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Resumo
Resenha de Françoise Dolto, A causa das crianças, São Paulo, Ideias & Letras, 2005, 399 p.


Autor(es)
Lia Fernandes
é psicanalista, membro do Espaço Brasileiro de Estudos Psicanalíticos, sp, membro do Departamento de Psicanálise da Criança do Instituto Sedes Sapientiae, mestre em Teoria Psicanalítica pela Universidade Federal do rio de Janeiro (UFRJ) e autora de O olhar do engano: autismo e Outro primordial (Escuta, 2000).


Notas

1 Acerca desse episódio ocorrido com seu irmão Philippe, bem como do despertar de sua consciência de querer ser médica da educação e, sobretudo, do que se passava, inaudível, entre pais e filhos, encontramos belas passagens no livro Autorretrato de uma psicanalista, Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1990, p. 41-42.

2 F. Dolto, Autorretrato… p.113.


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 LEITURA

Perdão pelo tempo que passa

A causa das crianças


An apology for transience
Lia Fernandes

Bastaria este quadrinho para termos, em síntese, o espírito de A causa das crianças, belo livro de Françoise Dolto escrito já ao fi nal de sua vida. Uma produção de fôlego, psicanalítica, mas de cunho predominantemente político, em que a autora expõe e discute uma longa e cuidadosa pesquisa realizada na França e no exterior acerca do lugar dado às crianças na sociedade. O material consultado é extenso e vai desde apontamentos oriundos de áreas específi cas do conhecimento – pediatria, psicologia, neurociências, sociologia, neurobiologia, etologia, psiquiatria, história da cultura, nutrição, pedagogia – até referências a obras de pintura, literatura e cinema.

Logo de início temos uma delicada menção a uma exposição de arte ocorrida na Alemanha em 1972 – “A imagem da criança vista pelos mestres da pintura, variações sobre um tema, de Lucas Cranach a nossos dias” –, uma reunião de 150 obras feitas ao longo de cinco séculos até o ano de 1960. Numa bela análise, a autora vai extraindo dos quadros o que comporá a tese maior de sua obra: o desconhecimento da criança em si mesma, em sua realidade irredutível e misteriosa. A criança como sujeito único, singular e em igualdade de posição com o adulto constitui o impossível de nossa cultura desde sempre, de onde deriva o inconformismo de Dolto, que considera este fato uma opressão legalizada e contra a qual ela ergue quase um libelo.

Se, na primeira parte do livro, Dolto vai percorrer os signifi cantes historicamente atribuídos às crianças – como inferior, representada como pária na literatura medieval; como símbolo da alma nas imagens de criançaanjo do renascimento; como demônio ou perversa potencial em muitos ideários religiosos; como a criançaser imaturo e despreparado do século xviii em diante; como a criançanostalgia do paraíso perdido do romantismo até a criançabibelô de nossos dias –, na segunda parte desta obra, e a partir do diagnóstico de sua falta de lugar no mundo como ser desejante, a autora traça uma nova abordagem da infância tomando a criança, até mesmo no período prénatal, como um ser de linguagem. Aí encontramos uma série de refl exões e casuística próprias mescladas a relatos da infância da autora – passagens em que transparece uma das maiores virtudes de sua narrativa: a capacidade de transpor o leitor para a intimidade da criança, colocando- nos em sintonia com o que há de mais arcaico no humano. Isto faz desta obra um verdadeiro livro de formação para todos os psicanalistas.

Ainda nesta parte podemos encontrar belas formulações da autora, como a referência à psicanálise como um processo que leva à aquisição de uma nova pele (p. 166) e a ideia da apreensão inaugural do tempo pela criança que se dá, segundo Dolto, através da experiência da espera (p.184). Também é notável sua consideração à história familiar que preexiste ao nascimento de uma criança, essencial ao seu enraizamento. Com crianças abandonadas, mesmo se adotadas, por exemplo, ela é categórica em afirmar que permanecem prisioneiras de um enigma, o da história de sua concepção. “Cada uma dessas crianças é prisioneira de um enigma. Ela resolve certo Édipo que tomou como mentor representativo as pessoas que o criaram. Mas ela está sempre à procura de seus genitores e seus irmãos. A prova disso é a fantasia que todas essas crianças têm: a do risco de se tornar amante de sua irmã – ou de seu irmão” (p. 181). Entende também que uma criança só nasce pela conjunção de três desejos: o da mãe, o do pai e o do bebê. E por isso professa como necessário, nos casos de adoção, enlaçar afetivamente as diversas linhagens constituintes da história da criança, propondo dizer a ela, sempre com muita ternura: “Que gratidão tenho por seu pai e sua mãe, pelos quais tenho a felicidade de amar você hoje” (p. 191).

Esta delicadeza e profundo respeito que encontramos em suas comunicações com as crianças advêm de uma experiência contrária vivida em sua infância. Quando pequena, nunca era ouvida como alguém que falava coisas com sentido, sendo sempre rechaçada, considerada como errada ou como um ser atípico. E era, felizmente.

Aos 5 anos de idade, a pequena Françoise Marette (depois Françoise Dolto) descobriu sua vocação ao observar os problemas de saúde de seu irmãozinho menor. Philippe, ainda bebê, vomitava após presenciar discussões acaloradas mas furtivas entre sua babá e a cozinheira. O médico vinha e prescrevia dieta, aconselhando a mãe a não deixá-lo sair por três dias. Dolto inconformava- se ao vê-lo chorar de fome por ter sido privado de algo que não era a causa de seu mal-estar, já que seus vômitos expressavam a tensão violenta e expulsiva que ele vira ocorrer entre essas mulheres minutos antes. “Por que o médico não perguntou o que aconteceu antes (entre as seis e oito da tarde)?” (p. 147), indagava-se ela já suspeitando que os médicos ignoravam o que as crianças – e também provavelmente os adultos – sentiam. Será aos 8 anos que Dolto enunciará a seus pais sua decisão: “Quero ser médica de educação”, disse ela numa observação incompreendida por todos à volta. “O que é que isso quer dizer?” “Isso quer dizer um médico que sabe que as crianças podem ficar doentes por problemas de educação”(p. 147). Problemas relacionais, ela explicaria mais tarde [1].

São muitas as questões que esta obra levanta. A questão do poder é a maior delas. Para Dolto, “os adultos têm medo de liberar certas forças, certas energias das quais as crianças são portadoras e que questionam sua autoridade” (p. 5). A esse respeito, em sua autobiografia, ela faz uma preciosa advertência aos psicanalistas e ao seu apego aos lugares de poder: “Acho completamente incompatível ter títulos sociais e ser psicanalista. A partir do momento em que se tem um título, não se pode mais ser psicanalista” [2].

Coerentemente, a autora denuncia que “A” criança não existe, assim como Lacan já preconizava a inexistência de “A” mulher. Trata-se, segundo ela, de uma criança, de tal criança e nunca de uma classe delas, instrumento através do qual se veiculam padrões e se reproduzem ideologias. Nesse sentido, a instituição da psicanálise com crianças como uma especificidade isolada é posta em questão, já que não seria possível delimitar as fronteiras entre os adultos e as crianças. “Quem pode se sentir adulto?”, interroga ela (p. 199).

Em todas as advertências feitas aos pais relativas ao tratamento dado a uma criança, Dolto os provocava para que se pusessem no lugar dela. “Você gostaria de que trocassem sua roupa no meio dos outros?”, interrogava ela sobre o costume de trocar as fraldas dos bebês em espaços abertos. E para certos pais que, crendo-se sexualmente liberados, conviviam nus em casa com seus filhos pequenos, ela dizia: “Quando vocês estão com amigos em casa, amigos que vocês honram, vocês praticam nudismo? Então por que ficar nus na frente das crianças?” (p. 372).

São comoventes as histórias contadas por esta psicanalista sobre seu trabalho com bebês. Desde os primórdios de sua prática profissional, em hospitais para crianças doentes, ela falava com eles e os efeitos que essa comunicação produzia são impressionantes e lhe renderam uma certa fama de bruxa. Com muita simplicidade e respeito, Dolto considerava toda sua linguagem não verbal: seus sons, gestos, olhares, comportamentos, a mímica facial e seus sintomas – claramente entendidos, sempre, como linguagem. Ela fala lindamente sobre como os lugares do corpo marcados pela presença materna que, por exemplo, subitamente se ausentou, ficam congestionados por essa ausência: nas otites (a marca da voz que se foi), nas bronquites (do odor que se perdeu), nas faringites (como sinais da mudez dos intercâmbios) etc. Para ela, além disso, estes lugares se desvitalizam com os desligamentos e se tornam presa fácil de bactérias e vírus.

É a delicadeza desses momentos iniciais da constituição da subjetividade que presidiram à criação da chamada Maison Verte, uma casa de acolhimento projetada por Dolto para bebês e pais no intuito de preparar as crianças para o ingresso nas creches e escolas primárias. Na última parte do livro, ela detalha o projeto inaugurado na Praça Saint-Charles, no xv subúrbio de Paris, em janeiro de 1979. Suas preocupações fundamentais são o que a menina Dolto viveu, como carência, em sua infância: a da palavra dita – e ouvida – entre os pais e a criança. Palavra sem a qual o desmame é vivido como uma mutilação.

Na terceira parte do livro, a autora apresenta suas ideias para uma sociedade que verdadeiramente pudesse acolher a infância. Expõe detalhadamente o que seria uma escola do futuro em que as crianças tivessem respeitados seus ritmos individuais, suas escolhas e liberdade de movimentos. Propõe uma “escola à la carte”, com programas de estudo singularmente montados segundo os interesses de cada um. São audaciosas suas propostas e perfeitamente viáveis mas requereriam uma outra economia narcísica por parte dos adultos.

Se hoje soa tão familiar a referência ao declínio do pai na cultura, segundo Dolto o que constatamos é um declínio do casal, do desejo dos adultos que se encontram cada vez mais infantilizados e distantes de seu grupo de idade. O que a autora não relaciona diretamente, mas se depreende de seu texto, é que a inadmissibilidade da criança como sujeito se dá por esta encarnar um dos mais privilegiados anteparos à emergência do sexual no casal. Ali onde, através da ternura do amor materno, nos protegemos do desamparo que a experiência do desejo nos confronta e frente à qual nunca somos doutos. O saber hierárquico sobre a criança serve, em suma, para assenhorar os adultos que temem tanto o sexo quanto a morte. A estes – ou a isto em nós – às crianças só caberia dizer: perdão pelo tempo que passa.

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Percurso é uma revista semestral de psicanálise, editada em São Paulo pelo Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae desde 1988.
 
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