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Resumo
Procura-se problematizar a questão da formação do psicanalista, a partir do seminário n. 21 de Lacan, denominado: Les non-dupes errent. Neste seminário, Lacan refaz sua proposição acerca da formação dos analistas ao compará-la às leis da sexuação. Segundo ele, assim como ocorre com o ser sexuado que precisa autorizar-se por si mesmo a assumir seu lugar na sexualidade, mas não está sozinho para isso, da mesma forma o analista só se autoriza por si mesmo e… por alguns outros.


Palavras-chave
formação; desejo; alguns outros.


Autor(es)
Sérgio Scotti
é psicanalista, doutor em Psicologia pela Universidade de São Paulo (USP), professor do departamento de Psicologia e do PPG em Psicologia da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Florianópolis/SC.

Evandro Fernandes Alves
é psicanalista, doutorando do ppg em Psicologia da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), professor do curso de Psicologia da Universidade do Vale do Itajaí (UNIVALI), Itajaí (SC).


Notas

* Neste artigo, a fórmula de Lacan foi vertida segundo o uso corrente da língua: alguém se autoriza por (e não de) si mesmo [Renato Mezan, coordenador editorial].

1 As citações deste seminário são extraídas do exemplar da biblioteca da Escola da Causa Freudiana – de Paris, inédito, já que este seminário ainda não se encontra publicado.

2 É o Witz de Freud ou o Chiste em português.

3 No dicionário Aurélio (1993), o vocábulo itinerário significa: 1. concernente a caminhos; 2. descrição de viagem, roteiro;3. caminho a percorrer, ou percorrido e 4. caminho, trajeto. Já o vocábulo itinerante diz respeito àquele que viaja ou percorre itinerários.

4 V. Safatle, Lacan.

5 No seu livro: O Sujeito Lacaniano: entre a linguagem e o gozo, Bruce Fink faz um exame detalhado do assunto.

6 S. Freud, “Totem e Tabu”, in Obras Completas.

7 J. Lacan, Seminário n. 21: Les non-dupes errent, 1973-74, inédito.

8 B. Fink, O Sujeito Lacaniano – entre a linguagem e o gozo.

9 Ele só se autoriza de si mesmo, eu acrescentarei… e de alguns outros.

10 Informação verbal realizada pelo prof. Dr. S. Scotti, com o título “O desejo de, ou do analista?”, por ocasião da 8a jornada de cartéis em Psicanálise do Traço Freudiano (atual Escola Brasileira de Psicanálise), seção de Florianópolis.

11 J. Lacan, O seminário, livro 17, p. 36.

12 I. Morin, “Le désir du psychanalyste dans la passe”.

13 J. Lacan, O Seminário, livro 11. Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise, p. 220 .

14 J. Lacan, op. cit., p. 50.

15 No passe, o passante (aspirante a analista) fala aos passadores (membros da escola responsáveis em colher o testemunho dos candidatos) sobre a sua formação e o término da sua análise. Os passadores transmitem então esse depoimento ao júri de aprovação para que tomem suas decisões. O testemunho assim transmitido tem por objetivo fazer ouvir o ato específico que transforma um psicanalisando em psicanalista. Esse mecanismo terá um sentido prático na instituição, onde todos os membros da escola poderão se submeter a ele, independentemente da posição que ocupam e de hierarquia.

16 E. Roudinesco, História da psicanálise na França.

17 M. A. C. Jorge, “Introdução” in Lacan e a formação do psicanalista.

18 A. D. Weill, “A questão da formação do psicanalista para Lacan”.



Referências bibliográficas

Ferreira A. B. de H. (1986). Novo dicionário Aurélio da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira.

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Freud S. (1913/1996) Totem e tabu. Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de janeiro: Imago, vol. xiii.

Jorge M. A. C. (2006). Introdução. In Lacan e a formação do psicanalista. Rio de Janeiro: Contra Capa Livraria.

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Morin I. (1991). Le désir du psychanalyste dans la passe. In La passe: fait ou fiction? Paris. Revue de psychanalyse: École de la cause freudiene.

Roudinesco E. (1986). História da psicanálise na França. A batalha dos cem anos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.

Roudinesco E.; Plon M. (1998/2007). Dicionário de psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.

Safatle V. (2007). Lacan. São Paulo: PubliFolha.

Weill A. D. (2006). A questão da formação do psicanalista para Lacan. In Lacan e a formação do psicanalista. Rio de Janeiro: Contra Capa Livraria.





Abstract
Taking as a basis J. Lacan’s Seminar xxi (Les non-dupes errent), the authors suggest that his famous formula about becoming an analyst is connected with what he calls “the laws of sexuation”. In the same manner as the sexuated being has to authorize himself to occupy his place in sexuality, he who wants to become an analyst has to take his risks… and be supported by “some others”.


Keywords
formation of the analyst; desire; “some others”.

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 TEXTO

O psicanalista só se autoriza por si mesmo… e por alguns outros

The analyst is authorized only by himself… and by some others
Sérgio Scotti
Evandro Fernandes Alves

Em 1973, Jacques Lacan dá início ao seu seminário de número 21 denominado Les non-dupes errent [1]. Neste seminário, faz de seu título um mot d’esprit [2], onde, segundo ele, seu som se assemelha ao Les noms du père (os nomes do pai), título do seminário de 1963, que fora interrompido por ocasião de seu rompimento com a Sociedade Francesa de Psicanálise.

Numa crítica dirigida à International Psychoanalytical Association – ipa, Lacan acrescenta a palavra errent à expressão Les noms du père, dando a ela o sentido de que os nomes do pai erram. O nome do pai a quem ele se refere é do próprio Freud e seu erro diz respeito à forma como as sociedades psicanalíticas foram por ele constituídas.

O vocábulo errant terá, também, o sentido de itinerante [3]. Neste jogo de palavras, numa alusão ao fenômeno da repetição, Lacan fará o acréscimo deste vocábulo, para significar que os não tolos são itinerantes ou viajantes. Para ele, os não tolos são todos aqueles que se recusam a submeter-se à estrutura da linguagem e, dessa forma, não se colam às leis do simbólico. Para Lacan, é preciso ser dupe e deixar-se apreender pela estrutura do inconsciente e do desejo, o que levará o sujeito a uma viagem que o acompanhará até a sua morte.

Segundo Safatle [4], os dez últimos seminários – entre eles o Les non-dupes errent – giram em torno da peculiaridade do estatuto da psicanálise como discurso. É neste momento do seu ensino, que Lacan se dedicará de maneira mais sistemática a uma conceitualização que visava abranger um novo quadro de objetividade para a psicanálise, através da formalização da matemática, da lógica e da topologia.

Entretanto, uma das principais contribuições de Lacan, neste seminário, foi de ter reposicionado a questão da formação dos psicanalistas. Na sessão de 9 de abril de 1974, ele citará a já celebre proposição de que o psicanalista só se autoriza por si mesmo, e a ela acrescentará as quatro palavras fundamentais: e por alguns outros.

Quanto a esses alguns outros, neste seminário, Lacan não os nomeará diretamente. Lançará a interrogação sobre seu estatuto, mas não voltará a falar sobre eles. No exame da literatura, constatamos que essas proposições são algumas vezes citadas; entretanto, cremos que os autores que as trabalham o fazem de forma parcial ao não levarem em conta a analogia deixada por Lacan entre o processo de sexuação e a formação dos analistas.

Numa pesquisa por nós realizada no Departamento de Psicologia da Universidade Federal de Santa Catarina, buscamos problematizar e propor possíveis soluções para a questão. Seguindo a analogia feita por Lacan entre as leis da sexuação e a formação dos analistas, procuramos discorrer acerca do estatuto desses alguns outros, haja vista que, neles, sua postulação é fundamental para avançarmos na nossa compreensão da questão da formação e da autorização dos psicanalistas.

Neste trabalho, num primeiro momento, percorreremos o que Lacan nos traz sobre as leis da sexuação. Num segundo momento, discorreremos sobre a posição do analista e o processo subjetivo de formação do analista, para, em seguida, empreendermos a analogia entre as leis da sexuação e a formação dos psicanalistas.

As leis da sexuação

Durante seu ensino, o que Lacan faz questão de deixar claro é que sua definição para o homem e para a mulher não tem relação direta com a biologia. Partindo dessa ideia central, para a psicanálise, podemos perceber que muitos sujeitos biologicamente femininos podem apresentar uma estrutura masculina, e outros biologicamente masculinos revelam uma estrutura feminina.

A diferenciação dos sexos é um processo complexo. Nos três primeiros níveis, de que trataremos a seguir, os sexos não se distinguem, e será somente no quarto nível que será possível se estabelecer uma distinção. O que Lacan nos esclarece é que só a partir da conceituação do falo é que é possível a compreensão desse processo [5].

No primeiro nível dessa diferenciação, os dois sexos, tanto o masculino como o feminino, irão se identificar com o falo. Ao fazer essa identificação, eles procurarão se posicionar como o falo para a mãe. Por isso, neste primeiro nível não haverá a diferença entre os sexos, ambos procurarão se posicionar no lugar do falo.

Porém, logo a criança se dará conta de que ela não é o falo, ou seja, que ela não é o objeto para o desejo da sua mãe. Ela irá perceber que não haverá possibilidade de dar conta da falta para o desejo do Outro. Assim, os dois sexos se aperceberão privados do falo. Desse modo, neste segundo nível, também podemos concluir que não haverá diferença entre os sexos, onde os dois se perceberão como castrados, ou não possuidores do falo.

Essa castração está relacionada ao fato de que o sujeito é forçado a renunciar a algum gozo. A implicação imediata desta afirmação é que a noção de castração está ligada à renúncia do gozo e não ao pênis e, portanto, essa noção se aplica tanto ao sujeito homem como à mulher.

Já num terceiro momento, os dois sexos buscarão o falo que lhes falta, porém, o buscarão no Outro. Aqui, podemos afirmar que ainda não haverá diferenciação sexual, visto que os dois desejam o falo, porém, acreditam que o outro é possuidor do que lhes falta. Um perceberá no outro o falo, mas não se dão conta de que os dois são faltantes.

Será somente no quarto momento, onde ocorre a escolha do objeto de amor e do desejo, que se instalará a diferenciação entre os sexos. Numa relação sexual inexistente, ou impossível, é que haverá um encontro imaginário onde um parceiro será visto como aquele que tem o falo e outro que não o tem. Como vimos, essa posição não terá a ver com o órgão biológico do sujeito, mas com uma posição subjetiva, onde ele poderá posicionar-se na relação com esse outro como o que possui ou não o falo. Assim, tanto o homem quanto a mulher terão um encontro com uma ilusão privada ou dotada, castrada ou potente.

Nos três primeiros níveis da sexuação haverá o reconhecimento do si próprio e da posição de assexuado. Será somente no impulso para o outro, no reconhecimento do objeto de sua escolha, no seu objeto de desejo que se instalará a diferença. Ao final deste processo, o sujeito deverá posicionar-se do lado do homem ou da mulher.

Na estrutura masculina, poderíamos afirmar que ela recai sob a função fálica, o que implicará necessariamente a existência do pai. A ideia central trazida por Freud em Totem e tabu [6] é que, embora todos os homens sejam marcados pela castração simbólica, existe um homem que não se sujeita à lei da castração; este homem é o pai.

Partindo de Freud, o que Lacan [7] defenderá é que apenas o pai mítico poderia ter uma relação sexual verdadeira com uma mulher. Para este pai, existe a relação sexual. Todos os outros homens têm uma relação com o objeto a e não com uma mulher em si. Desse modo, podemos concluir que embora tenha havido essa exceção à regra da castração, poder-se-á considerar que todo o homem é castrado.

Já no que se refere à estrutura feminina, nem tudo numa mulher estará sujeito à lei do significante. Ao dizer isso, Lacan não estaria afirmando que a mulher é menos completa do que o homem – como inúmeras vezes somos levados a crer – mas que ela não possui um significante mestre da mulher como tal.

Bruce Fink [8], ao comentar Lacan sobre o processo de sexuação, dirá que aqueles sujeitos com estrutura masculina devem subjetivar ou encontrar uma nova relação com o objeto, enquanto aqueles com estrutura feminina devem encontrar uma relação com o significante.

Para Lacan, não haverá nenhuma relação direta entre homens e mulheres uma vez que são homens e mulheres. Ou seja, eles não interagem entre si como um homem para uma mulher e uma mulher para um homem. Há o impedimento de tais inter-relações.

Para que uma relação entre os dois existisse, seria necessário que houvesse uma espécie de opostos ou uma inversão simples como atividade e passividade. Porém, Lacan será categórico ao afirmar que tal complementaridade é da ordem do impossível. Assim, não há nada que se possa qualificar como uma relação verdadeira entre os sexos.

A tese central de Lacan é a de que não há lugar para uma relação entre os sexos – impossibilidade de inscrição dessa relação no inconsciente – visto que o inconsciente não reconhece a diferença entre eles. A fantasia é o que vai tentar preencher esse vazio, ou recobrir a ausência desta inscrição. Dessa forma, Lacan colocará a impossibilidade da relação entre os sexos como o núcleo do Real, ou seja, aquilo que foge à simbolização.

Será na sessão de 9 de abril de 1974, do seminário Les non-dupes errent, que Lacan dará um passo fundamental para a compreensão da questão da sexuação e surpreenderá seus ouvintes com a seguinte afirmação: l’être sexué ne s’autorise que de lui même (o ser sexuado só se autoriza de si mesmo). Segundo ele, isto significa que ao sujeito caberá fazer uma escolha. Mesmo que no estado civil ele tenha um registro, isto não o impedirá de classificar-se e de autorizar-se como masculino ou feminino. Porém, a esta fórmula, Lacan fará um acréscimo: Il ne s’autorise que de lui-même, j’ajouterai … et de quelques autres [9].

Por esta fórmula, Lacan sugere que ao sujeito caberá sustentar um lugar onde deve posicionar-se e autorizar-se como homem ou mulher. Só a ele caberá cavar um lugar para si na sexualidade.

Isso não significa que caiba somente ao sujeito o processo da sexuação. Por ser esse processo longo e complexo, nas primeiras fases da sexuação, o sujeito estará à mercê dos outros. É condição para que ocorra a constituição desse sujeito que ele se coloque na posição de assujeitado ao desejo desse outro, que o deverá conduzir ao grande Outro.

Esse outro o remeterá às representações da cultura que dizem o que é ser homem ou mulher, mas, num primeiro momento, ele não terá compromisso com essas nomeações. Entretanto, chegará o momento em que o próprio sujeito precisará se reconhecer como sexuado e assumir para si as representações do que é do masculino ou do feminino. O sujeito terá duas possibilidades de escolha: posicionar-se do lado da estrutura masculina, ou da estrutura feminina. Entretanto, somente a ele caberá esse processo de autorizarse a ocupar o lugar de ser sexuado.

A partir daí, o sujeito sexuado também não estará mais sozinho para isso. Ele precisará dos outros que o nomeiem e o reconheçam (ou não o reconheçam) naquela posição que se decidiu por ocupar. A nomeação, feita por estes alguns outros, será necessária para ratificar a posição que o sujeito se autorizou a assumir.

Assim, podemos concluir que isto significa que, na sexualidade, o sujeito precisa autorizarse a ocupar um lugar subjetivo como aquele que possui ou não o falo, ou seja, deverá posicionar-se do lado masculino ou feminino, mas não estará sozinho para isso.

Quanto à formação dos psicanalistas, a sessão de 9 de abril de 1974 será um marco importante para a questão. Após haver exposto a teoria da sexuação e concluído pela impossibilidade da relação entre os sexos, Lacan afirma que, da mesma forma que ocorre com o ser sexuado, que precisa autorizar- se de si mesmo, o analista só se autoriza de si mesmo, mas não estará sozinho para isso.

Lacan defenderá, no seu ensino, o preceito de que o psicanalista só se autoriza por si mesmo, ou seja, através do desejo do analista. Isto não significa que qualquer um possa autorizar-se, no momento que quiser e quando quiser, a ocupar o lugar do analista.

Assim como ocorre com o ser sexuado, o analista só poderá autorizar-se de si mesmo a ocupar o lugar do analista após ter passado por um complexo processo subjetivo que terá a ver com sua própria análise e com a passagem de psicanalisando a psicanalista. Só a partir daí, defenderá Lacan, o sujeito poderá posicionar-se como analista.

A posição de analista e o fim da análise

Quando Lacan introduz a questão de quem autoriza um psicanalista a exercer a psicanálise, o faz retomando os questionamentos freudianos acerca da psicanálise dirigida pelos não médicos. O objetivo principal de Lacan era o de questionar quem teria o direito de autorizar e de ser autorizado a exercer a psicanálise.

Procurando manter-se fiel à letra freudiana, ele questiona sobre os quesitos ou os atributos que serão exigidos daqueles que se decidem por exercer a psicanálise e qual o lugar que o analista deve ocupar numa análise.

Afirma ele que, na análise, o lugar que o analista deve ocupar é de objeto – objeto causa de desejo. E vai além, no seminário livro 17: O avesso da psicanálise (1969-70/1992), ao afirmar que o que está em jogo no discurso do analista é que ele, o analista, é o agente e que deve atuar sob a forma de objeto. Objeto causa do desejo do analisante (objeto a), mas deverá assumir, também, o lugar do desejo do analista. Lugar que, segundo ele, fora herdado do próprio Freud.

O desejo de Freud permanece em cada analista que se propõe a continuar o exercício de um saber que Freud transmitiu. Dessa forma, o desejo de Freud se liga ao desejo de cada analista quando este, sustentado pelo saber inaugurado por aquele que fundou a psicanálise, procura ocupar um determinado lugar frente ao desejo do analisante. Esse lugar é um lugar de objeto – objeto causa do desejo – ou objeto pequeno a [10].

O lugar de objeto a, ocupado pelo analista, é sustentado por um desejo que tem como ponto de mira o desejo do analisante e será o lugar de objeto causa do desejo. “Ele, o analista, se faz de causa do desejo do analisante” [11], porém, esse desejo só poderá advir onde o lugar do analista estiver vazio, já que o desejo do analista é um lugar orientado por uma falta.

Segundo Morin [12], esta falta é uma falta bem particular que não tem correspondentes nas sociedades capitalistas ou científicas já que, nestas sociedades, é tratada com a oferta de objetos substitutos destinados a suturar os seus efeitos. Já do lado do analista, ele deve ocupar o lugar da falta, referida a seu saber, e suportar os seus efeitos. Assim, o lugar do psicanalista será o que Lacan denominará de lugar do sujeito suposto saber.

No seminário livro II: Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise (1964/1995), Lacan introduz essa questão do sujeito suposto saber, para nos fazer compreender que o analista não pode responder do lugar do qual lhe é convocado, ou seja, como possuidor de um saber absoluto. Ele, o analista, é um sujeito que supostamente detém o saber. “Em certo sentido, pode-se dizer que aquele a quem a gente pode dirigir-se só poderia existir se um existe, apenas um. Esse apenas um foi, enquanto vivo, Freud” [13]. Isto quer dizer que Freud era aquele que poderíamos supor saber sobre aquilo que concerne ao que é do inconsciente, mas, com sua morte, este lugar ficou vazio – e é esse lugar que pertencerá ao analista.

Ainda no seminário livro 17: O avesso da psicanálise, Lacan retoma a questão do sujeito suposto saber. Diz que o que será demandado ao analista não é, simplesmente, que ele responda do lugar de um sujeito suposto saber. Do que se trata, verdadeiramente, é que o analista é suposto saber não grandes coisas. Ao contrário, a análise demonstra que é o analista quem institui o analisante como sujeito suposto saber quando lhe dá a palavra e determina que fale. “O que se espera de um psicanalista é que faça funcionar seu saber em termos de verdade” [14].

Mas, para que o processo analítico se efetive e chegue a um possível término, o que se espera do analista é que ele sustente esse lugar de objeto da transferência, ou lugar do sujeito suposto saber, e conduza seu analisando numa espécie de tapeação, da qual o analisante só se aperceberá no final da análise.

O fim da análise terá a ver com a liquidação desta transferência e com uma posição depressiva através da qual o analista será situado pelo analisando do lado de um des-ser, ou seja, de uma destituição subjetiva. O analista é progressivamente situado como um resto na medida em que se dá a sequência dialética do tratamento. Nestes termos, a liquidação do tratamento terá a ver com a destituição do sujeito suposto saber.

Este processo fundará o desejo do psicanalista que se originará deste encontro com o objeto a. Após este encontro com o Real, os ideais do eu tombam e o analisando entra em contato com o essencial do seu desejo. Assim, após ter passado por este processo, ele não estará mais no mesmo lugar de outrora.

Dessa forma, podemos afirmar que o desejo de ser analista não terá nada a ver com o desejo do psicanalista. Enquanto o desejo de ser analista se dará no início de uma análise, e estará no campo do imaginário, o desejo do psicanalista é o que o sustenta no seu ato e no lugar do vazio, ou seja, o lugar do objeto a, e que terá a ver com o fim da análise.

Será somente ao ter passado por esse processo, e chegado ao fim da sua análise, que o sujeito poderá autorizar-se de si mesmo a ocupar o lugar do analista, ou seja, poderá ocupar o lugar deixado por Freud. E, aqui, podemos compreender por que, na sua proposição, Lacan defenderá que é o psicanalista quem deverá autorizar-se de si mesmo a exercer a psicanálise, e não o analisando, ou seja, somente quem passou pela própria análise, chegou ao seu término e fez essa passagem poderá autorizar-se a ocupar o lugar do desejo do analista.

A fim de testemunhar essa passagem, Lacan criará dentro da sua Escola o dispositivo do passe [15]. Segundo Roudinesco [16], no ano de 1969, a Escola Freudiana de Paris havia mudado seus estatutos para se transformar numa “associação mais moderna e especificamente psicanalítica”. Seu regimento interno ratificava o procedimento do passe como meio de acesso dos analistas à condição de Analistas da Escola (ae).

Ao instituir o passe, o que ele nos deixa claro é que seu objetivo era colocar esse mecanismo a serviço da instituição, a fim de acolher o testemunho da passagem de psicanalisante a psicanalista – apesar de não haver impedimento algum, àqueles que não se submeteram ao passe, de conduzir as análises, desde que tenham passado por sua própria análise.

Entretanto, na sessão de 9 de abril de 1974, do seminário Les non-dupes errent, Lacan alertará para que, apesar de o analista só autorizar-se de si mesmo a ocupar o lugar do analista, isso não lhe confere o direito de praticar a análise da forma que bem entender. E, além do mais, não estará sozinho para essa nomeação. Dirá ele que, assim como o ser sexuado só se autoriza de si mesmo, mas precisa da nomeação e do reconhecimento de alguns outros, da mesma forma, o psicanalista só se autoriza por si mesmo… e acrescenta: e de alguns outros.

Buscaremos responder à questão do estatuto desses outros que autorizam o analista a exercer a psicanálise, de alguns teóricos e, na sequência, traremos as suas considerações sobre o assunto.

Para Coutinho Jorge [17], as palavras e por alguns outros foram acrescentadas para introduzir os aspectos da formação que se situam para além do âmbito da própria análise do sujeito que deseja ocupar o lugar do analista e se referem ao ensino teórico e à supervisão clínica.

De fato, o ensino teórico é um aspecto indispensável à formação de um analista. Para o autor, trata-se de realizar uma travessia da teoria que, ao contrário da travessia do fantasma, que tem seu fim no término da análise, será interminável. Da mesma forma, a invenção dos cartéis representa uma inovação que busca incentivar o trabalho de elaboração teórica e otimizar as trocas entre os analistas, formando um verdadeiro laço entre eles.

Quanto à supervisão, Coutinho Jorge afirma que a contribuição de Lacan foi de ter tirado o poder das instituições de torná-la obrigatória para a formação dos analistas. Segundo ele, ao tornar a supervisão uma prática obrigatória, os institutos de formação impediam que o sujeito escolhesse o momento em que iria submeter-se a essa experiência. Na sua Escola, Lacan incluirá a supervisão no tempo lógico de cada sujeito e não mais como um controle institucional que lhe retirava sua força inerente.

Já para Didier-Weill [18], a teorização de Lacan acerca da questão da formação dos analistas toma um novo impulso no momento em que Lacan consegue passar de uma descontinuidade entre o íntimo que representa o autorizar-se de si mesmo e o coletivo das instituições. Ao acrescentar e por alguns outros, ele estaria introduzindo uma noção de continuidade entre o íntimo e o coletivo. O que garantiria essa continuidade seria o dispositivo do passe.

Como citamos acima, ao lançar essa proposição, Lacan não nomeará diretamente quais são os outros que participam na autorização dos analistas. Assim, não fica descartada a hipótese de que, nela, Lacan esteja se referindo à transmissão teórica ou à supervisão clínica. Tampouco se pode afirmar que não se trata da questão do passe. Não poderíamos assegurar com certeza que ela fora trazida por Lacan para tentar justificar a existência das instituições e manter o poder da sua instituição. Entretanto, no seminário Les non-dupes errent, não há indícios lógicos de que é a isso que ele se refere e, dessa forma, os argumentos apresentados pelos autores acima citados tornam-se insuficientes para sustentar tais afirmações.

Numa alusão ao processo de sexuação do sujeito, podemos fazer algumas considerações a respeito de quem são esses alguns outros que podem autorizar o psicanalista a exercer a psicanálise.

Primeiro, ao analisarmos a estrutura lógica desta proposição, perceberemos que a primeira coisa que nos fica claro é que, ao utilizar a palavra alguns na expressão e por alguns outros, Lacan estava dando a alguns a possibilidade de autorizar o psicanalista, mas não a todos. Como ele afirmara anteriormente, não é qualquer pessoa que pode autorizar-se psicanalista, do mesmo modo, não são todos os outros que podem autorizar um psicanalista a exercer a psicanálise.

Segundo, está mantida a ideia central de que caberá ao próprio analista autorizar-se de si próprio, ou seja, guiado pelo desejo do analista. Entretanto, o analista precisará de um outro que sirva de suporte para a transferência e o remeta ao Outro, ou seja, que o acompanhe na travessia da sua própria análise. Dito de outro modo, o sujeito que deseja se posicionar no lugar do analista precisará ocupar, num primeiro momento, o lugar do analisando, e colocar alguém na posição do analista, até que se efetive a passagem subjetiva de analisante a analista. Então, ele precisará de um outro que é o seu analista e que ocupará o lugar de sujeito suposto saber, até que sua análise chegue ao seu término. A partir daí, esse sujeito precisará de alguns outros que o nomeiem e o reconheçam.

Neste momento, as instituições psicanalíticas serão responsáveis pela ratificação desta posição que o sujeito se autorizou a ocupar. A nomeação e o reconhecimento institucional colocarão o sujeito, simbolicamente, no lugar do analista. Porém, caso o sujeito não tenha passado pelo dispositivo analítico e feito sua passagem de psicanalisante a psicanalista, de nada adiantará essa nomeação. Da mesma forma, não são as regras burocratizadas e rígidas que darão essa garantia a um sujeito que queira ocupar o lugar do analista.

Podemos afirmar que há uma diferença entre nomear alguém e autorizá-lo a exercer a psicanálise. Neste caso, o que a instituição poderá fazer é nomear o psicanalista, porém a autorização em ocupar o lugar do analista dependerá do desejo do analista, ou seja, de sustentar esse desejo no lugar do objeto a.

Assim, o que podemos afirmar com certeza é que o reconhecimento institucional é importante neste processo, pois colocará o sujeito, simbolicamente, no lugar do analista. Porém, caso o sujeito não tenha passado pelo dispositivo analítico, de nada adiantará essa nomeação, nem tampouco a transmissão teórica e a supervisão clínica.

Dito isto, são duas as constatações que podemos tirar dessas proposições trazidas por Lacan com relação à formação dos analistas:

1. cometeríamos uma omissão significativa se, ao tratarmos desta questão, não considerássemos a analogia deixada por Lacan entre as leis da sexuação e a formação dos psicanalistas. Ao considerá-la, cremos que saímos do registro do imaginário e pudemos propor uma solução simbólica para responder à questão do estatuto desses alguns outros;

2. ao acrescentar o e por alguns outros à expressão de que o psicanalista só se autoriza de si mesmo, Lacan cria um aparente paradoxo para a questão da formação dos analistas.

É um paradoxo na medida em que, ao afirmarmos que o analista só se autoriza por si mesmo, fica excluída a necessidade da conjunção do e por alguns outros. Pela lógica formal o só exclui, automaticamente, a possibilidade de qualquer outro neste processo de autorização.

Sobre os paradoxos, Lacan jamais falará na possibilidade de solucioná-los de maneira formal. Assinala ele que os paradoxos só existem em relação a uma lógica “formal demais”. Sobre isso, no seminário Les non-dupes errent, Lacan fará algumas considerações que nos servirão de maneira aproximativa para compreendermos essa afirmação. Dirá ele que, anteriormente a Freud, se o inconsciente era definido como o ilógico ou o irracional, isso não queria dizer que ele o fosse, mas, simplesmente, que esta racionalidade precisava ser construída. Dirá ele, ainda, que mesmo que algo não ocupe o papel que cremos na lógica clássica, então, é preciso construir outra lógica.

Assim, se o paradoxo que citamos não se sustenta pela sua lógica formal, ele deve ser analisado cuidadosamente para que seja decifrada qual é a outra lógica – se há alguma – que está subjacente aos seus enunciados. Dessa forma, investigarmos qual é a lógica que sustenta o possível paradoxo contido nas proposições lacanianas, de que “o psicanalista só se autoriza de si mesmo… e de alguns outros”, será fundamental para avançarmos na compreensão acerca da formação dos analistas, mas este é o tema central da nova pesquisa que estamos desenvolvendo no nosso departamento.


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