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Resumo
Realização?Camila Junqueira, Cristiane Abud Curi, Gisela Haddad, Ivy Semiguem; Thiago Majolo e Vera Zimmermann


Autor(es)
Maria Laurinda Ribeiro de Souza
é membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae e professora do Curso de Psicanálise desse Departamento. Publicou Violência (Casa do Psicólogo), Vertentes da psicanálise (Pearson), Mais além do sonhar (livro de crônicas), Quem é você? (livro de contos infantis).


Livia Garcia Roza
Nascida no Rio de Janeiro, é graduada e pós-graduada em Psicologia Clínica pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (ufrj). Fez formação psicanalítica no Instituto de Medicina Psicológica, atual Sociedade de Psicanálise Iracy Doyle (spid). Clinicou durante trinta anos. Estreou na Literatura em 1995 com o romance Quarto de Menina (Relume-Dumará) e é autora de romances como Cine Odeon e Solo Feminino (Record), finalistas do prêmio Jabuti, e Milamor (Record), finalista do prêmio São Paulo de Literatura. Publicou ainda livros de contos e infanto juvenis.


Ricardo Luiz? Cruz
é professor da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (ufms). Possui graduação em Ciências Sociais pela Universidade de São Paulo, mestrado e doutorado em Antropologia Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro/Museu Nacional.


Notas

1.N. Bignotto, O medo do acaso, in A. Novaes (org.), Mutações. O futuro não é mais o que era. São Paulo, Edições Sesc, 2013.

2.N. Bignotto, op. cit., p. 175.

3.M. Sifre apud A. Burdick, Por que o tempo voa. Uma investigação sobretudo científica. São Paulo, Todavia, 2020, p. 109.

4.G. Deleuze (1969) apud S. Le Poulichet, O tempo na psicanálise. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1996, p. 121.

5.S. P. Rouanet, Tempo, tempo, tempo, in A. Novaes (org.), Mutações. O futuro não é mais o que era. São Paulo, Edições Sesc, 2013, p. 365.


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 DEBATE

O corpo e o tempo

The body and time
Maria Laurinda Ribeiro de Souza
Livia Garcia Roza
Ricardo Luiz? Cruz

Todos nós inventamos no tempo do corpo um corpo ao tempo; constituímos, entre nascimento e morte, a obra de nossos sonhos, nos conflitos sintomáticos e sintomas apaziguados. Cada qual dá ao tempo um corpo, por vezes lento e espesso, por vezes ágil e dinâmico. Nosso aparelho psíquico, fundado no corpo biológico e por ele sustentado, em primeira e última instância, é um aparelho de corporificar esse abstrato incontornável, esse invisível monumento, o tempo.

 

O distanciamento social imposto pela pandemia de covid-19 alterou nossa relação com o tempo, lançou-nos a uma vida virtual e a uma distorção do tempo, como se vivêssemos em um presente perpétuo. A sensação de estagnação e marasmo se entrelaça com a exaustão e a sensação de que não temos mais tempo para nada. O lazer e o ócio ficaram restringidos, tornaram-se repetitivos e pouco satisfatórios. O tempo se fez absoluto no ano de 2020. Ao sermos obrigados a renunciar ao prazer imediato, ficamos à mercê do princípio de realidade e tentamos nos mover em direção ao futuro, na esperança de encontrar o que procuramos, uma vacina talvez.

 

Quando as perspectivas de futuro se diluem e são engolidas por um presente infinito, como fica nossa economia psíquica? Um "presentismo forçado" como dizem os antropólogos do tempo? Para Felix Ringel, nossas experiências nestes tempos de covid-19 nos deixariam treinados em pensamento e flexibilidade temporal e, embora a humanidade enfrente esta crise, haverá outras pela frente. Seria confortante, portanto, saber que podemos e devemos enganar o tempo, e planejar o futuro, ainda que nos sintamos presos no presente. Quais seriam os recursos e os custos psíquicos de estarmos presos no presente? O que acontece com as lembranças passadas e os sonhos futuros durante o império do presente?

 

Convidamos autores de áreas diversas a falar sobre o tema.

 

Maria Laurinda R. de Souza
O tempo. O espaço. A vida e a morte

Que desgraças inomináveis e vergonhosas nos chegarão amanhã?

[Graciliano Ramos em Memórias do Cárcere.]

 

À pergunta formulada por Graciliano Ramos em outro contexto, também de violência e abuso de poder, podemos responder dizendo que elas já nos chegaram. Estão aqui, agora, neste presente agudizado pela pandemia. Arrastaram consigo o passado e toldaram a visão do futuro.

Minha casa sempre foi um lugar de refúgio, de descanso. Lugar onde se chega depois de um dia de trabalho. Não é mais assim. Minha casa é uma clausura.

Isso ele me diz com sofrimento; não suporta mais o confinamento a que se viu compungido desde o início do ano. O tempo da velocidade, da mobilização infinita, da corrida de um lugar para o outro; o tempo da exaustão, do qual reclamava e ao qual pedia uma pausa, estagnou-se.

Estará, agora, esse lugar utopicamente de descanso, de refúgio, transformado em um não lugar, como o conceituou Marc Augé? Um lugar transitório que foi se prolongando, perdendo a capacidade de movimento tão própria à vivência do tempo? Estamos diante de um presentismo?

É por pouco tempo, disseram as notícias iniciais. Uma quarentena. Dois meses, três, quatro...

No segundo semestre as coisas serão diferentes.

Talvez...

Poderemos viajar em agosto? Em setembro? No final do ano? Haverá férias? Carnaval?

O desconhecido tornou-se moeda corrente. O medo infiltrou-se na alma à medida que as notícias de morte se avolumavam. E que o negacionismo político assombrava as imagens repetidas dos hospitais lotados e da falta de equipamentos de proteção. Expandiu-se com a tragédia ocorrida em Manaus: falta de oxigênio, falta de planejamento do governo, arbitrariedade despótica na não aquisição das vacinas. O ar contaminado deste presente nos sufoca os pulmões.

Não suporto mais não poder planejar a vida. Fico irritado com tudo. Estou mais confinado que todo mundo!

Quem é todo mundo, pergunto eu, tentando ressituar seu lugar e sua angústia.

Os outros, que não se importam, que saem, vão para a praia, para as baladas.

Os outros, ou o outro lado daquilo que ele talvez gostaria de poder fazer? Fechar os olhos, negar a realidade, não saber das mortes. Jogar-se impulsivamente ao encontro do canto das sereias que convocam à entrega do corpo e da vida.

Instaura-se um jogo psíquico entre a contenção necessária, o adiamento, e a atuação; o impulso para os atos transgressivos. Recusar o que se tornou visível desde o início da pandemia: somos mortais; estamos todos desenganados. Nossa vulnerabilidade nos assombra. O imprevisível faz parte do dia a dia. A ideia de que possamos morrer sem que a vida seja vivida, sem que haja futuro por vir, nos assusta e dilacera.

Esses outros que vagueiam em festa pelas ruas encontraram uma outra forma de resistir? Newton Bignotto[1], ao escrever sobre o medo da peste negra que assolou a Europa em 1348, cita uma passagem de uma das maiores obras da literatura italiana, Decamerão, onde, na tentativa de prolongar um presente ilusório, a loucura do humano também se fazia ruidosa: "Para combater a intensidade do mal, o melhor é "gozar com intensidade, divertir-se de todas as maneiras, [...] rir e troçar do que acontecesse, ou pudesse suceder"[2].

Perdi a noção do tempo. Quando foi mesmo que tudo começou? Ando confundindo os dias?- segunda ou terça? Foi nesta semana ou na semana passada? Tinha um encontro importante, mas perdi a hora. Será um problema de memória?

Uma memória tão marcada pela tendência cotidiana de naturalizar a linearidade do tempo, de medi-lo pela sequência dos acontecimentos. Uma memória atravessada pela experiência traumática capaz de reatualizar os terrores infantis de aniquilamento, perda de lugar, deixar de existir. Essa memória precisa, agora, de um novo trabalho psíquico para ser reencontrada.

Em novembro de 1999, Michel Sifre, cientista francês, especializado em espeleologia e pesquisador dos efeitos do tempo sobre o corpo, as sensações e a memória, iniciou sua terceira experiência de isolamento. Viveu numa caverna natural, na França, durante 76 dias. Sua noção de tempo e sua memória sofreram alterações: em sua percepção haviam se passado 67 dias e lhe pareceu habitar um presente aparentemente eterno: "É como um dia comprido. As únicas coisas que mudam são a hora que você acorda e a hora em que vai dormir... tenho a impressão de que minha memória foi prejudicada, não consigo nem lembrar do que fiz lá embaixo ontem ou anteontem"[3].

Em outro contexto, a pequena criança, de apenas 5 anos, me pergunta:

Não vou mais poder ir à sua casa?

E, antes que eu responda, me pede: Feche as janelas. Rápido. O bichinho pode atravessar a janela e pegar você. Rápido, rápido, senão não vai dar tempo. (Também, para ela, a morte aparece excessivamente presente).

Depois, monta uma cidade onde todos os habitantes vão para o hospital. Acompanho, pela tela, todas as adversidades ocorridas no caminho: engarrafamentos, acidentes de trânsito, desvios no percurso. Um tempo imenso até chegar ao hospital. Uma fila de carros parada circundando aquele espaço. Esse dia parecia prolongar-se num ritmo de idas e vindas, indefinidamente. Conseguiriam chegar? A cada parada uma palavra sobre o que acontecia. As palavras permitem a retomada do movimento. Já é noite quando todos podem voltar para casa. Estão salvos. Podem dormir.

Não seria essa cena uma sinalização de que, para que seja possível o desligamento do presente, a presença precisa estar garantida? Reassegurada? Sem essa garantia, temos a insônia, o cansaço, as perturbações de memória, os sonhos traumáticos...

O tempo, o espaço, a vida, a morte. Tudo presente, no mesmo instante. Confundindo as referências e tornando evidente sua construção simbólica. O tempo se perde quando as referências externas desaparecem: os espaços diferentes, que identificamos a partir de experiências singulares nessa simultaneidade do tempo-espaço: os caminhos que se percorre para sair e chegar a cada um deles, as marcas que construímos sem perceber?- viramos à esquerda quando o farol de tal avenida fica verde. Seguimos em frente se vamos deixar as crianças na escola. O relógio nos diz se estamos ou não atrasados. Mas, e quando todas as atividades são feitas a partir da própria casa onde se vive?

Depois de um tempo inicial de confusão e expectativa de que tudo seria breve, de que teríamos tempo para fazer o que costuma ser adiado, começaram a surgir os sintomas desse tempo que se repete num presente do mesmo. Um excesso de presente que pode perturbar, também, as fronteiras até então estabelecidas para o corpo e para o eu. "[...] quando os nomes de pausa e repouso são arrastados pelos verbos do puro devir e deslizam para a linguagem dos acontecimentos, toda identidade se perde para o eu"[4]. Feitiço do tempo, um filme de Harold Ramis, onde os dias são sempre iguais, tornou-se o filme representativo desse eterno retorno. Uma expectativa ansiosa de novos acontecimentos.

Surgiram propostas de outras referências; uma tentativa de reencontrar intervalos, presenças-ausências que resgatassem a experiência temporal: Crie uma rotina. Programe seu dia como se fosse continuar fazendo o mesmo de antes. Não fique de pijama o dia todo. Não assista a tantos noticiários; as notícias só vão te enlouquecer. Mantenha as horas regulares de sono. Não troque o dia pela noite. Mantenha o contato com seus amigos. Controle o excesso de bebidas. Cuidado. Não saia de casa!

Tentativas de contenção da angústia frente ao inesperado. Tentativas de contenção do desamparo frente ao horror de se ver aspirado num interior claustrofóbico inevitável. A pandemia tornou visível a verdade da morte que jaz no âmago da vida. Um tempo sempre presente; uma experiência plana do tempo. Será que se pode pensar no futuro, quando vivemos um presente tão intensamente marcado pela ideia de que o porvir está ameaçado?

Talvez a resposta possível a essa questão pudesse ser encontrada na célebre frase de Santo Agostinho, no livro xi dAs confissões: "O que é o tempo? Se ninguém me fizer essa pergunta, eu sei; mas se eu quisesse esclarecer o que ele é para alguém que desejasse uma explicação, não sei". Mas, continuou: "Quanto ao presente, se fosse sempre presente e não transitasse para o passado, não seria tempo, mas eternidade". É esta experiência subjetiva de uma realidade de riscos que se prolonga indefinidamente que traz, para muitos, a ideia deprimente de uma eternidade sufocante. Falta-nos ar quando assistimos às mortes violentas por abusos de toda ordem, por queimadas em terra que deveriam estar demarcadas, protegidas, por falta negligente de oxigênio.

Mas, por outro lado, esses impasses trazidos pela mudança compulsória de vida trouxeram também um questionamento sobre a "normalidade" vivida anteriormente e projetos de um presente mais significativo, mais coletivo e solidário. Especialmente em relação aos que há muito tempo vivem sem casa e sem ajuda para as necessidades básicas. Aos que não podem ficar em casa porque certos trabalhos se tornaram indispensáveis e fonte de renda para uma população até então invisível e marginalizada.

Enquanto isso, o tempo não passa... é necessário um imenso trabalho psíquico, uma transformação dessa realidade excessivamente presente, para que se possa falar de uma passagem que restitua o direito ao esquecimento, ao passado, e abra um novo olhar para o futuro.

Se estamos hoje enclausurados num presentismo sem pausa ou repouso, podemos desejar um futuro que, apesar do imprevisível, nos permita sonhar com o delicado da vida. Que nos permita, como propõe Ailton Krenak, aprender a pisar suavemente na terra. Afinal, "toda sociedade e todo pensamento que não se deixem guiar pela perspectiva do futuro utópico estão condenados à irrelevância"[5].

 

Livia Garcia Roza
O sintoma é a doença em seu recato

Cedo, eu soube o que era uma pandemia. Minha mãe, filha do cientista Vital Brazil, cresceu numa casa onde se respirava ciência. Seu pai foi o fundador do Butantan. O Instituto (tão em voga nos últimos tempos) surgiu sob o comando dele. E é hoje um dos centros de pesquisa de imunizantes mais importantes do mundo. Foi através de mamãe que eu vim a saber sobre a gripe espanhola que viria dizimar toda uma população. Volta e meia se falava sobre essa gripe. Cresci assombrada por ela. Pelo destino determinante da transitoriedade. Pela morte. "As deusas do tempo se tornam as deusas do destino", nos diz Freud. Aí está a pandemia. A invasão de um real aterrador. Que até o atual momento matou mais de 200 mil brasileiros. Tudo isso em meio a um desgoverno assustador que destruiu bens preciosos do nosso país. Tempos sombrios esses nossos. Estamos vivendo um mundo violento. A vida tem exigido muito de todos nós. Fomos obrigados a ficar reclusos em casa, e a só sair em caso de extrema necessidade. No caso, as pessoas sensatas, porque os irresponsáveis vivem em festas, em bares, baladas, pelas ruas, disseminando o vírus. Vivemos uma dolorosa ruptura desde a chegada da pandemia. Algo se esgarça em nossa vida cotidiana levando cada um a responder a seu modo. O real que irrompe impõe novas formas de viver. O distanciamento social imposto pela pandemia da covid-19 alterou nossa relação com o cotidiano, alterou a nossa relação com o corpo, com os cuidados em relação ao corpo (nossa libido tornou-se mais empobrecida), alterou nossa relação com o espaço e com o tempo. A angústia de reduzir-se ao corpo, o confinamento em que ele se encontra, recolocam a questão: de que ou de onde estamos exilados? Se nos "baniram do mundo", temos que constituir nossas "Bahnungen" (trilhamentos). Nos lançamos numa vida virtual sem precedentes, vivendo um presente infinito. Mas qual o significado temporal desse tempo? Pergunta para a qual não temos resposta. Nada mais nos resta senão imaginar, fantasiar. Ficcionar, eu diria. O que fundamentalmente a pandemia aboliu foi o outro. A nossa relação com o outro. O outro físico, imediato, palpável. Somos constituídos desde o início na relação com o outro. Pessoas táteis devem sofrer em dobro. A gente nunca sabe o que fazer sem o outro. Mas vai fazendo. É assim. Dolorosamente assim. Só vamos saber sobre os custos psíquicos que nos impôs a pandemia quando ela terminar, o que ainda se constitui numa interrogação, mas se a pandemia realmente for erradicada, seremos capazes de avaliar o montante de perdas. No momento, estamos imersos nela e em todas as barreiras que foram erigidas. Faz quase um ano estamos reclusos em nossas casas; a boa nova é que as vacinas estão chegando. Assim mesmo, no plural. Ousamos ter esperança.

Quanto aos recursos de que podemos lançar mão nesse tempo absurdo, são variados. Quanto a mim, pus o tempo em perspectiva e tenho vivido em seu recuo. Nas releituras, escrevendo textos curtos, assistindo a filmes antigos, procurando amigas antigas (procurar amiga antiga é passear na própria história). Apaziguando sintomas.

Segue um exemplo do que estou podendo fazer:

Chevrolet Belair

(Uma lembrança da Infância)

Eu era menina quando andava no carro Chevrolet Belair de mamãe, e ela corria e vinha o vento da janela e jogava meu cabelo no olho, mas o cabelo encaracolado de mamãe não se mexia, e eram instantes velozes aqueles em que atravessávamos vales, florestas, planícies, o carro sacudia nos campos de trigo, e suas espigas balouçantes eram lindas, mas eu não podia falar enquanto mamãe dirigia, quase passamos em cima de uma revoada de pombos, acho que matamos uma borboleta pelo caminho, uma asa colorida ficou presa no para-brisa do carro, e eu dava cabeçadas no vidro da janela por causa das sacudidelas, e havia um boi no caminho, mas mamãe desviou o carro pelas campinas verdejantes e até colheu uma maçã, e depois que eu dei uma mordida comecei a ficar diferente, uma garota maior, vim a ter seios e usar muito os dentes para sorrir para os rapazes, mas eles me preferiam de saia rodada, cabelo solto, sem sutiã, quase nua, dando risada, e o resto não há quem não saiba o que aconteceu nas dunas da praia de Icaraí. Bem em frente ao trampolim.

 

Ricardo Luiz Cruz
A vida além da pandemia

O início da vacinação (contra a covid-19) marca um novo tempo em nossas vidas? Ao longo de quase um ano, a dor, o sofrimento e a morte permearam o nosso cotidiano, notadamente através de imagens transmitidas pela televisão, mas que nos impactaram ao ponto de mudarem nossos semblantes e comportamentos. Ficamos com medo de fazer o que antes era associado à alegria, como um jantar com amigos ou com nossos familiares. A angústia tomou conta de nosso ser ao nos vermos cativos de um pavor que talvez só houvéssemos experimentado em situações mais circunscritas. Quem vivenciou a doença por meio de alguém próximo contaminado e/ou foi infectado se relacionou mais de perto com as dimensões traumáticas dessa tragédia coletiva. Fomos capazes de sentir alívio e esperança ao ver as primeiras pessoas sendo vacinadas. Mas em que medida esse período tenebroso de nossas vidas está sendo deixado para trás?

Os números de mortos e contaminados?- pelo vírus?- não param de aumentar, configurando o que vem sendo chamado de uma "segunda onda" da pandemia. Abundam informações sobre a lentidão da aplicação da vacina na população. Nesse começo de 2021, a esperança adentra em nosso cotidiano sem desalojar o medo. Diante dessa ambivalência, continuamos angustiados frente à possibilidade de sermos contaminados realizando algo antes visto como banal. A satisfação de ver nossos filhos dentro da sala de aula ou brincando com os colegas permanece suspensa e substituída pela aflição frente ao confinamento das crianças. Nosso "tempo psíquico" na pandemia acaba sendo vivido como eterno retorno ao gozo proporcionado pelo celular, por um programa transmitido pela televisão, por um chocolate ou pela descarga de energia ou redução da tensão alcançada através de um grito contra alguém. A culpa pelo tempo passado frente a uma tela, pelo consumo do alimento ou pela briga nos causa satisfação (inconsciente) ao descarregarmos em nós mesmos a energia reprimida. Mas por que, diante da angústia, nos parece normal retroceder a um gozo passivo?

Para entender nosso tempo psíquico na pandemia, como um vai e vem angustiante entre o gozo (repetido) e o desejo (reprimido), não podemos deixar de levar em consideração a atual presença cotidiana da morte. Desejar o que antes era banal nos causa angústia, pois remete ao medo da contaminação. Por exemplo, a volta às salas de aula evoca o contato dos nossos filhos com o temido vírus, assim como o lazer fora de casa manifesta em nós a possibilidade de adoecermos. Mas por trás dessas angústias também se revela uma disposição em suprimi-las com o gozo. Naturalizamos o recurso ao prazer porque nossa libido se voltou para o momento presente: renegá-lo em prol da satisfação a ser alcançada num prazo mais longo parece não fazer sentido diante do ideal de que "curtir" ou "aproveitar" a vida é uma obrigação cotidiana. Com nosso dia a dia tomado pela ameaça da contaminação por um vírus letal, o engajamento passivo no gozo pode ganhar ares de legitimidade ainda maiores entre nós, como é o caso dos pais que aceitam que seus filhos fiquem "mais tempo que o normal" frente a uma tela ou de quem se permite ingerir bebidas alcoólicas em quantidades "acima do comum".

A mobilização de investimentos libidinais em movimentos desejantes demanda de nós uma recusa em canalizar esses investimentos no gozo. Diante da nossa angústia frente à morte ou outros tipos de invasão do real em nossas vidas, enquanto algo que somos incapazes de simbolizar e integrar numa dinâmica de prazer, como é o caso da erupção da tragédia nas nossas atividades cotidianas na pandemia, é importante reconhecer as formas como abdicamos de nossos desejos frente ao trauma. A construção de cenários, ocasiões, tramas ou espaços em que sentimos a alegria de estar vivo pressupõe lidar com as desfusões de nossa libido diante do mundo onde vivemos, de uma forma que vai além da passividade da satisfação via consumo ou de um ato destrutivo qualquer direcionado a um objeto ou pessoa enquanto pulsão de morte. Reconhecer o tempo da criação desejante implica liberar nossa imaginação das prisões que a impedem de ser vivida como uma narrativa que nos mobiliza num plano acima do real, permitindo que atravessemos os eventos traumáticos interessados na luz no fim do túnel. Quais seriam as prisões, fantasias ou ideologias que nos prendem atualmente ao gozo, como recurso privilegiado (por nós) para nos situarmos frente à realidade da pandemia?

Desde por volta de meados do século passado, a vida moderna tem se organizado com base em perspectivas temporais mais circunscritas. A sociedade de consumo que emergiu a partir dessa época fez com que o cotidiano dominasse as nossas preocupações, na medida em que formas de reconhecimento pautadas num horizonte imediato de gozo passaram a organizar os vínculos sociais de um modo geral, como entre os funcionários de uma loja e seus clientes ou entre pais e filhos cuja satisfação em produzir a satisfação alheia aparece como uma espécie de imperativo ou obrigação. Associamos nossos desejos a demandas cotidianas através de uma ideologia ou gramática do desempenho a qual mobiliza nossa libido em prol de um sistema de acumulação.

Décadas atrás, era comum os sujeitos se pensarem dentro de histórias pessoais ou coletivas vividas ou construídas através de largos períodos, onde a renúncia ou privação cotidiana do gozo fazia sentido ou era parte do jogo enquanto um meio esperado para se alcançar objetivos socialmente mais significativos. Os sacrifícios do trabalho, antes do que os prazeres do consumo, formavam o paradigma de comportamento social, constituindo os "ideais do eu" que deviam ser interiorizados. Hoje, vivemos obcecados, motivados ou coagidos em satisfazer os anseios, vontades, desejos ou expectativas de uma série interminável de pessoas, como nossos/as clientes, alunos/as, chefes e parentes, na medida em que o laço social passou a se fundar no gozo. Normas, identidades e relações não mais se estabilizam facilmente nas nossas vidas, o reconhecimento passa a ser vivido ou percebido como contingente, efêmero e instável. Não à toa, vivemos ansiosos e/ou deprimidos, na ânsia de corresponder às infinitas expectativas ou frustrados, cansados ou perdidos diante da incapacidade em satisfazê-las.

Temos que "nos virar", "dar um jeito" ou "nos adaptar" para poder corresponder às demandas de gozo que atravessam a nossa vida cotidiana, com a de alguém que espera que seus filhos e filhas estejam "sempre felizes" e seus funcionários "sempre produtivos". Tomados pelo sofrimento diante do fracasso em satisfazer o outro, acabamos nos tornando incapazes de colocar em cena os nossos próprios desejos. Não sentimos mais vontade em ir ao serviço, escrever a tese, comer uma sobremesa ou levantar da cama. Um saber médico pode, inclusive, nos definir como depressivos, estabelecendo uma forma legítima de nos desviar das demandas incessantes de gozo.

Para alcançar um novo tempo em nossas vidas (psíquicas), para além daquele fornecido por um atestado que nos classifica como doentes, temos que aprender a nos recolocar frente ao desejo do outro que nos causa angústia, como aquele que espera que saibamos extrair o melhor de nós no contexto da pandemia. Excessivamente preocupados com o nosso desempenho enquanto pais, filhos, profissionais ou alunos, por exemplo, podemos não encontrar tempo para criar ou cultivar situações, tramas ou espaços que nós, nossos filhos, pais ou colegas sintamos vontade de vivenciar. Presos ao gozo advindo da culpa em não satisfazer o que um superego rígido espera de nós, não nos engajamos de corpo e alma naquilo que possa transgredir essa maneira de mobilizar a nossa libido?- como sonhos e projetos que pressupõem períodos de insatisfação, dúvida, erro e conflito. Infelizmente nos afastamos desses universos simbólicos possíveis na crença de que os nossos gozos (e não os nossos desejos) são o que nos une. Que sejamos capazes de olhar para a chegada da vacina como um desejo comum de viver, tendo em vista realizar o que queremos fazer sem ter o gozo como obrigação constante, nas suas mais variadas formas de expressão.


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