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Resumo
A partir da clínica com crianças que apresentam queixas de dificuldades de aprendizagem e/ou hiperatividade, a autora discute as queixas que não se enquadram na etiologia neurológica, na deficiência mental, na psicose e na neurose. Busca respostas na teoria psicanalítica, focando o referencial metapsicológico usado por Sílvia Bleichmar nas suas investigações a respeito da constituição inicial do psiquismo, momentos onde o aparelho não está organizado o suficiente para que sejam produzidos sintomas, conforme conceito freudiano. Desta forma, a autora situa estas patologias como “transtorno” na constituição do psiquismo, segundo abordagem teórico-clínica de Sílvia Bleichmar. Também discute o conceito de “corpo-tubo” e de “acompanhante narcisista” desenvolvido por Ricardo Rodulfo nos quadros que ele denomina “transtorno narcisista não psicótico” e suas implicações no diagnóstico diferencial desta patologia via transferência, bem como os efeitos de seus dinamismos na vida escolar do sujeito.


Palavras-chave
transtorno; sintoma; transferência; dificuldades de aprendizagem; hiperatividade; tdah.


Autor(es)
Vera Blondina Zimmermann


Notas

* Texto ampliado e modificado a partir de “O conceito de transtorno e sua atualidade na clínica com crianças”, publicado no Boletim do Grupo de Formação em Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae em homenagem a Sílvia Bleichmar, por ocasião de seu falecimento em 2008.

1 Pacientes atendidos na Clínica de Atend. Psic. da ufrgs, Clínica-Escola; desde 1995, pacientes do cria (Centro de Referência da Infância e Adolescência da unifesp/Escola Paulista de Medicina).

2 J. Laplanche, La prioridad del otro en psicoanálisis.

3 S. Bleichmar, La fundación de lo inconciente – destinos de pulsión, destinos del sujeto, p. 48.

4 S. Bleichmar, “O intraduzível da mensagem do outro”, p. 15.

5 S. Bleichmar, La fundación de lo inconciente…, p. 40.

6 Sílvia Bleichmar diz usar o termo “ repressão originária” em vez de primária ou primordial, não apenas para marcar que ela se encontra antes da secundária, nem apenas aquilo que está desde o começo, mas em aquilo que funda, dá origem ao inconsciente (comentário feito por ocasião do lançamento de seu livro As origens do sujeito psíquico pela Editora Artes Médicas em Porto Alegre, 24 maio 1993).

7 R. Rodulfo, Transtornos narcisistas nos psicóticos, p. 24-25.

8 R. Rodulfo, op. cit.

9 O conceito de “corpo-tubo” também é trabalhado por Marisa Rodulfo na obra El niño del dibujo – Estudio psicoanalítico del grafismo y sus funciones en la construcción temprana del cuerpo, cap. 4 e 5.

10 R. Rodulfo, op. cit., p. 39.

11 R. Rodulfo, op. cit., p. 39-41.

12 R. Rodulfo, op. cit., p. 42.

13 No livro Singularidade na inclusão – estratégias e resultados, publicado em 2007 pela Pulso Editorial, São José dos Campos, do qual sou coautora, discutem-se alternativas inclusivas para este tipo de aluno, entre elas a “Tutoria”.

14 S. Freud (1924) Uma nota sobre o “Bloco mágico”.

15 S. Freud (1905). Três ensaios sobre a teoria da sexualidade.

16 R. Rodulfo, op. cit., p. 26.

17 É no livro La fundación de lo inconciente” que Sílvia Bleichmar fundamenta a teoria e a técnica deste trabalho de articulação de significações faltantes, o qual denomina de neogênese, de recomposição.

18 R. Rodulfo, op. cit., p. 39.

19 R. Rodulfo, op. cit., p. 40.

20 S. Bleichmar, La fundación de lo inconsciente…

21 Em meu trabalho intitulado Adolescentes estados-limite – a instituição como aprendiz de historiador, publicado pela Editora Escuta em 2007, discuto esta problemática e suas repercussões na adolescência.



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Abstract
Some difficulties in learning are not related to neurological problems, to mental deficience, to neurosis or psychosis. To investigate them, the author of this paper – an experienced child therapist – searches support in Sílvia Bleichmar’s metapsychological schemes of the early constitution of the mind. In this phase, the psychical apparatus is not yet able to produce symptoms in the classical, Freudian sense. In Bleichmar’s opinion, this condition must be described as generating a disturbance. The paper also examines Ricardo Rodulfo’s concepts of “body-tube”and “narcisic companion”and their implications for theschool life of the child.


Keywords
disturbance; symptom; transference; difficulties in learning; hyperactivity; daht.

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 TEXTO

Quando o pensamento se esvai na motricidade

a clínica psicanalítica da desatenção e da hiperatividade com crianças [*]


When thought leaks into motricity
Vera Blondina Zimmermann

Já no final da década de 1980, anos iniciais de meu percurso pela clínica com crianças, perguntava-me a respeito da etiologia de dificuldades que levam uma criança a não conseguir organizar seu corpo para aprender, mesmo quando ela não se enquadra em situações de prejuízo neurológico, deficiência mental, estruturação psicótica ou neurótica. Tratava-se de crianças cujas queixas constituíam o maior número na busca de atendimento (tanto na clínica particular como na pública) e socialmente acabavam sendo excluídas do sistema escolar, principalmente devido a problemas de conduta.

Nesta época iniciei investigações para entender a metapsicologia das questões ligadas a estas queixas. Fui buscar respostas para as questões ligadas a um sujeito cujo corpo se apresenta disfuncional, um corpo que se “esparrama” e não consegue organizar-se num tempo e espaço exigido pelo sistema escolar. Estas crianças quase sempre eram diagnosticadas como portadoras de Disfunção Cerebral Mínima, dificuldades que atualmente têm sido, muitas vezes, confundidas com o quadro de Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade.

A realidade da clínica com este tipo de dificuldades era a de se indicar vários tratamentos de diferentes especialidades para uma mesma criança, quase sempre, realizados paralelamente: psicoterapia, psicomotricidade, psicopedagogia. No que diz respeito ao registro ético, mobilizava-me a possibilidade de eu estar realizando indicações terapêuticas e tratamentos não apropriados, possibilitando intervenções inadequadas, sem que fosse escutada a verdadeira questão denunciada pela criança através de seu corpo.

Numa Clínica-Escola [1], também acompanhava a evolução de atendimentos desses sujeitos com queixas de hiperatividade e desorganização temporal, situações onde havia impossibilidade de as famílias suportarem o encargo financeiro de atendimentos particulares. Observava que, nesta instituição pública universitária, na qual os sujeitos realizavam apenas acompanhamento psicológico, com escuta de profissionais iniciantes, ocorriam efeitos importantes na melhora do quadro.

Durante meus estudos conheci o trabalho de Sílvia Bleichmar e de Ricardo Rodulfo, cujas produções teóricas e clínicas logo provocaram grande ressonância com minhas próprias questões em relação ao tema.

No trabalho de Sílvia Bleichmar interessoume seu percurso metapsicológico que investigava os primeiros tempos da constituição do psiquismo e as possibilidades de intervenção sobre esses “tempos” na clínica psicanalítica, considerando o inconsciente como não dado desde as origens e tendo como referencial básico os textos freudianos e as contribuições de Laplanche. Concomitantemente, as contribuições de Ricardo Rodulfo enriqueceram meus instrumentos clínicos para diagnóstico diferencial destes quadros via transferência.

Refazendo o seu caminho conceitual, busquei entender a constituição do sujeito psíquico e a relação desse movimento de constituição com as falhas instrumentais do seu corpo, falhas que impedem ou dificultam a aquisição de noções ligadas ao tempo, espaço e linguagem e que afetam o próprio tônus. Pude entender, então, que se tratava de um sujeito portador de “Transtorno” na constituição psíquica, conceito desenvolvido por Sílvia Bleichmar e que se refere às falhas responsáveis por situações de disfunção corporal, diferente de falhas neurológicas, registros facilmente confundidos na clínica com crianças.

Responder a estas perguntas implicava aprofundar os processos que dizem respeito aos primeiros tempos de instalação do inconsciente, antes da instalação da repressão originária, caminho percorrido por Sílvia Bleichmar.

A constituição inicial do sujeito

Sílvia Bleichmar revisou o conceito de neurose na infância, pressupondo um sujeito em estruturação, um inconsciente não dado desde as origens, tendo como paradigma de base a repressão originária. Usa este conceito enquanto proposta ordenadora para entender os tempos de estruturação do aparelho, tempos estes não genéticos, não lineares, sendo percebidos num movimento sempre après-coup. Busca em Freud as formulações nos textos o Inconsciente (1915) e O Recalcamento (1915), onde se afirma que o recalcamento originário cria a diferença entre os sistemas psíquicos, ou seja, são separados o inconsciente do pré-consciente/ consciente. Portanto, através dos efeitos do recalcamento originário é que podemos saber quando há inconsciente, para então abordá-lo analiticamente.

Retomando a teoria freudiana sobre o início da subjetivação, momento em que a cria humana se torna sujeito, Sílvia Bleichmar debruça-se em um de seus primeiros textos, Projeto de uma Psicologia para Neurólogos (Freud, 1895), no qual ele traça sua concepção inicial sobre o Aparelho Psíquico, concepção que será melhor delineada com a teorização da segunda tópica, onde o irrepresentável encontrou uma maior integração ao modelo, segundo leitura da autora.

É nesse texto, embora lance mão de um modelo de aparelho neurológico, que Freud formula sua ideia de como se dão a circulação e o processamento da energia na cria humana. O esquema que constrói é capaz de descrever os primeiros movimentos que instauram o sujeito, as ligações que, por sua vez, originam as representações. É também nesse texto que formula o que será tomado sempre como referência pela Psicanálise, ou seja, o lugar da função materna, a intersubjetividade da tópica.

A partir destas concepções freudianas e de alguns conceitos de Laplanche, Sílvia Bleichmar discute a problemática da constituição inicial do sujeito: a questão fundamental não está simplesmente na resolução do âmbito autoconservativo, pois isto não conduz ao sistema de representações desligadas da necessidade; a transformação da energia somática em psíquica advém da intrusão do outro humano dotado de inconsciente, que inunda a cria com uma energia não qualificada, não traduzida, ocasionando o traumatismo. Como teoriza Laplanche a respeito da Sedução Originária, os gestos autoconservativos do adulto são portadores de mensagens sexuais inconscientes para ele mesmo e incapazes de serem traduzidos pela criança [2].

A repressão originária – repressão destes significantes intrusivos – instala-se a partir da impossibilidade de o bebê decifrar estas mensagens carregadas de sentido e desejo, ou, em outros termos, com o esforço de ligar o traumático que acompanha a sedução originária.

Quando falamos de Sedução Originária no sentido teorizado por Laplanche, falamos de uma situação não patológica, mas fundante do psiquismo: encontro de restos inconscientes de um adulto, restos que ele desconhece, com uma criança que busca a satisfação de suas necessidades autoconservativas. Encontro a partir do qual, através do recalcamento originário, instaura-se a pulsão e, consequentemente, o inconsciente, a tópica psíquica e a abertura de relações de conflito intrapsíquico e possibilidades de troca entre os sistemas.

Segundo tal perspectiva, o representante pulsional é a marca mnêmica da sexualidade pulsante materna. No autoerotismo, primeiro tempo dos possíveis e posteriores caminhos desta pulsão, ainda não existe “uma unidade comparável ao ego” (Freud, 1914), um sujeito capaz de amar. As pulsões se satisfazem independentemente uma das outras: são inscrições indiciais nos múltiplos signos de percepção, ligados à experiência de satisfação e de dor.

A passagem do autoerotismo ao narcisismo ocorre a partir das ligações que a mãe propicia, frente à disrupção que a sua sexualidade instala no bebê. Faz-se necessário, então, como apresenta Sílvia Bleichmar, diferenciar o inconsciente materno do narcisismo materno:

[…] a origem da sexualidade humana não se instaura a partir da articulação significante, da linguagem, instalada no psiquismo materno, mas sim, precisamente do lado do inconsciente, das representações-coisa que circulam por meio dos modos do processo primário e dos investimentos massivos do autoerotismo reprimido. [3]

Portanto, o pré-requisito de ligação desta energia sexual originária encontra-se no funcionamento do narcisismo materno, diferenciado do autoerotismo, objetalizando-se numa comunicação que transvasa, dando possibilidades ao bebê de ingressar num horizonte saturante da castração. Neste sentido, ainda comenta Sílvia Bleichmar:

[…] a origem do inconsciente é exógena, mas de uma exogeneidade que deve ser concebida não como simples exterioridade, mas como estrangeiro (étrangeté). Nesta diferença entre a exterioridade (perceptual, familiar ou, simplesmente, do meio externo), e o estranho do outro, radica o aporte absolutamente original de Jean Laplanche, porque se trata de uma exterioridade que marca os começos da vida psíquica como excitante e traumática e define para sempre as relações do sujeito com o mundo. [4]

Estes destinos da intrusão do sexual, excitações que devem ser inibidas ou ligadas, são tarefas do ego. Antes da repressão originária, estes destinos devem encontrar resoluções através de conexões que são modos defensivos precoces. O movimento, a passagem do âmbito do autoconservativo ao sexual, do corpo da necessidade para o corpo pulsional, é o que instala a pulsão, e que será “o verdadeiro motor do progresso psíquico”. Seus movimentos definirão a constituição do sujeito.

Desta forma, entende-se que o ego não se constitui no vazio, mas sobre a base das ligações prévias entre sistemas de representações préexistentes; ainda que estas ligações consistirão, de início, em investimentos colaterais, ou seja, num conjunto de manobras amorosas que acompanham os cuidados primários com os quais a mãe efraciona no real do bebê as zonas erógenas primárias, oral e anal. No começo da vida este ego que produz inibições e propicia ligações não está no sujeito inicial mas sim no semelhante humano, e só a partir desta perspectiva é que se pode falar, segundo a autora, num “ego auxiliar materno”. Cabe à função materna, além de prover os recursos autoconservativos, inscrever, de início, estes recursos potenciais de “pulsão de vida”. Enquanto inscreve o corpo do bebê deve possibilitar- lhe o ordenamento e a articulação das representações, regulando a tendência à descarga.

Quando ocorrem falhas neste processo, segundo Sílvia Bleichmar, estas podem estar seja do lado das constelações narcísicas no caso da estrutura da mãe, que a incapacitam de funcionar enquanto objeto narcisizante, ou podem ser circunstanciais, como nos casos de depressão, quando a libido é retirada temporariamente.

Às vezes, é possível realizar as funções sexualizantes primárias que permitem a instalação da pulsão, propiciando os investimentos necessários à constituição de uma zona de excitação, porém, sem constituir-se em um objeto amoroso: o olhar materno centrado de forma autoerótica numa parte do corpo do bebê não verá sua totalidade, sobre a qual seria possível instalar-se uma representação da totalidade do corpo, posteriormente inscrita pelo ego. Portanto, haveria aqui um desencadeamento de energia traumática sexualizante, sem que houvesse vias de acesso regidas pelo princípio de prazer para derivála. Também, não haveria construção de investimentos colaterais através de gestos e carícias, que possibilitariam ao bebê o desenvolvimento da alucinação primitiva do objeto indiciático: a partir disso, o bebê não diminui sua tensão endógena, agarrando-se ao objeto que nunca lhe propicia alívio, mesmo resolvendo a questão da autoconservação. Dessa forma, haverá um déficit na narcisização primária.

Este desprazer tenderá a repetir-se, conforme coloca Freud no seu texto Mais além do princípio do prazer (1923), numa compulsão de repetição traumática que retorna porque não conseguiu vias de ligação. Usando as concepções de Freud neste texto e as de Laplanche com a sua teoria da Sedução Generalizada, Sílvia Bleichmar irá afirmar que as pulsões sexuais de morte funcionariam segundo o princípio de energia livre (princípio zero), sendo sua meta a descarga total, cujo preço é a aniquilação do objeto. A compulsão traumática deveria sua existência tanto à impossibilidade de ligar-se a uma significação, como à impossibilidade de descarregar-se: origina-se assim a repetição traumática a que está submetido um aparato incipiente. Nesta tentativa de simbolização, algo permanece irrepresentável e é este algo que deve ser reprimido, ficando fora da significação.

Sílvia Bleichmar toma de Laplanche a concepção de pulsão [5], pensando-a como surgindo num tempo anterior à ocorrência do ataque produzido pela estimulação exercida, desde o interior, pelo ego, pelas representações-coisa reprimidas. Sua operância produz movimentos evacuativos antes mesmo de a repressão instalá- la no inconsciente. O destino dos remanescentes excitatórios deverá ser sua transformação em possibilidades de conexões e derivações que constituiriam modos defensivos precoces.

Pensando num bebê que apresente falhas num processo inicial, o que acontecerá se não for instalada uma possibilidade efetiva de processarse a repressão originária que ordena e estrutura os sistemas psíquicos? Estas inscrições originárias sexualizantes permanecerão não sepultadas, nem enlaçadas em significações possíveis, retornando de formas irrepresentáveis, como restos que ficam impossibilitados de significação, e que acabam por se traduzir no que a autora chama de “Transtorno” na constituição psíquica.

O sujeito do “transtorno”, o corpo e a aprendizagem

Nesta linha de raciocínio metapsicológico, uma hiperatividade e/ou desorganização de funções corporais pode estar indicando a existência de uma energia não ligada de forma que possa ser sustentada por uma significação. Falhas no recalcamento originário dificultam a separação da carga da representação, o que leva ao ato, em vez da separação entre ato e discurso.

O “Transtorno” impede ou dificulta o sujeito de estruturar-se num segundo tempo de sexualidade, perturbações na instalação da tópica psíquica, que o limitam na organização de tempo e espaço e dos processos da lógica e do juízo. São falhas dos mecanismos básicos da constituição do psiquismo: aparelho que, então, permanece aberto, não organizado pela repressão originária, ou seja, onde os estímulos exteriores penetram e não encontram sistemas de escoamento organizado para a energia que transportam. Os efeitos no sujeito psíquico mostram-se como impossibilidade ou dificuldades em armar totalidades de significações, desarticulando as aquisições iniciais das categorias de tempo, espaço e da lógica, instrumentos necessários para a organização de uma realidade externa.

Desta forma, entendemos poder pensar aspectos de pacientes com queixas de problemas de aprendizagem: hiperatividade e disfunções corporais ligadas à angústia disruptiva, não enlaçada adequadamente em significações que possam lhe dar uma ordenação, e não sustentada pelas representações-palavras.

Ao contrário, quando se fala em sintomas, pressupõe-se um aparelho psíquico que já organiza as percepções, onde há formações inconscientes que fazem funcionar a repressão originária, ordenando significações. Um inconsciente formado em extratos diferenciados, e pensado em termos de economia libidinal, pressupõe um sistema de trocas entre os sistemas psíquicos instalados. A produção de sintomas neste aparelho já diferenciado acusa falhas nas defesas organizadas, desequilíbrio neste processo de economia libidinal, ou seja, uma tentativa substituta da repressão, visando manter esta ordenação das significações nestes extratos.

Sílvia Bleichmar ressalta que se todo sintoma se manifesta como um signo, nem todo signo é um sintoma. Segundo a autora, embora essa afirmação possa parecer trivial, elucida muito da clínica infantil, onde muitos signos, manifestações da conduta infantil, não podem ser entendidos como sintomas no sentido psicanalítico, ou seja, como representação direta ou figurada de uma ideia ou conflito, de um desejo inconsciente.

Pode acontecer que o aparelho não tenha constituído as ligações necessárias para que o discurso do outro ingresse como representaçõespalavra, e que esse ingresso se dê em termos de representação-coisa, o que nos faria compreender por que a criança apresenta respostas apenas na motricidade. Poderiam então ser descritos como significantes que ingressam no aparato e disparam sistemas representacionais, produzindo passagem à motricidade, já que o aparelho não tem condições de processar aquelas questões. São exatamente estas as situações que entendemos serem pertinentes ao que Sílvia Bleichmar denomina de “transtorno” na constituição psíquica.

O conceito de recalcamento originário, que ela passa a denominar de repressão originária [6], permite verificar a dominância estrutural no sujeito, pois é possível haver uma fratura em algum ponto, sem que isto leve necessariamente a diagnosticar uma estrutura que nela se baseie. Nesta perspectiva, podemos pensar numa neogênese enquanto efeitos de tratamento, ou seja, numa recomposição, diferente da abordagem de análise com neuróticos. Assim, a infância poderia ser concebida como um momento onde os representantes pulsionais se inscrevem, são recalcados e encontram seus destinos. Nos casos onde o sujeito apresenta fraturas neste recalcamento, tais representantes pulsionais não chegam a se organizar enquanto sintomas no sentido psicanalítico, mas, conforme definição da autora, organizam- se como “Transtorno”.

A criança, portadora do “Transtorno”, desloca- se constantemente de um lado para o outro e, quando sentada, parece sobre “espinhos” que não lhe permitem pensar. Acaba também atrapalhando a atenção dos colegas, o que, aos poucos, irá justificar sua exclusão da sala de aula.

As fraturas no entramado de base tornam o corpo incapaz de sair de cena, de deixar as representações- palavras operarem com eficácia no circuito pulsional. O nível de heterogeneidade da organização psíquica deste sujeito encontra uma enorme dificuldade para que ele avance na direção da definição da estrutura edípica de chegada.

Ricardo Rodulfo, por sua vez, conceitua um quadro patológico que denomina de “Transtorno Narcisista não Psicótico” para contemplar a complexidade de alguns quadros clínicos que se recusam a serem entendidos pela psicopatologia tradicional. Nas suas palavras: “a psicanálise não foi inventada para este tipo de pacientes. […] a psicanálise está classicamente acostumada a trabalhar no plano da significação, o que precisamente aqui não serve” [7].

Para situar este conceito, Rodulfo [8] nos fala de um sujeito cujo corpo se esparrama, como uma superfície contínua com dificuldade de “vertebração”, expressão da continuidade de seu aparato inicial, não organizado adequadamente pela repressão originária. Trata-se de um “corpo-tubo” [9] mas não fragmentado – corpo não organizado, corpo que se esparrama como uma garatuja, mas já com diferenciação entre o eu e o não eu – um corpo que nos remete à imagem do sujeito da sexualidade polimorfa de Freud, da qual emergirão as diferenças sexuais, mas que nesse dado momento ainda são indiscriminadas. Neste corpo as informações penetram, mas não conseguem se enlaçar numa organização inicial. Pensando neste fenômeno em termos freudianos, poderíamos dizer que um pré-consciente pouco estruturado impede que os estímulos que ingressam no organismo se enlacem em representações-palavras e sustentem uma derivação sublimatória. As associações escoam pelo corpo.

Falamos, segundo o autor, de um corpo que se distingue do corpo no autismo, onde ocorre uma impossibilidade de habitar o corpo e uma impossibilidade de escutá-lo, muitas vezes até na dor; do corpo na psicose, no qual predomina a fragmentação que não possibilita a organização de uma demanda e onde o sujeito apenas emerge de um modo incipiente na formação delirante; do corpo do neurótico, que tem acesso à representação- palavra e funciona como instrumento metafórico de suas significações.

Neste sentido, entendo que as disfunções corporais que impedem a criança de usar o corpo para se alfabetizar, por exemplo, podem estar falando de uma etiologia ligada ao “Transtorno” na constituição psíquica: o corpo não está fragmentado, mas tampouco se encontra suficientemente organizado para ser um instrumento metafórico, para que o sujeito possa se inscrever através dele. Apresenta falhas na elaboração de funções, funções essas indispensáveis para sua organização como instrumento, ou seja, pode ser descrito como um corpo onde as informações penetram mas apenas para escoar, sem a possibilidade de uma adequada organização. Muitas vezes, falamos de um corpo ainda não habitado por um sujeito que se pergunte sobre si mesmo.

O “Transtorno”: diagnóstico diferencial e transferência

Um diferencial importante a ser feito diz respeito aos quadros de inibição da curiosidade intelectual: ela pode ser efeito de fraturas nas origens do impulso epistemofílico ou ser um empobrecimento funcional, efeito de contracarga do ego. Esta última está ligada a uma produção de repressão neurótica e a primeira com os movimentos iniciais, onde ainda não se instalou a diferenciação, efeito da repressão originária. Esta diferenciação é muito importante na clínica dos problemas de aprendizagem, pois estabelece diferentes abordagens na condução da técnica: a inibição neurótica convoca ao trabalho de desconstrução, ao passo que a não instalação da curiosidade intelectual, enquanto possibilidade de surgimento da angústia, convoca ao trabalho de fazer emergir um sujeito, como estamos focando neste trabalho.

É deste fracasso inicial que surgem as questões ligadas ao empobrecimento da capacidade de metaforizar, às dificuldades cognitivas para se entender palavras de duplo sentido e chistes, enfim, o comprometimento na capacidade de simbolização. Todos esses processos não devem ser equiparados ao desconhecimento, entendido como negação, defesa neurótica, mas, sim, trata-se de um não ingresso na diferença.

É também essa diferenciação que se encontra nas origens da organização da lógica e do juízo. Desconhecer, enquanto mecanismo neurótico, já implica se ter sofrido o efeito da repressão dos significantes pulsionais, enquanto resíduos do vínculo sexualizante das origens.

Desta forma também é possível diferenciar em termos clínicos as dificuldades de memória, tão comuns nas queixas de aprendizagem. O sujeito neurótico pode apresentar repressão de significantes cujo aparecimento na consciência desencadearia angústia; nas dificuldades de memória também podem dever-se a falhas na origem da instalação da tópica, traduzindo-se por lacunas nas ligações entre as significações. O primeiro fenômeno é resultante do não poder lembrar e, o segundo, do não ter nada organizado, ou seja, da ausência de marcas mnêmicas enlaçadas segundo o modo de organização do pré-consciente.

Rodulfo discrimina, em relação às patologias da memória, as categorias de “vazio” e “buraco”, para situar o último como próprio dos quadros psicóticos. Situa o sujeito do transtorno narcisista não psicótico como portador da “memória como lacuna”, ou seja, a ideia de uma “memória vazia”. Diz Rodulfo: […] “o paciente declara não pensar em nada ou sentir-se vazio, que não é igual à tristeza” [10]. Aqui subentendida a tristeza como sintoma depressivo neurótico.

Falamos então, segundo este autor, de um corpo-tubo que funciona deixando entrar as informações, mas com dificuldades para realizar metamorfoses com esses materiais novos, deixando- os escoarem, fracassando na função de estabelecerem nexos com o que já aprendeu. Porém, o autor entende que, diferentemente dos problemas mais graves como nos quadros psicóticos, nos quais o vazio retorna por meio de produções alucinatórias e delirantes, no quadro do transtorno há uma certa reversibilidade, característica que explica por meio de um depoimento de uma mãe desse tipo de paciente: “Se nós estamos juntos ele tem vontade de brincar, ou pode fazer as tarefas da aula; porém, se não estamos, não pode fazê-lo e nem consegue brincar” [11].

Desta forma, o corpo do outro funciona como um “acompanhante narcisista”, segundo expressão de Ricardo Rodulfo [12], encarregado de organizar os quadros corporais e têmporo-espaciais e não como aplacador de angústia. Em termos de aprendizagem escolar isto repercute num melhor desempenho quando o aluno fica perto da professora ou dispõe de alguém para ficar ao seu lado enquanto executa suas tarefas [13]. Sem o olhar do outro o sujeito cai facilmente no descontrole motor, o que muitas vezes pode tomar a aparência de hipercinesia.

Uma importante questão a ser levantada quando consideramos as patologias que envolvem a noção de temporalidade é que o vazio da não constituição do sujeito irá impedi-lo de organizar séries temporais. Quanto mais próximo nos encontrarmos do funcionamento primitivo do aparato, mais prevalecerá à função de “borrão” [14] sobre a função de registrar, mesmo que estejamos nos referindo a registros precoces fortes. As repetições desse tipo de fatos não indicarão o surgimento do reprimido, mas sim a impossibilidade da repressão.

Esta ideia coloca novamente na gênese do espaço e do tempo a relação primordial do sujeito com a figura materna. Enquanto o sujeito não possui uma autonomia corporal é a figura materna que assume a organização deste tempo, sendo que o tempo objetivo aparecerá, posteriormente, como prolongação e transformação do tempo inscrito no corpo. São estes efeitos que se manifestarão em transferência: predomina nos materiais clínicos um pedido de presentificação do corpo e, principalmente, do olhar do terapeuta.

Este sujeito que investigamos não estabelece transferência a partir de uma representação integrada de um objeto inconscientemente investido. Demanda o olhar do outro e ainda precisa do corpo concreto do analista para sentir-se existindo: o corpo do outro é a garantia da presença de si mesmo enquanto sujeito. Em muitas crianças este pedido chega a tal grau de exigência que nos lembra as modalidades amorosas marcadas pela fantasia de devorar e incorporar o objeto, descrita por Freud [15] quando nos fala das etapas da organização pré-genital. Há uma tentativa de dominar o objeto, sem temor de danificá-lo, situações que deixam o analista exausto após uma sessão, sem que tenha como causa o excesso de movimentação física, mas sim a exigência pulsional destes estados pré-genitais.

As crianças que se apresentam com falhas na repressão originária e com isto trazem em seu corpo efeitos de desorganização falam de um momento de organização psíquica onde a possibilidade de ter um rosto ainda depende do rosto do outro.

Porém, o diagnóstico diferencial é fundamental: o pedido de olhar destes sujeitos crianças não é o mesmo pedido feito pela criança psicótica na qual ocorrem pictogramas de sensação e necessidade de toque corporal. Segundo Rodulfo [16], as crianças portadoras de formações do tipo melancólico ficam permanentemente aderidas e nunca terminam de se inscrever; buscam o corpo do analista como uma segunda pele, num predomínio de simbiose. No “Transtorno Narcisista não Psicótico”, trata-se de um pedido de olhar que especulariza, portanto, a cena transferencial é outra, apesar de precisarmos enfrentar a tirania de um corpo real e de termos que retirá-lo da cena.

Não se trata tampouco de uma busca de olhar da estrutura neurótica com formações histéricas, a serviço da sedução e do exibicionismo que busca o olhar de aprovação e admiração do analista, mas que já é portadora de um enigma inconsciente e por isto tenta disfarçar e esconder seu desejo. Este pedido de olhar deve ser recusado pelo analista.

Outro diferencial importante diz respeito aos quadros fóbicos onde o corpo do outro funciona como aplacamento e evitação de angústia de perder-se; na fobia o afastamento do outro gera desespero, mas no sujeito do “transtorno” significa perder o referencial, quase sempre via agitação e desatenção. Pode-se pensar o mesmo em relação às noções de tempo e espaço: um “perder-se” fazendo emergir a angústia – ou um deambular que traduz um sentido através da busca de uma determinada direção ou espaço – fala-nos de um sintoma que pode ser desvelado. Um ‘perder-se’ ou um deambular sem angústia, sem determinado sentido, fala-nos ao contrário de uma organização não adequada da repressão originária, o que impede consequentemente um desenvolvimento da temporalidade regida por processos secundários.

Nestas situações, partir de uma cena de “jogo” em transferência – subentendido aqui como a possibilidade de estabelecimento de comunicação – criam-se condições para que o sujeito coloque em cena pedaços desconectados de sua história. Seu corpo desorganizado na cena, representando os efeitos da sua desarticulação significante enquanto sujeito, move-se na direção do corpo do outro. Assim, nesta cena, onde os corpos desempenham uma função de figura principal, instala-se uma possibilidade de articulação de simbolizações faltantes na história do sujeito, articulações não necessariamente ligadas ao registro verbal [17] enquanto sentido intencional da palavra, mas ressoantes de todos os sentidos que elas contêm, quando proferidas.

É nesse sentido que nos referimos ao que parece ser uma necessidade da criança de que o corpo do analista funcione como presentificação de sua existência enquanto sujeito. Assim, neste ato de desenhar com o analista, ou mesmo só realizar qualquer outra atividade, desprende-se da criança uma visível satisfação por estar sendo acompanhada, independentemente dos resultados de sua produção.

Muitas vezes ela esboça um início de instalação de regra no jogo, estipulando, por exemplo, uma contagem de pontos ou qualquer outro limite. Mas, logo que a atividade começa a se desenvolver, esta tênue intenção se desvanece; isto ocorre não por seus impedimentos cognitivos ou neurológicos com respeito às categorias de temporalidade e espacialidade, mas porque ela ainda se encontra presa, se nos referirmos ao momento seu no processo de constituição como sujeito, num tempo anterior àquele que lhe possibilitaria colocar-se numa ordem quantitativa, num espaço definido. Sua busca visa apenas sentir-se existindo, mesmo funcionando corporalmente como um grande magma que se esparrama, como uma superfície contínua, para usar as palavras de Ricardo Rodulfo [18]. É neste “tomar emprestado o corpo do outro” [19], num pedido de ordenação de sua experiência, que se abrem possibilidades para que se organizem as significações faltantes. Em vez de enigmas, elas produzem associações por contiguidade, com dificuldades para se despreender das características concretas das sensações iniciais. Estão impedidas de metaforizar o aspecto traumático sofrido nestas vivências, e consequentemente não conseguem organizar a experiência para um relato segundo as leis da lógica, do tempo e do espaço produzidas pelo discurso neurótico.

Com o sujeito do “Transtorno”, urge ficar “à sua disposição” de uma forma diferente daquela onde basta dispormos de uma escuta atenta ao sentido das palavras. Toda a situação funciona como se ele fosse extraindo pedaços de nosso corpo e, na maioria das vezes, não podemos ter clareza quanto aos aspectos de nossos atos e/ou palavras que produziram sobre ele certos efeitos. Entendo que é por isto que verifiquei, ao longo de anos de supervisora de estagiários de Psicologia Clínica, Residentes de Psiquiatria e de outros colegas iniciantes, cuja tarefa era aprender a escutar o paciente, antes de preocupar-se com maiores entendimentos teórico-clínicos, que estas escutas também produziam efeitos neste tipo de patologia. Os profissionais iniciantes possuem, antes de um saber organizado, uma grande disponibilidade para escutar e entender, aspecto primordial neste tipo de clínica. Os efeitos não estão sempre ligados ao conteúdo das palavras, mas sim à forma como elas são ditas, quer revelando um afeto, quer marcando um momento de limite no tempo e no espaço da cena. A voz, com todas as suas possibilidades de registro, é produtora de efeitos e não somente o conteúdo do discurso falado.

Esta situação clínica também pode nos remeter à ideia de jogo proposta via o “Jogo do Rabisco” de Winnicott (1977): uma possibilidade de fazer emergir uma significação, uma produção inicial do sujeito na qual o que importa é o traço, antes da forma.

Desarticulado o saber do analista, aumentam as possibilidades de produção de efeitos. Compara-se a situação ao momento inicial pós-nascimento, onde a figura materna tenta identificar o que quer seu bebê e aquilo de que ele precisa. Mas esse processo de historização – que Sílvia Bleichmar [20] caracteriza como a gradativa estruturação de um modo significante dos fatos inscritos e também, segundo esta autora, não passa necessariamente pelo campo da palavra: são trocas que se estabelecem através da voz, sorrisos, olhares, modulações afetivas diversas que vão tingindo a cena de diversas significações. Assim, a figura do analista vai, através de ações ou /e palavras intencionais ou não, fazendo próteses, produzindo significações em representações- coisas, possibilitando que estas sensações traumáticas primitivas, estes excessos de quantum pulsional, possam derivar-se para uma instância capaz de produzir efeitos de significação.

Seria este pedido uma busca de preenchimento de uma função materna inicial que falhou? A compulsão à repetição poderia ser definida como uma busca de olhar significante? Sabemos ser impossível recriar aquilo que faltou num determinado momento da vida do sujeito, mas, como analistas, segundo Sílvia Bleichmar, podemos ajudar no estabelecimento de significações do ocorrido, o que produz efeitos de recomposição do passado por après-coup, no presente.

A compulsão à repetição estaria situada justamente neste corpo desconectado de um espaço e tempo objetivos, que repete um estado de não organização e, ao mesmo tempo, constitui uma busca do corpo do outro, sem que se articule uma pergunta metafórica para o analista.

A impossibilidade de se apresentar com enigmas pode nos produzir uma contratransferência tipo “não estou fazendo nada” e, o que é pior, pensá-lo como portador de disfunção neurológica e desta forma favorecer o tamponamento de sua subjetividade que ainda não se organizou suficientemente nos registros do secundário, mas que se tamponada na infância poderá estimular a irrupção de quadros mais graves na adolescência [21].

Enfim, organizar uma cena transferencial onde um sujeito do “Transtorno” possa produzir seus enigmas é ajudá-lo a passar pelo processo onde ele se inscreverá através dos movimentos de seu corpo e a partir do nosso, até que, aos poucos, sua concretude possa ser deixada de lado. Antes de tudo, é uma tarefa que exige a capacidade de sustentar uma duplicidade frente a este sujeito: a possibilidade de poder misturar-se e diferenciar-se. Sem pânico de “perder-se”, nem desagrado de “emprestar-se” temporariamente.

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Percurso é uma revista semestral de psicanálise, editada em São Paulo pelo Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae desde 1988.
 
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