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Resumo
Resenha de Marion Minerbo, A posteriori, um percurso, São Paulo, Blucher, 2020, 320 p.


Autor(es)
Luiz Moreno Guimarães  Reino
é doutor pelo Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo. Membro filiado do Instituto Durval Marcondes da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo.


Notas

I. Melsohn, Psicanálise em nova chave. São Paulo, Perspectiva, 2001, p. 176.

1. Neste fragmento retomo um trecho do prefácio que escrevi para o livro.

2. S. Freud; L. Andreas-Salomé, Correspondance avec Sigmund Freud. Paris, Gallimard, 1966, p. 72.

3. R. Barthes, Aula. São Paulo, Cultrix, 1978, p. 19.

4. F. Herrmann, "O besouro e o método", in M. Minerbo, Estratégias de investigação em psicanálise: desconstrução e reconstrução do conhecimento. São Paulo, Casa do Psicólogo, 2000, p. 10.


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 LEITURA

Saber com sabor [A posteriori, um percurso]

Wisdom with flavor
Luiz Moreno Guimarães  Reino

O livro A posteriori, um percurso, de Marion Minerbo, faz parte da coleção Série escrita psicanalítica, organizada por Marina Massi. A ideia dessa série é reunir e consolidar a produção psicanalítica de autores da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo. O que vem bem a calhar, já que o pensamento clínico da sbpsp ainda resta por ser descoberto.

Para a composição do livro, Marion selecionou textos que percorrem um período que vai de 1997 até 2019; deixou de lado os escritos feitos sob encomenda, e incluiu apenas os feitos sob encomenda do desejo. "A partir do meu desejo", disse a autora no evento de lançamento, "não quer dizer só os textos que gostei de escrever, mas principalmente os escritos a partir de uma pulsação interna, de uma necessidade, de uma premência, que me impôs este caminho e não outro". Os fragmentos que seguem, e que talvez formem uma resenha, visam auxiliar o leitor a reconhecer a pulsação interna desse percurso.

 

O título

Há um sutil pleonasmo no título A posteriori, um percurso. Afinal, percurso é aquilo que a gente só sabe quando é tarde demais. É claro que há esses percursos que a gente traça para o futuro, projetando uma trajetória, estabelecendo um plano; mas para esses lembro uma fala de Woody Allen: "if you want to make God laugh, tell him about your plans", ou outra de Rubem Alves: "eu me tornei o que tornei porque meus planos deram errado".

O percurso singular?- seja qual for: intelectual, de uma vida?- só se mostra em um olhar para trás, numa "retro-spectiva"[1]. Ele não pode ser reconhecido num ponto isolado, mas numa sequência; e forma uma unidade fluida, como um rio subterrâneo, a percorrer as mais distintas criações e a irrigá-las também.

 

As partes

O livro tem quatro partes[2]. A primeira (Perdendo a ingenuidade) apresenta diversas maneiras de uma psicanalista interpretar o mesmo sintoma individual, a compulsão a comprar; a presença desse espectro acaba por abalar a crença do que é ser psicanalista. Uma microcrise de identidade antecede o surgimento de novas autorrepresentações.

A segunda parte (Ampliando os horizontes da clínica) explode a clínica padrão: vamos à rua acompanhar o tratamento de adolescentes em instituições, grupos na escola ou num passeio pelo parque. Aqui também vemos a analista encontrar seus pares: equipes, colegas, cachorros. O convite é habituar-se ao método da psicanálise e tentar chegar lá onde o paciente está.

A terceira parte (Interpretando fenômenos socioculturais) contém estudos acerca de nossa época. A autora inclina-se sobre a violência no corpo e na linguagem, sobre a lógica da corrupção e sobre as equações da psique social (reality show + video games = reality games). Lúcido embora, o retrato não é otimista.

A quarta parte (Textos de maturidade) são contribuições metapsicológicas próximas da clínica. Nelas há a presença do plural: as depressões (sem tristeza, com tristeza, e melancólica), os retornos (do recalcado, do clivado).

Vale destacar que o texto Sobre o supereu cruel, que se encontra nessa última parte, se tornou uma referência recorrente entre os colegas de formação. Também pudera, é um trabalho que traz uma formulação metapsicológica realmente nova, e que talvez por isso tenha sido premiado. A pergunta disparadora do texto é simples: por que o supereu tem tanto ódio do eu? Apresenta-se então uma investigação que acaba por encontrar a face oposta da idealização do bebê, isto é, depara com os movimentos filicidas inconscientes dos pais. De tal forma que a autora propõe: a origem da crueldade do supereu pode ser rastreada nos microvotos de morte dos pais, na outra face do His majesty the baby.

As variações de temas que o leitor encontra neste livro tendem invariavelmente à extensão do horizonte da psicanálise. É notável como a autora aborda fenômenos cada vez mais amplos: um sintoma individual e as múltiplas formas de interpretá-lo, a quebra da clínica padrão em direção ao trabalho com os pares, a análise de configurações sociais contemporâneas... Tal trajeto remete ao princípio de investigação freudiano: "Eu me preocupo com o fato isolado e espero que dele jorre o universal"[3]. A própria metapsicologia, ao final dessa sequência, aparece como ponto de chegada (e não de partida) do olhar clínico.

 

Sabor de psicanálise

"O trabalho do cozinheiro", afirmou Roland Barthes, "é deixar o tomate com sabor de tomate"[4]. Agora, com tomate podemos fazer várias coisas: usar na salada, no molho do macarrão, fazer tomate assado, etc. É o mesmo tomate, mas são tomates diferentes; o importante é que fique com sabor de tomate.

E não estaríamos nos perguntando: como deixar a psicanálise com sabor de psicanálise? Com a qual também podemos fazer várias coisas: analisar um sintoma (Parte 1), romper a clínica padrão (Parte 2), investigar configurações sociais (Parte 3), alterar a metapsicologia (Parte 4). É a mesma psicanálise, mas são psicanálises diferentes; o importante é que fique com sabor de psicanálise.

Às vezes ouço: - Eu gosto dos textos da Marion porque são claros. Sim, é verdade, mas tem algo mais nessa clareza, tem o saber com sabor.

 

Desimpossível

No prefácio de Estratégias de investigação em Psicanálise, Fabio Herrmann escreveu que a autora conseguiu realizar algo impossível simplesmente por ignorar que era impossível, como o besouro que "só voa por não haver lido os tratados de aerodinâmica"[5]. Há qualquer coisa também assim em A posteriori, um percurso.

Nele se encontram conjugadas duas vertentes antagônicas: uma teoria da psique e outra do método. Essas duas, em geral, andam separadas: quem assume uma teoria do funcionamento psíquico prescinde de uma teoria relativa ao método, e quem assume uma teoria metodológica deixa de lado a descrição do psíquico.

Na Introdução, a autora escreve que, dos muitos autores que a acompanharam nesse longo percurso, dois merecem destaque: Fabio Herrmann e René Roussillon. De certo modo, cada um deles é representante de uma dessas vertentes: Fabio Herrmann (teoria do método) e René Roussillon (teoria da psique). No entanto, a forma como a autora articula essas duas linhas é algo inteiramente dela e, ao meu ver, liga-se à pulsação interna desse percurso. Pois a rigor é impossível juntá-las, seria como conjugar o revelado (a teoria psicanalítica da cena primária, por exemplo) com o revelar (a cena primária da teoria psicanalítica). Mas, enfim, o besouro insiste em voar...


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Percurso é uma revista semestral de psicanálise, editada em São Paulo pelo Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae desde 1988.
 
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