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Resumo
Resenha de Fórum do Campo Lacaniano?– MS (org.), Psicanálise e pandemia, São Paulo, Aller, 2020, 208 p.


Autor(es)
Pedro Fernandez de  Souza
é pesquisador em Filosofia da Psicanálise.


Notas

1.        Para as citações, usamos a versão on-line do livro, o e-book para o Kindle. Como neste aparelho a divisão do texto é feita em "posições", o "p." das nossas indicações será referente a elas, e não a páginas.


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 LEITURA

A pandemia, o Brasil e a psicanálise [Psicanálise e pandemia]

The pandemic, Brazil and psychoanalysis
Pedro Fernandez de  Souza

No dia 30 de maio de 2020, o Fórum do Campo Lacaniano do Mato Grosso do Sul realizou uma jornada on-line intitulada Psicanálise e pandemia. Dos trabalhos então apresentados, surgiu o livro homônimo publicado poucos meses depois. Composto por dezoito artigos precedidos por um prefácio, o livro é a um só tempo homogêneo e múltiplo, de modo que não se logra resenhá-lo sem tolher um bocado da sua complexidade. É homogêneo graças à unidade do seu escopo (discutir a relação entre psicanálise e pandemia e, sobretudo, a forma com que esta acaba por afetar a prática daquela) e também por conta da unidade teórica que o perpassa (todos os textos são lacanianos e dialogam entre si em sua comunidade e cumplicidade vernacular). Os temas dos trabalhos, porém, são vários (donde a complexidade da obra), o que a torna uma espécie de mosaico temático e variegado.

O primeiro tema sobre o qual se debruçam alguns desses artigos é ao mesmo tempo teórico e clínico. Trata-se da transferência, conceito central para a prática psicanalítica. A pandemia do Covid-19 coagiu boa parte dos indivíduos a permanecerem trancados em casa, e isso não ocorreu sem consequências para os psicanalistas, acostumados a ir diariamente aos seus consultórios e a praticar, ali, sua técnica terapêutica e investigativa. Com a situação inesperada de confinamento social, os atendimentos não puderam mais ser feitos presencialmente. Ora, a práxis analítica é ritualística (a sala de espera, a porta do consultório, a poltrona, o divã) - como fica esse ritual sem seu substrato material e espacial? Na França, país onde há uma afeição particular pela disciplina freudiana, o Le Monde chegou a publicar a fins de agosto uma matéria sobre tal aporia técnica. Os analistas, diz o texto, ao realizar por vídeo ou telefone as suas sessões, contradisseram um ritual idoso, de mais de cem anos. Questão de ortodoxia, portanto.

Ortodoxia não era lá uma das predileções de Jacques Lacan, a voz maior subjacente a todos os artigos do livro Psicanálise e pandemia. E embora vez ou outra os lacanianos possam tornar-se lacanistas, não é o caso destes trabalhos. O artigo de Antonio Quinet ("Análise on-line em tempos de quarentena") é precioso a esse respeito. Nele se sublinham alguns dos desafios materiais ou físicos impostos pela situação imprevista do confinamento (o analisante deve ver o rosto do analista pela câmera? A câmera do analista deve permanecer ligada?...), mas se ressalta também o shibboleth da técnica analítica: analisar as resistências por meio do manejo da transferência. Esta, diz Quinet, não deixa de existir sem o encontro material dos corpos; ela se modifica, mas não passa a inexistir. Quinet chega a dizer que não há uma "dualidade entre sessões virtuais e sessões presenciais, pois há uma presença do analista na sessão on-line" (p. 277[1]). Mesmo virtualmente, pelo olho da câmera, o analista se faz presente: seu olhar e sua voz ainda funcionam como objetos para as pulsões do paciente, e o palco da transferência se monta naturalmente.

Mas a transferência não é a mesma sem o aparato espacial e físico de um consultório. "O tempo da transferência", de Bernard Nominé, trata do aspecto temporal envolvido na técnica analítica, e é aí, segundo ele, que a virtualidade da presença do analista traz consequências para a sua prática terapêutica. Os silêncios, diz ele, agora "são mais insuportáveis do que de costume" (p. 1753). Perguntando-se o porquê disso (visto que o silêncio numa análise é tão importante quanto uma pausa numa peça musical), Nominé aventa uma hipótese: quando os homens modernos se telefonam ou travam uma conversa por meio de uma videoconferência, eles o fazem porque têm algo a dizer. Tendo dito o que se havia por dizer, desliga-se. Ora, a psicanálise não se pauta nessa lógica utilitarista: dizer e calar-se, numa sessão analítica, não são o mesmo que dizer e calar-se numa reunião de trabalho ou num procedimento burocrático. Tem-se aí uma série de dificuldades técnicas que se intrometem no ofício analítico em virtude da tecnologia, estrangeira inicialmente a ele, mas sem as quais ele não pode ser por enquanto realizado.

Em meio a tudo isso uma questão basilar para a teoria psicanalítica como um todo emerge, graças mesmo a esse choque inevitável que acomete a transferência: o que é o corpo para a psicanálise? Luis Izcovich, em seu artigo "O corpo na psicanálise", discute a questão com muita minudência. De acordo com o autor, uma transferência não se erige porque há corpos a se relacionar, mas sim porque há ali o sujeito suposto saber. "Amor a quem suponho amor" (p. 688), eis a fórmula, e eis o imbróglio virtual do amor lacaniano. Este autor francês não está todo de acordo com o que dissera Quinet: para ele o amor entre dois sujeitos (amor transferencial, no caso) não requer dois corpos, não requer uma presença; "o que captura os corpos é um discurso" (p. 690). E uma análise é feita toda de discurso (coisa que Lacan não se cansava de dizer). Nisso Izcovich e Quinet estão de acordo: uma transferência se faz muito bem por meio de vídeos e telefones. Mas essa ausência da presença corporal acaba por engendrar alterações no próprio corpo dos sujeitos: Izcovich traz a primeiro plano o que ele chama de "afeto generalizado", observado e sentido por todos, tanto os analistas quanto os analisantes. Trata-se do "corpo extenuado" (p. 705), o corpo afadigado e exaurido. Corpo enjaulado, deveras, e que em seu imover-se acaba por cansar-se ainda mais, bem mais do que se houvesse suado e corrido. Esse cansaço invade a análise e denota um sofrimento físico dos sujeitos, e "o corpo sempre sofre pelo fato de a linguagem nunca conseguir simbolizá-lo de uma maneira completa" (p. 784); quando o corpo assim sofre, é porque a linguagem não simbolizou algo em sua integralidade, é porque algo sobrou para fora da captura que opera o discurso.

Esse algo que resta fora do discurso está no centro do segundo eixo temático deste livro: o luto. Esse algo é a morte, e não poderia ser de outra forma, em se tratando de uma enchente de estatísticas funerárias que decaem sobre nós cotidianamente. "Morte e luto na pandemia", de Marilene Kovalski, discute o tema (o título já o diz) sob um prisma lacaniano. O trabalho do luto nesta pandemia é particular, indica a autora, pois os corpos jogados em valas comuns são interditados aos vivos que os pranteiam. A comparação é com os corpos desaparecidos da ditadura e com o caso de Antígona, que dispunha do corpo do irmão e era impossibilitada, pela lei humana, de enterrá-lo. Não é este o caso dos sobreviventes hoje: os corpos de seus familiares mortos são enterrados, é fato, mas são "duplamente portadores da morte" (p. 2695): caso se aproximem deles, talvez os vivos também morram da mesma morte que os levou. O labor lutuoso deixa de fornecer então alguns dos contornos simbólicos que ele, por função, teria de dar ao "Real da morte". Fato interessantíssimo desse artigo é que a autora recorreu a Freud em busca de explicações conceituais, mas encontrou não uma série de hipóteses ou argumentações, e sim um testemunho de sofrimento. Também Freud perdeu alguém para uma pandemia: sua filha Sophie morreu em 1920, acometida pela gripe espanhola. Freud nota que a dor pela perda da filha não passa, e vê nisso uma forma lúgubre de sobrevivência do amor: a dor substitui o amor, e caso a dor se vá embora, também o amor terá ido. Eis entreaberta uma vereda para futuras investigações sobre as relações entre amor, morte e dor em psicanálise (e sabemos quão espinhosa é a noção de dor em Freud).

A morte e sua importância para a civilização está presente em alguns dos textos de Freud, mas mormente nos textos cujo objeto é a guerra. Sabe-se bem quão chocante foi para Freud a situação da Primeira Grande Guerra Europeia. Três de seus filhos serviram nos frontes de batalha, e um de seus genros morreu em combate. 1915 foi um ano de intensa produtividade teórica e ensaística da parte de Freud, e dois de seus artigos desse ano se dedicam ao tema da guerra. "‘Considerações sobre a guerra e a morte' e suas possíveis relações com a pandemia", de Pricila Pesqueira de Souza, retoma um desses textos e o relaciona com nossa situação atual. A guerra é terrível, mas ela pode, por via de seus horrores, fazer-nos lembrar da verdade inelutável: a primeira função do vivente é suportar a vida. A ilusão de que somos imortais é derrubada imperiosamente pela guerra, e eis o fruto amargo que se pode colher de seus terrores. A coisa não é tão dessemelhante numa situação de pandemia, em cujo turbilhão desértico falecem mais pessoas do que em muitas das guerras já guerreadas pelo homem.

A metáfora da guerra, aliás, é empregada desde o início da pandemia. Estaríamos em guerra contra o quê? Um vírus? A resposta que os artigos do livro Psicanálise e pandemia dão, em seu conjunto, é: "Não. Nós lutamos contra algo muito mais perigoso".

No "Prefácio" do livro, lê-se que "o Real invadiu e afligiu o mundo na forma de um vírus potencialmente letal e extremamente contagioso" (p. 74). Essa diagnose, de que "o Real" nos assaltou inesperadamente e abalou a estabilidade que pretensamente reinava em nosso cotidiano, é repetida em vários textos. O vírus é da ordem do Real, do que não se pode simbolizar e do que insta o homem a elaborações psíquicas dos mais variados tipos; ele é, pois, um inimigo fatal contra o qual nos colocamos em posição belígera. Mas ocorre que quase em cada texto deste livro emerge uma outra diagnose, cujo objeto não é nada biológico, embora não seja menos acéfalo. Trata-se de um outro Real: o núcleo duro e venoso da fundação do nosso povo, que resiste a simbolizações e desponta sob a forma da violência generalizada. Não deixa de ser sintomático o fato de que, em Psicanálise e pandemia, somente nos três textos escritos por estrangeiros (dois franceses e uma espanhola) não consta nenhuma revolta de cunho político.

Nos textos brasileiros, por sua vez, a denúncia contra o atual governo cria sulcos sulfurosos. Já no "Prefácio" se lê: "todas as nações sofrem, e o Brasil, além de padecer com um número incontável de doentes e mortes, precisa lidar com o despreparo e a irresponsabilidade de algumas autoridades políticas do país" (p. 78). No artigo intitulado "Necropolítica e psicanálise" (interessante diálogo entre o conceito de Mbembe e o discurso analítico), Tatiana Ribeiro afirma que "políticas de extermínio e morte tomam lugar e são vangloriadas, um discurso de violência é exaltado, e o Brasil, em sua maioria, assiste a essas violências e desrespeitos inerte" (p. 440). "No Brasil, precisamos atravessar a fantasia de que somos um povo dócil e gentil" (p. 638), atesta Hilza Ferri em seu artigo "A negação da pandemia e o mal-estar na civilização", no qual diagnostica como injustificada, do ponto de vista ético, a negação da pandemia que predominou (e predomina) no discurso oficial do governo brasileiro. Também em diálogo com o conceito de necropolítica, de Mbembe, Lia Silveira em seu artigo sobre "a vida dolorosa da transferência" aponta que no Brasil nós "vivemos sob um governo cujo instrumento de opressão é [...] um empuxo ao gozo ilimitado, que, no final das contas, é empuxo para a morte" (p. 1402); mais adiante, a autora identifica o quinhão de oratória capitalista no discurso bolsonarista, e completa: "mais ainda, no governo Bolsonaro, essa política da marcha cega e azeitada do discurso capitalista se junta a uma estratégia de miliciano e a táticas de torturador" (p. 1415).

Todo o texto de Daniel Foscaches é uma espécie de revolta contra o horror da banalização do que há de mais repugnante e mortífero (e que se encarna na pessoa irretocavelmente asquerosa de Bolsonaro): seu nome, "A covid pode bem servir aos covardes", já diz tudo. Em seu artigo, Pricila de Souza faz a seguinte asserção, quase em diálogo íntimo com a indignação de Foscaches: "a guerra que o mundo vive não é a mesma que o Brasil vive, aqui os inimigos são muitos, todos aqueles que se colocam contra a vida como valor máximo, e isso acontece há quinhentos anos. Então, com Freud sabemos que há egoístas. Com Lacan, dizemos que há canalhas. E a esses a psicanálise deve ser recusada" (p. 2555). Aqui, mais que argumentação teórica, tem-se uma tomada de posição ética e política. Não pensamos ser em vão que a autora tenha posto a psicanálise de modo geral nessa recusa ética; é do estatuto da política para a práxis analítica que se trata então.

Afinal, como diz Marisa Costa em seu artigo ("A pandemia que nos quebra, como cristais"), "o sintoma do nosso país é ainda maior?- é político" (p. 1924). E Lia Silveira completa: "na escolha forçada entre a bolsa de valores ou a vida, a psicanálise só pode se posicionar eticamente pela segunda opção" (p. 1423). Posição ética, posição política: eis o terceiro eixo temático exposto e reiterado texto após texto. A questão maior, que perpassa este livro todo e lhe confere um colorido ao mesmo tempo mesto e potente, não é teórica, não concerne ao manejo da transferência na clínica on-line e não diz respeito a aporias epistemológicas impostas pelos paradoxos do real e do virtual; a questão maior deste livro é política e diz respeito à tarefa ética da psicanálise.

Não se trata somente de um grito de denúncia (grito justificado, em todo caso), pois o grito é antes de tudo um chamamento aos psicanalistas brasileiros: vede, estamos na berlinda, se cairmos, cairemos de que lado do abismo da História? O vírus é fatal, o vírus é terrível: ele mata e se propaga sem que os nossos radares simbólicos o contenham. Mas sozinho ele é menos mortal do que é aqui no Brasil: vejam-se os exemplos da Alemanha, da China, da Nova Zelândia. O Real que nos dilacera desde sempre é outro: é o Real chamado brasil (o brasil é menor que o Brasil, e estamos em vias de ficar ainda menores). Nesse sentido a psicanálise tem de mostrar seu valor sociológico e ir além da análise dos queixumes burgueses; é-lhe mister servir de instrumento de análise e diagnóstico da sociedade que tanto mal-estar produz nos sujeitos. No nosso caso triste e desesperador, da sociedade brasileira.

Quinet diz em seu artigo: "considero que o psicanalista tem eticamente o dever de estar do lado do sujeito e do seu mal-estar, assim como do mal-estar da civilização. O psicanalista tem um dever ético não apenas junto aos seus analisantes, como também à civilização, à pólis" (p. 199). Mais à frente, ele afirma que "a psicanálise é um sintoma do mal-estar da civilização desde que ela existe" (p. 205). Dever ético em meio à danação da pólis, dever ético em meio ao padecimento mortuário generalizado da sociedade.

Marcelo Bueno, no artigo "A cidade e a peste", diz: "quase que exclusivamente, a peste não é imaginada na cultura como um acontecimento intramuros, originário da cidade?- aliás, quando a cidade é matriz da peste, trate da ‘outra' cidade. Desse modo, a peste sempre chega ou é enviada: ratos trazem-na do Oriente ou desses infligem-na como castigo à falta, à hybris, de um homem ou de uma comunidade" (p. 517). A peste pandêmica não vem da China, nem de algures: vem do seio da sociedade globalizada; da mesma forma, a peste protofascista não vem de fora do nosso país, mas é o fruto podre e poderoso da nossa História. Nessa encruzilhada civilizatória, a psicanálise tem de posicionar-se; caso contrário, poderá vir a ser lembrada tão-somente como um sonho letárgico dos homens sonâmbulos e doentes.

A psicanálise é sintoma da sociedade, mas o que se fará dele? Freud em 1909 pretendeu levar a peste aos Estados Unidos, o principal centro de propagação do discurso capitalista e a única terra comparável a nós nas estatísticas pandêmicas. A psicanálise não fará nada sozinha, mas que ela seja fachada ou seja peste, eis a tarefa ética que cabe hoje aos psicanalistas.


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Percurso é uma revista semestral de psicanálise, editada em São Paulo pelo Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae desde 1988.
 
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