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ÍNDICE TEMÁTICO 
66
Palavra concreta
ano XXXIII - Junho 2021
183 páginas
capa: Augusto de Campos
  
 

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Resumo
O artigo aborda a importância das reflexões de Silvia Bleichmar sobre o traumático no pós-terremoto do México em 1985, em especial a partir do pensamento de Bion, para a construção de suas proposições sobre a dupla função materna (mãe que sexualiza o bebê ao mesmo tempo que oferece tramitação para este traumático) e sobre o caráter indiciário dos signos de percepção, ainda em gérmen em 1985.


Palavras-chave
trauma; função materna; signos de percepção; psicanálise contemporânea e Bion.


Autor(es)
Gisele Senne de  Moraes
é psicanalista, membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, doutoranda e mestre em Psicologia pelo Instituto de Psicologia da USP, onde estuda a obra de Silvia Bleichmar.

Nelson Ernesto Coelho Junior
é psicanalista, doutor em Psicologia Clínica, professsor e pesquisador do Instituto de Psicologia da Universidade de São paul. Autor, entre outros livros, de A força da realidade na clínica freudinana e Dimensões da intersubjetividade (organizado em conjunto com Perla Klatau e Pedro Salem).



Notas
Nota 
Este trabalho deriva da dissertação de mestrado de Gisele Senne de Moraes, sob orientação do Prof. Dr. Nelson Ernesto Coelho Junior, cujo título é Do recalque originário aos signos de percepção: contribuições de Silvia Bleichmar à Psicanálise, pesquisa realizada com bolsa do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) entre março de 2018 e julho de 2019 e que prosseguiu, em doutorado, inicialmente com bolsa da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) e agora com bolsa CNPq. Agradecemos ao grupo de pesquisa Psicanálise Experimental pela leitura e contribuições para o presente artigo.
 

1.Referimo-nos aqui à pandemia de Covid-19, que se espalhou pelo planeta em 2020. No Brasil, a crise sanitária veio acompanhada pela deflagração de prolongada crise econômica e política.

2.A Viguera, Justificación del concepto signos de percepción para una metapsicología de lo originário, p. 79-104 e R. Mezan, "A recepção da psicanálise na França", in Interfaces da psicanálise, p. 203.

3.M. Calvo, "Silvia Bleichmar", in Diccionario de psicoanálisis argentino, p. 97-100. Marina Calvo é psicanalista e filha de Silvia Bleichmar. 

4.De acordo com F. Urribarri (2012): "A extensa obra de André Green pode definir-se como a busca de um pensamento psicanalítico contemporâneo capaz de superar os impasses e a fragmentação dos modelos pós-freudianos" (p. 143). Psicanálise contemporânea teria relação, portanto, com a possibilidade de "reconhecer, historicizar e superar os impasses teóricos e clínicos do pós-freudismo" (p. 144), o que significa que "toda relação com a obra de Freud está necessária e irremediavelmente mediada por recortes e opções de cada modelo teórico" (p. 144).

5.Carlos Schenquerman é psicanalista e viúvo de Silvia Bleichmar.

6.Silvia Bleichmar faz menção a ou estabelece articulações com outros autores. Para os propósitos do presente artigo, limitamo-nos a trabalhar com os citados.

7.Nas origens do sujeito psíquico: do mito à história (1993), A fundação do inconsciente: destinos de pulsão, destinos do sujeito (1994) e Clínica psicanalítica e neogênese (2005).

8.S. Bleichmar, Psicoanálisis extramuros: puesta a prueba frente a lo traumático, p. 16.

9.G.S. Moraes, Do recalque originário aos signos de percepção: Contribuições de Silvia Bleichmar à Psicanálise, p. 22-24.

10.    S. Bleichmar, op. cit., p. 17.

11.    S. Bleichmar, op. cit., p. 18.

12.    S. Bleichmar, op. cit., p. 25.

13.    Note-se que neste momento a autora está falando do inconsciente recalcado, não do inconsciente descritivo.

14.    S. Bleichmar, op. cit., p. 26.

15.    S. Bleichmar, op. cit., p. 22.

16.    S. Bleichmar, op. cit., p. 25.

17.    S. Bleichmar, op. cit., p. 48-49.

18.    G.S. Moraes, op. cit., p. 96-97.

19.    S. Bleichmar, op. cit., p. 47.

20.    J. Laplanche, "Referência ao inconsciente" in Problemáticas IV: o inconsciente e o id, p. 101.

21.    J. Laplanche, Novos fundamentos para a psicanálise, p. 138.

22.    M.T.M. Carvalho, "Gênese e evolução do modelo tradutivo de Jean Laplanche: dos primeiros impasses aos desafios atuais", Percurso n. 63, p. 61-72.

23.    S. Bleichmar, op. cit., p. 49.

24.    S. Bleichmar, op. cit., p. 49.

25.    Para saber mais sobre as diferenças entre os pensamentos de Bleichmar e Laplanche ou sobre a semiótica de Peirce, sugerimos a leitura do texto de G.S. Moraes, Do recalque originário...

26.    Pegadas, indícios, pistas, marcas.

27.    G.S. Moraes, op. cit., p. 99. 

28.    A autora faz referência ao texto de D.W. Winnicott, "La Madre Privada", extraído do livro El niño y el mundo externo.

29.    A autora não menciona um texto específico de Lacan, mas indica, aos pouco familiarizados com a obra do autor, a leitura do livro escrito por Anika Riffler-Lemaire, Lacan.

30.    S. Bleichmar, op. cit., p. 47.

31.    S. Bleichmar, op. cit., p. 53.

32.    S. Bleichmar, op. cit., p. 55.

33.    A autora faz referência ao livro de W.R. Bion, Aprendiendo de la experiencia.

34.    S. Bleichmar, op. cit., p. 59.

35.    S. Bleichmar, op. cit., p. 59-60.

36.    S. Bleichmar, op. cit., p. 60.

37.    S. Bleichmar, op. cit., p. 61.

38.    Para saber mais sobre o tema, ver N. E. Coelho Junior. Enquadre interno e enquadre externo: considerações sobre a situação analítica na pandemia. Evento de lançamento da Sig Revista de Psicanálise n. 15. Realizado em 28 ago. 2020. Disponível em: .

39.    S. Bleichmar, op. cit., p. 34 e p.74. 



Referências bibliográficas

Bion W.R. (1966). Aprendiendo de la experiencia. Buenos Aires: Paidós.

Bleichmar S. (1993). Nas origens do sujeito psíquico: do Mito à História. Porto Alegre: Artes Médicas.

____. (1994). A fundação do inconsciente: destinos de pulsão, destinos do sujeito. Porto Alegre: Artes Médicas Sul.

____. (2005). Clínica psicanalítica e neogênese. São Paulo: AnnaBlume.

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Calvo M. (2018). Silvia Bleichmar. In Diccionario de psicoanálisis argentino. Buenos Aires: Asociación Psicoanalítica Argentina, p. 97-100. 

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Coelho Junior N.E. (2020). Enquadre interno e enquadre externo: considerações sobre a situação analítica na pandemia. Evento de lançamento da Sig Revista de Psicanálise n. 15. Realizado em 28 ago. 2020. Disponível em: .

Laplanche J. (1992). Novos fundamentos para a psicanálise. São Paulo: Martins Fontes.

____. (1992). Referência ao inconsciente. In Problemáticas IV: o inconsciente e o id. São Paulo: Martins Fontes.

Mezan R. (2002). A recepção da psicanálise na França. In Interfaces da psicanálise. São Paulo: Companhia das Letras.

Moraes G.S. (2019). Do recalque originário aos signos de percepção: Contribuições de Silvia Bleichmar à Psicanálise (Dissertação de Mestrado). São Paulo: Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo.

Pavan C.; Cartocci L.; Campos M.R.B.; Aidar M.A.K.; Ditmar M.C.V.M.; Costa M.L.C. (2020). Editorial, Percurso: Revista de Psicanálise. São Paulo: Instituto Sedes Sapientiae, ano XXXII, n. 64.

Riffler-Lemaire A. (1979). Lacan. Buenos Aires: Sudamericana.

Urribarri F. (2012). André Green: o pai na teoria e na clínica contemporânea. Jornal de Psicanálise, São Paulo: SBPSP, v. 82, n. 45, p. 143-159.

Viguera A. (2002). Justificación del concepto signos de percepción para una metapsicología de lo originario (Tese de doutorado). La Plata: Faculdad de Psicología, Universidad Nacional de La Plata.

Winnicott D.W. (1964). La madre privada. In El niño y el mundo externo. Buenos Aires: Paidós.





Abstract
The article discusses the importance of Silvia Bleichmar’s reflexions on trauma after the earthquake that occurred in Mexico in 1985, mainly observing Bion’s thinking, regarding the construction of her propositions on the double role of mothering (mother who sexualizes the baby at the same time that offers conditions to process this trauma) and on the indexing character of the perceptual signs, still incipient in 1985.


Keywords
trauma; role of mothering; perceptual signs; contemporary psychoanalisis and Bion.

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 TEXTO

Ter-remoto com Silvia Bleichmar

Silvia Bleichmar and the earthquake
Gisele Senne de  Moraes
Nelson Ernesto Coelho Junior

No editorial da revista Percurso n. 64, a palavra terremoto, extraída da poesia visual de Augusto de Campos, foi usada metaforicamente pelos editores em alusão ao terremoto[1] que vivenciamos em 2020 e ao nosso ter-remoto com os pacientes, possibilitado pela mediação dos encontros síncronos virtuais. Curiosa coincidência, o presente artigo, cuja gestação se iniciara antes do lançamento da Percurso n. 64, tece reflexões sobre formulações de Silvia Bleichmar realizadas em material produzido pela autora logo após o terremoto (abalo sísmico) que atingiu a cidade do México em 1985, acessível em Psicoanálisis extramuros: puesta a prueba frente a lo traumático. Este livro é composto pela transcrição de aulas ministradas por Bleichmar, entre meados de 1985 e o início de 1986, para um curso de formação de terapeutas que atenderam crianças vitimadas pelo terremoto do México.

 

Psicanalista considerada como uma das principais vozes clínicas do pensamento de Jean Laplanche, em nosso ter-remoto atual com Bleichmar, possibilitado pela mediação assíncrona que o registro das palavras da autora viabiliza, encontramos um pensamento assentado sobre um campo vasto, que transborda as fronteiras laplancheanas, apesar da inegável influência deste sobre muitas ponderações da autora. A formação inicial de Bleichmar como psicanalista de crianças na Argentina, primeiro em escola inglesa e depois em Lacan, somada a peculiaridades da psicanálise daquele país[2] e à capacidade da autora para absorver e transitar entre a complexidade de diferentes teorias, contribuíram para a formação da complexidade de seu próprio pensamento. Ávida leitora[3], Silvia Bleichmar foi uma autora com liberdade de trânsito intelectual, o que, entendemos, posiciona-a como uma psicanalista contemporânea nos termos propostos por Green[4].

 

No prólogo de Psicoanálisis extramuros..., Schenquerman[5] sugere que as reflexões sobre os trabalhos no México pós-terremoto conteriam o gérmen de formulações de Bleichmar sobre o caráter indiciário de algumas inscrições psíquicas e do trabalho psicanalítico específico que estas requerem, tema melhor desenvolvido posteriormente pela psicanalista. A seguir, acompanharemos como a experiência no pós-terremoto do México e suas reflexões sobre o tema do traumático contribuíram para a formulação de duas construções da autora. 

 

O livro Psicoanálisis extramuros...

No livro, a autora articula suas reflexões com Freud, Winnicott, Bion, Lacan e Laplanche[6], visando ajudar os terapeutas que atendiam grupos de crianças desalojadas. Um dos propósitos do curso era constituir um espaço de reflexão sobre os grupos, para oferecer continência às angústias dos terapeutas que se viam mergulhados no traumatismo compartilhado daquele momento, para que estes encontrassem recursos para conter a angústia nas crianças.

 

Freud, Winnicott, Lacan e Laplanche, bem como Klein, são recorrentes nas páginas dos três livros mais conhecidos da autora[7]. Além desses, há referências mais ou menos pontuais a outros autores, psicanalistas ou não. Bion, no entanto, não é mencionado em Nas origens do sujeito psíquico..., aparece somente em uma nota explicativa de A fundação do inconsciente... e em apenas algumas passagens de Clínica psicanalítica e neogênese, o que poderia sugerir uma importância mais marginal deste para a construção do pensamento da autora. No entanto, em Psicoanálisis extramuros... vemos Bion ocupando papel relevante nas suas ponderações sobre o conceito dupla função materna e sobre o caráter indiciário dos signos de percepção, este ainda em gérmen no texto.

 

Bleichmar pensando com Freud

Freud foi abordado no livro pelo tema do traumático. Bleichmar "condensou" a definição de traumático presente na tradução para o espanhol da "Conferência XVIII", ao afirmar: "Mas Freud fala em experiência vivida que aporta um aumento excessivo de excitação ao aparato psíquico"[8]. A "condensação" parece ter sido, em algum grau, consciente, já que a autora destaca, em seguida, os termos estímulo, experiência vivida e excitação como três elementos presentes no trauma, aos quais o fracasso na tramitação ou na elaboração psíquica pelas vias habituais deve ser somado.

 

Entendemos que a palavra vivência (do texto freudiano em espanhol) substituída por experiência vivida denotaria a ênfase no histórico-vivencial, aspecto tão caro à autora[9]. A expressão experiência parece aqui dar um passo em direção ao objeto, ao nos lembrar que a vivência de satisfação é uma marca possível a partir de uma experiência com o objeto externo. Note-se, no entanto, que não se trata somente do objeto como realidade externa, mas de uma experiência do sujeito com o objeto, trata-se da sua inscrição, portanto, agora já um externo que se tornou interno.

 

No mesmo sentido, ao trocar a palavra estímulo por excitação, Bleichmar relacionou a excitação (interna, segundo Freud em "Os instintos e seus destinos") a algo externo, em linha com a ideia de sedução generalizada de Laplanche ou de inscrição da pulsação materna, segundo seus termos. Ao mesmo tempo, sublinhou a importância da qualidade da experiência vivida, resultado tanto da intensidade de excitação que provoca quanto do fracasso na elaboração psíquica. Este último, na verdade, seria decisivo: "se o traumatismo é afluxo de excitação é porque constitui a ativação de algo existente para o qual o aparato psíquico perdeu suas defesas habituais de controle"[10].

 

Assim, a ênfase está no despreparo; não se trata do fato traumático em si (terremoto, pandemia), mas da capacidade de absorção do impacto, seja no sujeito (intrapsiquicamente) ou na sociedade (estruturas que desmoronam, despreparo do sistema de saúde ou de amortecimento do impacto social, etc). No México, diz, foram principalmente os edifícios da corrupção que caíram, construções públicas erguidas com recursos mal usados dos cidadãos.

 

Aqui levantamos uma questão: por que buscar tramitação para um afluxo excessivo se este já passou? Não seria razoável sugerir que melhor fosse a reconstrução das defesas psíquicas, aquelas que foram destruídas e que funcionavam até então? Afinal, se o trauma é como um tsunami que destrói nossas defesas psíquicas, uma vez passada a onda, bastaria a reconstrução das defesas, ou de novas, como na cidade que se levantou dos escombros após o terremoto de 1985 no México.

 

Esta proposição não funciona porque o trauma, uma vez inscrito, funciona como uma onda que renasce na repetição. Entendemos que é neste sentido que a proposição do externo (estímulo) transformado em interno (excitação) dá inteligibilidade à compreensão da autora. É excitação porque há recorrência, insistência, repetição. É como se Bleichmar dissesse que o elemento traumático coloca em ação uma tendência do aparelho psíquico em tramitar, elaborar, simbolizar ou transformar o corpo estranho em elemento metabolizado. A repetição, para a autora, seria uma tentativa de reestruturar um recorte da realidade, de simbolizar o vivido: "Pretende, digamos, simbolizar aquilo vivido e para o qual [o psiquismo] não estava preparado"[11]. Assim, há repetição quando o elemento traumático não encontra estabilização em uma cadeia representacional, não consegue ser integrado (metabolizado) e reconhecido como parte de si pelo sujeito, afirma Bleichmar. Esta repetição do traumático foi observada em sonhos e desenhos infantis nos grupos.

 

Pensando a partir de uma vinheta apresentada por Freud na "Conferência XVII", a autora destaca que o traumático da situação se estabeleceu pela reativação de algo prévio. Mais que isso, o trauma se presentificava na repetição da paciente. Tratava-se de uma ação automática, uma repetição sintomática, que dava tramitação - frustrada - a algo prévio relacionado à feminilidade da paciente. Assim, a repetição de tentativas frustradas de simbolizar, com o intuito de transformar a vivência traumática, conduz o traumatismo a "se engancha[r] em séries traumáticas cada vez maiores e o sintoma vai se cristalizando"[12]. Para a autora, as crianças que apresentavam comportamentos mais patológicos nos grupos eram aquelas que tiveram condições prévias reativadas; portanto, não se tratava de que padeciam em função do terremoto, ideia que apenas recobriria o sintoma com a realidade, mas padeciam porque o terremoto havia reativado algo prévio. Nestes casos, a "técnica" proposta envolvia buscar incluir o elemento traumático em séries psíquicas, para que o traumatismo pudesse ser liberado da fixação na qual o sujeito permanecia.

 

Note-se que a questão temporal é fundamental aqui, a fixação a um fragmento determinado do passado nas situações traumáticas significa que o passado permanece vivo no momento presente; neste sentido, não é passado. A repetição denuncia uma fixação, tal como uma fotografia, em que a fixação da imagem congela um instante que se torna presente cada vez que olhamos para ela. Por esta razão, Schenquerman fala da proposta de Bleichmar sobre historicizar, porque historicizar é construir um relato temporal, é permitir que o trauma advenha passado, tornando-se história para o sujeito (seja integrado ao si mesmo) e não apenas história do sujeito. Neste sentido, é permitir que estes elementos se tornem memória.

 

Ao terapeuta cabe, assim, responder à busca de sentido, para que os pacientes possam sair da compulsão à repetição. Bleichmar questiona de que forma isto pode ser realizado, defendendo, a partir da relação entre afeto e representação postulada por Freud, que nós, terapeutas, sempre trabalhamos fazendo ligações que envolvem as representações.

 

Para Freud, Bleichmar afirma, o processo de recalque incide apenas sobre as representações, estas formam o conteúdo do inconsciente recalcado[13]. Aos afetos caberia outro processo, a supressão: eles são desqualificados, tornam-se apenas carga energética no inconsciente. A carga pode retornar à consciência ainda desqualificada, ou seja, sem ligação, com sintomas que estão entre o somático e o psíquico (palpitações, nó na garganta, mal-estar, sudorese, falta de ar...). Ou pode retornar com alguma qualificação, neste caso já ligada a alguma representação, podendo se apresentar como um afeto (medo, ódio, amor...). Assim, quando há alguma qualificação da carga, já há um processo de simbolização. No entanto, algumas destas ligações são mais espúrias e patológicas. Bleichmar lembra que o pai de Hans ajudou o menino a realizar deslocamentos entre representações, posto que a fobia de Hans já era uma ligação simbolizante entre carga e representação. Assim, para Bleichmar, a simbolização é a única possibilidade de elaboração psíquica para a excitação que excede a contenção habitual do sujeito, ou seja, o afeto só pode ser transformado a partir do trabalho com redes de representações, e a representação, por sua vez, só pode ser trabalhada mediante a palavra pelo terapeuta: "o outro expressará aquilo que o perturba e nós responderemos com palavras simbolizando o perturbante"[14].

 

Apesar de entendermos que a autora permanece fiel à ideia de que o terapeuta trabalha com representações, vale notar que, em A fundação do inconsciente..., Bleichmar oferece uma alternativa à tramitação de cargas, quando fala da importância da inscrição de marcas sensoriais a partir da relação amorosa entre a mãe e o bebê (olhar da mãe, carícias, som da voz). São marcas que apaziguam à medida que se inserem como vias colaterais de ligação, ou seja, vias de tramitação aos elementos inscritos como intensidade, a partir do encontro do bebê com a sexualidade inconsciente da mãe.

 

Em nossa visão, o livro Psicoanálisis extramuros... é muito interessante justamente por mostrar o pensamento em construção da autora, à medida que Bleichmar parece ir fazendo reflexões e complementando seu raciocínio a cada nova aula. O campo de trabalho do terapeuta se restringe ao domínio das redes de representações. Nos grupos de atendimentos de crianças, esta perspectiva era especialmente relevante dado o risco de atuações dos terapeutas, que chegaram a se envolver em atividades mais assistenciais porque não conseguiam dar conta da intensidade da situação. Ou seja, para Bleichmar, era porque não conseguiam fazer o que sabiam fazer, porque não estavam conseguindo ajudar na elaboração do traumático, que tentavam outras coisas, inclusive ajudar na alimentação ou na limpeza do espaço... Como ela fala, a onipotência é resposta usual em situações de impotência.

 

Bleichmar vai além ao dizer que apesar de toda cura envolver uma revivescência, como no processo catártico (no sentido de que proporciona ligações que provocam a emergência de emoções), o objetivo de uma cura seria justamente a superação da revivescência, para ir em direção à perlaboração.

 

E a perlaboração em Psicoanálisis extramuros... se relaciona à capacidade do paciente em se ouvir, de modo a integrar algo que não sente como um si mesmo: "Ouvir-se implica a possibilidade de oferecer significado diferente"[15], para que possa mudar sua posição de sujeito:

 

A repetição por si própria não amplia o conhecimento que o sujeito tem sobre seu próprio inconsciente nem sobre si mesmo. Como a velha discussão, na política, sobre a práxis; a práxis [...] demonstrou que os povos podem repetir seus erros [...] ao longo dos anos. A única possibilidade de transformação é a reflexão sobre esta práxis[16].

 

A dupla função materna e o caráter indiciário dos signos de percepção

A autora toma as concepções de função materna e paterna para pensar sobre a especificidade do trabalho na coordenação dos grupos. Abordaremos exclusivamente os desdobramentos que realiza a respeito da função materna, articulada sob os dois eixos que compõem sua formulação sobre dupla função materna - eixos sexualizante e simbolizante. Estes eixos visam organizar a heterogeneidade da relação mãe-criança, uma vez que a criança não é apenas significante da falta para a mãe (como em Lacan), é também receptáculo para evacuação materna. A mãe parasita a criança, eventualmente, despeja suas angústias, fantasias, proibições de origem superegoica ou seu narcisismo na criança:

 

frente às fantasias que o agente traumático precipita [...], a mãe, como todo sujeito psíquico, [...] cinde o intolerável, reprime, projeta, denega e apela ao seu arsenal de defesas [...] que podem ser para ela mesma simbolizantes ou patológicas e, em alguns casos, [...] patológicas ou simbolizantes para o filho[17].

 

A criança, matéria viva, lembra-nos a autora, não é somente tela de projeção das fantasias e angústias maternas, de tal maneira que as inscrições podem assumir formas distintas, mais simbólicas ou mais excitantes e corporais.

 

No eixo sexualizante, Bleichmar lembra que a mãe, sujeito cindido pelo recalque, inconscientemente erotiza seu filho, transmitindo, com o autoconservativo, o prazer que sente na amamentação e nos cuidados. A autora nomeia este movimento de pulsação materna e a aborda como equivalente à teoria da sedução generalizada de Laplanche[18]. O elemento inscrito no psiquismo do bebê será um corpo estranho tal como nas situações de traumatismo, ou seja, "montante de energia não simbolizável"[19].

 

No texto "Referência ao inconsciente", Laplanche sugere que a mensagem enigmática implantada no bebê seria uma mensagem desqualificada, também pura energia:

 

Entre esses dois "fenômenos de sentido" [...] que são [...] o comportamento significativo do adulto [...] e o inconsciente, em vias de constituição, da criança [grifos nossos], registra-se o momento essencial a que se deve chamar "desqualificado". [...] No início, há uma espécie de mensagem enigmática [...]. Diremos, em síntese, que é o energético puro. A "mensagem" desqualificada não veicula nada, exceto energia [grifos nossos][20].

 

Já em Novos fundamentos para a psicanálise, Laplanche considera que os objetos-fontes da pulsão seriam restos das mensagens enigmáticas sem tradução no processo de recalque originário: "Essas mensagens enigmáticas suscitam um trabalho de domínio e de simbolização difícil, para não dizer impossível, que necessariamente deixa para trás restos inconscientes, fueros, dizia Freud, a que chamamos ‘objetos-fontes' da pulsão"[21]. Note-se que as formulações diferem: em "Referência ao inconsciente" (transcrição de aulas de Laplanche entre 1977 e 1979), a mensagem enigmática veicularia carga energética antes da constituição do inconsciente (primeiro grifo da citação), enquanto em Novos fundamentos para a psicanálise (texto posterior, escrito pelo autor), a pulsão (carga energética) seria o resto tradutivo quando da formação do inconsciente. Para M.T.M. Carvalho[22], a compreensão mais coerente com a obra laplancheana seria que a mensagem enigmática advém pulsão como resto tradutivo, produto da operação de recalque.

 

Em Bleichmar, a pulsação materna é inscrita como intensidade, há desqualificação já na inscrição. Portanto, no psiquismo do bebê será carga desqualificada que, tal como nas situações de traumatismo que ela viu no pós-terremoto do México, demanda elaboração ou tramitação psíquica. Silvia Bleichmar enriqueceu esta leitura com outros aspectos no caso apresentado no capítulo 1 de A fundação do inconsciente.... No caso, a carga se apresentava como agitação corporal, inquietação, choro do bebê. Bleichmar chega a falar textualmente que entende que os elementos inscritos como carga, signos de percepção de caráter indiciário, seriam anteriores às mensagens enigmáticas laplancheanas.

 

Voltemos a Psicoanálisis extramuros..., Bleich­mar afirma que o vínculo materno se encontra "entre o estímulo e a pulsão, por isso a mãe é um agente traumático"[23], no sentido da distinção freudiana entre estímulo e excitação, passível de fuga ou não, respectivamente. A pulsão (excitação) é aquilo do qual se é impossível fugir. Assim, o paradoxo do vínculo materno está no fato de que:

 

O que caracteriza a mãe é que é um objeto permanente de estimulação que joga em uma espécie de plano intermediário entre o interno e o externo, do qual não se pode fugir, porque no momento de receber o apaziguante para a autoconservação, introduz o excitante da sexualidade. Este é o grande problema, cada um tem pelo menos duas mães[24].

 

Ainda em Psicoanálisis extramuros..., a autora fala sobre a mãe que carrega seu filho com amor, que deseja conter, sustentar, sem fazer aproximação entre estes movimentos maternos com o conceito winnicottiano de holding. Já em A fundação do inconsciente..., a autora aborda o holding winnicottiano, além da ideia freudiana de vias colaterais de ligação, ambos para pensar a inscrição de marcas que possibilitam a circulação das intensidades, marcas de sensorialidade inscritas em uma linguagem amorosa.

 

Em A fundação do inconsciente..., Bleichmar nomeia as primeiras inscrições psíquicas como signos de percepção, acompanhando a expressão utilizada por Freud na carta 52 escrita a Fliess (Wahrnehmungszeichen ou Wz), repensada por Laplanche como mensagem enigmática. No livro de 1994, Bleichmar faz uma distinção entre os signos de percepção e as mensagens enigmáticas ao dizer que os primeiros são anteriores. Ao traduzir a expressão Wahrnehmungszeichen (sendo Wahrnehmung percepção), Laplanche questionou se a melhor tradução para Zeichen seria signo ou indício, tendo escolhido o primeiro, por entender que são marcas que portam mensagens. Bleichmar se posicionou de maneira distinta ao afirmar que seriam signos indiciários, ou seja, indícios, a partir da semiótica proposta pelo filósofo americano C.S. Peirce[25].

 

Novamente em A fundação do inconsciente..., os signos de percepção que permanecem sem transcrição no psiquismo são restos de uma vivência traumática, indícios deixados pela inscrição da intensidade do trauma. Indícios para o terapeuta, não para o sujeito. No psiquismo, estes indícios são a própria pulsão sexual de morte, buscam descarga, colocando o sujeito à mercê da compulsão. São marcas que permanecem sem tópica psíquica, elas não compõem o inconsciente recalcado. Bleichmar chama estes signos de percepção que permanecem com caráter indiciário de Arcaico. Note-se que o Arcaico não é uma tópica psíquica, é a nomeação para estas huellas[26] que ficam soltas no psiquismo. O Arcaico não forma sintomas no sentido freudiano da palavra, uma vez que não há defesas psíquicas em cena. Razão pela qual a autora entende que os signos de percepção que permanecem com caráter indiciário, quando ativos, produzem transtornos.

 

Notemos, no entanto, que nas aulas de 1985 algumas destas ideias não estão claras. Por exemplo, quando Bleichmar falou da compulsão à repetição na vinheta freudiana, o comportamento compulsivo da paciente era um sintoma dentro de um quadro de neurose obsessiva, havia retorno do recalcado, o comportamento repetitivo era um contrainvestimento. Na compulsão em quadros de transtorno, não há sentido subjacente ao sintoma, há apenas descarga. No primeiro caso, o psiquismo utiliza defesas; no segundo, não.  

 

De acordo com G.S. Moraes[27], os signos de percepção, tal como trabalhados em A fundação do inconsciente..., são marcas inscritas sobretudo a partir de aspectos sensoriais e podem ser tanto marcas excitantes quanto apaziguadoras, principalmente nos primeiros tempos de vida, sendo as marcas excitantes resultantes de inscrições de intensidades, daí a aproximação que Bleichmar realiza entre a inscrição da pulsação materna e inscrições que são fruto de experiências traumáticas. A dupla função materna se faz perceptível na dupla qualidade das marcas inscritas no psiquismo do bebê, a partir da relação com a mãe (ou dos primeiros cuidadores).

 

A mãe que apazigua

No curso de 1985, Bleichmar faz reflexões sobre a mãe que possibilita apaziguamento a partir, sobretudo, de Lacan e Bion. Com Winnicott, ela aborda a questão dos ciúmes, da inveja e da hostilidade das mães com coordenadores nos grupos de crianças, porque muitas destas mães se sentiam privadas de sua capacidade de maternagem nos abrigos[28]. Bleichmar indaga o que teria produzido nestas mães a necessidade do filho, para se sentirem privadas. Lacan a ajuda nesta reflexão, ao possibilitar a distinção entre agente materno e função materna[29]. O sentimento de privação da mãe poderia ser consequência do instinto materno ou do amor materno inato, inexistente segundo Bleichmar; a mãe, neste caso, seria agente da autoconservação do filho. Já na concepção lacaniana de função materna, o filho preencheria algo que falta à mãe; Lacan postulou sobre o que o filho (ou sua falta) representa para a mãe. A relação mãe-criança em Lacan é uma relação de base narcísica, o filho é seu falo, é o que a completa, diz Bleichmar.

 

Para Bleichmar, no entanto, a função materna é mais complexa que o aspecto narcísico, apesar de o narcisismo ser essencial para que as mães tenham força para criar seus filhos, atividade "penosa, sacrificada e dura"[30]. Em A fundação do inconsciente..., a autora nomeia o movimento narcísico da mãe projetado na criança como narcisismo transvasante, fundamental ao estabelecimento da complexidade da relação da díade. Necessário e patológico, quando excessivo.

 

O eixo simbolizante da dupla função materna, apresentado nas aulas de 1985, parece amalgamar algumas formas de relação da mãe com a criança. Por exemplo, a mãe que proíbe e transmite regulamentações e valores culturais, a mãe que narcisiza seu filho e a mãe como função simbolizante. Neste caso, pensada a partir da função α de Bion, como veremos logo adiante:

 

Faço uma distinção entre o caráter sexualizante e o simbolizante, à medida que nas origens da sexualização infantil, se bem são precondição do símbolo, introduzem o que então vai ser o embrião do aparato psíquico, os primeiros elementos que virão em busca de uma simbolização posterior, à medida que o aparato psíquico tem que encontrar no momento constituinte formas de ligação para a descarga deste montante de excitação primária que recebe. E destaco a diferença porque a simbolização será o resultado da confluência entre sexualidade materna introduzida como energia pura na criança e a ordem de símbolos que a mãe sustenta a partir da cultura na qual está imersa[31].

 

Na citação acima, apesar de a cultura preceder a mãe, sua criação simbólica será sempre individual. Assim:

 

se há um código que precede o sujeito como código simbólico da cultura, ou ordem simbólica como o chamaria Lacan, há, ao mesmo tempo, um simbolizador maior que é a mãe. É ela quem outorga não somente este código de língua, mas também formas particulares com as quais tem que ser adquirido o código da língua[32].

 

Algumas mães podem estabelecer significações mais compartilhadas socialmente ou mais arbitrárias. Bleichmar conta sobre um menino psicótico que ela atendeu, cuja mãe, na sessão, ao vê-lo bocejar, diz que ele tem dor de barriga. A relação entre bocejar e dor de barriga não é comum, a arbitrariedade sugere uma dificuldade de estruturação pré-consciente da mãe para significar processos corporais de acordo com a cultura. A dissociação entre o que se diz e o que o corpo manifesta acontece em muitas outras situações. Por exemplo, um pai que está bravo com o filho que quebrou algo, mas não quer ser agressivo, pode falar para a criança que tudo bem, mas seu olhar, o tom da sua voz, sua expressão corporal, diz outra coisa. As ações, neste sentido, possuem relação com a linguagem. Simbolizar, então, é estabelecer uma relação entre um símbolo e um simbolizado e há mais de um laço possível, afirma Bleichmar.

 

Bleichmar pensando com Bion

A autora então começa a trabalhar mais diretamente com as proposições de Bion[33] sobre os elementos β e a função α, pensando-os no contexto do trabalho dos terapeutas. Bleichmar lembra que as formulações de Bion demandam o conceito de identificação projetiva, comum no trabalho com crianças e em situações de extrema angústia. Bleichmar entende que a função α é função de simbolização porque não basta a experiência, é preciso aprender com a experiência, a função α opera sobre a captação da experiência emocional. Tal como na aproximação que ela realiza com a ideia de práxis, a experiência em si não resulta em aprendizagem. Ademais, a função α pressupõe uma relação intersubjetiva:

 

A função α [...] é a incorporação do outro pensante dentro de um. Não é algo que um possa construir por si mesmo se não há outro que o humanize [...] a possibilidade de pensar é o fato de que os sujeitos humanos [nós] nos apropriamos de um pensamento lógico que provém da cultura[34].

 

Já os elementos β, segundo Bleichmar, são aqueles sentidos como coisas em si e guardam relação com o Das Ding de Freud. Contudo, são abordados também com seu caráter intersubjetivo, à medida que se relacionam com o fato (traumático) não digerido:

 

No traumatismo, a coisa em si mesma é sempre o estranho, o alheio, o perturbante, o não recoberto, não representável, somente expulsável. A característica dos elementos β é que são fatos não digeridos, não são recordações, não podem ser enlaçados pelo psiquismo. Este é o grande paradoxo da recordação traumática; não é em si mesma uma recordação que pode ser evocada[35].

 

O elemento traumático (β) se incrusta no psiquismo, retornando sem ser evocado, é uma invasão de um estímulo externo que é impossível de ser recuperado, mas que captura a pessoa, demandando evacuação constante, insistindo na repetição: "O traumatismo não é disponível ao pensamento, é o pensamento que fica capturado à disposição do traumatismo"[36].

 

A função α transforma elementos β por meio de sua simbolização e, nesta medida, é uma função que recupera a impressão sensorial, permitindo sua transformação em memória. Segundo a autora, para Bion, a capacidade de rêverie da mãe é o que lhe possibilita realizar função α, ligando e organizando os elementos traumáticos. Assim, a mãe com capacidade de rêverie é uma mãe com capacidade de contenção, tal como o holding winnicottiano, que, ao ligar e organizar, não deixa que a criança se despedace com o traumatismo. Bleichmar ainda aproxima estes dois conceitos com a narcisização primária de Lacan:

 

se a mãe não pode estabelecer esta função de reverie, holding - o que Lacan chama de narcisismo, narcisização primária, tudo isto que dá origem, digamos, a uma contenção - o aparato fica totalmente exposto aos produtos traumáticos, aos estímulos ou às situações traumatizantes, e Bion terminará dizendo que a capacidade de reverie é a função α da mãe, de ligar, conter, estruturar e organizar os elementos.

 

A criança projeta elementos β e a mãe devolve elementos α. Isto que a mãe faz com a criança é o que [os terapeutas] terão que fazer com as mães e com as crianças, esta será a função simbolizante nos grupos.[37]

Assim, pensando o trabalho do terapeuta, Bleichmar diz que os coordenadores pescam algo que funciona como elemento β, algo que permanece sem simbolização, sem digestão, e devolvem ao grupo de forma simbolizada, em palavras que produzam uma significação, permitindo uma ligação da experiência vivida a uma cadeia de sentido.

 

Encontrando sementes: nosso trabalho como psicanalistas pesquisadores

Como vimos, as formulações que a autora fez no curso estavam intimamente relacionadas com a possibilidade de pensar a experiência que os terapeutas estavam vivenciando naquele momento nos grupos de crianças desalojadas, para que conseguissem elaborar a experiência.

 

Reflexões que a levaram em particular ao pensamento de Bion, de tal maneira que podemos afirmar que tanto o conceito dupla função materna quanto o caráter indiciário dos signos de percepção guardam proximidade com este autor e com as reflexões realizadas naquele momento pela autora.

 

A dupla função materna é abordada em Psicoanálisis extramuros... a partir da compreensão da necessidade da mãe como agente de simbolização, intérprete para o traumático daquele momento e para aquilo que inscreve a partir de sua sexualidade inconsciente no psiquismo do bebê. Em Psicoanálisis extramuros..., a autora relaciona o eixo simbolizante da função materna sobretudo com proposições de Bion sobre a capacidade de reverie da mãe, com sua função α. Relaciona, mais marginalmente, à narcisização primária de Lacan e ao holding winnicottiano. 

 

Nesse livro, Bleichmar ainda não chama as primeiras inscrições sexualizantes de signos de percepção, no entanto, seu caráter indiciário já aparece como gérmen, à medida que são marcas não ligadas, são coisa em si, Das Ding, cargas desqualificadas de representações que lhes outorguem sentido. São elementos não simbolizados, elementos β, cuja emergência pode ser pescada pelos terapeutas porque, em seu caráter indiciário, sugerem a existência de um traumático (de qualquer ordem). Elementos que não estão relacionados em Bion com a inscrição da pulsação materna, mas que também estão inseridos no âmbito da intersubjetividade.

 

Desta maneira, acompanhamos o "tango clínico-teórico" de Bleichmar: do inusitado da clínica à articulação teórica com diferentes autores, para que terapeutas e autora pudessem aprender com a experiência. Aprendizado que contribuiu para a construção de duas de suas formulações teóricas e que nos ajudou a pensar sobre o terremoto de 2020.

 

Pensando nosso Ter-remoto com Bleichmar

Pensar nossa clínica durante a pandemia de Covid-19 - seja a partir do enquadre ou de efeitos intrapsíquicos - articulada às considerações expostas em Psicoanálisis extramuros... é tarefa para outro texto. No entanto, tangenciamos a questão ao apresentarmos algumas das reflexões da autora sobre a situação traumática do México. Talvez nos caiba finalizar nosso artigo realizando breves apontamentos inspirados pelo texto de Bleichmar.

 

Há muitas distinções entre os dois "eventos", a começar pela dificuldade em circunscrever o traumático da pandemia, dada a multiplicidade de elementos que compõem o cenário pandêmico, da crise sanitária ao isolamento social, passando por empobrecimento da população, sensação de desgoverno, indiferença com a morte e com o sofrimento humano, dramas individuais ou estatísticas que beiram a insanidade... Já na situação descrita por Bleichmar, as crianças atendidas tinham passado por perdas no mínimo de suas casas ou por perdas de familiares. Outra diferença se relaciona com a duração: na cidade do México em 1985, abalos sísmicos intensos destruíram inúmeras construções e causaram milhares de mortes e vítimas em curto espaço de tempo, diferentemente da pandemia de Covid-19 que se arrasta por mais de um ano até o momento.

 

A alteração brusca de enquadre para o ter-remoto com nossos pacientes, se bem propiciou a continuidade de nosso trabalho, também nos "desalojou" de nossos consultórios, trazendo consigo o risco do desalojamento de nosso lugar de analistas. Bleichmar nos remete à assimetria necessária ao trabalho analítico[38], ao nos alertar sobre o aspecto continente do analista em situações em que defesas habituais falham frente às intensidades e ao abordar a importância do enquadre a partir da função paterna, não explorada no presente texto[39].

 

Psicoanálisis extramuros... nos traz outras reflexões, citamos duas mais diretamente relacionadas às considerações sobre o traumático realizadas a partir de Freud: 1) quando a intensidade não chega a desmoronar as defesas habituais, mas sua cronicidade abala as estruturas defensivas, podemos falar em traumático? 2) o que ocorre quando estas defesas habituais ficam impossibilitadas por diferentes razões, como, por exemplo, pela necessidade de distanciamento social?

 

Há pacientes que não passaram por situações de luto, pela vivência de adoecimentos mais graves consigo ou entre familiares ou por medos incapacitantes. Comumente observamos deterioração na noção de temporalidade, presença massiva de angústias em alguns períodos e sofrimentos relacionados à condição de distanciamento social ou pela impossibilidade desta. Por outro lado, paradoxalmente em alguns casos, observamos processos analíticos acontecendo mais fluidamente que em outros momentos. Nestes, a segunda questão que fizemos inspirados por Bleichmar talvez possa nos ajudar. Sem desconsiderar a importância da mudança de enquadre vivenciada de formas distintas por nossos pacientes, talvez a dificuldade no uso das defesas habituais (características com as quais por vezes pacientes se identificam) venha permitindo, em alguns casos, avanços interessantes nos processos analíticos. Neste sentido, a desmobilização não abrupta da rigidez de algumas defesas estaria contando a favor dos processos analíticos.


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Percurso é uma revista semestral de psicanálise, editada em São Paulo pelo Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae desde 1988.
 
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