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65
Como habitamos esse comum?
ano XXXII - Dezembro de 2020
158 páginas
capa: Nuno Ramos
  
 

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Resumo
Resenha de Violaine de Montclos, Seu paciente favorito, 17 histórias extraordinárias de psicanalistas, São Paulo, Perspectiva, 2020, 142 p., tradução de Marise Levy Wahrhaftig.


Autor(es)
Noemi Moritz Kon
(Noni) é psicanalista, Membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, Mestre e Doutora pelo Departamento de Psicologia Social do Instituto de Psicologia da USP e autora de Freud e seu Duplo. Reflexões entre Psicanálise e Arte (Edusp/Fapesp, 1996), A Viagem: da Literatura à Psicanálise (Companhia das Letras, 2006), organizadora de 125 contos de Guy de Maupassant (Companhia das Letras, 2009) e co-organizadora com Cristiane Curi Abud e Maria Lúcia da Silva de O racismo e no negro no Brasil: questões para a psicanálise (Perspectiva, 2017). Docente no curso "Conflito e Sintoma: Clínica Psicanalítica" do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae.



Notas

1.V. Montclos, Seu paciente favorito, 17 histórias extraordinárias de psicanalistas, S. Paulo, Perspectiva, 2020, p. xii, tradução de Marise Levy Wahrhaftig.


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 LEITURA

Contos de bons encontros [Seu paciente favorito, 17 histórias extraordinárias de psicanalistas]

Tales about good encounters
Noemi Moritz Kon

Seu paciente favorito, 17 histórias extraordinárias de psicanalistas, último livro publicado por Violaine de Montclos, jornalista francesa revisora chefe do semanário Le point, traz o resultado de uma pesquisa original sobre a intimidade das relações entre o psicanalista e seus pacientes.

 

Passando ao largo das várias compreensões teóricas da clínica psicanalítica, Montclos vai direto ao âmago da experiência analítica, onde a mágica do encontro humano fundante e transformador pode se dar. São, seria possível dizer, contos, narrativas literárias de grande qualidade, que descrevem o encontro da jornalista com 17 psicanalistas, de diferentes linhas e instituições, nos quais eles compartilham em confiança à jornalista suas experiências psicanalíticas mais íntimas e instituintes, aqueles encontros clínicos nos quais alicerçaram sua crença no poder constituinte da psicanálise.

 

A originalidade desse pequeno livro é o testemunho, em estilo romanesco, da especificidade de uma experiência inaugural da subjetivação do psicanalista, da pessoalidade do psicanalista em seu fazer. Violaine de Montclos recebe, como uma confidente, o prazer do partilhamento dessa experiência extraordinária que é a psicanálise e a divide generosamente conosco por meio de sua escrita ao mesmo tempo poética e precisa, graças também ao excelente trabalho de tradução da psicanalista Marise Levy Wahrhaftig.

 

Narrar a clínica em sua complexidade histórica que entrelaça experiências diversas de seus protagonistas, apresentando nuançadamente a trama de suas infinitas formas de compreensão/construção, não é, certamente, uma tarefa fácil. E Violaine de Montclos, com engenhosidade e capacidade de síntese, obtém sucesso nessa empreitada em que tão poucos obtêm êxito.

 

É assim que Seu paciente favorito nos leva ao interior dos consultórios desses psicanalistas, seus abrigos secretos, nos quais 17 encontros instauradores aconteceram: vínculos profundos que transcorreram em poucas sessões ou que se prolongaram por dezenas de anos, com bebês de meses, com crianças pequenas e suas famílias ou com analisandos idosos, desejosos de retomar e processar seus percursos de vida, suas heranças traumáticas transgeracionais ou de nascimento, com gente da cidade e do campo, com imigrantes, refugiados das colônias ou locais, com aristocratas, burgueses e proletários, tantas histórias e que traziam sempre a complexidade presente em todas as vidas e que ganhavam palavras, forma e sentido, nos bons encontros analíticos.

 

Somos levados, dessa maneira, a olhar também pelo buraco da fechadura ou a nos esconder sob o divã, convidados a participar da intimidade dessa aventura misteriosa que é a psicanálise, chamados a testemunhar o grau zero da fundação da história desses psicanalistas experientes, presenciando momentos de pura epifania, de revelação de si e do outro, nos quais um ato analítico fundador pôde se dar. São relatos literários comoventes e significativos, de alegria e, também, de dor, que convocam a empatia e que nos fazem retomar nossas próprias experiências analíticas fundadoras, quer seja como analistas, quer seja como analisandos.

 

De minha parte, sei bem quem se tornou meu paciente dito assim favorito, e qual encontro psicanalítico instaurou em mim a crença na potência da psicanálise, embora tenha guardado marcas importantes de tantos encontros clínicos. Recebi Felipe quando era uma jovem recém-formada, de 22 anos. Ele, um garotinho mirrado, de pele e cabelo bem claros, com seus 7 ou 8 anos de idade. A queixa, trazida pela mãe, era de que Felipe, ainda que não apresentasse distúrbios fisiológicos, não era capaz de falar. Assustados, entramos em meu consultório. Um encontro de trabalho intenso. Os móveis foram revirados e utilizados para outros fins: esconderijos, labirintos, veículos, escaramuças para uma batalha campal, berros, espantos e risos... não sei bem. À saída, a grande e misteriosa surpresa: Felipe cumprimenta verbalmente sua mãe, e conta alegremente algo de nossa sessão. Felipe fala! A mãe me olha assustada e pergunta incrédula: "o que foi que você fez?". Eu, talvez mais espantada que ela, respondi balbuciando: "Eu? Eu não fiz nada!". Tivemos ainda outros tantos encontros dos quais, confesso, não me lembro bem. Talvez não tenham mesmo grande importância diante daquele ato analítico iniciático. Muitas vezes me pego pensando em Felipe, imaginando quem ele seria hoje em seus 40 e muitos anos, ideias bobas, talvez. E se ele fosse um professor, um cantor, um locutor... um psicanalista, quem sabe? De todo modo, aquela oportunidade me certificou da potência da psicanálise, de como, por vezes, ela nos atravessa, nos leva e nos possibilita um bom encontro, um encontro transfigurador, ao menos, para essa analista.

 

É a esse mundo que a escrita sensível e potente de Violaine de Montclos nos conduz. Sua literatura tem a mesma energia linguageira e poética da psicanálise, convocadora de memórias da clínica e de seus mistérios, convocadora de nossa humildade diante da surpresa, do prazer e da força que encontros humanos de qualidade podem nos ofertar. São lindas e comoventes as histórias desses encontros analíticos fundadores com pacientes inaugurais, os eleitos como "favoritos" por psicanalistas veteranos, profissionais que dedicaram a sua vida a acompanhar tantas e tantas pessoas, e que poderemos acompanhar na leitura dessa pequena joia da literatura psicanalítica.

 

Fiquemos com a beleza e a fluidez da escrita de Violaine de Montclos:

 

Um garotinho obeso, mortiço, que nunca diz nada, mas desenha um cavalo em todas as sessões. Uma mulher que ouve vozes quando as torneiras estão abertas ou quando os pássaros cantam, vozes como que criptografadas nos ruídos de seu cotidiano e que lhe tornam a vida insuportável, ela diz. Um jovem muito bonito, muito talentoso, que se embriaga para desperdiçar seu talento e se colocar em perigo. Simples histórias humanas, pacientes como aqueles que um psicanalista ouve durante sua vida. No entanto, estes, precisamente estes, serão inesquecíveis. Cada um deles irá tornar-se para seu analista um paciente fundador, alguém de quem ele poderá descrever, decorridos anos após a última sessão, a voz, os sonhos, às vezes até mesmo o perfume que ele ou ela, durante seis meses, dois anos, dez anos deixou em seu divã. Por quê? Acredite-se ou não nos poderes da psicanálise, seja ela considerada abusiva, cara, incontrolável, nada altera o fato de que ainda existem pessoas que exercem esta profissão inusitada?- escutar histórias; aceitar se deixar envolver, por meio da transferência, por outro que não por si próprio; compartilhar, às vezes durante anos, das dores, dos segredos, das alegrias de indivíduos que nada são deles, e depois vê-los partir, desaparecer de sua existência. Neste encontro a portas fechadas que sempre recomeça e, a meu ver, é formidavelmente romanesco, nesta multidão de rostos e neste concerto de vozes que tecem a memória de um psicanalista e que, às vezes, se confundem, tive vontade de conhecer aquele ou aquela que não será por ele esquecido: seu paciente favorito, ou pelo menos, fundamental. Aquele cujo passado, talvez, tenha misteriosamente feito eco ao seu. Aquele que, para além das trilhas demarcadas da psicanálise, tenha, às vezes, lhe despertado ódio, afeto, nojo ou admiração. Aquele cujas palavras, sonhos, o entusiasmo pelo tratamento ou as resistências, fizeram dele um psi diferente[1].


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Percurso é uma revista semestral de psicanálise, editada em São Paulo pelo Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae desde 1988.
 
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