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Resumo
Resenha de Ana Maria Sigal, Escritos metapsicológicos e clínicos, São Paulo, Casa do Psicólogo, 2009, 462 p.


Autor(es)
Maria do Carmo Vidigal Meyer Dittmar Dittmar
é psicanalista, membro dos departamentos de Psicanálise e de Psicanálise com Crianças do Instituto Sedes Sapientiae. Professora do curso psicanálise com crianças e membro do Conselho Editorial da revista Percurso.

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 LEITURA

Destinos do sexual na teoria e nos sujeitos

Escritos metapsicológicos e clínicos


Destinies of the sexual on theory and on subjects
Maria do Carmo Vidigal Meyer Dittmar Dittmar


Resenha de Ana Maria Sigal, Escritos metapsicológicos e clínicos, São Paulo, Casa do Psicólogo, 2009, 462 p.

Toda conquista se paga com o exílio, toda possessão com uma perda A frase de J.B. Pontalis, escolhida por Ana Sigal para abertura do livro, ecoa durante a leitura dos textos que compõem esta coletânea. Em cada um deles, a autora expõe suas opções teórico-clínicas. Essas opções nos são apresentadas na introdução, entrelaçadas com sua história, marcada por sua chegada ao Brasil quando era uma jovem analista. Momento, talvez, fundante de seu estilo: Ana Sigal, a cada passo, escreve movida pelo desejo de tomar posição, delimitar ganhos e assumir perdas. Ela diz: o Brasil como “escolha de vida”; ao que podemos acrescentar: a psicanálise como campo de posicionamento.

O ponto de vista do qual parte é claro e nos é apresentado logo nas primeiras páginas: “Ser fiel a Freud é repensá-lo”. Somos conduzidos a uma leitura de Freud atenta, cuidadosa, que não busca se desfazer rapidamente dos entraves que encontra pelo caminho.

Ana Sigal escreve diante do que se lhe apresenta como questões atuais no campo psicanalítico. Para avançar, busca os determinantes sócio-históricos que produzem tanto o sujeito como o que sobre ele podemos pensar. Ir e vir entre as teorias herdadas e a subjetividade presente, extraindo consequências para a teoria e a clínica, é um de seus objetivos. Tomando como eixo Freud e Laplanche, pensa na contribuição de diferentes autores, tais como Klein, Lacan, Winnicott e Piera Aulagnier, entre outros. Manifesta sua oposição aos estereótipos, às junções teóricas inconsistentes, aos descartes apressados, assim como à adoção de posições rígidas e adesão irrefletida à ortodoxia.

O livro consiste em uma coletânea dos textos que considerou os principais de sua trajetória. A autora opta por nos apresentar, no prefácio, a história da construção destes e nos diz que a ordem de escrita difere da que foi escolhida para esta publicação, organizada em torno de cinco eixos temáticos. São eles: Sobre o sexo, a sexuação e o feminino; Sobre metapsicologia, recalcamento primário e novas patologias; Sobre o infantil e o trabalho clínico com crianças; Sobre a formação do analista; Outros textos. Os capítulos que compõem cada eixo vão, sucessivamente, retomando e aprofundando a temática em questão, fazendo-a avançar em clareza na exposição do que vai se mostrando fundamental e na possibilidade de evidenciar suas consequências clínicas. No entanto, cada texto foi escrito como uma unidade isolada, o que permite que o leitor se aproxime do livro por onde mais lhe interesse e faça a costura que lhe for necessária.

Alguns capítulos têm caráter mais introdutório, o que se dá sem perda de consistência teórica. É o caso dos capítulos 5 e 6 da primeira parte, nos quais a autora aborda a sexualidade infantil e o complexo de Édipo. Neles, manifesta- se, a meu ver, uma das facetas de Ana Sigal, também presente em outros textos: sua implicação na formação de psicanalistas.

Ao lado disso, Sigal nos dá a ver, em muitos momentos, a importância de sua pertinência ao Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, o que ocorre, de forma mais direta, na parte iv, “Sobre a formação do analista”. Entre outros temas, contextualiza-a historicamente e aborda questões relativas a diferentes propostas de regulamentação da profissão de psicanalistas. Também o capítulo 20, “Psicanálise, grupos, instituição pública”, desperta interesse, não apenas como marca de um tempo passado, mas por dar visibilidade a questões que, se deixaram de impulsionar o coletivo, não o foi por terem sido superadas.

Merece atenção o diálogo que estabelece com a psiquiatria, o que se dá, em especial, nos capítulos 14, “Medicalização na infância: Um estudo sobre a síndrome de desatenção (add)”, e 21, “Dialogando com a psiquiatria”.

Dialoga também com a psicologia, ao abordar o psicodiagnóstico, no cap. 19, “O psicodiagnóstico e a psicanálise”.

Todos os temas são relevantes, mas me deterei nos artigos das partes I, II, e III, pois neles encontramos os eixos teóricos que sustentam as reflexões da autora em todo o livro.

Destinos do sexual

Iniciar uma coletânea com um texto denominado “A organização sexual infantil”, indica seu posicionamento dentro do campo psicanalítico. Pensar sobre o texto freudiano, escrito em 1923, dá a Ana Sigal a oportunidade de afirmar, logo nas primeiras páginas: “Eu diria ser a sexualidade infantil o paradigmático na psicanálise, o que caracteriza o inconsciente e o diferencia de outros pensamentos” (p. 28). Da mesma forma, determinante dos destinos do sexual, a centralidade do complexo de Édipo na construção da subjetividade é afirmada.

Trata-se, para Sigal, de reafirmar a sexualidade e a centralidade do complexo de Édipo como paradigma da teoria e clínica psicanalítica “em um mundo institucional no qual os novos pensadores da psicanálise acabaram por ofuscar a obra de Freud” (p. 20). Ela nos diz: “A psicanálise avança por momentos na direção de uma dessexualização do infantil, mas também na direção de uma “despulsionalização” da teoria” (p. 189).

É ainda nesse sentido que propõe trabalhar o Édipo a partir da história em sua dimensão singular, diferenciando esta perspectiva daquela que parte do estruturalismo: “Por ser parte de uma história, que não antecede o sujeito como uma invariante, é que consideramos o Édipo enquanto um processo” (p. 50).

Nos textos desta coletânea, Ana Sigal trabalha os destinos do sexual na teoria e nos sujeitos. E o faz à luz das transformações sócio-históricas consideradas como determinantes, tanto dos movimentos singulares dos sujeitos como do próprio fazer teórico e clínico.

Torna-se então imprescindível contemplar a articulação entre realidade e fantasma e sua incidência na constituição da subjetividade. Busca recursos teóricos e clínicos que permitam pensar como o externo se faz interno e como se inscreve, se associa e tramita no aparelho psíquico aquilo que vem tanto do outro como do social.

As questões trazidas pelas denominadas novas patologias, em especial as manifestações de pânico e a hiperatividade, assim como as problemáticas no campo da análise com crianças a levarão a trabalhar, na metapsicologia, os processos fundantes do psiquismo. Desse percurso extrai consequências importantes para a clínica. Não se trata, nessas situações, de interpretar o recalcado, mas de criar algo novo onde falharam os processos de simbolização. Na clínica com crianças, a inclusão dos pais é pensada de forma original: Ana Sigal propõe uma “manobra” bastante específica, que permita trabalhar in situ, a partir da transferência, com os elementos que, vindos do outro, e por ele mesmo ignorados, estão impossibilitados de ser processados pela criança.

“Sobre o sexo, a sexuação e o feminino”

A partir da afirmação da sexualidade e centralidade do complexo de Édipo como paradigmas da psicanálise, a autora trabalha os caminhos da sexuação na mulher.

O capítulo “A organização sexual infantil”, embora seja o primeiro do livro, não é o mais fácil para o leitor. O texto de 1923 é escolhido por considerá-lo central na obra de Freud, momento em que ele retoma a teoria da sexualidade e ressignifica o caminho teórico que vinha construindo até então: o Édipo deixa de ser apenas o núcleo da neurose para, articulado à castração, considerada como um organizador simbólico, assumir seu lugar na determinação do percurso da formação subjetiva, ressignificando o que foi vivido anteriormente. A questão fundamental do artigo é a primazia do falo como organizador da sexualidade.

A cautela com a qual a autora adentra o tema justifica-se, uma vez que, como ela nos diz, “qualquer modificação da teoria da sexualidade tange ao pilar de sustentação da psicanálise” (p. 34).

Penso que o desafio com o qual Ana Sigal se confronta neste texto é manter o lugar teórico central do falo enquanto organizador da sexualidade infantil e, ao mesmo tempo, descartar algumas consequências teóricas que se apresentam como limitantes e cristalizadoras para o pensamento, se não as revemos sob a luz dos determinantes de seu momento e contexto de produção teórica.

O percurso que constrói lhe permite tomar duas posições que lhe serão fundamentais quando aborda, em seguida, o tema da feminilidade.

Em primeiro lugar, afirma que, para podermos continuar tomando falo e castração como analisadores fundamentais, é necessário não só aproximar a sexualidade infantil da adulta, mas também diferenciá- las e considerar a especificidade da genitalidade infantil: é esta que se organiza em torno de um órgão (o falo, como representação simbólica do pênis) que não tem correspondência com o genital anatômico. É característico dessa organização particular considerar o falo como “algo mais”, mas também “mais”, ”no sentido de hierarquicamente superior” (p. 39). “Essa é a visão infantil que ocorre na fase fálica, e o fato de que este imaginário possa se arrastar até a vida adulta é da ordem da neurose” (p. 40).

Em segundo lugar, considera que Freud toma a posição do menino, com a qual estava identificado, como ponto de partida do desenvolvimento da teoria, ao colocar o pênis como um organizador em função do qual se estabelece a diferença entre os sexos, dando ao homem um estatuto hierarquicamente superior: “Para elaborar o conceito de primazia do falo, Freud toma como referente de gênero humano o masculino, e afirma: “A criança se confronta com a incredulidade de que existem seres diferentes dele”. Quem é ele? A criança é o menino, e ele diz: o que não é igual a mim, não existe” (p. 41).

O texto finaliza com duas instigantes formulações.

Primeiro, o pensamento de Ana a conduz a uma “aventura”: supor que a partir do ponto de vista da menina poderíamos pensar em uma síndrome do Pinóquio, onde a angústia frente à inconcebível diferença fosse a angústia do crescer. Ela para por aí, uma vez que considera que seguir nesta direção invalidaria um analisador fundamental, o falo e a castração, e que toda a teoria cairia por terra. E ficamos nos perguntando: quais seriam as consequências teóricas de se pensar na “síndrome do Pinóquio”?

Depois, Sigal também questiona se é necessário manter a lógica binária das dicotomias características de cada uma das fases de organização sexual, o que equivale a manter a lógica binária das diferenças no lugar da diversidade, e se pergunta se estaria aí mais um resquício do pensamento biologizante de Freud, impelido pela dicotomia masculino-feminino.

Penso que Ana encerra com um convite, para que a conversa continue.

As ideias principais deste artigo serão retomadas nos capítulos seguintes, em que a autora trabalha os caminhos da sexuação na mulher.

Mostrará então que, a partir do texto de 1923, culminando no texto de 1933, “A feminilidade”, será o próprio Freud que passará a tomar o que seria próprio de um momento do percurso de subjetivação da menina ou da neurose, mais especificamente da histeria, como condição da feminilidade, invariante universal. Além disso, tomando a inveja do pênis como universal, a mulher só encontraria seu caminho pela substituição do desejo de pênis pelo de filho. Ana Sigal vai reler Freud e evidenciar que ocorre um estreitamento teórico nesta direção e o abandono de outros possíveis caminhos a partir de 1923.

Em “Algo mais que um brilho fálico: considerações acerca da inveja do pênis” e “A mulher não nasce mãe, pode tornar-se mãe”, Ana Sigal investiga o desejo de filho na mulher.

No primeiro, a autora questiona a presença constante da atribuição ao filho do lugar de falo e à mulher do lugar de mãe, estendendo sua crítica a Lacan. Para além de criticar o desaparecimento, na teoria, da criança enquanto tal, no narcisismo materno, sua crítica recai também sobre o fato de que, nessa captura teórica do filho como falo, se eclipsam as particularidades dos movimentos pulsionais e da história singular dos sujeitos e se reduzem as possibilidades de escuta: Ana reafirma a concepção do Édipo como processo. Neste texto retoma ainda questões relativas ao falo como organizador. Penso que dois deslizamentos, do pênis ao falo, na teorização freudiana, e de Freud a Lacan, em nosso fazer teórico atual, trazem importantes questões que estão subjacentes ao caminho que a autora vai tecendo.

O texto “A mulher não nasce mãe, pode tornar-se mãe” retoma o que foi construído nos textos anteriores de forma clara e precisa. Nele, Sigal investiga o desejo das mulheres de ter um filho, a partir da sua clínica com mulheres que, por alguma razão, tiveram que recorrer à gravidez assistida. Coloca-se contra qualquer forma de posicionamento maniqueísta sobre a gravidez assistida, seja a defesa ingênua, seja a crítica cega. A autora se posiciona, então, contra as formulações teóricas dentro da psicanálise que, no final das contas, provocam um retorno ao biológico, ao não poder pensar que as questões que giram em torno da filiação remetem a uma articulação simbólica e não à junção entre ato sexual e fecundação. Através de interessantes casos clínicos, Ana Sigal trabalha decorrências fantasmáticas nos casos de gravidez assistida com ovodoação, o que lhe permite iluminar a particularidade dos processos de elaboração da mulher para tornar-se mãe nessas situações.

Em “A maternidade como função simbólica”, Sigal vai pensar também a partir dos filhos da reprodução assistida. Investiga, em especial, se, nessas situações, a metapsicologia de que dispomos segue dando conta de pensar o trabalho de elaboração psíquica da criança na busca de resposta para os enigmas relativos a sua origem. Sua reflexão a conduz a questionar mais um universal teórico: as “fantasias originárias”.

“Sobre metapsicologia, recalque primário e novas patologias”

Na segunda parte do livro, a autora pensa os momentos iniciais de constituição do psiquismo.

No artigo “Formação do eu: um estudo para ler o estádio do espelho”, nos oferece sua leitura atenta do texto “Estádio do espelho como formador da função do eu (je) tal como se nos revela na experiência psicanalítica”, de Lacan.

Nos capítulos seguintes, Ana Sigal trabalha o tema do originário, principalmente através da metapsicologia freudiana e das contribuições de Laplanche, levando também em conta Silvia Bleichmar e Piera Aulagnier.

Nos caps. 8 e 9, respectivamente “O arcaico e as patologias atuais” e “Francis Bacon e o pânico: um estudo sobre o recalcamento primário”, a autora dirige sua atenção para aquelas situações nas quais o pânico se apresenta como uma “patologia do arcaico”, diferentemente do já citado capítulo 21, “Dialogando com a psiquiatria”, em que trabalha o pânico na neurose.

Considera que o pânico pode se produzir por uma falha do recalcamento originário, de forma que elementos arcaicos, que deveriam ficar selados no aparelho psíquico, avançam desenfreadamente, permanecem desligados sem conseguir associar-se a outros. Consequentemente, sem que seja possível nenhuma forma de elaboração psíquica, invadem o Eu, produzindo manifestações de ordem física, angústia catastrófica e desamparo.

Para sua investigação, recorre à metapsicologia. Trabalha em Freud, especialmente por meio da carta 52 a Fliess, como ele teoriza as primeiras inscrições, seus diferentes registros e formas de ordenamento no aparelho psíquico. Recorre novamente a Freud, mas, especialmente, às contribuições de Laplanche, para pensar no conceito de recalcamento originário, entendendo-o, então, não como um momento mítico, mas como uma primeira clivagem que dá origem à tópica e um estatuto psíquico para as primeiras inscrições. Além disso, é Laplanche que lhe permite pensar, com mais matizes, através da teoria da sedução generalizada, na inscrição da pulsão com base na ação do outro humano e não como derivação direta do somático no psíquico. Tece ainda considerações importantes sobre a teoria do trauma nos dois autores. Diferencia, então, duas formas como a mãe, dependendo de seu próprio psiquismo, introduz sexualidade na criança: a implantação e a intromissão. Esse percurso lhe permite afirmar: “Por uma falha no processo de elaboração, o qual se transmite transgeracionalmente, retorna no arcaico algo do indizível” (p. 184). Reencontramos aqui tema tão caro à autora: como o histórico vivencial é inscrito e metabolizado no psiquismo.

No cap. 8, destaca-se a forma como Ana Sigal pensa nas consequências clínicas advindas de entender o pânico como “patologia do arcaico”, uma vez que não se trata de ir atrás de sentidos cristalizados: “Por essa razão é que pensamos na possibilidade de restaurar a situação originária na cura, para que, como sugere Laplanche, seja possível nos enfrentarmos novamente com os primeiros enigmas da sedução originária, abrindo caminho para a possibilidade de realizar novas ligações, para, na verdade, criar algo novo onde faltaram palavras” (p. 185). Já no cap. 9, o contato com a obra de Francis Bacon ajuda a pensar na manifestação das inscrições primeiras, “representação coisa”, conforme propõe Laplanche, impossibilitadas de transitar pelo psiquismo enredadas em cadeia de sentido. “Algo que aparece como pura presença nos conduz às origens das primeiras marcas onde o inconsciente ainda não está constituído como sistema” (p. 191). O texto nos leva às telas do artista e produz uma bela figuração sobre a emergência dos elementos desligados que invadem o eu na crise de pânico. Ao articulá-la a uma situação clínica, evidencia o caráter terrorífico destas manifestações.

Em “O originário: um conceito que ganha visibilidade”, Sigal apresenta o pensamento de Jean Laplanche relativo ao originário, demarcando, de forma precisa, as contribuições desse autor em relação ao texto freudiano. Estabelece também uma interessante aproximação entre seu pensamento e o de Piera Aulagnier sobre esse mesmo tema. Esses mesmos conceitos metapsicológicos, que buscam dar conta do originário, são retomados, ampliados e postos a trabalhar na parte III deste livro.

“Sobre o infantil e o trabalho com crianças”

Mais uma vez, Laplanche será referência fundamental neste percurso, em que temas importantes para a clínica com crianças são abordados. Com ele, segue trabalhando os modos de produção e funcionamento da tópica psíquica, uma vez que, na análise com crianças, trata-se de sujeitos nos quais a tópica não terminou de se constituir, o que acarreta consequências para a intervenção do analista. Além disso, importa colocar em foco, a partir da teoria da sedução generalizada, os conceitos de mensagem enigmática e metábola. Esse conceito é aqui fundamental para pensar que há diferença, e não continuidade absoluta, entre o inconsciente – discurso – desejo da mãe e o da criança. Assim, os conceitos de historicização simbolizante e os desenvolvimentos de Laplanche permitem “Trafegar na fronteira entre os pais reais e os fantasmáticos” (p. 236) e sustentar teoricamente a inclusão dos pais na análise de crianças. Os pais convocados a estar presentes na análise de crianças são então os pais emissores das mensagens enigmáticas. A transferência e implicação dos pais na análise com crianças são imprescindíveis, uma vez que se trata de colocar em circulação, no espaço analítico, elementos inconscientes dos próprios pais, que permitam a “flexibilização do recalque na condução da cura”. Consiste, então, em “uma manobra que possibilita incluir os pais em momentos pontuais do tratamento da criança, onde a viscosidade prevalece sobre o fluxo” (p. 270).

No artigo “A clínica com crianças: um caldeirão fervendo”, para além dos desenvolvimentos relativos à metapsicologia, chama atenção a introdução, onde Ana Sigal, em um mesmo movimento, nos fala dos avatares no percurso de formação do analista e dos processos constitutivos da subjetividade. Além de trabalhar a importância dos conceitos de história e acontecimento, também analisa três características específicas deste campo singular que é a análise com crianças: a linguagem do jogo, a abordagem de um aparelho psíquico em constituição e o caráter múltiplo do campo transferencial, definido pela presença dos pais.

Apresenta-nos, então, sua proposta de como e para que incluir os pais na análise de crianças e trabalhar com eles. Assunto que ganha novos matizes no capítulo seguinte, “Os pais, o recalque primário e a circulação de significantes enigmáticos”. Nele, ganham relevo as formas como nos fala das transferências quando os pais estão, em sessão, junto à criança e ao analista, e também como trabalha os conceitos de recalque primário e secundário, buscando dar visibilidade, através da metapsicologia, aos movimentos de articulação e desarticulação de significações, possibilitados pelo peculiar encontro de pais e crianças que a “cuba analítica” é potente para propiciar. Um dos caminhos interessantes consiste na proposição de pensar no que é vivido entre crianças e pais, no espaço analítico, como “resto diurno” (p. 273), permitindo o trabalho sobre as vicissitudes do originário no atual.

Em “Transformações na clínica com crianças”, situa sua proposta de inclusão dos pais na análise com crianças em relação a outras perspectivas teórico-clínicas de trabalho com os pais e nos apresenta uma interessante vinheta clínica.

Esta parte do livro finaliza com o pertinente artigo, já citado, “Medicalização na infância: um estudo sobre a síndrome de desatenção (add)”, no qual confluem várias linhas de investigação. Aqui, a autora é incisiva em sua crítica a um diagnóstico que, baseado na descrição de traços de conduta genéricos, encontrados em múltiplas situações psicopatológicas, traz como consequência, ao final das contas, calar a subjetividade. Os efeitos da realidade social nos sujeitos são contemplados, uma vez que cria as condições de hiper- valorização do uso da medicação e participa da produção da patologia. Propõe pensar que, em algumas crianças, estes sintomas merecem ser compreendidos a partir da metapsicologia das patologias do arcaico e que a condução clínica se beneficia com a proposta de inclusão dos pais no setting. Com isso, nos instiga a pensar na particularidade da clínica com pais e crianças nas situações em que ocorrem falhas do recalque originário.

Tanto a clínica com crianças como a com pacientes graves tem dado origem a perspectivas teóricas interessantíssimas e, por vezes, inconciliáveis. Quando nos deixamos tocar pela fecundidade de cada uma delas, temos que suportar a tensão de suas diferenças e buscar por articulações possíveis. Cada analista é convocado a fazer escolhas e articulações teóricas que são determinantes de sua condução clínica. Dentre elas, as relativas à concepção de originário têm lugar relevante. Algumas questões insistem. A clínica com crianças nos confronta, constantemente, com particularidades na forma de implicação dos pais. No limite, a criança não vem. No entanto, são inúmeras as situações nas quais seu comparecimento não significa que os pais estejam acessíveis ao trabalho, de tal forma que a questão não cessa de nos exigir. Também o envolvimento integral do analista na trama fervente das transferências múltiplas remete a sutis movimentos em sua condução clínica, dando relevo às questões relativas à transferência/contratransferência do analista, seus efeitos e possibilidades de utilização. E isto, ainda mais, quando se trata da clínica onde o que está em questão são falhas na constituição do sujeito. Linhas de investigação que, entre outras, continuam a merecer novos desenvolvimentos por parte de analistas que trabalham com crianças. A metapsicologia trabalhada neste livro sustenta a aposta de que é na escuta dos complexos destinos do sexual que, vindo do outro, inscreve-se como indissociavelmente tão singular como alheio, que devemos avançar.

A tarefa ineludível de dar sentido e teorizar sobre o que nos determina, assim como o esforço de desconstrução e construção de articulações possíveis, nos conduzem a um caminho apaixonante e sem fim. Com este livro, Ana Sigal nos oferece uma metapsicologia viva e potente em sua referência à clínica, com a qual nos convida a seguir pensando.

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