”, ou, melhor dizendo, por elas fecundado – clínico, institucional e cultural –, e com a escrita.

Dada a sua formação como psicanalista e intelectual, não nos surpreende que todos os textos revelem uma notável capacidade no uso de conceitos, principalmente, os de extração kleiniana e pós -kleiniana (como os de Donald Meltzer, por exemplo), sem se restringir a eles, contudo. Mas o que encontramos é bem mais que isso: são conceitos operando na construção de argumentos e interpretações que vão, diante de nossos olhos, tecendo um rendilhado muito complexo e denso. Luiz Meyer jamais peca por aplicações grosseiras da psicanálise a qualquer tipo de material a que se dedique. Bem ao contrário; a rigor, nunca se trata de “aplicação”, mas de construções meticulosamente elaboradas, em que o prazer estético do leitor e, certamente do escritor, comparece com muita evidência. Acreditamos que isso garanta ao livro um alcance pedagógico muitas vezes ausente em textos psicanalíticos, principalmente nos escritos com fi nalidades “didáticas”. Como bem observou Thomas Ogden em um artigo recente (Ogden, 2007), mais do que uma técnica, a prática clínica da psicanálise implica um estilo, pessoal, intransferível. Quase sempre, se não escrevemos muito mal, conseguimos transmitir ideias, o que não é nada desprezível; mas raramente conseguimos apresentar um estilo de pensamento clínico capaz de induzir no leitor a vontade de criar o seu próprio, de forma a fazer com que conceitos e técnicas ganhem vida e colorido. Sem estilo, sem esta apropriação singular em que entram elementos da história, da experiência e da personalidade do analista, conceitos e técnicas podem ser, na melhor das hipóteses, bem usados, o que não é pouco, mas não é o bastante. Com estilo, tudo muda de fi gura: é a própria arte da psicanálise que se vitaliza e a escrita consegue redescobrir e reinventar a psicanálise mesma, teoria e técnica, a cada exercício de interpretação e construção. É justamente isso que torna o livro de Luiz Meyer mais digno de nota.

Vejamos agora um pouco mais do que Rumor na escuta nos oferece.

Na primeira parte – Clínica – há nove textos sobre temas bastante variados, embora muitos focalizem o problema dos limites, sejam os do paciente, sejam os do analista. Outros seguem em direções diversas, mas três nos pareceram particularmente interessantes. No primeiro (capítulo 2), um caso clínico de Freud – o caso Dora – é retrabalhado a partir de um referencial kleiniano. Raramente se encontra na literatura kleiniana uma análise tão bem realizada, tão complexa e sutil, mostrando as diferenças entre os pensamentos de Klein e Freud, sem reducionismos e jargões, com absoluto respeito por ambos os referenciais. De quebra, temos uma esplêndida apresentação do pensamento teórico -clínico kleiniano que vemos brotando do trabalho interpretativo, em vez de ser sobreposta ou anteposta a ele. Outro a merecer destaque é o capítulo 7, intitulado “Realidade psíquica nos estados psicóticos”, outra excelente exposição em ato do pensamento kleiniano e pós -kleiniano, a partir de considerações de Freud e Jean Laplanche, e a partir dos conceitos de Klein, Rosenfeld e Bion, tudo a serviço de uma vinheta clínica muito bem apresentada e discutida. Finalmente, destacamos nesta primeira parte o último capítulo, “Vida onírica e autoanálise: uma experiência clínica”. Trata -se de um atendimento incomum: um paciente já longamente analisado em um enquadre convencional pede, como forma de dar prosseguimento ao processo, um atendimento em que possa apenas levar seus sonhos. Não apenas Luiz Meyer aceita a proposta, revelando assim uma flexibilidade inovadora, uma sensibilidade apurada às demandas e condições do caso, como, nesse contexto novo, dá um verdadeiro show, mostrando em toda a sua amplitude e profundidade a capacidade de escuta, interpretação e elaboração do material onírico; mais amplamente, mostra toda a sua criatividade no trato do material clínico.

A segunda parte – Instituição –, composta de quatro capítulos, é marcada por um tema e por uma outra qualidade do pensamento do autor: o tema é o da formação do analista, em especial, a análise didática; a qualidade que vem à tona, sem prejuízo para a fi nura das análises e da escrita, é a de polemista. Luiz Meyer nos apresenta um traço de beligerância até aqui pouco aparente (apenas em uma apreciação arguta da obra de Antonino Ferro, na parte anterior, já dava mostras deste caráter). Ressalte -se que esta beligerância nada tem de estrepitosa e provocadora, é apenas a afi rmação e a defesa honesta de suas convicções. Nesses capítulos, ele sustenta posições fortes e contundentes no campo da vida institucional psicanalítica. Um dos capítulos, por exemplo, intitula -se “Psicanálise subalterna” e focaliza justamente a chamada análise de formação, tal como promovida pela ipa desde a década de 1920. Essa, aliás, tem sido uma luta antiga de Luiz Meyer que, consistentemente, jamais se dispôs a ingressar no quadro dos “analistas didatas” da sbpsp, embora poucos estejam tão qualifi cados quanto ele para exercer funções formadoras. Ele desenvolve, inclusive, e apoiando -se em Winnicott e Melanie Klein, uma visão muito clara dos fracassos na formação do analista dentro de certas instituições (cf. “O que faz fracassar uma formação?”), e dos desvios ideologizantes da doutrina psicanalítica (cf. “Identidade e originalidade da produção psicanalítica: uma visão a partir de São Paulo”). Além de fazer uma crítica rigorosa, argumentada, fundamentada com dados históricos, inúmeras evidências documentais (uma extensa revisão da bibliografi a) e raciocínios estritamente psicanalíticos, à análise didática, os artigos dedicados ao tema também servem para explicitar e elucidar as ideias do autor sobre o que seria uma boa análise, sobre o que pode ser uma análise não subalterna.

Finalmente, encontramos na terceira parte – Cultura – seis capítulos sobre temas variados e originais. Alguns são análises de fi lmes (Deserto Vermelho e Central do Brasil), como de esperar, bem feitas e abrangentes. Mas queremos destacar três capítulos: uma primorosa investigação sobre pornografi a (“Um paradoxo vital: ódio e respeito à realidade psíquica”), outro sobre pedofi lia (“Trauma e pedofi lia: uma tentativa de entender as raízes da pedofi lia”), temas candentes da cultura e da sociedade contemporânea, e um terceiro – “Acaso, destino, memória” – que é um tocante exercício de autoanálise. Em todos esses trabalhos, a combinação da análise sofi sticada com a escrita talentosa cria textos que fazem da leitura um prazer e uma contínua descoberta de ângulos e visões inusitadas: uma psicanálise que enriquece nossa experiência estética e ética, não uma psicanálise redutora e esquemática.

O terceiro texto mencionado, da minha particular estima, ressalta acima de tudo o escritor, certamente muito bem instruído pela psicanálise, mas um escritor que pensa e elabora com cuidado e bom gosto um trecho decisivo da própria experiência de vida. A coletânea encerra -se, assim, com um exemplo de boa literatura, além de boa psicanálise. Infelizmente nem sempre as duas coisas andam juntas, mas quando isso acontece só nos resta recomendar vivamente a seus leitores que aproveitem bem a ocasião.

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Percurso é uma revista semestral de psicanálise, editada em São Paulo pelo Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae desde 1988.
 
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