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ÍNDICE TEMÁTICO 
45
Psicanálise: formação e instituições
ano XXIII - dezembro de 2010
232 páginas
capa: Fernanda Mendes Luiz
  
 

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Resumo
Resenha de Chaim Samuel Katz, Complexo de Édipo, Freud e a multiplicidade edípica, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2009, 163 p.


Autor(es)
Miriam Chnaiderman Chnaiderman
é psicanalista, membro do Departamento de Psicanálise, doutora em artes, documentarista.


Notas
1 G. Deleuze, A lógica do sentido, São Paulo, Perspectiva, 1974.

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 LEITURA

Enfrentando paradoxos na construção freudiana

o complexo de Édipo e a multiplicidade pulsional


Facing paradoxes on freudian construction
Miriam Chnaiderman Chnaiderman

Nossa revista Percurso costuma promover um debate entre autores e leitores cada vez que é publicada uma nova edição. No debate em torno do número 22, no qual Chaim S. Katz fora o psicanalista entrevistado, Maria Auxiliadora Arantes, aproveitando sua presença entre nós, comentou a posição por ele defendida frente à noção de pulsão.

Disse Katz naquela entrevista: “[…] se não se constituem sujeitos sem representações da pulsão, também não há sujeitos sem raízes instintuais”. E, quando fala em raízes instintuais, Chaim está falando em incorporais que se fazem de muitos lugares. Não existe, para Katz, um aparelho psíquico unitário. Aqui Chaim S. Katz adota Deleuze: “Todos os corpos são causas uns para os outros de coisas de uma natureza completamente diferente. Estes efeitos não são corpos, mas, propriamente falando, ‘incorporais’. Não são qualidades e propriedades físicas, mas atributos lógicos ou dialéticos. […] Não se pode dizer que existam, mas, antes, que subsistem ou insistem, tendo este mínimo de ser que convém ao que não é uma coisa…” (p. 5) [1].

Na entrevista, Chaim S. Katz afirma: “Penso que disse que devemos contar com a psicanálise sexualizada que não procura atingir a constituição do psiquismo inconsciente unicamente através do complexo de Édipo…”, não por acaso, “fabricando temporalidade unitária resultante do modo espacial”. Katz diz ainda que Freud, ao postular a castração enquanto princípio único da diferença sexual, uma protofantasia original universal elaborada no modo complexo, chegou à elevação de uma única categoria e do primado unitário da significação. Chaim S. Katz busca o sentido, aquilo que transcende a diferenciação entre significante e significado.

Por tudo isso, surpreende que Katz tenha se disposto a escrever um livro sobre o Complexo de Édipo, construção bastante universalizante em Freud. Ainda mais numa coleção como “Para ler Freud”, ou seja, uma coleção que pretende iniciar leitores interessados em Freud.

Como que para alertar, Katz coloca o subtítulo “Freud e a multiplicidade edípica”. Desta forma, explicita sua original leitura do Complexo de Édipo – a multiplicidade edípica é de Chaim S. Katz e não de Sigmund Freud. Mas, diz ele, assim se dá em qualquer leitura do texto freudiano conforme já alerta na frase de abertura deste instigante livro: “…as interpretações são infinitas e múltiplas”. Na já referida entrevista a Percurso, Katz afirma que não quer se distanciar de Freud e toma os textos “O malestar da cultura” e “O futuro de uma ilusão” para afirmar a inexistência de um complexo totalizante. Fala então em “pequenos édipos” sem “complexo totalizador”.

Já nas primeiras páginas, o paradoxo entre o universal e o singular, entre o a-histórico e a história é colocado: “o instrumental psicanalítico não depende apenas da época de sua enunciação”. O próprio Édipo traz em si esse paradoxo: diz respeito ao universal da constituição das subjetividades, mas respeita o que é singular em cada um.

Para Katz, o saber proposto por Freud é “transdiscursivo” ultrapassando “épocas e marcações culturais”. Sempre foram questões para Freud não apenas os sentimentos e afetos do indivíduo isoladamente, mas o “humano” de modo generalizado. E é a partir de sua própria experiência, de sua autoanálise, que Freud vai afirmar que os humanos se organizam psiquicamente através de um complexo nuclear. Haveria, portanto, “uma estrutura constituinte do psiquismo […] enunciada como o complexo nuclear do ser humano” (p. 22). Nas páginas seguintes, veremos Katz se desdobrar para dar conta do que vai movendo Freud em sua imponente construção do Complexo de Édipo.

Inicialmente, Katz enraíza no pensamento médico psiquiátrico a noção de “complexo”. Assim é que faz ampla pesquisa histórica, mostrando que, já naqueles momentos, os psiquiatras e neurologistas pensavam que “os efeitos das doenças mentais estão fora do alcance do ’Eu’ que produz os delírios”. Postulava-se um “conjunto de representações psíquicas” cuja função principal era “manter sua unidade e integridade…”. Essa concepção do que é um “complexo” norteará toda a leitura que Katz faz desse primeiro Freud. As experiências psíquicas se organizam em “sistema”. Ou seja, na “forma de representações que irão se conjuntar”. Afirma o autor: “Um sistema psíquico, para se manter unido, deve ser representado, erigido através de representações que tenham ligações necessárias entre si” (p. 36). A partir daí, é possível afirmar que o complexo “tem uma lei inconsciente própria que é de ter sempre seus termos relacionados entre si, não podendo deixar ou suportar vazios”. Seria a busca de coerência que organizaria o complexo. O Complexo de Édipo integral “não suporta o vazio, ou seja, a inexistência de alguma representação. Mas, a representação que se instala ‘no lugar de outra’ […] se encaixa no complexo inconsciente pois participa do seu mecanismo de complementação”. Só que a complementação não é semântica, mas sistêmica” (p. 57). Parece que uma lógica vai se constituindo, as representações ordenam-se para não deixar vazios, movidas por uma necessidade inerente ao sistema inconsciente. Buscando evitar, na sua leitura de Freud, um inconsciente conteudístico, Katz faz pensar em um conjunto quase que algébrico. Não deixa de ser uma rica leitura, pois elimina a ideia de um homúnculo/ censura selecionando conteúdos representacionais, ou de um inconsciente pensante nos moldes da consciência. Foi buscando lidar com estas grandes questões freudianas que Lacan pensou em um inconsciente que se estruturaria como linguagem. Parece haver um Freud que autoriza a leitura lacaniana.

Mas Katz é ferrenho crítico ao lacanismo. Na citada entrevista, refere-se a uma “certa noção contemporânea de pulsão que desliga um dos seus componentes ou movimentos – a emergência somática – de sua constituição”, desconhecendo a imanência dos processos pulsionais. No decorrer do livro também é possível destacar vários momentos em que, mesmo sem nomear, critica a psicanálise lacaniana. Por exemplo, quando afirma, à p. 52: “Não há seleção, regulação, organização e distribuição dos elementos da discursividade, não há atração ou determinação de regras estritas que fundariam os lugares onde os indivíduos deverão se tornar subjetividades passivamente”. Há, aqui, uma clara crítica a uma certa concepção da sexualidade e às fórmulas da sexuação tal como Lacan as propôs.

Chaim S. Katz pensa no sujeito como tendo raízes instintuais. Há uma luta entre as pulsões e a forma de funcionamento do complexo. Afirma o autor: “… a substituição de representações se dá desde sua afirmação corporal, pois corpos são sempre regimes sensíveis, a libido é sempre sexual e corporal, ‘inicialmente’ na busca de satisfação”. (p. 37). E, condizente com sua leitura da psicanálise, o prazer é expansão. Aqui, a partir da leitura que Deleuze faz de Nietzsche, Katz pensa como buscar as forças de uma vida mais afirmativa.

Mas, nesse Freud, o prazer é dado a partir de um complexo representacional. Ou seja, há uma restrição na expansão. O Complexo de Édipo vai produzir uma ruptura na onipotência das pulsões pois, sendo um complexo de representações, tem regras próprias que não se submetem à satisfação imediata das pulsões libidinais. Mas a libido só se manifesta edipicamente, eis o paradoxo sobre o qual Katz se debruça.

Freud pensou o “Eu” como sendo, sobretudo, corporal, e esta será a afirmação-guia para Katz. Mais uma vez, a crítica às linhas contemporâneas da psicanálise que imaginam o desejo “apenas da cintura para cima”. Pensar o desejo como existindo apenas da cabeça para cima tem a ver com a psicanálise que estabelece o Complexo de Édipo como uma “meta prévia, algum objetivo que seria a direção única” (p. 50). Assim como não há meta prévia, não existe um depois. Não há uma escala cronológica.

Katz não nega a importância do discurso, ao qual só acedemos através do Complexo de Édipo. Se o fluxo é sexual, “ele entra em relação pelas regras estabelecidas pela teoria da Associação…”, pensa Freud seguindo os empiristas ingleses. Mas, afirma Katz: “tais relações têm uma regra prévia e própria que é o Édipo” (p. 44). A ordem do desejo não se desvincula das mutações do corpo. Se a libido quer satisfação a qualquer custo, ela sempre desafiará um sistema universal de representações. Ao mesmo tempo, foi um sistema universal de representações que permitiu a emergência dos humanos, “a transformação de indivíduos em assujeitados, em indivíduos que se colocassem sob o complexo”. No mito, Édipo obteve satisfação, mas a peste assolou Tebas. Indaga-se Katz: “O que não se suporta individualmente e em grupo?” (p. 37). Mais uma vez, o autor se mostra pensador da intersecção entre o político e o singular, traço que o caracterizou como pensador desde a década de 1970, em plena ditadura militar. O Complexo de Édipo tem a ver com a passagem da individualidade ao modo de se fazer sujeito, “de subjazer a um conjunto de regras, conjunto este que é também uma produção corporal” (p. 55).

É a noção freudiana de “representações-limite” que vai permitir a Katz fazer a ponte com o corporal. Para introduzir esse conceito em Freud, cita a carta 98 para Fliess, em que reflete sobre a inscrição (impossível) do corpo no registro das representações. Na entrevista, Katz vai ao Manuscrito K, onde Freud elaborou a noção de representação-limite. Lembra que Freud afirmou que elas emergem entre afeto e representação, situadas entre o eu consciente e ‘uma parte não distorcida da lembrança traumática’ (Freud apud Katz). Essas representações não chegam ao grande complexo unitário que as organizaria retrospectivamente, “pois sua emergência devém”. No livro, o autor cita o grande linguista Jakobson, que mostrou que a linguagem da criança é determinada por sua relação com seu primeiro corpo expressivo. Essas relações estariam na base de qualquer linguagem. É o que Jakobson denominará como “presença do icônico no simbólico”, em seu artigo “A procura da essência da linguagem”. Essa é a passagem para Katz nos dizer que o Complexo de Édipo “não se restringe à figuração” (p. 55) pois é preciso considerar os afetos com seus efeitos não intelectuais.

Chaim S. Katz, na entrevista supracitada, reconhece sua dívida para com Foucault. Citando: “Com Foucault eu soube que não existe esta perenidade estrutural da representação ou dos significantes…” a partir de uma articulação universal. Sempre remetendo à filosofia, Katz reafirma que não existe um conceito unitário de representação. Chega a Schoppenhauer, que distinguiu entre vontade e representação. É a vontade que impõe à representação uma elaboração trágica, passando a dilacerá-la através de forças desconhecidas. A vontade, segundo Katz, também estará presente em Freud: “quando aparece uma representação incompatível”, haveria “um esforço da vontade para se livrar delas” (p. 41). Katz afirma a presença de vontades e contravontades visando a não deixar o sistema psíquico vazio. Diz ele: “…haverá esta outra dimensão da psicanálise freudiana, de uma vontade que não está na presença do sujeito, mas que o obriga a seguir adiante, na busca incessante de outra e mais outras representações diferenciadas” (p. 41). Será que Freud fala em “vontade” ou esta seria uma interpretação shoppenhauriana que Katz faz? Muitas vezes, a ausência das referências ao texto freudiano nos coloca essa dúvida em relação a algumas interpretações que percorrem o livro.

A partir do conceito de vontade, Katz vai nos apresentar, já pela página 80, um Freud em que não há o “primado da Associação e do sistema de representações”: “trata-se da vontade do inconsciente” (p. 84). A sexualidade passa a ser manifestação da vontade que se faz independentemente das representações: “a satisfação se expressa desde os órgãos corporais e produções incorporais e de experiências características, e não obedece à ordem das representações” (p. 84). Agora, Chaim S. Katz está em casa, em um Freud que é o seu Freud, e que lhe permite passear com Schoppenhauer e Nietzsche.

Ao analisar em Freud a questão da memória, Katz discorre sobre a noção de aparelho psíquico. Cita a carta 112 de Freud a Fliess, mostrando como os signos da percepção se organizam por associações de simultaneidade (associações sincrônicas): surge “uma memória inconsciente que não obedece à organização representacional edípica. Analisando as três inscrições que Freud propõe (sabemos que sistematizadas no “Projeto de uma psicologia para neurólogos”), Katz acentua: “Sabemos que as inscrições são etapas psíquicas de diferentes fases da vida, mas que se fazem incidindo umas nas outras, sem chegar a algum cume que as organize” (p. 108). O aparelho psíquico se faz de restos e descontinuidade. Surge então em Freud um outro estatuto para o corpo, “diferente daquele que imagina os corpos como meras reproduções ou palcos reprodutivos de um sistema representacional” (p. 113). As ações corporais são expressões de movimentos afetivos e não se encaixam em nenhum esquema prévio.

É a partir daí que Katz pôde afirmar, naquela entrevista: “o fazer psicanalítico se estabelece na relação incorporal inconsciente do corpo do indivíduo com suas experiências de sentido, e se constitui também numa história significacional onde se expressa o registro trágico do sujeito. É assim que postulo a possibilidade e também os limites do complexo de Édipo”.

Chaim S. Katz, em um ato político, encerra o livro tentando pensar a questão judaica, o estado de Israel, a partir do que discutiu em relação ao Complexo de Édipo. Retoma, então, a afirmação que já fizera anteriormente, relativa aos sentimentos de culpa e vergonha como fundamentos do inconsciente. Penso que um outro livro seria necessário para que o autor pudesse melhor desenvolver aquilo que apenas se delineia nessas palavras finais. Mas, depois de viajar por meio de Kant, Levi-Strauss, Vernant, Gesa- Roheim, Derrida, entre tantos outros, depois de descobrir tantos Freuds e tantos Complexos de Édipo, só nos resta agradecer a Chaim S. Katz essa possível abertura para pensar o contemporâneo.

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