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Resumo
Neste artigo, utilizo-me da experiência clínica com grupos de pacientes (pouco integrados psiquicamente), tendo a subjetividade como evento corporalmente encarnado sempre às voltas com um Outro ambiental, físico, linguístico, e que explora o entorno como um terreno de possibilidades para ações e experiências. O sujeito torna-se possível pela tensão criada em si mesmo, através da realização de projetos parciais destinados a integrar-se num conjunto denominado projeto de vida, operação sempre paradoxal por ser ao mesmo tempo necessária e impossível porque toda a realização é destruição da figura do projeto.


Palavras-chave
Precariedade. Mutualidade. Comunicação. Projeto de vida. Implicação. Grupo


Autor(es)
Moisés Rodrigues Silva Júnior
é psicanalista.


Notas

1. D. W. Winnicot, A natureza humana, p. 132.

2. D. W. Winnicott, "Dependência no cuidado do lactente, no cuidado da criança e na situação psicanalítica", in O ambiente e os processos de maturação, p. 231.

3. J. Chamond; P. Morsello, Continuidade do ser e agonia primitiva: o bebê winnicottiano e a psicose.

4. S. Freud, "Recomendações ao médico que pratica a psicanálise", in Obras completas, p. 156.

5. S. Freud, "O inconsciente", in Obras completas, p. 100.

6. C. Bollas, "Transformações psíquicas", in El momento freudiano, p. 64.

7. D. W. Winnicott, "A comunicação entre o bebê e a mãe e entre a mãe e o bebê: convergências e divergências", in Os bebês e suas mães, p. 87.

8.        D. W. Winnicott, "A comunicação entre o bebê e a mãe...", p. 87.

9.        D. W. Winnicott, "A preocupação materna primária", in Da pediatria à psicanálise: obras escolhidas, p. 493.

10.      D. W. Winnicott, "Influências de grupo e a criança desajustada", in Privação e delinquência, p. 198.

11. D. W. Winnicott, "Objetos transicionais e fenômenos transicionais", in O brincar e a realidade, p. 6.

12. D. W. Winnicott, O gesto espontâneo, p. 38.

13. D. W. Winnicott, Natureza humana, p. 143.

14. D. W. Winnicott, "Objetos transicionais e fenômenos transicionais", in O brincar e a realidade, p. 28.

15. F. Hölderlin, Hipérion ou o eremita na Grécia, p. 113.

16. F. Pessoa, "Navegar é preciso".



Referências bibliográficas

Bollas C. (1994). Ser un personaje: psicoanálisis y experiencia del sí mismo. Buenos Aires: Paidós.

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Chamond J.; Morsello P. (2010). Continuidade do ser e agonia primitiva: o bebê winnicottiano e a psicose. Winnicott e-prints, vol. 5, n. 1, p. 1-26. <http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1679432X2010000100005&lng=pt&tlng=pt>. Acesso em: 19 nov. 2020.

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____. (1968/1994). A comunicação entre o bebê e a mãe e entre a mãe e o bebê: convergências e divergências. In Os bebês e suas mães. São Paulo: Martins Fontes.

____. (1971/1975). Objetos transicionais e fenômenos transicionais. In O brincar e a realidade. Rio de Janeiro: Imago.

____. (1987/1990). O gesto espontâneo. São Paulo: Martins Fontes.

____. (1988/1990). A natureza humana. Rio de Janeiro: Imago.





Abstract
In this article, I use the clinical experience with groups of patients (little psychically integrated), having subjectivity as a bodily event always involved with an Other environmental, physical, linguistic, which explores the environment as a terrain of possibilities for actions and experiences. The subject is made possible by the tension created in itself, through the realization of partial projects destined to be integrated in a set called life project, an always paradoxical operation because it is both necessary and impossible because all achievement is destruction of the figure from the project.


Keywords
Precariousness; mutuality; communication; life project; implication; group

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 TEXTO

Análise grupal transicional

Transitional group analysis
Moisés Rodrigues Silva Júnior

Um barco parece ser um objeto cujo fim é navegar; mas o seu fim não é navegar, mas chegar a um porto. Nós encontramo-nos navegando, sem a ideia do porto a que deveríamos acolher. Reproduzimos assim, na espécie dolorosa, a fórmula aventureira dos argonautas: navegar é preciso, viver não é preciso.

[Livro do desassossego, por Bernardo Soares, Fernando Pessoa]

[...] viver não é necessário; o que é necessário é criar

["Navegar é preciso", por Fernando Pessoa]

 

A precariedade é coincidente com o próprio nascimento: não nascemos primeiro e em seguida nos tornamos precários. Para que uma criança sobreviva, ela depende de uma "rede social de sustentação"  - e é exatamente porque um ser vivo pode morrer que é necessário cuidar dele para que possa viver. Afirmar que uma vida é precária exige que a precariedade seja considerada no que está vivo.

Donald Woods Winnicott teve como uma de suas primeiras fontes de inspiração Charles Darwin e sua obra A origem das espécies, que o introduziu à convicção de que o bebê traz em si um potencial inato de desenvolvimento em direção à maturação e à criatividade, e que deve encontrar um ambiente favorável para se desenvolver.

Aderindo à proposta darwiniana de que a sobrevivência das espécies dependia de sua capacidade de adaptação ao meio, Winnicott, pela mesma linha, propõe que na espécie humana é a mãe quem se adapta ativamente às necessidades de seu bebê.

Em Natureza humana, reafirma essa concepção: "Seu amor por seu próprio bebê provavelmente é mais verdadeiro, menos sentimental do que o de qualquer substituto; uma adaptação extrema às necessidades do bebê pode ser feita pela mãe real sem ressentimento"[1].

É chamativa a referência ao amor materno como mais verdadeiro por ser menos sentimental, fazendo com que a ênfase recaia sobre os cuidados e a atenção às necessidades do bebê, e não sobre os afetos maternos...

O que é viver e se sentir vivo? O que é ter a sensação de ser real e perceber o mundo como real? Em que lugar vivemos? Em que consiste a própria vida? Questões essenciais com que todos deparamos, mas que para os psicóticos não encontram campo possível de reflexão/experiência, a não ser que possam ter a apresentação ativa de um humano que se encarregue do cuidado em confronto sempre com a delimitação das fronteiras entre o ser humano e os limites do analisável.

Toda a existência decorre nesse intervalo entre o não ser e o ser, na luta do indivíduo para não sucumbir aos estados de dissolução e estender, ao longo do tempo, a continuidade de seu ser, que não pode ser assegurada pelo indivíduo por si só, mas depende de um meio ambiente facilitador.

 

"Psicose é uma doença
de deficiência do ambiente"[2]

Isso não deve ser entendido como a presença de experiências traumáticas severas ou a ocorrência de eventos adversos durante a primeira infância. O ponto central é que essas falhas são imprevisíveis, atingindo a continuidade da existência que é subitamente interrompida: em vez de algo que poderia ter sido, nada aconteceu. Segue-se então uma dissolução no âmbito da confiança e a perda de esperança (no devir), desencadeando o que Winnicott denomina de angústias impensáveis, relacionadas às múltiplas ameaças ao sentimento de existir exemplificadas pelo temor do retorno a um estado de desintegração (que leva ao aniquilamento e à ruptura da linha de continuidade do ser), pelo medo da perda de contato com a realidade e pelo temor da desorientação no espaço, o pânico do desalojamento do próprio corpo (o despencar no vazio).

As angústias primárias são impensáveis, e não podem ser definidas em termos de relações pulsionais de objeto, isto é, relações mediadas por representações de objeto, ou seja, representações mentais. Ocorre que tais angústias não acedem à percepção, nem chegam a ter um estatuto de fantasia e, à medida que não ganham conteúdo representacional, são impedidas de alcançar a simbolização.

Sendo portador de uma experiência que não pode ser acessada pela palavra, o sujeito se apresenta ligado ao mundo mediante a experiência direta, própria às formas primárias de relação com o ambiente. Nessas situações, o silêncio analítico, que colocaria o sujeito em confronto com seus próprios enunciados, aponta para o vazio mental, que o remete apenas a um nada, deixando a descoberto as impossibilidades de estabelecer relações, construir símbolos e vínculos causais entre os fatos, juntar cisões, tornando exigente a tarefa de enfrentamento à precariedade de elementos subjetivos para expressar a dor vivida.

A contribuição de Winnicott para a problemática da representação nas psicoses parte da apropriação que faz da noção freudiana de que as origens do mundo psíquico remetem à construção de um espaço para a fantasia e de que todo trabalho é assim atravessado por uma preocupação que remonta às condições necessárias à criação e à criatividade.

René Roussillon nos propõe uma consequência desafiadora para a clínica:

Se Winnicott pensa que todo ser deve criar o mundo que encontra em seu ambiente, se ele pensa que é assim que nos tornamos presentes e criativos, ele aplica esse mesmo preceito a sua maneira de vivenciar a psicanálise. Ele não aplica a psicanálise aos transtornos graves da identidade e do narcisismo, ele não a aplica, como se costuma dizer, como se aplica uma fórmula matemática, ele transforma a psicanálise, para que ela se aplique aos transtornos da identidade e do narcisismo, e ao que cada um destes tem de questão essencial.[3]

 

É necessário que o analista apele a uma posição de sensibilidade ativa que se utilize de significantes da cultura, do social e do próprio discurso do paciente para tecer aproximações?- tecido de fragmentos que abrem a possibilidade de contorno ao caos com que o sujeito se apresenta, impondo-se assim a construção de uma clínica em que o manejo passa a ser a forma primordial de intervenção.

Nessa passagem são exigidos instrumentos teóricos e técnicos que permitam a abordagem do complexo campo de experiências pré-linguísticas, em especial fenômenos como a percepção, a comunicação presente desde o início da vida e referida à sintonia pré-verbal entre a mãe e o bebê e à criatividade inconscientes.

Sigmund Freud de forma direta nos indica caminhos a seguir: "[o analista] deve voltar/aprimorar o seu próprio inconsciente como um órgão receptor/receptivo do transmitir inconsciente do paciente"[4].

Christopher Bollas, buscando colocar em palavras as minúcias intensas da vida, propõe que as experiências criam conexões entre si adicionando complexidade ao inconsciente, formando novos elos associativos que se congregam, atraindo para si outras apresentações de objeto que formam núcleos condensados com milhares de experiências que, arquivadas, constituem a matriz da criatividade.

Ao ler mais uma vez o artigo de Winnicott intitulado "A observação de bebês em uma situação estabelecida", reencontro-me com a vitalidade da experiência como central para pensar a criação de um processo (analítico).

Nas observações em uma situação estabelecida, Winnicott recebia o bebê com sua mãe. Fincava uma espátula na mesa, de modo que ela ficasse entre ele, o bebê e a mãe. Fazia-a vibrar e aguardava o gesto da criança. Observou naquela situação, diante da espátula, com diferentes crianças, um determinado perfil de comportamento que ele denominou "período de hesitação". O bebê, apesar de parecer interessado na espátula, não a tocava nem a apanhava, observa Winnicott. Em um segundo momento, se a criança não era invadida por Winnicott ou pela mãe, a hesitação era superada. O bebê, então, apropriava-se da espátula e realizava algum tipo de jogo com ela: desinteressava-se do objeto e iniciava um jogo em que se livrava da espátula, para em seguida recuperá-la. Essa atividade durava algum tempo, até que Winnicott finalizava a consulta, pois, para ele, esse último período significava que a criança estava pronta para ir embora. Já tivera uma experiência completa, e segundo Winnicott essa experiência completa dava ao bebê o que ele denominava "lição de objeto", uma experiência que o transformara. O bebê tinha a oportunidade de criar o mundo e a si mesmo numa experiência que ocorre na presença de um outro que testemunha, acolhe, costura significados...

Em seu artigo "O inconsciente", Freud confere um lugar particular aos elementos que farão parte do inconsciente sem terem passado pelo processo de repressão: "[...] o recalcado não abrange tudo o que é inconsciente. O inconsciente tem a bússola mais ampla: o que está recalcado é uma parte do inconsciente"[5].

É a partir das indicações freudianas sobre o inconsciente e seu funcionamento expansivo que Bollas propõe matrizes criadas com base em fragmentos de ideias, imagens e sentimentos inter-relacionados, que convergem imantados por uma gravidade psíquica em um processo de contínua transformação.

O inconsciente receptivo envolve assim um fluxo permanente entre os mundos interior e exterior: "[...] em qualquer momento do tempo psíquico, se pudéssemos dar uma olhada na sinfonia inconsciente, seria uma vasta rede de combinações criativas".

 

O inconsciente é uma forma
de inteligência

Podemos acompanhar, nas elaborações de Freud sobre o trabalho do sonho, o inconsciente como uma forma de inteligência em que suas capacidades proprioceptivas recebem dados endopsíquicos inconscientes e também registram as experiências "psiquicamente valiosas" que chegam pelo espaço intermediário.

Um sonho pode processar milhares de sensações e pensamentos em alguns segundos, com uma eficácia vertiginosa. Pode condensar essas impressões em uma única imagem, além de reunir o espectro de afetos implícitos na experiência do dia.

Bollas propõe que pensemos os genera a partir de uma gravitação psíquica coletora que atrairia para o inconsciente conjuntos de ideias com eficácia dinâmica e representacional. Nesse possível movimento, abre-se a possibilidade de termos não só a concepção de um inconsciente composto pelo indesejado, mas também por outro tipo de ideias que geraria matrizes de intensidade interior. A essas matrizes se ligam novas percepções, promovendo o desejo de novas experiências expansivas, prazerosas, por meio da busca ativa de objetos externos que ofereçam possibilidade de transformação e crescimento. Mediante as experiências, novos aspectos se inscrevem no inconsciente e ganham importância com a recepção criativa e prazerosa, constituindo-se como processos inconscientes, com inteligência ativa e própria. O sujeito então procura mais do mesmo em seu ambiente exterior, onde os nódulos emaranhados interiores serão fortalecidos:

O recebido inicialmente seria constituído a partir das impressões de coisas que se congregam no inconsciente e atraem para elas outras apresentações de coisas que formam núcleos ali. Elas se tornam condensações de milhares de experiências, e enquanto vivemos e pensamos, com o tempo nossa mente cresce. O inconsciente receptivo arquiva percepções inconscientes, organiza-as e é a matriz da criatividade.[6]

A teoria dos genera psíquicos, que promovem a busca de objetos externos que ofereçam possibilidade de transformação e crescimento, passa a ser o foco de interesse do tratamento, levando-se em conta uma subjetividade que está ativa, em movimento de permanente construção?- desconstrução?- reconstrução, no tempo.

Trabalhar com projetos liga-se a essas possibilidades de criação a partir da atividade dos genera e sua íntima ligação com as forças do futuro, com a condição de ser e estar no presente, comprometido com um fim almejado.

 

O projeto

O projeto é, simultaneamente, aquilo que dá sentido e que pode motivar o indivíduo que age sempre na "expectativa de qualquer coisa", uma perspectiva fundamental de antecipação, de apontamento para o futuro que pressupõe uma organização e que, mais do que isso, é ele próprio um organizador.

Winnicott qualifica esse campo do espaço como vida, conjunto que compreende sujeito e ambiente. Por meio do projeto, o sujeito procura restabelecer um equilíbrio rompido (entre ele e o ambiente), dedicando-se dessa forma em grande parte das vezes à organização básica de seu entorno e de sua relação com esse entorno nos projetos fundamentais de organização de cotidiano. O centro de gravidade dos projetos situa-se nas realizações, nos feitos, nos fatos, daí sua potência no enfrentamento das situações em que o predomínio é da imaginação, da fantasia no limite da desrazão e do delírio.

Os projetos que vão se elaborando avançam entre objetivos realistas e objetivos ideais, por vezes delirantes, mas sempre inscritos na esperança de que necessariamente há de contar com um outro, com outros para sua sustentação

Simultaneamente salto para a frente e realização, nenhum fato ou escolha pode ser deixado de lado no trabalho com projetos. Desde as escolhas mais banais pela cuidadosa recuperação de qualquer traço de originalidade, de reflexão pessoal e consideração cultural, leva-se em consideração a própria subjetividade que o sujeito nos traz por meio de seus sintomas, marca de sua singularidade.

Dessa forma, o projeto resgata a dimensão de sujeito, introduzindo pela escuta clínica a dimensão imprevisível e irredutível da subjetividade. A superação de cada situação, seja ela adversa ou não, é a condição primeira da vida. Assim, podemos aproximar superação e projeto a fim de conferir ao sujeito a condição de constante constituição de seu ser, em um processo de autoconstituição.

É apenas o projeto, como mediação entre dois momentos, que pode dar conta da criatividade humana, por ser a realização de uma realidade nova, que cria um sentido para o sujeito.

 

Análise grupal transicional

René Kaës cunhou a fórmula "análise grupal transicional" tomando como ponto de partida a concepção winnicottiana de grupos, a psicologia do indivíduo e, em especial, a integração pessoal como resultado da experiência. Nesse dispositivo, o grupo é pensado como uma estrutura de recepção, de elaboração e de reparação do traumático e das rupturas sofridas pelo sujeito com o fim de restaurar e/ou criar a capacidade de simbolização, a continuidade psíquica e a criatividade.

É pelo valor da oferta de objetos e experiências como elementos expansivos de transformação e crescimento que a teoria dos genera psíquicos se articula com a análise grupal transicional no trabalho com projetos, nos grupos de pacientes em que o sofrimento emocional aprisiona, reduzindo a vida a menos. Nossa proposta é que a interdependência entre vida e projeto seja uma construção que vale a pena ser feita: favorecer e articular projetos que tenham o valor de vida como instrumentos de cuidado que constituam um apoio para o self como fenômeno processual e também que sejam apoio das funções psíquicas que se fazem sobre o grupo e as instituições que o grupo mediatiza.

A ideia de apoio inclui a mutualidade, significa dizer que quem apoia pode ser apoiado pelo outro: o narcisismo dos pais se apoia sobre o bebê, e o bebê, por sua vez, apoia seu narcisismo sobre os pais. A mutualidade se constitui como uma comunicação silenciosa e íntima, estabelecida entre mãe e bebê, e tem um caráter predominantemente corpóreo/sensorial de afetações determinadas pelo encontro com esse outro. Uma comunicação que independe da linguagem e de sua compreensão, que estaria comunicando do mais próprio do outro: "[...] o bebê não ouve ou registra a comunicação, mas apenas os efeitos da confiabilidade"[7].

É a partir da desadaptação que se cometem pequenos erros e que eles são corrigidos, e nesse movimento de pequenas falhas e cuidados se funda a comunicação, permitindo que se desenvolva uma sensação de segurança e confiabilidade. Nas palavras de Winnicott: "São as inúmeras falhas, seguidas pelo tipo de cuidados que as corrigem, que acabam por constituir a comunicação (de amor), assentada sobre o fato de haver ali um ser humano que se preocupa"[8].

Nessa infindável série de acertos e erros, constitui-se uma "sintonia de afeto": "[...] seu desenvolvimento é gradual, transformando-se em um estado de intensa sensibilidade no decorrer do tempo [...]"[9].

O primeiro mundo que habitamos, um mundo virtual, tem como condição de existência a confiabilidade e a previsibilidade que constituem, no vocabulário winnicottiano, a cobertura: a mãe evita que alguma coisa inesperada surpreenda o bebê e interrompa sua continuidade de ser; o cuidado torna-se confiável quando, em meio às necessidades sempre variáveis do bebê, a mãe mantém regularidade constante e consistente consigo mesmo e com o ambiente, sendo capaz (como uma mãe) de ingressar nesse estado tão especial de ser e de sair dele.

Em grupos constituídos por pessoas relativamente não integradas, marcadas pela "súbita retirada de apoio" de uma mãe imprevisível, torna-se imprescindível uma cobertura que lhes provisione confiança para explorar a situação inicial e abrir espaço para a dependência e a regressão a estados não integrados. Só apoiados na cobertura proporcionada pelos terapeutas que constituem nesse momento a base do grupo é que se iniciam o processo de integração e a possibilidade de participar de seu primeiro grupo. "O grupo é uma conquista do eu sou, e é uma conquista perigosa, sendo a proteção muito necessária nos estágios iniciais; sem ela o mundo externo repudiado volta-se contra o novo fenômeno e o ataca"[10].

Gradualmente e a partir de alguma integração pessoal e com o decorrer do tempo, aquele conjunto de pessoas transforma-se em uma espécie de grupo. As técnicas de cobertura podem ser abrandadas, e o recente grupo começa um processo de sustentação a partir das primeiras percepções do outro e do nascimento de interesses compartilhados, forças fundantes (do grupo) e que promovem integração no interior de cada indivíduo. Nesse momento já temos o pulsar de vida conectando corações e corpos... os genera psíquicos promovendo a busca de objetos externos que ofereçam a possibilidade de transformação.

Os eixos condutores da criação/criatividade de grupo vão se tramando nas percepções das linhas que traçam um squiggle (um rabisco) sem preocupação com a apreensão de forma, mas sim como uma espera paciente, e assim cada um por sua vez, às vezes junto, acrescenta algo ao desenho, que se transforma pouco a pouco em um objeto compartilhado e em processo de permanente apropriação-transformação. Antes de tudo, portanto, apresenta-se uma forma simples de estar sensível, disponível, e que leve a um "estar-com", uma intimidade, um espaço comum de brincadeira e liberdade. Visa-se à possibilidade que dali surja um sentido, um deixar-se surpreender por aquilo que surge nos vestígios da presença do outro. O squiggle pode às vezes se tornar angustiante. Ele só funciona a partir da confiança na relação oferecida pelo terapeuta: "é por isso que a relação das palavras ditas pela criança e pelo terapeuta tende a soar verdadeira. [...] E quase não se pode falar de técnica"[11].

Para Winnicott, só o que é dado na experiência é real para o indivíduo, e isso pode ser uma fantasia, um sonho, um estado de ser ou... um acontecimento: "[...] a experiência é um trafegar constante na ilusão, uma repetida procura da interação entre a criatividade e aquilo que o mundo tem a oferecer. A experiência é uma conquista [...]"[12].

Trazer à tona uma forma (possível). Que dali surja não um sentido, mas a continuidade de uma brincadeira sem regras, na qual o objetivo é a surpresa por aquilo que surge nos vestígios da presença do outro. Isso só funciona se o paciente tem confiança de que na relação pessoal oferecida pelo terapeuta pode de fato ser acolhido como ele é.

E é com satisfação (sinal de vivacidade) que se pode ver como a brincadeira evolui em direção a um detalhe significativo, ponto a partir do qual podem ser construídos mundos, com base no potencial inato de desenvolvimento em direção à maturação e à criatividade, e que deve encontrar um ambiente favorável para se desenvolver. "Um bebê que não criou o mundo [...] não tem futuro", escreve Winnicott em Natureza humana[13].

Compreender a função determinante que o esperar do analista tem para que seu paciente realize o gesto de apropriação do mundo?- aí está o papel fundamental do tempo na condução do processo, criando o lugar para o acontecer, cuja palavra-chave é: esperar, ativamente esperar para que o gesto criador possa emergir, ação que permite o aparecimento da ilusão pela qual um sentido de realidade é estabelecido: a realidade subjetiva.

Inútil tentar apressar o sentido do processo de construção dos esboços. É o não sentido de Winnicott, vital em qualquer processo criativo, científico, artístico ou psicanalítico, que exige a necessária espera tolerante diante do não saber. Nesse estado de criatividade, o coordenador se entrega ao jogar sem exigir-se compreender o sentido de seu jogo ou o sentido do jogo do grupo.

O desafio posto aos terapeutas: "não só escutar com a orelha transferencial, mas também com a orelha do real". O transferencial não é objetivo nem subjetivo, mas ambas as coisas ao mesmo tempo; trata-se de uma ilusão assentada sobre uma situação concreta. Se a cobertura grupal é bastante boa, produz-se no indivíduo uma ilusão: existe uma realidade externa que corresponde à minha própria capacidade de criar. "Nunca lhe perguntaremos: você criou isto ou isto lhe foi apresentado desde fora", e complementa: "Minha contribuição consiste em pedir que o paradoxo seja aceito, tolerado e respeitado e que não se procure resolvê-lo"[14].

A clínica é abundante em situações dos efeitos negativos da separação prematura entre eu e não eu, que alteram a espontaneidade do sujeito e o orientam compulsoriamente a adaptar-se ao desejo do outro?- que não é a mesma coisa de um genuíno desenvolvimento simbólico. Pode-se prever quão entristecedora e falsa é a situação quando o que ocorre é o contrário disso, favorecendo situações de impotência e de vazio.

Winnicott citando Friedrich Hölderlin:

[...] deixem o homem imperturbado, desde o berço. Não o expulsem do bulbo estreitamente unido do seu ser, não o expulsem da casa protetora de sua infância [...] pois só assim ele se tornará homem. O homem é um deus assim que se torna homem. E, sendo um deus, ele é bonito.[15]

 

Todo o trabalho no grupo é para que os participantes possam construir/encontrar um refúgio contra a luta que se vive fora, no mundo. É possível criar uma sensação de proteção e sentir-se bem (ou menos mal...) quando se está no grupo. E como contrapartida os pacientes descrevem uma sensação de vazio, que para alguns se manifesta como raiva?- quando por algum motivo não podem frequentar o grupo, que se converteu em uma zona de segurança na qual o indivíduo recupera a esperança e torna-se capaz de identificar-se com grupos cada vez mais amplos, sem perda da noção de self e com ganho crescente de espontaneidade.

 

                [...] viver não é necessário;

                o que é necessário é criar[16]


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