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AUTOR


ÍNDICE TEMÁTICO 
65
Como habitamos esse comum?
ano XXXII - Dezembro de 2020
158 páginas
capa: Nuno Ramos
  
 

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Resumo
Resenha de Lucila de Jesus, Ponte, São Paulo, Patuá, 2018, 87 p.


Autor(es)
Ricardo Trapé  Trinca
é psicanalista. Doutor em Psicologia Clínica pela usp, mestre em Filosofia pela puc-sp e membro filiado ao Instituto Durval Marcondes da sbpsp. Autor de A visitação do Real nos fatos clínicos psicanalíticos (Edusp) e do livro de poesias A vírgula azul (Chiado).


Notas

1. V. Novarina, Diante da Palavra. Trad. Angela Leite Lopes. Folhetim, n. 15, 2002, p. 15. Disponível em: <https://fdocumentos.tips/document/valere-novarina-diante-da-palavra>. Acesso em: 21 nov. 2020.

2. W. Bion, Transformações: Do aprendizado ao crescimento. Trad. P. Sandler. Rio de Janeiro, Imago, 2004 (Trabalho original publicado em 1965).

3. A. Honnet, Luta por reconhecimento: a gramática moral dos conflitos sociais. São Paulo, 34, 2009.

4. A. Akhmátova, Antologia Poética. Trad. Lauro Machado Coelho. Porto Alegre, L&PM, 2009, p. 125-126.

5.  W. Szymborska, Poemas. Trad. Regina Przybycien. São Paulo, Companhia das Letras, 2011, p. 91.

6. L. de Jesus Mello Gonsalves, O campo e o capim: investigações sobre o sonhar nos Kamaiurá. Tese de doutorado, Instituto de Psicologia da usp, 2019.


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 LEITURA

Ponte: travessias [Ponte]

Bridge: crossings
Ricardo Trapé  Trinca

O livro de poesias de Lucila de Jesus vem trazer um grande estímulo para os leitores que se interessam pela interface poesia/psicanálise, mas principalmente para quem se preocupa com as dimensões das "Ponte(s)" possíveis entre a dimensão poética e a vida humana, pois este é o projeto da autora: conectá-las.

A experiência poética cotidiana torna-se em seus poemas uma espécie de agradecimento contínuo pela possibilidade de Lucila transmitir a dimensão poética e, com isso, o mundo ser novamente chamado pelas palavras?- ao invés de ser simplesmente descrito ou imitado. O título é extremamente sugestivo em relação a isso: Ponte. Nesse lugar de travessia, a autora alude àquilo que seria uma localização do ato de escrever poemas como um lugar que compreende um "de onde?", um "para onde?" e um "quem?". Vou mostrar um poema muito interessante e que está logo no início do livro, com a intenção de explicitar essa ideia. Ele se chama "Para atravessar":

 

Poesia/ o meio de transporte mais seguro do mundo (p. 9).

 

Penso que para compreendermos estes versos sem que sejamos obrigatoriamente tomados por um espanto paralisador?- que nos levaria a saturá-lo pela compreensão irônica dos versos?-, precisamos antes nos perguntar: quem é transportado? Pois, apenas após responder o "quem" poderemos saber sobre o "porquê". Gostaria de pensar um pouco sobre o "quem". Talvez, em primeiro lugar, o poema seja o meio de transporte mais seguro simplesmente porque outros meios de transporte não sejam capazes de conduzir ou transmitir o que, pelo poema, se transporta?- ou se transmite. E esse é o "porquê". Um porquê que parte de uma dimensão precária e rudimentar do ser humano, muito embora seja a sua dimensão possível. Lucila procura com isso assinalar que há algo ou "alguém" que é transportado por meio do poema. Mas quem é transportado? Para entender isso, gostaria de citar uma passagem que muito aprecio:

 

Nós não nomeamos as coisas, nós as chamamos[1]

 

A pergunta: "o que o poema transporta" não é ingênua, tal como poderia afirmar um estudioso de poesia. Há uma ideia interessante aqui, que seria: O transporte vai de onde para onde? Ou ainda: Qual sua teleologia? E sua origem? Em termos bionianos, poderíamos sugerir que o "O", ou o inconsciente, procura por "O", como sua dimensão tanto de origem quanto teleológica[2]. Mas, agora, já adentramos o território do "quem?". 

Talvez Lucila concorde com a ideia de que aquilo que é transportado seja invisível... um invisível que pode, no entanto, ser chamado pelas palavras; mas seria esse invisível algo da ordem do feminino? Talvez... o que são os nomes diante da experiência... todos somos invisíveis quando proscritos... ou seja, aquilo que o poema transporta vem de uma dimensão proscrita para uma frágil e tênue relação com o homem, ou melhor, com o ser humano... o homem não, ele se mantém potencialmente como coisa, coisa não tornada poesia. E isso Lucila procura também expressar de modo claro.

Há uma diferença revelada pela autora em seus poemas entre a aparência e a existência: o poema existe, mas é invisível, assim como aquilo que caminha com leveza sobre a terra. Essa insuficiência é também seu meio de sobrevivência. "O homem não/ A praça me sabe" (p. 13). E assim ela expressa sua aliança de mútuo reconhecimento entre os invisíveis.

Lembro-me de Axel Honneth[3] e de suas três maneiras de não reconhecimento. Para esse autor, são elas a violação, a privação de direitos e a degradação. A negação dessas esferas levaria a uma indignação moral crescente. Essa indignação moral atravessa o texto de Lucila. "Somos companheiros/ Em solidão" (p. 15). Um reconhecimento da humanidade pela própria condição humana, mas também tornada invisível ao próprio homem. 

No poema "Ponte", que dá o título ao livro, Lucila diz: "ser inteira/ e não ser autista/ vida de artista" (p. 16). Com isso ela procura expressar essa dimensão do "para onde?", ou seja, de um mundo com sua violência, que nos coloca este dilema: como não enlouquecer em um fechamento radical do espírito, por conta desse excesso de invasão, que não reconhece a dimensão poética da existência?... ou seja, como artistas somos aqueles que resistem à destruição da humanidade em suas formas radicais de invisibilidade..., e parece ser essa a ponte que a autora traz: resistir, entre mundos díspares, ou melhor, entre conexões quase impossíveis, na luta diária para que não emudeça a dimensão poética do mundo. O corpo, nesse sentido, é o guardião dessas memórias, dessas invisibilidades: "Meu corpo/ é um bando de células/ atravessadas/ pela memória do mundo" (p. 17).

Muito embora isso não se encontre disponível?- como um objeto cotidiano, com o qual temos uma relação de uso?- pois a disponibilidade poética está sujeita a uma demora, a uma espera e a um silêncio próprios, a autora se mantém nessa escuta tensa. Para com essa dimensão poética se demanda responsabilidade, ou um cuidado amoroso: "Então/ o que eu sempre chamei de amor/ é somente responsabilidade" (p. 20).

Nesse sentido podemos entender o buraco como lugar (im)possível de morada, o lugar do invisível, o lugar de passagem, de "Ponte". Em "o lugar onde moro, o buraco", Lucila diz: "As árvores da cidade/ têm um buraco no meio/ por onde passam os fios" (p. 21). Os fios, que transportam mensagens, que moram no buraco, que transmitem essas mensagens de um lugar a outro... mas são envolvidos pela estética do Ipê florido, com "um coração amarelo/ que chora pétalas/ a cada movimento" (p. 21).

Aqui encontramos a autora transmitindo esse invisível proscrito para a dimensão humana por meio das palavras. E, assim, tanto as formigas quanto os velhos, como os poemas invisíveis podem ser progressivamente trazidos. Ao interpolar o poeta, que fica disponível para escorar o caminho dos invisíveis, lembramos dos versos de Anna Akhmatova, como expressivos dessa mesma dimensão de "ponte", e que falam assim: "e quantos poemas nunca cheguei a escrever/ e seus refrões misteriosos pairam à minha volta/ e quem sabe algum dia vão me estrangular"[4].

Mas, o que é, afinal, esse invisível?- que ameaça também nos estrangular? Sem responder, eis um pequeno trecho de W. Szymborska sobre esse problema: "Muita resposta vaga/ Já foi dada a essa pergunta./ Pois eu não sei e não sei e me agarro a isso/ Como a uma tábua de salvação"[5].

São diversos os temas e assuntos com os quais Lucila se detém, e que se tornam morada provisória para a transmissão transformadora da dimensão poética sobre a vida. Uma delas são as "Lágrimas em Minas" (p. 42). Trata-se das histórias não contadas, ou parcialmente contadas... as lágrimas que escorrem continuamente nas ladeiras, nas escadarias, como as lágrimas de ouro, o verdadeiro ouro das minas gerais: o ouro do sofrimento que escorre por lá. Não é por menos: dizia-se que após as chuvas ela enchia-se de fragmentos de ouro... mas esse outro ouro diz respeito a uma história que não pode ser deixada; uma história de lágrimas.

Outro tema bem frequente e frequentado pela autora diz respeito a dimensões do zelo, como no poema "Zelo" (p. 56). Nele a autora parece descrever como se no fundo da terra descansasse um coração; lá onde não se vê, no telúrico, iluminado pela luz da lua... guardado. E não é mesmo assim? O iluminado e não visível é a fonte de onde emana a força de um sentimento. Por isso é intenso quando lemos: "gritamos em fúria todos, mas alguém escuta?" (p. 57). A proximidade da autora com os povos originários[6] faz sentir-se em alguns poemas, que resgatam a questão da história como uma história dos vencedores... gritos de fúria! Desde o telúrico e das profundezas da terra... mas para quem? Até onde um grito chega? Para onde ele vai? Quem contém o grito? Ou será o grito sem parada? Um grito sem parada é a vitória daquele que já se estabeleceu... uma vitória da impossibilidade do abrigo de dores... e também da derrota da própria dimensão poética, que apenas faz sentido se puder se reencontrar no homem já transformado pela própria poética.

E permaneço, após ler o seu final, amigado; naquela experiência emocional que nos mantém em estado de abertura e surpresa, encorajado a abrigar poemas, mesmo que transitoriamente, para a criação contínua e necessária de um mundo menos hostil para todos nós.


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Percurso é uma revista semestral de psicanálise, editada em São Paulo pelo Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae desde 1988.
 
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