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Resumo
Comentários de Maria José de Andrade Sousa Renato Trachtenberg


Autor(es)
João A.  Frayze-Pereira
é psicanalista didata da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, na qual é o Diretor de Cultura e Comunidade. Editor da revista Ide?– Psicanálise e Cultura (2015-2020). Professor Livre Docente do Instituto de Psicologia e do Programa de Pós-Graduação Interunidades em Estética e História da Arte da USP.

Maria José de Andrade Souza
é analista didata da spfor, membro associado da sbpsp, analista de crianças e adolescentes. Membro efetivo da ipa.

Renato ? Trachtenberg
é médico com especialização em Psiquiatria e Psicanalista. Membro fundador e pleno do Centro de Estudos Psicanalíticos de Porto Alegre. Membro titular com funções didáticas da Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre (IPA) e da Associação Psicanalítica de Buenos Aires (IPA).


Notas

1.S. Fraiberg; E. Adelson, V. Shapiro. Fantasmas no quarto do bebê: abordagem psicanalítica de déficit nas relações mãe-bebê. Versão ampliada do artigo apresentado como Conferência em memória de Beata Rank, na Sociedade e Instituto de Psicanálise de Boston, 23 de maio de 1974.

2.  W. R. Bion (edit. W. Heinemann), Aprendiendo de la experiência. Londres, Medical Books. Biblioteca de psicologia profunda. Paidós, 1962, p. 21, 25, 26, 67.

3. P. Marty (1952), As dificuldades narcísicas do observador diante do problema psicossomático. Livro anual de psicanálise (2012) xxvi, p. 79-93.

4. S. Nach (1948) apud P. Marty, Livro anual de psicanálise (2012) xxvi, p. 79-93.

5. M. Klein (1974), Inveja e gratidão. Rio de Janeiro, Imago, 1957, p. 45-49.

6. D. W. Winnicott, O uso de um objeto e relacionamento através de identificações. Rio de Janeiro, Imago, 1975, p. 121-122.

7. W. R. Bion, Diferenciação entre a personalidade psicótica e a personalidade não psicótica. Estudos psicanalíticos revisados. Rio de Janeiro, Imago, 1994, cap. 5.

8. W. R. Bion, Atenção e interpretação. Rio de Janeiro, Imago, 1973, p. 136-137.

9. W. R. Bion, op. cit.

A. Green (1986), Conferências brasileiras de André Green. Rio de Janeiro: Imago, 1990, p. 134.


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 DEBATE CLÍNICO

Dolores

Dolores
João A.  Frayze-Pereira
Maria José de Andrade Souza
Renato ? Trachtenberg

Dolores iniciou sua análise comigo aos 20 anos de idade, quando ainda era estudante universitária. Nasceu e viveu na fazenda de seus avós, pessoas de princípios éticos rigorosos, até os 18 anos, quando veio para São Paulo, capital, fazer vestibular. Suas queixas iniciais resumiam-se às frequentes dores de cabeça que a perturbavam muito, desde menina. Chegou a consultar médicos na sua cidade natal, submetendo-se a tratamentos, sem obter sucesso. Em São Paulo, consultou um neurologista que, após exames, encaminhou-a para "terapia", pois "as crises de enxaqueca poderiam ter um fundo emocional". Em nosso primeiro encontro, Dolores relatou que, desde sua vinda para São Paulo, as crises se tornaram mais intensas, perturbando-a "no trabalho e nos estudos". Elas aconteciam sem aviso prévio e exigiam que se retirasse para um ambiente escuro onde tentava ficar só, consigo mesma, em silêncio, tentando "recuperar a cabeça". A recorrência desses episódios deixava Dolores muito angustiada: como poderia enfrentar o mercado de trabalho? Mais do que isso, como seria possível ter autonomia financeira para colaborar em casa, liberando seus avós do suporte material que lhe davam? Toda essa tensão manifestava-se visivelmente no semblante de Dolores, que se apresentava sempre muito séria, com a testa contraída, portando óculos escuros que escondiam o seu olhar.

Ao longo do primeiro ano da análise, fico sabendo de particularidades da sua vida na fazenda, da sua família numerosa, da vida escolar na cidade mais próxima, em que se destacava como aluna exemplar. E percebo, então, a saudade que ela sente dessa "vidinha no interior" e a sua vontade de retribuir aos avós a "boa educação" que ofereceram a ela.

Dolores é filha de uma moça que, aos dezessete anos, engravidou de seu primeiro namorado, igualmente muito jovem. Este fato desencadeou uma tragédia familiar, a começar pela ação do avô materno, que não só proibiu definitivamente o rapaz de visitar a filha caçula e de conhecer a neta, após seu nascimento, como o acusou judicialmente por crime de abuso, fato que o levou a se afastar da vila, indo para outra cidade onde passou a residir. Além disso, quando Dolores contava com dois anos de idade, sua jovem mãe veio a falecer num acidente doméstico. A paciente relatou-me que não tinha certeza do que teria acontecido à sua mãe. O que sabia lhe fora contado por seus avós, tios e tias: sua mãe havia se ferido em casa, levada às pressas ao hospital, onde veio a falecer. Dolores suspeitava de que algo mais não havia sido dito e, desde a adolescência, sabendo que seus pais não puderam ficar juntos, começou a ter dúvidas se teria sido morte acidental ou suicídio. A sombra espessa desse misterioso episódio projetou-se sobre minha analisanda que, na infância, por um lado, esperava o retorno de sua mãe, como se não acreditasse no seu definitivo desaparecimento; por outro lado, dada essa espera frustrada, sentia raiva de sua mãe que a teria abandonado sem se despedir. A tensão decorrente desse conflito entre os sentimentos de falta e raiva da mãe foi tema de muitas sessões e, pouco a pouco, relacionado por Dolores às suas dores de cabeça, dividida entre esses dois polos emocionais. E o recurso ao ambiente escuro e silencioso que se mostrava necessário para restaurar, ainda que temporariamente, a sua integridade psicossomática, foi associado por Dolores ao interior do corpo de sua mãe, que deveria ter sido, disse ela, um "lugar aconchegante, escuro e silencioso".

Devo admitir que, desde o início da análise, percebi a grande compaixão evocada em mim pela situação existencial dessa analisanda, dados o seu sofrimento e a sua coragem para enfrentá-lo. E também percebi que ela demandaria de mim a disposição para uma ampla e profunda continência das suas dores. Admitindo ser essa uma condição importante para a instauração da sua confiança na análise, assim como do seu desenvolvimento, perguntei-me?- até que ponto seria eu capaz dessa disposição?

O tempo passa e Dolores considerou a possibilidade de encontrar seu pai, com o qual teve pouquíssimo contato. E o encontro veio a acontecer, depois de intensa procura, num primeiro momento, via internet, num segundo, pessoalmente, encontro que motivou muita dor de cabeça. Entretanto, lentamente, veio a estabelecer com o pai, que residia em São Paulo e constituíra uma família com dois filhos, certo relacionamento, ainda que difícil. Profissionalmente bem-sucedido, homem de poucas palavras, não deu à filha o que ela esperava receber dele: o nome. "Eu não pedi e ele nunca ofereceu" - disse ela num momento de raiva, lembrando que em seus documentos continuaria a constar apenas o nome da mãe. Essa frustração levou Dolores a investir mais em sua análise, passando de duas para três sessões semanais, a pedido dela: "Com esse tratamento acredito que vou conseguir ultrapassar essa situação que me deixa infeliz", disse. De fato, em pouco tempo, veio a reconhecer seus avós como bons substitutos simbólicos de seus pais: "Eles me criaram como filha deles e eu sou muito agradecida. O que teria sido de mim sem a criação que deles eu recebi?".

Assim, mostrando-se uma pessoa sensível, inteligente, estudiosa e com certa capacidade para sentir gratidão, Dolores desenvolveu-se em várias frentes. Por um lado, graduou-se na universidade, fez mestrado, doutorado, ingressou numa expressiva instituição na área da saúde, tornando-se uma profissional respeitada. Por outro lado, casou-se e, elaborando o medo da repetição do trauma que marcou sua família, engravidou. Em suma, desenvolveu-se como mulher capaz de ter prazer na vida profissional e familiar. Sobretudo, durante o longo período de análise, enterrou os seus mortos e, entristecida, fez os lutos correspondentes?- avô, avó, pai, que faleceram enquanto ela estava em análise, e a mãe, cujo túmulo, em sua cidade natal, se encarregou de reconstruir. Finalmente, foi surpreendida com a herança que seu pai lhe deixou, herança que aceitou receber após certa reflexão: "Se ele não me deu o nome dele, não foi por vontade própria, mas porque foi impedido [...] Com essa herança, entendo que ele me reconheceu [...]. É estranho, mas, hoje, eu me sinto filha dele e estou bem com isso". E com esse patrimônio, adquiriu uma casa onde passou a residir.

As situações clínicas que narro a seguir são recortes de um processo que durou quinze anos. São situações significativas na medida em que definem, segundo a própria analisanda designou, a posteriori, o "mito de origem da sua enxaqueca". Ou seja, certa noite, ainda menina, quando já estava pronta para dormir, Dolores viu surgir, na parede de seu quarto, a figura sombria de uma bruxa que se aproximou e, com um passe de mágica, instaurou nela a dor de cabeça. As situações narradas a seguir aconteceram algum tempo antes do encontro entre Dolores e seu pai, no contexto de uma sucessão de crises de enxaqueca que coincidiram com minha mudança de consultório: a nova sala, como a anterior, era pintada de branco e com iluminação de baixa intensidade; porém, tinha uma parede texturizada para qual a analisanda, ao se deitar no divã, ficava voltada.

Nesse contexto, Dolores chega à sessão, dizendo que está sem assunto e, após longo silêncio, começa a chorar. Falando muito baixo, encolhida no divã, diz: "É a parede, estou com medo dessa parede... [silêncio]... Não é da parede, é da bruxa... [silêncio] ... Não dá pra ver o rosto dela, está meio de lado, mas ela está ali...". Dolores chora baixinho, encolhida, e diz que há outras caras, repetindo a frase "Estou com medo, quero ir embora, quero sair daqui...".

 

A. Calma, eu estou aqui com você.

D. Não gosto dessa parede, por que você foi fazer assim?

A. Você acha que essa parede foi feita para assustar você?

D. [Silêncio] Sim, eu achei que sim... Mas, agora, não acho mais, porque, no meu tempo de menina, eu via a bruxa na parede do meu quarto e a parede era lisinha. E eu sentia, como agora, muito medo [continua chorando, falando muito baixo, encolhida]. A minha sensação é estranha. É um medo que não é exatamente um medo. É uma aflição. Ela me assusta como um fantasma [silêncio]. Quando eu era pequena, meu avô contava umas histórias espíritas. Ele dizia que visões como essa eram visões de um espírito. Eu ficava assustada. Depois, quando eu comecei a ler literatura espírita, passei a entender melhor, mas eu sempre tive muito medo porque tudo podia ser uma manifestação do além?- as sombras nos caminhos, os barulhos no assoalho da casa... Essa parede aqui é cheia de sombras e, no jogo do claro-escuro, forma uma cara...

A. Como é a cara da bruxa?

D. Eu não vejo a cara dela, nunca vi... Ela sempre aparece de perfil. Mas, uai, parece que ela não está mais ali... Ela sumiu? [permanecendo em silêncio, Dolores, pouco a pouco, para de chorar, o ritmo da sua respiração relaxa, e o tempo corre até o final da sessão] Ainda estou um pouco ansiosa... com medo dessas coisas muito fundas.

A. Parece que o medo agora é outro.

D. Sinto raiva porque ela aparece, me assusta e vai embora. E eu fico com medo de me perder, medo de perder o controle de mim mesma.

 

Nas sessões posteriores, o medo da figura da bruxa retorna. Dolores diz que tem estado apreensiva, perguntando se a bruxa reapareceria na parede, mostrando-se aliviada por não ver nada ali. E, nesse fluxo associativo, ela se pergunta como seria a cara dessa bruxa, uma vez que ela jamais fora vista. Então, eu indago: Você se lembra de ter visto alguma bruxa ou de ter ouvido falar? E, prontamente, ela responde: "Sim, na fazenda, na vila mais próxima, a gente sabia de umas benzedeiras às quais minha avó chegou a me levar, justamente por causa das dores de cabeça. E eu mesma, que sempre gostei de ler, adorava os contos de fadas em que sempre tem uma bruxa". A partir daí a nossa conversa versou sobre fadas e bruxas, os poderes de umas e outras, relembrando as suas histórias preferidas, lidas para ela por sua avó ou por ela mesma, sempre antes de dormir. E, durante essa conversa, era perceptível a satisfação de Dolores ao contar para mim essas ficções que ela adorava e que, vez ou outra, eu completava com algum detalhe, interação que para ela fazia sentido, pois significava que tínhamos um saber compartilhado; como ela diz: "Nós dois sabemos das bruxas". Nesse contexto, ela diz que sempre achou que a sombra da bruxa na parede, vinda do além, surgia como castigo por alguma coisa que ela teria feito, sem que ela soubesse o quê. Nesse momento, quase ao final da sessão, observo: "Nas histórias que você contou, as meninas perseguidas pelas bruxas, quase todas, são órfãs...". Dolores fica em silêncio até o final da sessão. Mas, antes de sair da sala, diz: "É verdade que são órfãs, mas, no final das histórias, sempre viram princesas e vivem felizes para sempre. Será esse o meu destino?".

Passado esse período de muitas associações, Dolores chega à sua primeira sessão da semana, dizendo estar sem assunto. Sente que está vazia, esquisita, sentindo que teria coisas a dizer, mas que muito dificilmente poderia dizer com as palavras... [silêncio]. E, pela primeira vez, declara ter tido sonhos, mas não consegue discorrer sobre eles. "São imagens, apenas imagens", diz ela [silêncio]. "Num dos sonhos, continua, é como se eu estivesse dentro de uma caverna, mas é uma caverna-cenário, uma falsa caverna com paredes de papelão, iluminada por dentro, mas vazia, sem alguma coisa para eu ver. E eu não me lembro de mais nada, nem do que aconteceu antes, nem do que vem depois. Esses pedaços são de uma escuridão total".

 

A. É como se a verdadeira caverna fosse feita desses dois pedaços, o antes e o depois, escuros. A falsa caverna é o que se mostra a você no sonho, um espaço vazio que lhe é dado ver.

D. É mera aparência de algo muito maior... [silêncio]. Enquanto eu estava na sala de espera, vendo uma revista, eu li uma reportagem sobre uma exposição do Tiziano em Veneza [Penso: Veneza lembra o nome da mãe da paciente?- Vanessa]. Falava que ele pintava mais de uma vez um mesmo quadro. Numa das telas, ele deixou aparecer um pedacinho da pintura antiga, no canto do quadro. É de uma cor vermelho escuro, um vinho. Então, essa cor me fez lembrar um outro sonho do qual só me lembro da cor. Não é exatamente a cor do Tiziano, não é tão escura, mas é na linha dos vermelhos.

A. O vermelho veneziano fica no antes e no depois do aparecimento dessa cor mais clara.

D. É como se houvesse uma coisa que não se mostra totalmente no sonho, que eu só vejo e não consigo falar. É imagem, uma coisa anterior à fala... É uma coisa diferente da palavra. Mas, pensando agora, acho que pode ser anterior à fala, sim. É como se eu visse o vermelho sem saber exatamente o que estou vendo... [silêncio]. Ai meu Deus, será que é isso? Meu Deus... Na semana passada, eu estava na aula de inglês e, na hora do café, a professora contou uma história de quando ela morava na Inglaterra. Certo dia, ela estava num restaurante e houve uma explosão na cozinha e, de repente, entrou na sala o cozinheiro em chamas... Ao ouvir isso, eu me senti mal, saí de perto e não quis ouvir mais nada... Aquela história, na hora, me deu dor de cabeça... Mas, agora, falando com você desse sonho, meu Deus, eu acho que estou lembrando... Eu estava na casa do meu avô, na sala, no colo da minha avó, e, de repente, saiu da cozinha uma coisa em chamas, ela se mexia, acho que os braços, os cabelos desgrenhados, parecia uma bruxa ... Todo mundo começou a gritar... Acho que era minha mãe [chora muito e a emoção toma conta da atmosfera da sessão].

A. [após algum tempo] Você lembrou o que não era possível dizer.

D. [chora] Eu sempre quis lembrar, meu Deus, ela pegou fogo... tadinha, que dor ela deve ter sentido ... Ai, está doendo a minha cabeça [põe as mãos sobre a testa], meu Deus, tá doendo... É uma dor diferente, não é ardida como a enxaqueca... [chora]. Não estão ardendo os olhos, é mais aqui na testa...

A. Você disse que não é uma dor ardida?

D. Sim, quando tenho enxaqueca ficam ardendo os olhos, as têmporas...

A. É como fogo, fica queimando...

D. Eu vi o fogo [chora muito]. Mas, agora, não está assim, é mais como se fosse um peso. Eu estou sentindo como eu sentia quando meu avô me dava um passe.

A. Você se deu um passe, você fez uma passagem.

D. [chorando] ... Não fiz sozinha, você me ajudou sem me aterrorizar, diferente do meu avô, que me contava umas histórias que me aterrorizavam. Eu é que contei e você me ajudou a lembrar a minha história, sem me assustar, e eu pude me ouvir [silêncio]. Eu pude me ouvir porque eu não me sinto mais como era antes, acho. Eu nunca soube ao certo o que aconteceu com a minha mãe. Agora eu sei que eu vi, eu estava lá, ela pegou fogo na cozinha... Naquela época, o fogão era a lenha, um fogão enorme, perigoso pra acender... Foi mesmo um acidente, como eles me contaram. Eu não tive culpa [voz muito embargada].

A. Não foi uma bruxa que você viu.

D. Não, não foi... foi a minha mãe... ela morreu.

 

O tempo passa. Dolores diz sentir-se deprimida e, pela primeira vez, afirma: "eu sinto falta dela". O minuto de silêncio que se faz pelos mortos passa a ocupar os cinquenta minutos de várias sessões. O tempo passa mais um pouco e, quebrando o silêncio cerimonial, com a voz pausada, Dolores relata um sonho.

 

D. Eu estava no mato, lá no interior, andando por um atalho. Estava escurecendo, quando chego à casa de um senhor que na minha infância tinha fama de curandeiro, uma espécie de bruxo. Eu tinha medo dele. Mas, no sonho, não. Apareceu a casa dele, a sala com uma lamparina morta que fazia sombras bruxuleantes nas paredes. Não senti medo. Eu percebi que estava com a minha bolsa com todos os meus documentos dentro dela. Aí eu acordei.

A. Esta sua análise tem servido para você narrar a sua história e se sentir confiante para pensar sobre o que sabe de si mesma.

D. Você é um bruxo que não me assusta. Aliás, estive pensando que você não me assusta, mas me irrita. Você é sempre assim bonzinho? Sempre com esse sorriso zen, feito um buda, me dá uma raiva. Nossa, acho você um babaca!

A. Você está com raiva da paciência que tenho com você, da minha maneira de escutar as suas histórias, diferente da maneira que você conhece, a do avô autoritário que, como um bruxo, aterrorizava você com as histórias que contava. Aqui, apesar daquela parede, você parece à vontade para expressar a sua raiva, pondo a cabeça para pensar, sabendo que a dor não vem do além, mas do fundo de você mesma.

D. [longo silêncio]

A. Você sempre foi uma boa neta e aluna exemplar, com dificuldade para expressar a raiva. E talvez essa dificuldade tenha contribuído para deixar a sua cabeça pegando fogo, gerando enxaqueca.

D. [continua em silêncio]

Nesse momento, lembro A Casa de Bernarda Alba, peça teatral escrita por García Lorca, que narra o seguinte: um grupo de cinco irmãs estão confinadas em casa, em luto fechado, sob a tutela asfixiante da mãe Bernarda, cuja filha caçula se suicida, impedida de se unir ao homem pelo qual, furtivamente, se apaixonou?- morte violenta sobre a qual a matriarca exige das filhas o mais rigoroso silêncio. Então, digo:

A. Seu avô impediu a união dos seus pais, a ligação entre você e seu pai, decretou silêncio sobre a morte de sua mãe. Talvez isso tenha despertado raiva, uma raiva que você não conseguiu expressar, gerando muita dor de cabeça.

D. [com a voz embargada, começa a falar] Não foi somente em cima da relação dos meus pais que ele agiu. Ele supercontrolava todo mundo, eu nunca pude ter namorado, uma turminha de amigos... Ele era assim, mas ao mesmo tempo fez tanto por mim... ele era humano, tinha um lado positivo e outro negativo, o meu avô terrível era o mesmo avô bondoso que me criou [silêncio]... Lembrei que tive outro sonho. Eu estava num aeroporto. Era dia e havia muita luz. Vou viajar. De repente, a minha mala some e dentro dela está meu passaporte. Sem bagagem e sem documento, vou correndo às várias plataformas de embarque sem saber qual é a minha. Pode ser qualquer uma, para qualquer lugar, mas qual? Acordo assustada, com muito medo.

A. Quer dizer que a bagagem desapareceu, assim como a bruxa e os fantasmas do interior? Parece que ao se aproximar de quem você é, de onde você veio, as portas se abrem para qualquer direção, os horizontes são muitos e essa abertura, a liberdade de escolha, é assustadora. Ao ter lembrado o que você queria lembrar, agora, sem documentos, qual o caminho a seguir?

D. Os dois últimos sonhos parecem opostos, não é? Campo e cidade, escuro e luz, noite e dia... E eu, no meio disso tudo, perdida, com medo de não chegar a lugar algum.

A. Você sabe onde está, só não sabe para onde esta análise vai. Entre a lamparina morta e a iluminação excessiva, a bruxa morta e o bruxo vivo que não assusta mais, você está conseguindo ver que o conhecido se transformou e o desconhecido surgiu, podendo ser pensado por você.

D. Mas, como vou fazer, como posso pensar o desconhecido?

A. Inventa! Você mesma vai dar um jeito de fazer.

 

Os meses passam. Dolores defende a sua dissertação de mestrado e, em seguida, entra no programa de doutorado. Em certa sessão, diz:

 

D. Você sabe que eu reparei uma coisa: eu não tenho tido enxaqueca. Estou me estranhando, a minha testa deixou de franzir, não sei se você notou que até os óculos escuros eu não uso mais.

A. Você está podendo se ver mais claramente.

D. [silêncio] tive um sonho ontem. Foi assim: ganhei um maço de verduras e legumes. Separo os vários tipos e decido cozinhar couve-de-bruxelas, que eu adoro. Mas, quando eu vou comer, está sem gosto.

A. Bruxelas?

D. É, você sabe, meu orientador é belga, nasceu em Bruxelas, que eu não conheço, mas ele sempre diz que é uma cidade sem graça.

A. Ah, entendi, a bruxa não assusta mais mesmo, virou um alimento sem graça. Não dá nem dor de cabeça [nesse instante, Dolores vira-se para trás, olha para mim, e, pela primeira vez, na análise, sorri].

 

A partir desse período, as queixas motivadas pelas crises de enxaqueca desapareceram. Ao mesmo tempo, Dolores passou a manifestar o sentimento de falta de sua mãe, sentimento que a levou a se perguntar: "falta do que, se eu praticamente não tenho nenhuma lembrança dela?". Considerando essa pergunta, digo: "falta de alguma experiência que talvez você tenha tido com ela?". Pensando sobre essa questão e a saudade que diz sentir, Dolores imagina que os poucos anos de relacionamento entre ela e sua jovem mãe devem ter sido bons, ideia que passou a elaborar a partir de sensações que surgiram de conversas com parentes, do contato que veio a ter com roupinhas que usara quando bebê, feitas por sua mãe e guardadas por sua avó, de algumas cartas e fotografias de sua mãe, tiradas por seu pai e conservadas por ele, registros que ele entregou à filha "como lembrança de um tempo bom". Esse processo de recuperação, sem qualquer sinal da enxaqueca, aconteceu lentamente. A construção de uma boa imagem da mãe se realizou à medida que Dolores passou a considerar que a morte dela, repentina e violenta, não tinha uma explicação plausível. Pensando sobre isso, ela disse: "Acontece de cada ser humano estar no mundo por uma conjunção de acasos e de escolhas e, às vezes, isso dói. Mas, faz parte da vida. Se dependesse da minha vontade, teria sido diferente. De qualquer maneira, hoje sei que eu existo também por vontade dela, pois sei que foi uma luta para ela enfrentar os meus avós, o conservadorismo da vizinhança e dos parentes. Ela gostava do meu pai e hoje eu tenho certeza de que o meu pai gostava dela também. Eram muito jovens, geração 68... Eu vi uma foto da minha mãe que meu pai tirou, cabelos compridos, jeitinho de hippie... Hoje, estou certa de que eu não nasci de um crime. Eu nasci do amor deles. É romântico... Bom, você sabe que sou uma cientista, não gosto de romantismo, mas é isso".

O tempo voa. Dolores dedica-se à pesquisa do seu doutorado e defende sua tese com sucesso. Em seguida, viaja ao exterior como bolsista para trabalhar numa importante universidade, na qual permanece durante um ano. Nesse período, continuou a fazer uso do analista, enviando e-mails, relatando experiências, dizendo que logo estaria de volta e que sentia saudades. E conta que conheceu um colega brasileiro, pesquisador como ela, o qual começou a namorar. Cabe observar que, ao longo da análise, foram poucos os casos amorosos relatados por ela: na fazenda, era impossível, pois o avô controlava os seus passos; na faculdade, as poucas relações aconteceram sem muito compromisso. Mas, após um breve namoro com o seu parceiro de trabalho que, como ela, também "estuda para salvar vidas", Dolores vem a se casar, numa cerimônia discreta realizada na fazenda de seus avós. E, no que viria a ser o último ano do seu percurso analítico, algumas sessões após eu ter sugerido que, talvez, ela já estivesse no ponto de viver sem fazer análise comigo, reclama que tem tido dores de cabeça. Diante disso, falei: "a perspectiva da nossa separação, talvez, tenha enchido você de raiva e com ela as dores ressurgiram, não sei se as mesmas que motivaram o início do nosso trabalho". Diante dessa consideração, Dolores retrucou: "não tenho raiva, não são as mesmas dores, não é a análise que eu tenho medo de perder, pois ela já faz parte do meu modo de sentir e pensar as coisas. Estou insegura. Não sei se consigo aguentar a dor de ficar sem ver você, sem vir aqui como tenho vindo há tantos anos". Então, eu digo: "essa dor surge não para impedir você de pensar, coisa que você já sabe que sabe fazer, mas para motivar você a ter que inventar uma maneira de seguir em frente com a Dolores que existe em você". E diante dessa perspectiva, percebida por ela como "mais uma experiência nova", "assustadora porque desconhecida", ela diz: "como você sabe, mais do que ninguém, eu fui obrigada a me separar de muitos, desde o princípio da minha vida; no início, de minha mãe, muitos anos depois de minha avó e em seguida do meu avô, perdas para mim muito tristes; depois, meu pai, de quem já estava ficando amiga e, por último, novamente, de minha mãe, de quem eu quis me despedir direito, refazendo o túmulo. Mas, eu nunca me separei de um analista. Não sei como vou ficar...". E, durante mais um ano, considerando de perto como seria a experiência de me perder de vista, Dolores admite que para ela o analista já está "tão assimilado, tão interiorizado na mente e no coração" que, nesse sentido, é "inseparável" dela. Assim, Dolores conclui: "Deixar de vir à minha análise não significa uma separação traumática. Dessa vez, ninguém morreu de fato. Agora, a dor é outra, é a do afastamento entre nós que eu sei que sou capaz de suportar e pensar. Afinal, sou muito grata, mas muito agradecida, pela sua companhia, pelos meus quinze anos com você, que foram anos de recriação da minha vida, junto com você". E, nesse último ano, engravidou, deixando a análise no final da gravidez.

Comentário de Maria José de Andrade Sousa

Agradeço honrada o convite da revista Percurso através de seu editor. Por questão de espaço, privilegiarei o exame de alguns aspectos da técnica analítica contracenando com a clínica empregada pelo colega neste interessante material clínico.

 

 

A técnica do analista ou
Sobre a arte de perguntar e apenas insinuar

 

No relato, através de perguntas simples, não saturadas, o analista vai conduzindo o processo de análise. Vemos num fragmento como isso se evidencia: Dolores, no início da sessão, após declarar que está sem assunto e após um silêncio, começa a chorar. "Falando muito baixo, encolhida no divã, diz: ‘É a parede, estou com medo dessa parede... [silêncio]... Não é da parede, é da bruxa... [silêncio]'. Dolores chora baixinho, encolhida, e diz que há outras caras, repetindo a frase ‘Estou com medo, quero ir embora, quero sair daqui...'". O analista intervém dizendo: "Calma, eu estou aqui". Desenha-se uma cena em que quase escutamos uma criança pequena chorando, através de uma mulher adulta utilizando uma linguagem comumente empregada por crianças. Dificilmente adultos empregam a palavra bruxa para referir-se às suas fantasias ou a suas vivências. O analista poderia proferir uma interpretação, indicando à analisanda uma projeção de seu mundo interno. Mas ele "entra no clima" alucinatório de Dolores e a consola, dizendo: "Calma, eu estou aqui com você". Poderíamos conjecturar sua intenção: se por um lado a analisanda se sente ameaçada por uma bruxa simbólica que parece real, de outro lado a presença dele real e simbólica a protegerá desse objeto interno perseguidor. Ou ainda: "Você está vivendo uma alucinação, oriunda de um perseguidor interno, mas, como analista, estou aqui para ajudá-la a discriminar tudo isso". A fala seguinte de Dolores é como um muxoxo: "Não gosto dessa parede, por que você foi fazer assim?". Continuamos com a impressão de estarmos escutando uma criança e não uma pessoa adulta. Estamos face a um estado emocional regredido, confusional ou oniroide, em que fantasias ganham ares de realidade, pois não há distinção nítida entre imagens medradas pelo sonhar e as percepções da vigília; a analisanda reproduz quem sabe momentos em que, criança muito pequena, sentiu-se muito só, abandonada a seu mundo fantasmagórico de bruxas e duendes, não acolhida por uma figura protetora. Cito o artigo "Fantasmas no quarto do bebê"[1]:

 

Em todo quarto de bebê há fantasmas. São visitantes do passado não lembrado dos pais, hóspedes não convidados para o batizado. Em circunstâncias favoráveis, esses espíritos inamistosos e não desejados são banidos do quarto e retornam às suas moradas subterrâneas. O bebê faz a sua reivindicação peremptória ao amor parental e, em analogia estrita com os contos de fada, os vínculos amorosos protegem o bebê e seus pais contra os intrusos, os fantasmas malévolos.

 

No caso de Dolores, para ela uma bruxa teria implantado uma maldição, pela qual ela sofreria sempre uma dor de cabeça. Para expiar um crime de difamação dirigido à própria mãe, ao pai, aos avós? A dor de cabeça impedindo o pensar, a liberdade, o enfrentamento e elaboração de suas fantasias de retaliação pelo abandono vivenciado. O analista agora estaria exercitando sua função alfa[2] trabalhando elementos beta que não foram metabolizados desde a sua produção. O analista, ao escutar de Dolores a acusação "Não gosto dessa parede, por que você fez assim?", em vez de emitir uma interpretação clássica de identificação projetiva, faz uma pergunta que convida a analisanda a se examinar melhor: "Você acha (grifo meu) que essa parede foi feita para assustar você?". Na sequência, vemos uma interação de cumplicidade entre analista e Dolores quando esta compara a parede do analista (tela de suas projeções) à parede do seu quarto de infância, na qual apareciam a bruxa e "vozes" do avô afirmando a existência de espíritos que produziam ruídos de passos no assoalho e sombras assustadoras. Então o ideário fantasmagórico persecutório de Dolores era reforçado pelas crenças desse avô, ele acossado por algum tipo de alucinação também? A parede do analista tornada um écran onde sombras/luzes evocariam o claro/escuro penumbroso dos sonhos, onde conflitos, desejos, medos e moções pulsionais de vida e de morte adquiririam configurações animadas ganhando vida ilusoriamente? O analista faz outra pergunta aparentemente simples: "Como é a cara da bruxa?". Convite para uma distinção entre fantasia, detalhamento e contornos do objeto alucinado, convite ao teste de realidade, ao pensar? E Dolores responde: "Eu não vejo a cara dela, nunca vi... Ela sempre aparece de perfil. Mas, uai, parece que ela não está mais ali. Sumiu?". Dolores para de chorar, o ritmo de sua respiração relaxa. Pierre Marty[3], comentando material clínico de Marie acompanhado por ele e discutido com Nacht[4], ressalta a coexistência de cefaleia e neurose no quadro psicossomático. No caso Dolores subjaz uma neurose, não destacada como tal pelo analista, mas denunciada pelo conflito entre raiva e demanda afetiva em relação à mãe, ou afetos amorosos e de ódio em relação ao avô.

Temos ainda a comentar duas histórias implícitas e condensadas no material clínico: os cuidados básicos ministrados a Dolores, refletidos no que ela denominou "boa educação recebida" dos avós, que alicerçaram sua produção intelectual de "aluna exemplar" no mestrado, doutorado e bolsa no exterior, incluindo o tratamento psicanalítico; e, algo importante citado pelo analista, a capacidade de ser grata a esses avós. Se a inveja é reputada por Melanie Klein[5] como tributária da pulsão de morte, a gratidão?- seu oposto?- é influenciada pela pulsão de vida, mas também favorecida pelo amadurecimento do ego e da personalidade.

A outra história é a história da relação analítica. Desde o início o analista revela experimentar "compaixão" por Dolores e sensibilidade face a sua problemática, além de certa humildade terapêutica. Assim, ele declara: "E também percebi que ela demandaria de mim a disposição para uma ampla e profunda continência das suas dores. [...] perguntei-me?- até que ponto seria eu capaz dessa disposição?". Suas intervenções são cuidadosas, não saturadas, permitem que Dolores vá fazendo suas construções e elaborações. Trago um comentário de D. Winnicott[6]:

 

[...] só recentemente me tornei capaz de esperar; e esperar, ainda, pela evolução natural da transferência que surge da confiança crescente do paciente na técnica e no cenário psicanalítico, e evitar romper esse processo natural, pela produção de interpretações. [...] Se pudermos esperar, o paciente chegará à compreensão criativamente, e com imensa alegria; hoje posso fruir mais prazer nessa alegria do que costumava com o sentimento de ter sido arguto.

 

Nessa relação analítica, fica evidente a aliança de trabalho que se manifesta desde o início pela proposta da própria analisanda de aumentar o número de sessões. No processo não foram mencionados interrupções, atrasos ou ataques ao setting por parte da analisanda. Manifesta-se uma sintonia na dupla, quebrada uma única vez no relato quando Dolores chama o analista de "babaca", o que foi devidamente elaborado pela dupla. Conjecturamos que a avó cumpriu as funções maternas com competência, resultando em identificação de Dolores com o feminino e o desejo e realização de maternidade. Para mim não ficou muito claro quanto de raiva geradora de tensão e somatização teria sido canalizada para a enxaqueca. Como dito no relato, poderia ser oriunda do conflito resultante da raiva da mãe pelo "abandono" e também pelo sentimento de falta ou anelo por essa figura com quem teve pouca convivência. O analista a teria ajudado a admitir que o avô seria também fonte de queixa e mágoa: homem enérgico e rigoroso, ele a teria privado do contato com seu pai e também cerceado seus relacionamentos amorosos, concretizados só mais tarde ao realizar a pós-graduação no exterior. Estariam as sombras do Édipo camufladas e deslocadas para o avô? A ele Dolores se ligava por laços de gratidão por tê-la assumido como filha, mas também dele teria recebido a proibição de ter namorados e amizades. Na relação com o analista, inferimos matizes eróticos deslocados quando ela compara analista e avô:

 

Não fiz sozinha, você me ajudou sem me aterrorizar, diferente de meu avô, que me contava umas histórias que me aterrorizavam. Eu é que contei e você me ajudou a lembrar a minha história sem me assustar e eu pude ouvir (silêncio). Eu pude me ouvir porque eu não me sinto mais como era antes, acho... Eu nunca soube ao certo o que aconteceu com minha mãe. Agora eu sei que eu vi, eu estava lá, ela pegou fogo na cozinha... Foi mesmo um acidente, como eles me contaram. Eu não tive culpa (voz muito embargada).

 

Nessa corrente de afetos de ódio/ressentimento recalcados, o pai de Dolores parece ter sido poupado, talvez para não aumentar sua dor e sentimentos de rejeição. Esse pai jamais a reivindicou como filha, talvez por não ter superado o abalo emocional causado pelo processo judicial que lhe foi infligido pelo avô de Dolores. Nunca lhe conferiu oficialmente a paternidade, só o fazendo indiretamente mais tarde através de um quinhão destinado a ela via testamento.

 

Comentários finais

 

Apesar de no conjunto, na minha opinião, Dolores não ter um funcionamento psicótico, pude vislumbrar o funcionamento da parte psicótica da personalidade[7] especialmente nos episódios de alucinose relatados ou vivenciados na situação de análise. Outras vezes pude vê-la com fortes matizes histéricas. Então, examinando atentamente, observamos a complexidade de seu funcionamento emocional com as respectivas defesas ou resistências ao processo, embora não aparentem grande realce. Referi-me a afinamento do par analítico, que se manifestou desde o início através da confiança e empenho no processo analítico e, por parte do analista, pelo que ele nomeou inicialmente como "compaixão" ou, poderíamos dizer, empatia e contratransferência sintônica acompanhada de paciência[8]. Em atenção e interpretação[9], Bion refere-se à paciência como associada a sofrimento e tolerância à frustração "sem tentativa irritável de alcançar fato e razão até que um modelo evolua". Lemos que o processo analítico durou quinze anos. Talvez consideremos ser um longo tempo, mas devemos levar em conta que o crescimento emocional não é linear, mas feito de avanços e retrocessos, repetições, resistências implícitas ou explícitas. Lembrando A. Green[10]:

Não há um só analista que mantenha a ilusão de que se interpretar uma determinada atitude, esta desaparece. Para mim por exemplo a atitude do paciente pode durar digamos... 15 anos. A análise é um trabalho de Penélope?- todos os dias você tece a teia e, logo que o paciente o deixa, ele a desfaz. Se não estivermos preparados para ver a análise assim, é melhor mudar de profissão.

 

Comentário de Renato Trachtenberg

Penso que uma análise deve apresentar o analisando a ele mesmo, com toda sua diversidade de pensamentos, emoções, estados mentais, sem uma perspectiva moral de melhor/pior, superior/inferior. No meu entender, a psicanálise não visa a resolver conflitos ou "eliminar" sofrimentos. Conflito é vida, é complexidade. Podemos ajudar um analisando a aumentar sua capacidade de tolerar sofrimento, pois sofrer, como a dor, é inerente ao viver.

O nome Dolores me leva a pensar, então, que é alguém que procura uma análise para sofrimentos psíquicos que são sentidos como dores físicas. Sofrer uma dor não é o mesmo que sentir uma dor. As dores que não podem ser sofridas muitas vezes se transformam em dores sentidas. A enxaqueca é uma dor sentida. Uma característica dela é uma grande intolerância à luminosidade, um olhar que se faz impossível pela sensação de intensidade da luz. Lembro a luz do sol que nos impede de enxergar as estrelas durante o dia. Ocorre-me, nesse momento, que ver estrelas é uma das queixas habituais de quem sofre de enxaquecas e também é uma forma de referir-se a uma dor intensa. O "desaparecimento" dos pais de Dolores me faz pensar na terrível experiência de filhos de pais desaparecidos nas ditaduras latino-americanas. Na ditadura argentina, por exemplo, era comum que os filhos pequenos dos pais assassinados/desaparecidos fossem adotados pelos próprios militares que determinaram a morte desses mesmos pais. Com o retorno do regime democrático, as avós dessas crianças, já adolescentes ou adultas, buscaram?- e ainda buscam?- na justiça a anulação dessas "adoções". Jovens que tratavam como pais os assassinos de seus próprios pais de repente se encontraram com a terrível verdade. Numa dimensão muito menos perversa, os avós de Dolores "adotaram" a filha de um pai que eles haviam feito "desaparecer" e de uma mãe que, para Dolores, se manteve na condição de "desaparecida" durante muito tempo. A mistura de sentimentos de raiva e gratidão, num caso como esse, não só é comum como também produtora de importantes denegações (Verleugnung). Essas denegações incluem tanto a vítima como os que guardam os segredos de sua história. Os segredos são transmitidos muitas vezes por via transgeracional, ou seja, não são conhecidos, mas produzem graves efeitos psíquicos.

Nesse sentido, essa convivência de sentimentos opostos mostra, mais que uma ambivalência, a presença simultânea de um é e não é, uma denegação. A gratidão se transforma em dívida impagável, em tirania, e a raiva pode ser uma consequência disso, uma rebelião a isso. Uma parte importante dos sentimentos de raiva?- e de falta da mãe?- de Dolores era produzida pelos avós que dela cuidaram, mas que não lhe teriam informado acerca do que realmente havia ocorrido com a filha. Esse tipo de segredos, esse algo que não pode ser investigado e conhecido, termina aparecendo como terror, um terror sem nome. É claro que Dolores sabia e não sabia o que havia ocorrido com a mãe, pois as imagens da bruxa eram frequentes e muito assustadoras. Ela havia visto algo, mas, ao mesmo tempo, com a "ajuda" dos avós, havia desmentido sua percepção. A bruxa era uma verdade que tratava de impor-se num mundo de evasões e negações. A bruxa era a verdade que tentava fugir da armadilha dos silêncios e segredos. Nesse sentido, a dor mental produzida pelo registro de uma verdade que não podia mostrar-se, uma verdade muito dolorosa que havia sido vista, mas não suportada, era impossível de ser contida num continente mental e se transformou num sintoma somático em que a luz parece tão intensa que produz intensas dores e, assim, o escuro é o último refúgio. A luz intensa também é a luz das chamas bruxuleantes nas quais sua mãe estava envolta. Por tudo isso, o escuro, o silêncio (um refúgio dos gritos de dores terríveis da mãe em chamas?), eram, para Dolores, o descanso de dores também bruxuleantes, que iam e vinham numa periodicidade implacável.

Antes de entrar no material da sessão, o narrador nos comenta sinteticamente as grandes conquistas de Dolores através de sua análise. Isso produz um grande alívio no leitor psicanalítico, que sempre fica feliz com uma análise que se desenvolve a contento, apesar das dificuldades que certamente foram enfrentadas nesse processo. São momentos em que renovamos nossa confiança no método, muitas vezes abalada pelas vicissitudes peculiares a nossa tarefa. Por outro lado, o comentário do narrador nos coloca numa posição sui generis que é a de conhecer o futuro dessa análise antes da exposição de uma sessão onde muitas conjecturas possíveis poderiam surgir. Desse modo, as associações ficam limitadas pelo conhecimento de como foi o futuro do trabalho realizado pelo par analítico. Isso me faz recordar a colocação de Bion sobre o trabalho sem memória, sem desejo e sem necessidade de compreensão. Como costumo trabalhar sobre o presente da sessão, certamente meu comentário não será o mesmo do que seria sem essa informação.

São muito importantes as intuições e associações do analista para captar situações ainda não faladas, em busca de representações que habitam o mundo fantasmático de Dolores. Por exemplo, no final de uma sessão o analista comenta: "nas histórias que você contou, as meninas perseguidas pelas bruxas, quase todas, são órfãs...". Fica implícita a conjectura de que as bruxas estão sendo a representação possível da mãe morta. Quando digo representação possível, quero dizer que existe uma transformação da dor da enxaqueca, expressão do irrepresentável ou de um esboço muito primitivo de representação. É de destacar que a mudança de consultório do analista é vivenciada como um abandono, como uma renovada orfandade, pois o analista é também seu setting, onde sua função continente é muitas vezes depositada. A orfandade, assim, não é somente um fato, mas, também, uma condição mental muitas vezes renovada, repetida, trans-ferida, em busca de uma elaboração possível.

Vou me referir com mais detalhes à sessão em que aparecem os sonhos. Dolores comenta que se sente vazia, esquisita, sentindo que teria coisas a dizer, mas que muito dificilmente poderia dizer com as palavras... E, pela primeira vez, diz o analista, declara ter tido sonhos, mas não consegue discorrer sobre eles. "São imagens, apenas imagens", diz ela [silêncio]. "Num dos sonhos, continua, é como se eu estivesse dentro de uma caverna, mas é uma caverna?- cenário, uma falsa caverna com paredes de papelão, iluminada por dentro, mas vazia, sem alguma coisa para eu ver. E eu não me lembro de mais nada, nem do que aconteceu antes, nem do que vem depois. Esses pedaços são de uma escuridão total". A caverna falsa ou vazia parece representar um esboço de um continente ainda não significado como tal. Um lugar ainda não acolhedor de suas dores e medos, frágil. Um lugar sem passado ou futuro, uma temporalidade congelada.

Nas associações seguintes aparece a revista com a reportagem de uma exposição de Tiziano em Veneza. O fato de a revista estar na sala de espera do consultório analítico não é irrelevante. O analista associa Veneza à Vanessa, mãe da paciente. A reportagem diz que Tiziano pintava várias vezes um mesmo quadro. "Numa das telas, ele deixou aparecer um pedacinho da pintura antiga, no canto do quadro. É de uma cor vermelho escuro, um vinho. Então, essa cor me fez lembrar um outro sonho do qual só me lembro da cor. Não é exatamente a cor do Tiziano, não é tão escura, mas é na linha dos vermelhos."

Aqui surgem dois elementos: o primeiro se refere ao que se denomina pentimento, quando aparecem vestígios de pinturas anteriores numa tela em que, pelo efeito do tempo, vão se descolorindo as camadas de tinta posteriores. O termo é originário do italiano, onde tem o significado de arrependimento. Ou seja, algo que foi feito e coberto num tempo anterior começa a ressurgir do vazio infinito e sem forma (J. Milton). O encobrimento não impede a visão do já ocorrido. O segundo elemento se refere à cor vermelha e ao sonho onde aparece somente essa cor. Diz Dolores: "É como se houvesse uma coisa que não se mostra totalmente no sonho, que eu só vejo e não consigo falar. É imagem, uma coisa anterior à fala... É uma coisa diferente da palavra. Mas, pensando agora, acho que pode ser anterior à fala, sim. É como se eu visse o vermelho sem saber exatamente o que estou vendo..." [silêncio]. Surge uma cor e não somente o claro ou escuro. Dolores associa o vermelho com um fato real ocorrido na Inglaterra, e narrado por sua professora de inglês, onde, após uma explosão na cozinha de um restaurante, o cozinheiro em chamas entra na sala em que os clientes eram servidos. Diz que não quis seguir escutando o que a professora narrava e que lhe acometeu uma terrível dor de cabeça. Nesse momento da sessão lembra: "Eu estava na casa do meu avô, na sala, no colo da minha avó, e, de repente, saiu da cozinha uma coisa em chamas, ela se mexia, acho que os braços, os cabelos desgrenhados, parecia uma bruxa... Todo mundo começou a gritar... Acho que era minha mãe".

Surpreendentemente, parece que estamos diante daqueles clássicos casos clínicos iniciais de Freud, onde as lembranças retidas ("as histéricas sofrem de reminiscências") eram finalmente recordadas com o alívio imediato dos sintomas físicos. A dramaticidade dessas ocorrências parece repetir-se no diálogo que se segue:

 

A. [após algum tempo] Você lembrou o que não era possível dizer.

D. [chora] Eu sempre quis lembrar, meu Deus, ela pegou fogo... tadinha, que dor ela deve ter sentido ... Ai, está doendo a minha cabeça [põe as mãos sobre a testa], meu Deus, tá doendo... É uma dor diferente, não é ardida como a enxaqueca... [chora]. Não estão ardendo os olhos, é mais aqui na testa...

A. Você disse que não é uma dor ardida? 

D. Sim, quando tenho enxaqueca ficam ardendo os olhos, as têmporas...

A. É como fogo, fica queimando...

D. Eu vi o fogo [chora muito]. Mas, agora, não está assim, é mais como se fosse um peso. Eu estou sentindo como eu sentia quando meu avô me dava um passe.

A. Você se deu um passe, você fez uma passagem.

D. ... Eu nunca soube ao certo o que aconteceu com a minha mãe. Agora eu sei que eu vi, eu estava lá, ela pegou fogo na cozinha... Naquela época, o fogão era a lenha, um fogão enorme, perigoso pra acender... Foi mesmo um acidente, como eles me contaram. Eu não tive culpa [voz muito embargada].

A. Não foi uma bruxa que você viu.

D. Não, não foi... foi a minha mãe... ela morreu.

 

O que ocorreu? Estamos diante de um efeito traumático de uma lembrança retida ou algo irrepresentável pode ser representado nesse momento? Os sonhos foram a primeira tentativa de encontrar ou construir essas representações? A palavra só pôde encontrar significado quando se ligou às imagens? Estamos aquém ou além do princípio do prazer? Recalque? Denegação? Essa é a lembrança de um fato ocorrido ou algo que pôde ser construído na análise, sem compromisso com a realidade factual, mas que possui um sentido de uma verdade eminentemente psíquica? Essas diferenças importam? Deixo as perguntas com a esperança de que gerem novas perguntas.

O sonho contado numa sessão posterior parece mostrar a possibilidade de constituição de uma tridimensionalidade psíquica, um continente capaz de hospedar suas lembranças, medos e angústias: "Eu estava no mato, lá no interior, andando por um atalho. Estava escurecendo, quando chego à casa de um senhor que na minha infância tinha fama de curandeiro, uma espécie de bruxo. Eu tinha medo dele. Mas, no sonho, não. Apareceu a casa dele, a sala com uma lamparina morta que fazia sombras bruxuleantes nas paredes. Não senti medo. Eu percebi que estava com a minha bolsa com todos os meus documentos dentro dela". A maior possibilidade de simbolização é evidente. A bruxa aparece como sombras bruxuleantes, são sombras e não assombrações. Luzes e sombras são simultâneas e não di-ver-gentes. Sua bolsa continha seus documentos, continha sua identidade. Um espaço mental que envolve seus objetos, suas identificações, suas perdas e suas conquistas. Seu sofrimento agora pode ser sofrido, pois existe em si um lugar que o tolera e o alberga.

O analista, a partir do sonho anterior e de suas próprias associações, conecta a figura do bruxo, do qual Dolores sentia medo em sua infância, com a figura do avô tirânico, dizendo: "Seu avô impediu a união dos seus pais, a ligação entre você e seu pai, decretou silêncio sobre a morte de sua mãe. Talvez isso tenha despertado raiva, uma raiva que você não conseguiu expressar, gerando muita dor de cabeça." A questão do impedimento da união dos pais e da ligação entre a paciente e seu pai mereceria um comentário à parte. O mesmo digo da impossibilidade de carregar o (sobre) nome do pai, mas não de ser sua herdeira.

Dolores, a seguir, conta um sonho de angústia em que está num aeroporto para viajar e desaparece a mala que continha seu passaporte. Era dia e havia muita luz. Sem bagagem e sem documento, percorre correndo várias plataformas de embarque, sem saber qual é a sua: "Pode ser qualquer uma, para qualquer lugar, mas qual?". Dolores acorda assustada, com muito medo.

Esse sonho, nesse momento da sessão, parece expressar um alívio de um peso carregado por muito tempo, mas que a remete, ao mesmo tempo, à possibilidade de terminar sua análise. Essa é uma situação de angústia comum a muitos analisandos quando percebem que a análise poderá ter um fim. O tempo necessário para elaborar/pensar essa angústia, como é exposto posteriormente pelo analista/narrador dessa bela história, parece ter sido bem aproveitado. O que ocorrerá depois parece poder ser vislumbrado e intuído a partir dessa sessão. O futuro se faz presente.

Não considero os dois sonhos como uma oposição, como Dolores parece pensar. A mesma mudança psíquica que permitiu o sonho da bolsa produz a angústia desse outro sonho. Existe uma continuidade entre eles. As possibilidades se ampliam, como parece pensar também o analista. As diferentes plataformas são os diversos caminhos que se abrem à medida que ela não se sente mais tanto uma depositária de desejos alheios e sim alguém que poderá assumir seu próprio desejo. Essa condição traz um acréscimo importante de sua responsabilidade psíquica, pois, agora, ela será mais responsável pelo seu destino e não mais uma vítima das escolhas ou decisões de outros. Essa não é uma condição tranquila e carente de sofrimentos. Inclui a presença de uma ética complexa (Morin) em que as escolhas serão realizadas a partir de um pensar que incluirá incertezas e dúvidas. Como disse Luis Fernando Verissimo: "Penso, logo hesito".


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Percurso é uma revista semestral de psicanálise, editada em São Paulo pelo Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae desde 1988.
 
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