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Resumo
Resenha de Maria Cristina Kupfer, Arthur?– um autista no século XIX, São Paulo, Escuta, 2020, 268 p.


Autor(es)
Bela M. Sister
é psicanalista, integrante do grupo de Entrevistas da revista Percurso, coautora de Isaías Melsohn: a psicanálise e a vida (Escuta, 1996).

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 LEITURA

As regras arbitrárias do mundo [Arthur?– um autista no século XIX]

The arbitrary rules of the world
Bela M. Sister

Este livro resulta de uma vida dedicada à universidade e ao atendimento clínico psicanalítico, que se alia ao fino gosto pelo texto literário. Falamos aqui de Arthur?- um autista no século xix e de sua autora, Maria Cristina Kupfer. Surpreendidos por uma escrita na forma de romance, encontramos nesta obra um talento até então encoberto.

 

Grande leitora?- tanto de clássicos quanto de romances de capa e espada, de policiais e mesmo de histórias em quadrinhos?- Kupfer traz consigo muita experiência e sensibilidade na prática clínica, aliada a seu profundo conhecimento da teoria psicanalítica, principalmente em sua vertente lacaniana. Ela é também professora titular sênior do Instituto de Psicologia e da Faculdade de Educação, ambos da Universidade de São Paulo. 

 

Por décadas, vem mantendo um trabalho dedicado às crianças do espectro autista. Kupfer é fundadora do Lugar de Vida?- Centro de Educação Terapêutica, instituição que há trinta anos está voltada para o tratamento e acompanhamento escolar de crianças e adolescentes com distúrbios globais do desenvolvimento. O Lugar de Vida se tornou uma referência na pesquisa, estudos e formação de profissionais, no Brasil.

 

Em sua longa trajetória profissional e intelectual, Kupfer sempre demonstrou uma postura de questionamentos e reflexões registradas nos inúmeros livros e artigos que publicou. Agora, passados mais de quarenta anos dedicados ao seu ofício, a autora buscou construir na ficção aquilo que não pôde ser feito com pacientes que acompanhou, direta ou indiretamente, no que chama de uma forma de reparação. Mas, mais importante, propõe-se a transmitir sua experiência, vívida e vivida, com crianças do espectro autista, bem como suas elaborações conceituais para um leitor não necessariamente do campo psicanalítico: professores, pais, familiares, neurologistas, psiquiatras, médicos em geral. E o faz à sua maneira, livre de academicismos.

 

Como transmitir uma experiência, cuja natureza ultrapassa o dizível, sem cair no plano do discurso meramente expositivo, explicativo, educativo? Seu desafio realizado pode ser conhecido nas páginas do livro, escritas de uma maneira a despertar no leitor a sensibilidade, a compaixão, a capacidade de se colocar no lugar do outro, e assim aproximá-lo do universo subjetivo de um autista?- um outro diferente. Diferente em seu comportamento, em sua mudez ou seus gritos, em suas reações por vezes bizarras, irritantes, ininteligíveis, muitas vezes consideradas como birras ou caprichos. Será possível se dar conta da solidão, do medo, do sofrimento que um autista pode sentir? Do pavor de se desmanchar ao ouvir um som num timbre mais alto ou ao perceber um objeto fora de lugar? É quando Kupfer inaugura sua escrita literária. Escrita carregada de expressividade, intimidade, interrogações. Carregada de pensamentos e confissões de vidas que se encontram, se entrelaçam e se importam.

 

Marguerite, Arthur e Charlotte. São eles os principais personagens do romance, dividido em três partes, que nascem para nós, inicialmente, na escrita do diário de Marguerite. Uma mulher da aristocracia rural francesa que, no final do século xix, administra sozinha a propriedade deixada por seus pais. Tornou o salão de sua casa o ponto de encontro de seus amigos, igualmente aristocratas da região, que se esforçam em acompanhar as últimas novidades de Paris. Crítica, Marguerite considera isso ridículo. Solteira, por opção, preza sua autonomia. Uma mulher moderna, que revela uma verdadeira inquietação sobre o insondável mistério da alma humana.

 

Não por acaso, decide acompanhar o desenvolvimento de Arthur, filho recém-nascido de sua criada Jeanne, por quem nutre uma afeição especial. Logo percebe certas diferenças no desenvolvimento do bebê em comparação a outros que já conhecera. Quieto, indiferente. Com um ano, não demonstra interesse por ninguém. Reservado, distante, repetitivo, tem ataques de fúria assustadores e irritantes para todos a seu redor. Mas não para Marguerite. Ainda que frustrada, pois pretendia observar o crescimento e progressos de uma criança comum, ela não desiste de acompanhá-lo e escrever sobre ele. Intrigada, vai procurar entender Arthur. E quando sua mãe morre, decide se responsabilizar por ele, na posição de sua preceptora.

 

Através das observações, intuições, inquietações, questionamentos, reflexões de Marguerite, despertadas no contato com Arthur, vamos nos aproximando das dificuldades, angústias, desespero do menino. Para se situar melhor em meio ao redemoinho de seus pensamentos e dúvidas, Marguerite, muitas vezes, vai conversar com Monsenhor Olivier, que vive na Abadia do Reino, a horas de distância de sua casa. Esse homem culto, receptivo, tolerante, profundo conhecedor da mente humana, está aberto aos diferentes modos de se viver no mundo e não se surpreende com Arthur.

 

Acompanhando o diário de Marguerite, somos introduzidos aos acontecimentos e andanças de Arthur por médicos que, como era comum à época, o diagnosticam como idiota, pela escola onde acaba não sendo acolhido, e também no seu encontro com Charlotte, uma colega que se dá bem com ele, apesar do seu fechamento. Quando ela fica órfã, Marguerite a leva para morar em sua casa. Ela é uma boa companhia para Arthur. Brinca com ele, quando possível, aceita-o, acha graça na maneira de ele ser e não espera que ele mude.

 

A segunda parte do romance é dedicada ao manuscrito de Arthur, redigido quando ele foi morar na Abadia, com cerca de quinze anos. Sim, como um autista de alto rendimento, Arthur não fala, mas é capaz de ler e escrever. Sua escrita, então, nos revela, de alguma forma, como ele próprio vivenciou os acontecimentos de sua vida, aqueles anteriormente relatados por Marguerite. Muitas vezes, encontramos nessa escrita confirmações das ideias e suposições que ela teve ao longo da convivência entre eles.

 

Acompanhamos a importância, para Arthur, da paciência, da amorosidade persistente, da permissividade e da tolerância de sua segunda mãe diante de seu fechamento e recusa ao contato; do pai espiritual, Monsenhor Olivier, que lhe abriu a biblioteca da Abadia, com seus inúmeros livros e iluminuras, e de sua amiga Charlotte, com quem pôde brincar inúmeras vezes.

 

Arthur escreve para poder se curar da dor de carregar seu modo de ser, Arthur sofre. Vive num mundo de solidão. Almeja uma vida partilhada com as pessoas, no entanto, não suporta as inflexões de suas vozes. Não consegue seguir a ordem nem as relações impostas por uma lógica perversa do mundo, estabelecida arbitrariamente, como se fosse a única possível, e em função da qual se distribuem punições ou recompensas.

 

Na terceira parte, temos um breve relato, na forma de uma carta, de Charlotte?- agora médica de crianças?-, na busca pelo entendimento de como foi Arthur. De posse do manuscrito de seu amigo, assim como o de Marguerite, vai se empenhar em publicá-los na forma de um livro. Procura F.D., uma psicanalista entusiasta da publicação, e que lança uma pergunta que ecoará um século depois: estará por surgir uma nova forma de subjetivação, na qual os indivíduos possam dispensar "o contato sexual entre os seres humanos e nos ver livres da escravidão às paixões que ele acarreta?" (p. 242). Valendo-se de uma licença poética, Kupfer presta, aqui, uma homenagem à importante psicanalista de crianças Françoise Dolto, que viveu na primeira metade do século xx. Coloca uma questão sobre sexualidade, pertinente nos dias de hoje, na voz da personagem F.D. Outra psicanalista igualmente admirável, Maud Mannoni, também é homenageada, quase ao final do romance, quando Marguerite recebe o seu sobrenome.

 

Numa escolha acertada, o livro apresenta ainda uma quarta parte com anotações variadas de Kupfer. O porquê escreveu Arthur..., linhas a respeito das edificações percorridas em Paris, inspiradoras das descrições de alguns dos locais da história, as licenças poéticas que se permitiu usar, seu interesse pela filosofia sufi... E, ainda, observações teóricas, em linguagem acessível, que permitem ao leitor o conhecimento mais organizado sobre o universo do autista, incluindo indicações bibliográficas para aprofundamentos no tema.

 

Inúmeras pesquisas e protocolos indicam que é possível a detecção precoce de sinais de riscos de uma evolução autística em uma criança, e um dos principais sinais é a desconexão do bebê. A falta de resposta à comunicação da mãe ou do pai, de quem quer que seja que cuide dele, impede-o de construir uma imagem corporal unificada e que se instale o terceiro tempo do circuito pulsional, tal como definido pela psicanalista Marie-Christine Laznik, momento em que o bebê se oferece como objeto de prazer para um outro. O resultado é que o autista é capaz de sentir prazer e afeto, mas não de procurar ativamente o outro para lhe dar prazer. É o que Kupfer nomeia prazer compartilhado, como um modo de facilitar a compreensão desse processo.

 

Na ausência de uma imagem corporal, o autista não dispõe de um envoltório psíquico que lhe permitiria viver o sentimento de estabilidade e permanência. Ao contrário, ele vive o constante medo de se fragmentar, de se desmanchar.

 

A imutabilidade, a necessidade de viver em um mundo ordenado e rígido, a linguagem regida pela lógica do signo e não do significante revelam que, para o autista, as palavras aprendidas não passaram pela subjetividade dos outros e nem pelo seu corpo. Deste modo, o mundo fica limitado à sua dimensão de códigos, e relações matemáticas e lógicas, destituídos de sua dimensão de linguagem comunicativa, de mensagem.

 

A detecção de sinais precoces de desenvolvimento autístico é importante para que se realizem intervenções igualmente precoces, que possibilitem à criança um relacionamento satisfatório com os outros. Aqui está colocada a aposta no surgimento de um sujeito no autismo, feita pela vertente lacaniana, numa posição ética claramente adotada pela autora.

 

Ao expor suas concepções sobre autismo, seja de forma literária, seja teórica, Kupfer se situa no cerne do debate da psicanálise com a neurociência e a neurologia, e aqui está o maior mérito de seu livro Arthur. Traz um olhar diferente da visão organicista e reducionista, tão em voga nos dias de hoje, cujo maior risco é anular o sujeito e a subjetividade no uso do discurso científico.

 

Ainda que as pesquisas da neurociência possam descrever e explicar as bases neurofisiológicas e neuroanatômicas do autismo, ao ignorar aquilo que não está no seu campo de estudo?- a linguagem, as relações familiares e sociais, os valores culturais, as trajetórias individuais?- elas não dão conta de explicar a vida subjetiva em jogo e as suas manifestações. Nem no autismo nem nos assim chamados normotípicos.

 

Ao considerar o autismo como uma maneira possível de ser, Kupfer vem ao encontro de movimentos sociais atuais, defensores da pluralidade de modos singulares de ser, sem referência à suposta normalidade: eles revelam o quanto as normas são carregadas de valores e convenções culturais, historicamente mutáveis, e quão importante é a luta pela diversidade e tolerância nos diferentes âmbitos da vida.


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Percurso é uma revista semestral de psicanálise, editada em São Paulo pelo Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae desde 1988.
 
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