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Resumo
Fruto de estudos sobre as relações entre arte, psicanálise e política, este trabalho olha e escuta rastros da violência de Estado apresentada na exposição O mar que atravessamos (2014), de Fernando Vilela. Visa a uma memória ativa do tempo presente ao revisitar a insurgência dos processos criadores de uma experiência pública simbolizante da história do Brasil dos anos 1970.


Palavras-chave
arte e psicanálise contemporâneas; violência de Estado e resistência; memória e contramonumento.


Autor(es)
Adriana Barbosa Pereira
é psicóloga, psicanalista, graduada pela Universidade Federal de Minas Gerais, especialista, mestre e doutoranda pelo Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo.


Silvia Nogueira de Carvalho
Psicóloga, analista institucional, psicanalista. Membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, editora de seu jornal digital Boletim Online, professora no curso Clínica Psicanalítica: Conflito e Sintoma e articuladora da Área de Publicações e Comunicação no Conselho de Direção de 2021 a 2023. Integrante do coletivo Escuta Sedes. Foi cofundadora e integrante dos grupos Arte e Psicanálise (2007-2019) e Partilhas da Clínica (2017-2019) no Espaço Brasileiro de Estudos Psicanalíticos de São Paulo (EBEPSP).


Notas

Nota Este trabalho foi apresentado no X Congresso FLAPPSIP?- VI Congresso AUDEP: "Configurações atuais da violência. Desafios à psicanálise latino-americana", em Montevidéu, 25 de maio de 2019. Corresponde a uma versão modificada da que foi apresentada na XVII Jornada do Espaço Brasileiro de Estudos Psicanalíticos, "Insurgências de Eros em tempos de escassez", no Rio de Janeiro, 24 de agosto de 2018.

 

1.  Publicada sob o título "A palavra não é onde as coisas nascem", na edição 32 do Boletim Online?- jornal digital do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, em novembro de 2014. Disponível em: http://www.sedes.org.br/Departamentos/Psicanalise/index.php?apg=b_visor&pub=32&ordem=1

2. E. Chaves, "O paradigma estético de Freud". Prefácio a Arte, literatura e os artistas / Obras incompletas de Sigmund Freud.

3. Tal como em 2010 foi transmitido pela fala da psicanalista Heidi Tabacof na abertura do lançamento do livro Clínica e Política. Ver Boletim Online, edição 12, abril de 2010: http://www.sedes.org.br/Departamentos/Psicanalise/index.php?apg=b_visor&pub=12&ordem=2&origem=ppag).

4. F. Vilela.,Lampião e Lancelote.

5. No instituto Projetos Terapêuticos, em São Paulo.

6. A. B. Pereira, Da experiência estética para a experiência psicanalítica: reverberações entre força, figura e sentido, p. 131-141.

7. S. Freud, Novas conferências introdutórias à psicanálise.

8. No posfácio de C. Beradt, Sonhos no Terceiro Reich.

9. G. Didi-Huberman, A sobrevivência dos vaga-lumes, p. 138.

10. Para aprofundar a distinção entre os três regimes de visibilidade das Artes?- ético, poético e estético?- segundo o filósofo J. Rancière, ver S. Nogueira de Carvalho, "Silêncios. Sobre psicanálise, arte e resistências".

11. S. Nogueira de Carvalho, "No lugar da máscara, meu rosto" (inédito).

12. Tombado em janeiro de 2014 pelo Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico (Condephaat) de São Paulo.

13. R. Bradbury, Fahrenheit 451: a temperatura na qual o papel do livro pega fogo e queima.

14. L. Pareyson, Os problemas da estética.

15. M. Merleau-Ponty, "A dúvida de Cézanne", p. 122.

16. P. Endo, "Memória, memoriais e o futuro dos que sonharam e dos que sonham com a democracia".

17. A coexistência desses dois modelos?- o modelo do sonho e o modelo do ato?- em psicanálise contemporânea é abordada em Green 2001.

18. Em referência à melancolia da canção composta por Lupicínio Rodrigues em 1947.



Referências bibliográficas

Beradt C. (2017). Sonhos no Terceiro Reich. São Paulo: Três estrelas.

Bradbury R. Fahrenheit 451: a temperatura na qual o papel do livro pega fogo e queima. São Paulo: Globo, 2003.

Chaves E. (2015). O paradigma estético de Freud. Prefácio a Arte, literatura e os artistas / Obras incompletas de Sigmund Freud. Belo Horizonte: Autêntica, 2015.

Didi-Huberman G. (2011). A sobrevivência dos vaga-lumes. Belo Horizonte: UFMG.

Endo P. (2014). Memória, memoriais e o futuro dos que sonharam e dos que sonham com a democracia. Correio da APPOA, ed. 236, julho de 2014. Disponível em http://www.appoa.com.br/correio/edicao/236/memoria_memoriais_e_o_futuro_dos_que_sonharam_e_dos_que_sonham_com_a_democracia/111. Acesso em 12/02/2019.

Freud S. (1900/2015). A interpretação dos sonhos. Porto Alegre: L&PM.

____. (1920/2006). Além do princípio do prazer. In: Escritos sobre a psicologia do inconsciente, volume II: 1915-1920. Rio de Janeiro: Imago.

____. (1933/2010). Novas conferências introdutórias à psicanálise. In: O mal-estar na civilização, novas conferências introdutórias sobre psicanálise e outros textos (1930-1936). São Paulo: Companhia das Letras.

Green A. (2001). El tiempo fragmentado. Buenos Aires: Amorrortu.

Merleau-Ponty M. (1948/1984). A dúvida de Cézanne. In: Merleau-Ponty, M. Os pensadores. São Paulo: Abril Cultural.

Nogueira de Carvalho S.; Pereira A. B. (2014). A palavra não é onde as coisas nascem. Boletim Online do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, ed. 32, novembro de 2014.

Nogueira de Carvalho, S. (2017). Entre a força e o sentido: Arte e Psicanálise diante da dor dos outros. Percurso, Revista de Psicanálise, ed. 58, ano XXIX, junho de 2017.

____. (2019). Silêncios. Sobre Psicanálise, Arte e Resistências. Percurso, Revista de Psicanálise, ed. 61, ano XXXI, junho de 2019.

____. No lugar da máscara, meu rosto. Inédito.

Pareyson L. (1966/2001). Os problemas da estética. São Paulo: Martins Fontes.

Pereira, A. B. (2014). Da experiência estética para a experiência psicanalítica: reverberações entre força, figura e sentido. São Paulo: Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo.

Rancière J. (2005). A partilha do sensível: estética e política. São Paulo: EXO experimental/Ed. 34.

Rodrigues L. (1947). Nervos de aço. Disponível em: https://www.letras.mus.br/lupcinio-rodrigues/127284/. Acesso em 12/02/2019.

Vilela F. (2006). Lampião e Lancelote. São Paulo: Cosac & Naify.

 





Abstract
The result of studies on the relationship between art, psychoanalysis and politics, this work looks and listens to traces of State violence presented in the exhibition O mar que atravessamos (2014) [The sea we have crossed], by Fernando Vilela. It aims at an active memory of the present time by revisiting the insurgency of processes that created a public experience symbolizing the history of Brazil in the 1970s.


Keywords
contemporary art and psychoanalysis; state violence and resistance; memory and counter-monument.

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 TEXTO

São livros de aço!

sobre formas estéticas de afetar


They are books of steel!
About aesthetic ways to affect
Adriana Barbosa Pereira
Silvia Nogueira de Carvalho

Nunca souberam quão profundo foi o mar que atravessaram. Inscritas numa monotipia da artista Mira Schendel, essas palavras são uma chave de leitura da dupla vertente?- familia

Nunca souberam quão profundo foi o mar que atravessaram. Inscritas numa monotipia da artista Mira Schendel, essas palavras são uma chave de leitura da dupla vertente?- familiar e artística?- da transmissão transgeracional que ressoa na exposição O mar que atravessamos, de Fernando Vilela (1973), realizada em São Paulo em 2014. Fotografias, gravuras, livros de artista, instalação e vídeo, assim como as palavras trocadas com o artista em entrevista na Galeria Virgílio[1], nos incitam a assinalar necessárias distinções entre psicanálise dos processos criadores e produção de patografias.

Não é neste gênero médico-psiquiátrico nascido no século XIX, na perspectiva do biopoder, que temos interesse, pois não buscamos na obra e na biografia de um artista os indícios de uma psicopatologia. Nossa trilha é a que encontra, desde Freud, significativas similaridades entre processos de criação artística, efeitos das obras de arte sobre o espectador e o modelo de constituição subjetiva[2]. Trata-se de sustentar a presença da psicanálise nas políticas culturais que se interpõem à violência dessubjetivante?- trabalho inevitável para a memória do tempo presente, no qual se incitam, no Brasil, discursos militarizantes em meio a sobrevoos de helicópteros policiais que atiram de cima, baleando meninos apressados, tal como ocorreu em julho de 2018 no caminho para a escola da comunidade da Maré, no Rio de Janeiro.

 

Genealogia de um trabalho caprichoso

Justamente a figura de um outro helicóptero, transitando entre imagem fotográfica e gravura, convidava à visitação da exposição. Na primeira sala da galeria, agigantada na parede, era acompanhada de uma pequena inscrição numa plaquinha de ferro, onde quase não se lia: Aço, aço, aço?- maio de 1978, e se repetia nos livros de artista dispostos numa bancada ao centro do espaço expositivo, intitulados Cachorro no espaço e diferentemente datados: agosto de 1979 e abril de 1984. Convocadas à experiência de olhar a obra a partir dessas pistas, encontramos um papel avulso num escaninho:

 

Calças azuis, tênis sujos, braços suados, muita gente. Me sentia bem, estava quente, espremido e alegre. Até que subi para o alto. Que multidão! Vi cartazes, sorrisos, barbudos, cabeludos e carecas dos ombros fortes do papai em passo firme e mão abraçando mãe. Do céu veio o barulhão. Eram helicópteros militares voando muito baixo. Que lindo! Aço, aço, aço, tem cachorro no espaço! Lá dentro eu via os soldadinhos com metralhadoras apontadas para nós. Ninguém tinha medo. Aquilo tudo era muito bom. Continuamos gritando juntos.

1o de maio. Greve geral, Estádio de Vila Euclides?- São Paulo.

 

Quais os tempos vivos em jogo nesse conjunto? Vilela localiza sementes da exposição no solo da vida familiar envolvida nos anos 1970 com a organização política conhecida como AP, ou Ação Popular, na casa-aparelho que refugiava, nos medos que permeavam a clandestinidade e suas consequências, nas informações sabiamente filtradas pelos pais e tios, nas sessões de terapia feitas para tratar de uma insuportável dor de garganta crônica. Antes de tudo, tais sessões resultariam em um testemunho intitulado Um feto na revolução?- em referência ao período em que a mãe, grávida de sete meses e meio, foi interrogada na militar Oban (Operação Bandeirantes), escrito de cunho terapêutico nunca desdobrado ou publicado, pois fazia parte de um contexto clínico bastante particular.

Nessa passagem do Cachorro no espaço o artista contava 5 anos de idade, em meio à Greve Geral de 1978, mas foi a partir do trabalho da Comissão Nacional da Verdade (2012-2014) que novas recordações afloraram?- talvez por conta dos movimentos que emergiram na mídia, quando até mesmo notícias de rádio convocaram cidadãos brasileiros a aportarem indícios, lembranças e documentos que pudessem ajudar a esclarecer o destino de desaparecidos políticos[3].

Certos arquivos se abriram para Fernando quando, em 2007, a mãe e as tias presas e torturadas em 1973 entraram com processos contra o Estado, para acederem à indenização simbólica considerada importante para que o Estado assumisse que foi criminoso. Ao ajudar a mãe a escrever para a Comissão de Anistia, interessou-se pela leitura dos depoimentos das tias, que, mais de 30 anos depois, contavam histórias da prisão e da tortura sem emoção vitimista ou revanchista. Ao entrar ele também com um processo, novas narrativas. Quando a indenização saiu, pulsou o desejo de usar o dinheiro numa produção artística. Juntou cacos de memória, sonhos e imagens.

A quantas passeatas foram! Quantos livrinhos sobre os desaparecidos eram empilhados na estante da sala! E o menino de 8 ou 9 anos costumava dizer: "Tia, está muito mal impresso isso aí"... Tocamos assim nessa curiosa genealogia de um artista gráfico caprichoso, pois tínhamos olhado seu primoroso livro, Lampião e Lancelote[4]. Rimos juntos. E pensamos na indeterminação das marcas psíquicas informes, que, no tempo da posterioridade, deram lugar a processos criadores reversos da patologia: ali onde se ancoraria um sintoma, um talento pôde advir.

Fernando começou desenhando, anotando memórias, gravando histórias ouvidas, juntando todo esse material bruto de imagens acústicas e visuais?- associando e, desta forma, abrindo espaço para as afetações próprias aos processos primários. Também conversando, consentindo que suas palavras passassem pelo pensamento de outros: sua mulher, Stella Barbieri, também artista e sua principal interlocutora estética; Cristina Herrera, psicanalista que conheceu numa sessão familiar relativa ao projeto Clínicas do testemunho[5], no qual membros de sua família se engajaram. Para o artista, se tratava de decidir até que ponto fazia sentido sua biografia entrar explícita no trabalho?- a primeira pessoa, as histórias?- ou criar ficção ou, ainda, uma situação em que não se sabe o que é ficção...

 

Entreditos: história, política e arte

Enveredou pelo caminho de deixar as coisas entreditas ao registrar datas como pistas de memórias. O helicóptero, assim, se fez imagem estética de um olhar que sobrevoa múltiplas temporalidades, em reconexão com um olhar de menino a demandar movimento e ação através do embate com a matéria. A gravura em madeira foi um meio que respondeu aos seus anseios de forma; assim como o ferro?- material de atrito, de briga. As datas como pistas armaram o jogo de subtrair-se para dar informação de uma época: o trabalho é de 1978, mas o artista nasceu em 1973; então a data da obra não é a data em que o trabalho foi realizado, é um conteúdo da obra. Obra cuja fruição começa pelo artista e se completa depois de aberta ao público: só-depois de inaugurar a mostra Fernando agregou aqueles textos nos escaninhos de aço, pois notou que deixara a exposição silenciosa de palavras ao tê-las grafado apenas como legendas sobre as plaquinhas de metal escuro e lixado. Metal que não expõe muito e pede que se leia com o tato.

O olhar do artista figura então aquele olhar da criança do 1o de maio: diante dos apelos que lhe eram familiares?- seu gosto pelas sensações e observações, seu desgosto do medo, seu sonho de estar junto?-, face à estranha experiência de ter metralhadoras apontadas para si. Essa disjunção familiar/estranho compõe um retrato do Brasil no final dos anos 1970 e início dos 1980 ao dar lugar e testemunho aos processos políticos encarnados na vida e no corpo da obra. Há inclusive um aspecto orgânico nos livros da exposição, feitos com papéis artesanais irregulares e encadernação japoneses. Eles são únicos e as impressões em xilogravura são únicas também; as fotos se repetem, mas o que vai sobre elas são gravuras se deslocando, como num jogo de histórias visuais. Primeiro a fotografia é impressa no papel japonês e depois a gravura é impressa sobre ela: são duas impressões, numa particularidade específica do trabalho de Vilela a evocar a sobreposição das inscrições de memória.

Os helicópteros também fazem referência às guerras atuais, aos crimes na periferia de São Paulo envolvendo homicídios e torturas. Ao assumir falar também do nosso tempo, Fernando recorreu às fotografias de nuvens nas quais trabalhava havia dois anos. Não buscava figuras e sim climas: nuvem que parece fumaça, nuvem de tempestade iminente, nuvem mais celeste, mais transcendente... Começara por fotografar nuvens de pinturas: a natureza sublime das tempestades de William Turner; as pinceladas espessas de Camille Corot representando algo tão diáfano; um céu espesso de Gustave Courbet. Além das fotos tiradas de trabalhos de outros artistas, Vilela se apropriou de fotos de domínio público?- registros da explosão da bomba atômica de Nagasaki ou da erupção de um vulcão.

Deste modo, a foto atual de um bombardeio na Faixa de Gaza conversa com nuvens do fim de tarde na varanda de sua casa no mesmo dia, assim como a crueza do céu sem transparência da Vista de Toledo, de El Greco, é ressignificada ao lado da bomba atômica. Vilela colocou em jogo esses conflitos como diálogos intersubjetivos que atravessam tempos e espaços. A singularidade inconfundível das imagens jornalísticas selecionadas é um dos traços que evocam a irreprodutibilidade da pintura. Também a escolha do preto-e-branco, as ampliações fotográficas em que o grão aparece visível e a sua impressão num espesso papel de algodão aproximam entre si imagens tão heterogêneas nessas produções que designamos foto-pinturas. Apresentadas nos trípticos que convidam nosso olhar a se deslocar de uma imagem a outra, por 5 séries?- intituladas Entardecer agosto 1979, Tempestade maio 1976, Calmaria janeiro 1974, Anunciação setembro 1973 e Alvorada novembro 1973?-, tensionam explosão e sensibilidade.

 

Formas de figurar, formas de afetar

Desde Freud, o modo como os sentidos se constroem e se desconstroem em uma convocação recíproca entre imagens, narrativas-imagem e narrativas-palavra é um enigma que inquieta a psicanálise. Se o trabalho do sonho pode ser tomado como um dos modelos para a experiência estética[6] é porque o onírico trabalha na indistinção entre forma e conteúdo através da força da figurabilidade que transforma um "impulso filho da noite[7]. O sonho dá lugar visível ao que se tornou invisível e o mesmo pode valer para certas obras, inclusive no que se refere às experiências políticas dessubjetivantes, como nos Sonhos no Terceiro Reich coletados por Beradt[8]. A intensidade perceptivo-estética?- do sonho e da obra?- permite que as memórias coletivas não se desbotem nas pesquisas científicas e historiográficas, também fundamentais, pois tem o caráter instrutivo de um evento capaz de revelar camadas de sentido que nem mesmo os diários das experiências históricas conseguem mostrar. Devido à função elaborativa que cumprem, "as imagens sonhadas sob o terror tornam-se então imagens produzidas sobre o terror"[9].

Em O mar que atravessamos os limites do dizer se refazem na experiência apreciativa: ensaio fotográfico, livro, escultura e vídeo parecem se apresentar num conjunto por uma exigência de diversidade formativa na qual uma peça pode ser ressignificada pela outra. Ao mesmo tempo, as palavras inscritas no ferro, quase invisíveis mas sensíveis ao tato, assim como os títulos e palavras em baixo-relevo nas capas dos livros do balcão central, além dos pequenos textos encontrados ali perto, funcionam como provocação para a construção de um mar de histórias antes silenciosas.

No processo de criação, às vezes a palavra vem antes da imagem, mas Fernando conta que normalmente a imagem e a sensação, a experiência sinestésica, vem antes da palavra. A palavra é para ele mais uma possibilidade de narrar algo que foi sentido e vivido. É uma linguagem em que as coisas se articulam, mas não é a linguagem onde as coisas nascem: é uma operação de linguagem de acesso.

Esse dizer do artista sobre a palavra nos impacta, pois ele é também escritor. Atentas aos escritos que portam uma condensação telegráfica: "dos ombros fortes do papai em passo firme e mão abraçando mãe", dizemos que se trata menos de um regime poético e mais de um regime estético de escrita[10]: um regime liberado das supostas hierarquias entre o inteligível e o sensível, a palavra e o visível; entre o saber e o não saber, o agir e o padecer. Um texto como esse atravessou diversos laboratórios para chegar a uma forma mais direta, mais simples. Note-se que o interesse foi o de que a linguagem presentificasse uma memória?- uma palavra que criasse imagem. Uma palavra quase-corpo[11], aberta ao mundo.

O próprio título da exposição recria a memória da impressão do pai de Fernando diante do trabalho de Mira Schendel antes citado: "Mas esse mar é nosso; então vamos colocá-lo em presença. E o atravessamos. ‘Nunca souberam' não, soubemos sim!". O artista foi reduzindo, reduzindo?- condensando?- e chegou a esse mar que atravessamos.

No políptico Noturnas abril 1976, experimentamos o deslocamento para a obscuridade nascida de uma noite na cidade do Porto, num inverno em que havia bruma na cidade e ali estavam as fotos, pedindo para serem construídas. Horas na varanda, com tripé, velocidade lenta, nas quais o artista foi registrando imagens que almejava muito gráficas, obtidas simplesmente através do obturador, da velocidade e da sensibilidade do filme.

Em contraponto jaz a máquina de emoldurar o olhar para o vídeo Rua Tutoia, 921, setembro de 1973, referência ao endereço do antigo DOI-CODI e sede da OBAN[12]: são 7 minutos de looping diante do testemunho da tortura fria. Um a um se apresentam serra circular, revólver, martelo, aparelho de pressão e morsa. Avental, estetoscópio, luvas cirúrgicas. Livros-objeto retirados de uma estante. Imobilizados, auscultados, queimados, serrados. Martelados, examinados, atirados, perfurados...

Na terceira margem, ao fundo da sala, se instala um conjunto de esculturas?- livros de ferro em tamanhos variados e marcados de diversas formas, irremediavelmente fechados. Na melhor tradição distópica, compõem uma espécie de memorial da comunidade de homens-livro?- aqueles que em Fahrenheit 451[13] decoraram uma obra inteira para que ela não se perdesse.

A ideia do livro deriva do trabalho com livros de papel nos quais muitas vezes a imagem é o texto e, vice-versa, o texto cria imagens. Numa repetição diferida, criam-se livros de ferro que não se reproduzem nem se imprimem, feitos com muito esforço, artesanalmente: cortar, dobrar o ferro, fechar, soldar, oxidar... com aço corten, que enferruja até certo ponto, um aço que não deteriora nem apodrece e acaba. Dentro deles há outros livros: o Livro vermelho, de Mao Tsé-Tung; o Manual Kubark de tortura psicológica, da CIA, livros brancos feitos de silentes folhas encadernadas, livros que registram nomes ou reproduzem testemunhos. Esses livros também são seres: associados à tortura, eles são corpos; mas são também a cultura violentada. Tudo o que suscitam compõe essa Coleção 1973-1978.

O trabalho do artista é muito atento aos cuidados requeridos nesse processo de lembrar?- carregado de invenção e de realidade?- e à exigência de transformação psíquica e plástica nas passagens entre a inscrição de um traço de memória e a formatividade[14] da obra. Lembramos Merleau-Ponty: "É certo que a vida não explica a obra, porém é certo também que se comunicam [...] A verdade é que esta obra a fazer exigia essa vida"[15].

Fernando lembra o artista Christian Boltanski ao dizer que não é papel do artista falar a verdade, mas fazer sentir a verdade: "E aí, como? O como é a questão das artes: com qual linguagem? Filme, livro, gráfico, pictórico? E uma parte fica para o espectador, você deixa a obra mais aberta, respira mais...".

 

A psicanálise aprende com a arte sobre sua própria contemporaneidade

Vilela faz livros, atento à sua reprodutibilidade. Dessa vez fez também antilivros, irreprodutíveis. Seus livros-escultura são livros de aço a compor o memorial onde termina O mar que atravessamos. Dentre os efeitos produzidos sobre nós, espectadores, a divertida circunstância pela qual presenciamos fotógrafos da exposição carregarem livremente tais livros de lá pra cá chamou-nos a atenção para sua leveza, sua contramonumentalidade. Esta categoria, proposta pelo crítico James Young, faz referência a uma abordagem ativa da memória, pela qual o traço dinâmico da escultura ou instalação contramonumental libera o espectador do aprisionamento na grandiosidade do traumático, liberação essencial para o trabalho psíquico que o trauma nos requer, pois "é a dinâmica e a história das coisas enterradas e desaparecidas que perduram para serem compreendidas e reencontradas"[16].

Eis nosso convite para uma psicanálise que intervém como crítica do mal-estar na cultura: voltar a olhar a obra de Fernando Vilela a fim de reencontrarmos a dimensão alteritária com que o artista dispôs sua imaginação elaborativa para a construção de uma experiência pública simbolizante da violência de Estado no Brasil dos anos 1970.

Ao encontrar a forma justa de sua apresentação, O mar que atravessamos recolhe e transmite a pulsação desejante do trabalho psicanalítico coletivo que nos cabe contemporaneamente, voltado não apenas ao sonho dos tempos do desejo mas ainda aos atos de resistência dos tempos da destrutividade[17] que insiste em mobilizar nossos flexíveis e antirromânticos nervos de aço[18].


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