Editorial

Entre dois tempos, ainda sem saber o resultado definitivo das eleições deste ano de 2022 quando da escrita deste editorial, esta revista vem, mais uma vez, por sua própria existência, afirmar a importância de que prevaleça o trabalho de pensamento como efeito de partilha, possibilitando mudanças de perspectivas e infinitas aberturas.

São diversos os artigos que compõem este número de Percurso. No conjunto, não há uma temática que prepondere sobre as outras. No entanto, em um momento tão crucial, em que o valor da democracia precisa ser defendido vigorosamente, sobressaem diferentes figuras do diálogo: formas em que perspectivas, ora divergentes, ora convergentes, podem se relacionar, sem que se estabeleça entre nós o domínio de um pensamento único ou absoluto.

Dois artigos contribuem para o debate entre distintas perspectivas psicanalíticas quanto aos feminismos, às teorias de gênero e às novas práticas sexuais. O artigo "Diálogos (im)pertinentes: Psicanálise, teorias queer e transgeneridades" confere valor aos estudos de gênero por instigar o pensamento psicanalítico e busca investigar diferentes tentativas de ultrapassagem do binarismo, enfatizando a especificidade da abordagem e a contribuição da psicanálise a esses estudos. Já "O falo e a falta: Notas sobre as redesignações sexuais, intervenções hormonais e dores sem sujeito" não se furta à controvérsia ao sustentar a anterioridade da força da natureza às contingências do gênero - recuperando a leitura de Julia Kristeva do pensamento de Simone de Beauvoir e as críticas de Butler a essa posição - além de questionar o modo Paul Preciado de apresentar sua travessia "como se não portasse gênero algum".

Dando prosseguimento às interrogações sobre o corpo, um diálogo convergente se estabelece entre dois artigos que discutem as relações entre a noção de elaboração imaginativa proposta por Winnicott e a constituição do psiquismo a partir das primeiras relações com o objeto subjetivo em direção às relações objetais, abordando o lugar da destrutividade relacionada ao erotismo muscular representando um sintoma de estar vivo que possibilita as transformações.

Enquanto passagem do tempo lança novos olhares ao diálogo conceitual entre Freud e Ferenczi no artigo de Luis Martín Cabré, "Uma dobra barroca em 22" se inclui de forma incisiva nas discussões em curso por ocasião do centenário da Semana de Arte Moderna e duzentos anos de independência do Brasil, revelando fraturas e jogos de forças desde sempre presentes.

Na entrevista, Paulo Endo fala de sua pesquisa sobre as relações entre psicanálise e política, sobre a violência, memória e esquecimento; e como a arte e os sonhos podem nos ajudar na elaboração e superação das compulsões alienantes.

"Vamos falar de fascismo?" foi a questão lançada pela seção Debates, um convite aos autores para pensarem a cultura fascista e como se atualiza, sob novas bandeiras, nas subjetividades, a partir da ideologia nazifascista do séc. XX.

Assim, diálogos, interlocuções e interrogações emergem deste número.

Atar a presença da força e da alegria à exigência de um pensamento complexo e matizado, capaz de suportar nuances e conflitos, em oposição ao ânimo fácil suscitado por afirmações simplistas e supostas verdades, eis uma tarefa que se impõe a nós no contemporâneo.

A capa deste número é uma obra de Elaine Armênio, psicanalista, escritora e artista plástica, querida companheira e amiga, que com sua delicadeza, sensibilidade e humor fino esteve conosco participando ativamente, nos últimos 30 anos, da construção da vida deste Departamento.

Boa leitura!

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