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Resumo
Resenha de Sigmund Freud, Manuscrito inédito de 1931, edição bilíngue, São Paulo, Blucher, 2017, 120 p.


Autor(es)
Munique Gaio Filla Filla
é psicóloga e doutoranda em Filosofia da Psicanálise pelo Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Universidade Federal de São Carlos, bolsista da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Processo 2018/09039-0).


Notas

 

1.Há uma edição em português, publicada em 1984, que não foi recebida com entusiasmo pelo público.

2.S. Freud, Manuscrito inédito de 1931: edição bilíngue, São Paulo, Blucher, 2017, p. 8.

3.M. Solms, "‘Freud and Bullitt: an unknown manuscript", Journal of the American Psychoanalytic Association, 54 (4), New York, 2006, p. 1264-1265. Segundo Solms, tal introdução chegou a ser incluída no Nachtragsband, suplemento às Gesammelte Werke editado por Angela Richards em 1987.

4.M. Solms, op. cit., p. 1269.

5.P. Gay, Freud: uma vida para o nosso tempo, São Paulo, Companhia das Letras, 2012, p. 384.

6.P. Gay, op. cit., p. 558.

7.P. Gay, op. cit., p. 384.

8.P. Gay, op. cit., p. 556.

9.S. Freud, op. cit., p. 14-16.

10.    S. Freud, op. cit., p. 18.

11.    M. Solms, op. cit.,p. 1278.

12.    M. Solms, op. cit.,p. 1278-1279.

13.    A. Socha, "Manuscrito de Freud faz leitura psicanalítica inédita da figura de Cristo", Folha de São Paulo, ano 98, n. 32.575, São Paulo, 10 jun. 2018, Ilustríssima.

14.    F. V. K. P. Susemihl, "Manuscrito inédito de 1931?- breves notas sobre um texto de Freud até há pouco desconhecido, e recém-traduzido para o português", Jornal de Psicanálise, vol. 51, n. 94, São Paulo, 2018, p. 245.

15.    P. Gay, op. cit, p. 556.

16.    S. Freud, op. cit., p. 35. A tradutora opta por verter Trieb por "instinto", assim como outros termos que carreguem essa raiz (Triebwunsch, por exemplo), e indica as razões para isso em suas já mencionadas notas sobre alguns verbetes. Ela reconhece o debate em torno da tradução e indica que sua escolha vai na direção de "sublinhar o enraizamento dos conflitos psíquicos nas fontes corporais do instinto" (p. 99). Sem maiores delongas, gostaria de apontar que recorro ao termo "pulsão" nas citações que não são literais, em congruência com minhas posições teóricas prévias. Luís Carlos Menezes, no posfácio, também opta por "pulsão" quando não cita o texto diretamente.

17.    S. Freud, op. cit., p. 110. A esse respeito, vale notar a contribuição de Mark Solms, que indica todos os trechos que foram deletados da publicação de 1966 em sua tradução para o inglês em suas notas de rodapé.

18.    S. Freud, op. cit., p. 39.

19.    S. Freud, op. cit., p. 41, grifos meus.

20.    S. Freud, op. cit., p. 43.

21.    S. Freud, op. cit., p. 112.

22.    Parace ser um consenso que esta seja a contribuição mais original do texto. Ver M. Solms, op. cit., p. 1276; E. V. K. P. Susemihl, op. cit., p. 244.

23.    Como também mostra a análise da tradutora em E. V. K. P. Susemihl, op. cit., p. 247.

24.    S. Freud, op. cit., p. 79.

25.    S. Freud, op. cit., p. 77-79.

26.    S. Freud, op. cit, p. 79, grifos do autor.

27.    S. Freud, op. cit, p. 81.

28.    P. V. Haute e T. Geyskens, Psicanálise sem Édipo? Uma antropologia clínica da histeria em Freud e Lacan, Belo Horizonte, Autêntica, 2016, p. 68, grifos do autor. Embora os autores não citem o manuscrito de 1931 de Freud, essa análise parece bem pertinente ao que o último explicita.



Referências bibliográficas
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____. (1914/1992). "Introducción del narcisismo", in: Obras completas Sigmund Freud, vol. 14, Buenos Aires: Amorrortu, 1992.

____. (1923/1992). "El yo y el ello", in: Obras completas Sigmund Freud, vol. 19, Buenos Aires: Amorrortu Editores, 1992.

Gay, P. (1988/2012). Freud: uma vida para o nosso tempo. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.

Socha A. "Manuscrito de Freud faz leitura psicanalítica inédita da figura de Cristo", Folha de São Paulo, ano 98, n. 32.575, São Paulo, 10 jun. 2018, Ilustríssima.

Solms M. "‘Freud' and Bullitt: an unknown manuscript", Journal of the American Psychoanalytic Association, 54 (4), New York, 2006, p. 1263-1298.

Susemihl E. V. K. P. "Manuscrito inédito de 1931?- breves notas sobre um texto de Freud até há pouco desconhecido, e recém-traduzido para o português", Jornal de psicanálise, vol. 51, n. 94, São Paulo, 2018, p. 241-252.

Van Haute P.; Geyskens T. (2016). Psicanálise sem Édipo? Uma antropologia clínica da histeria em Freud e Lacan, Belo Horizonte, Autêntica.




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 LEITURA

Entre fatos e conceitos: Freud sobrevive e revive [Manuscrito inédito de 1931]

Between facts and concepts: Freud survives and ressucitates
Munique Gaio Filla Filla

A despeito do interesse imediato que uma obra inédita do criador da psicanálise possa despertar entre seus leitores, discorrer sobre tal manuscrito exige pelo menos a indicação das condições históricas envolvidas em seu surgimento. Se, por um lado, o texto pode ser incluído na série composta por escritos póstumos de peso como o Projeto de psicologia ou Neurose de transferência: uma síntese, por outro, carrega a marca de controvérsias que lhe conferem certa especificidade. Trata-se da versão íntegra daquele que seria o primeiro capítulo do livro Woodrow Wilson: a psychological study, publicado originalmente em 1966, em coautoria de Sigmund Freud e William C. Bullitt. Encontrado pelo historiador da psicanálise Paul Roazen em 2004, entre os documentos pessoais de Bullitt entregues por sua filha à Universidade de Yale, o manuscrito com a caligrafia de Freud, escrito em alemão?– já traduzido para o italiano (2005, 2015), o inglês (2006) e o francês (2017)?–, apresenta variações significativas em relação ao capítulo do livro publicado. A edição bilíngue em questão conta com a tradução cuidadosa para o português, feita diretamente do original alemão pela psicanalista Elsa Vera Kunze Post Susemihl, com o prefácio esclarecedor de Alexandre Socha e o posfácio não menos lúcido de Luís Carlos Menezes, responsáveis por balizar a leitura dos conteúdos teóricos ali expostos. Além disso, contém as notas sobre a tradução de alguns verbetes fundamentais do léxico freudiano, também escritas por Susemihl.

Desde seu aparecimento, o livro sobre Wilson não teve uma boa recepção, “foi considerado tendencioso, repetitivo, mecânico em suas análises e, por fim, inconsistente”. Por essa razão e pela falta de evidências documentais, suscitou desconfiança por parte de nomes como Anna Freud, Erik Erikson, Max Schur e James Strachey, que atribuem apenas uma das duas introduções deste livro a Freud?– pelo fato de somente esta compor inegavelmente com seu estilo e sua precisão conceitual, ao passo que negam que o restante tenha sido escrito pelo psicanalista vienense. Tantos anos depois, os documentos encontrados por Roazen parecem ratificar, em alguma medida, que a participação de Freud deva ser encarada sob uma perspectiva crítica, pois mostram detalhes de suas correspondências com Bullitt, os textos trocados entre eles e, justamente, a versão sem cortes do manuscrito de 1931 escrita por Freud, referente ao capítulo inicial do livro. Conforme a análise desse material feita por Mark Solms, o tradutor do manuscrito para o inglês, ainda que Freud tenha colaborado de perto com a preparação do livro, ao menos de alguma versão dele, provavelmente uma parte diminuta foi realmente escrita pelo pai da psicanálise.

Um dos protagonistas dessa história, Bullitt foi um embaixador americano que trabalhou na equipe de Thomas Woodrow Wilson, o vigésimo oitavo presidente dos Estados Unidos (1913-1921), durante as negociações de paz no desfecho da primeira Grande Guerra. Apesar das promessas grandiosas do presidente, um “profeta embriagado consigo próprio”, emissário de uma “deslumbrante mensagem de autodeterminação, democracia, diplomacia liberal e, sobretudo, esperança”, é um consenso que o Tratado de Versalhes, com as imposições das potências aliadas às nações derrotadas, significou um verdadeiro fracasso, com consequências desastrosas e determinantes para a eclosão da Segunda Guerra Mundial. Bullitt mostrou-se extremamente insatisfeito com o tratado, chegando a depor na comissão do senado e declarar seu franco descontentamento com o presidente Wilson. Da mesma forma, se nos anos derradeiros da Primeira Guerra Freud havia nutrido algum tipo de confiança em Wilson?– o que certamente se devia mais a seu anseio pelo término dos combates do que à figura do presidente em si, uma vez que “os salvadores nunca estiveram entre seus favoritos”?–, o rumo dos acontecimentos fez com que isso se desvanecesse de vez e tomasse a forma de uma antipatia declarada ao “messias americano”. Eis o pano de fundo do qual emerge a relação entre Freud e Bullitt.

Embora haja registros de contato entre ambos já em 1920, a primeira visita de Bullitt a Freud para propor um trabalho em conjunto, o estudo psicológico sobre Wilson, data de 1930. Como bem aponta Socha, há múltiplas razões que levaram o psicanalista a se lançar nesse projeto, entre elas a já mencionada desaprovação em direção a Wilson e, simultaneamente, o interesse por sua personalidade tão contraditória, sentimentos que compartilhava com Bullitt. Assim, por meio de encontros, da troca de correspondências, da elaboração de rascunhos e versões do material a ser produzido, Freud e Bullitt colocaram a parceria em prática e o escrito tomou forma. Em 1932, contudo, as divergências entre ambos se tornaram tão consideráveis que culminaram na interrupção do trabalho. Bullitt, no prefácio ao estudo psicológico de Wilson, afirma que a essa altura o texto já estava em seu último formato, pronto para ser datilografado, porém Freud decidiu alterá-lo, com a inclusão de novas passagens com as quais o diplomata não concordava. Esses acréscimos do psicanalista se encontram precisamente no manuscrito de 1931, conforme revelou a pesquisa de Roazen, e abordam assuntos que pertencem ao próprio âmago da teoria freudiana, como a centralidade da pulsão sexual, a questão da bissexualidade, da angústia de castração, da diferença entre o complexo de Édipo na menina e no menino, mais uma visão crítica, inédita em sua obra, sobre a figura de Cristo, atravessada pela temática da homossexualidade. Trechos decisivos que, possivelmente por não corresponderem às crenças e opiniões de Bullitt, foram suprimidos do primeiro capítulo do livro sobre Wilson publicado.

Apesar disso, o fato é que, em 1938, Freud concorda com a publicação do livro?– não se sabe bem com qual versão dele “e como ela diferia da versão ‘impublicável’ que ambos autores assinaram em 1932”, segundo Solms. A mudança na atitude do psicanalista teria a ver com a gratidão de Freud pelo auxílio indispensável que Bullitt, embaixador americano na França no período, empreendeu para que ele e sua família partissem de Viena, escapando da ameaça nazista. Segundo o diplomata, ele encontrou Freud na estação de trem em Paris, a caminho de Londres, e comentou sobre a publicação então suspensa do livro. Depois chegou a ir para a Inglaterra com o objetivo de tratar do assunto e, finalmente, obteve o consentimento de Freud quanto à eliminação daquelas partes que causaram discórdia entre os autores e à publicação, que só ocorreu após a morte da esposa do presidente.

A um só tempo, um cenário de controvérsias e desentendimentos, amparo e gratidão que atravessam o escrito chega até nós. Há muitos outros detalhes instigantes dessa história que o ronda, porém é chegado o momento de apontar algumas das intrigantes formulações freudianas nele presentes. O manuscrito pode ser “uma boa introdução” ao pensamento de Freud, segundo Socha, na medida em que as premissas fundamentais da psicanálise são apresentadas com uma linguagem clara e precisa; mas também oferece um aprofundamento dessas ideias, apresentadas “em nova roupagem” e a partir de “novas conexões” que nos convidam a “refletir e enfatizar algumas das lições deixadas pelo fundador da nossa disciplina”, de acordo com Susemihl. É possível transitar entre estratos mais introdutórios e mais profundos na leitura dos conceitos. Logo na abertura, depois de se referir à personalidade difícil e contraditória de Wilson, Freud adverte, bem a seu estilo prudente e cauteloso, que fará um estudo psicológico do presidente e não uma psicanálise, afinal, como diz Peter Gay, “ele não estava no divã”. Ainda assim, o estudo psicológico se torna possível não apenas pelo conhecimento de vários aspectos de sua vida trazidos por Bullitt, mas também porque se trata de um indivíduo singular, para o qual operam as mesmas leis psíquicas válidas para todas as pessoas e reconhecidas pela psicanálise?– jogo entre o particular e o universal que marca o pensamento freudiano. Assim, antes de adentrar nas peculiaridades psicológicas de Wilson, Freud dispõe-se a apresentar algumas das principais teses da psicanálise que, por sua vez, se desdobram em uma série de pressupostos teóricos e definições conceituais. A primeira delas diz respeito à teoria da libido; a segunda, à bissexualidade do ser humano, e a terceira versa sobre a doutrina das pulsões, na qual Freud se detém por menos tempo, em comparação com as anteriores?– o suficiente para expor a luta entre Eros e pulsão de morte e apontar que a libido costuma vir acompanhada de agressão ou prazer destrutivo.

O ponto de partida freudiano consiste em apresentar a libido como uma força, “a energia do instinto sexual”, com o acréscimo de que o último se manifesta em tudo o que pode ser abarcado pela palavra “amor”, de modo que sua extensão coincida “aproximadamente com o conceito de Eros em Platão.” No entanto, tal concessão é seguida, imediatamente, por uma emenda?– apesar de que o uso de “Eros” e “erotismo” provavelmente seja preferível ao leigo, não é com eles que a psicanálise opera, e sim com os termos “instinto sexual” e “sexualidade”. Essas reservas de Freud são suprimidas no escrito publicado sob a pena de Bullitt, que prefere se referir à libido tão somente como “energia de Eros”. Isso denuncia um apagamento do sexual, próprio à teoria freudiana, à sombra de categorias metafóricas, como bem aponta Menezes em seu posfácio, no qual compara o texto do manuscrito com o capítulo do livro sobre o Wilson e interpreta com precisão certas escolhas do diplomata.

Assim, o manuscrito se debruça sobre os tortuosos e conflitantes caminhos que a libido pode tomar. A segunda tese, de que “todos os seres humanos são constituídos em uma dupla camada, são bissexuais”–, desdobra-se na constatação de que cada indivíduo, homem ou mulher, é composto por elementos de masculinidade e de feminilidade. Freud entende que a libido, desde que ultrapassa a fase do narcisismo puro, tem como possíveis abrigos o próprio narcisismo, tendências masculinas e femininas. Quanto à primeira possibilidade, remete ao narcisismo como posição que nunca é completamente abandonada, o que significa enfatizar enunciados colocados em relevo desde 1914, com a Introdução ao narcisismo. No que diz respeito aos outros destinos, Freud admite a coincidência entre masculinidade e atividade, feminilidade e passividade. A proporção de ambas no ser humano bissexual “parece ser uma determinação constitucional”, mas, “de forma geral”, nos diz Freud, “vale aqui a regra de que essa proporção é decidida pelo sexo manifesto da pessoa”. O problema é que para toda regra existem exceções, o que afirma o psicanalista logo na sequência. “Masculinidade anatômica e masculinidade psicológica com frequência não se apresentam juntas”. Neste ponto, Freud revela uma gama de alternativas, como homens dotados de pouca masculinidade e mulheres com muita masculinidade, e o quanto tais proporções não determinam se o indivíduo será homossexual ou heterossexual. Menezes também nos mostra que, no estudo sobre Wilson, Bullitt deixa de lado a parte crucial em que são explorados o caráter de “indeterminação” e de “fluidez” das tendências masculinas/ativas e femininas/passivas nos homens e nas mulheres, bem como de sua ligação com a orientação sexual.

A hipótese da bissexualidade não é uma novidade, na medida em que atravessa os escritos de Freud pelo menos desde os Três ensaios sobre teoria sexual. O que merece atenção é que esse assunto parece tomar o lugar de pilar deste manuscrito, tanto para a explicação subsequente do complexo de Édipo, marcada por certa particularidade, quanto para fundamentar a parte mais original do texto, a saber, a identificação com Jesus Cristo. A começar pelo primeiro caso, Freud traz a mãe e o pai, ou seus substitutos, enquanto os primeiros objetos com os quais a criança se depara, e estabelece que, a partir daí, há quatro saídas possíveis para a libido: a passividade em direção à mãe ou ao pai e a atividade em direção a ambos, associadas, justamente, às diferentes proporções de masculinidade e feminilidade em cada indivíduo. Da dificuldade de conciliar tantas tendências, surge o complexo de Édipo.

Em O eu e o isso (1923), Freud já falava sobre a dependência do Édipo em relação à bissexualidade constitucional do ser humano e à coexistência de atitudes femininas e masculinas em direção aos progenitores. Aqui, contudo, a explicação do complexo focada no menino ganha contornos mais detalhados, por uma série de razões, como o acréscimo das noções correlatas de atividade e passividade; o destaque concedido ao relacionamento com o pai?– problema mais importante do Édipo?–, já que a maior dificuldade do menino consiste em querer matá-lo e, ao mesmo tempo, submeter-se a ele passivamente, seguida pelo conflito de querer possuir a mãe e, simultaneamente, sentir repulsa por ela ser um ser castrado; e as diversas saídas que ele tenta traçar, que passam pela identificação, pela própria construção do supereu, pela repressão e pela sublimação. Além disso, em concordância com escritos publicados sobre a feminilidade nesse mesmo período, Freud sinaliza diferenças entre o que se passa com a menina e com o menino, sobretudo em relação ao papel desempenhado pela angústia de castração. Tais questões também são excluídas por Bullitt do estudo sobre o Wilson.

A maior novidade do texto, a identificação com Jesus Cristo, também acaba sendo tributária da disposição bissexual do ser humano e de seus desdobramentos no complexo edípico. Nesse problemático relacionamento com o pai, uma das dificuldades que o menino pode encontrar é a de se haver com a passividade, isto é, com a posição feminina em relação ao progenitor. Uma expressão direta dessa corrente passiva pode acontecer pelo que Freud chama de dupla identificação, com o pai e com um homem mais jovem, “a quem entregará o mesmo amor que desejou receber do pai em consequência da sua passividade não satisfeita”, tornando-se um homossexual ativo. Porém, existe ainda a saída pela identificação com Jesus Cristo, que Freud considera regular na vida psíquica dos cristãos e que pode também ser encontrada em outras pessoas. Bullitt só inclui o tema até esta constatação no livro, embora o mais interessante esteja por vir: trata-se de uma “conciliação como que por milagre”, capaz de satisfazer os dois desejos completamente antagônicos de ser totalmente passivo, e portanto feminino, em relação ao pai, e completamente masculino e potente, tal como o pai. Cristo se submete à vontade de Deus-Pai e se torna ele mesmo Deus, chegando à “conciliação mais perfeita de masculinidade e feminilidade”, uma forma de expressão para a homossexualidade que é aceita socialmente e está de acordo com o supereu, o que explicaria, segundo Freud, o sucesso permanente da religião cristã. Freud chega ao ponto de dizer que a existência da sociedade humana depende da bissexualidade, mais precisamente da homossexualidade sublimada oriunda desta.

Com esse breve recorte já é possível perceber que o interesse histórico do manuscrito é endossado pelos pontos de vista teóricos que ele apresenta, dos quais pareceu-me importante realçar, sobretudo, a tese sobre a bissexualidade, não só pelo lugar central que ocupa na própria fundamentação da visão original sobre Cristo, mas também pelo diálogo que esse tema pode estabelecer com debates atuais nos quais a psicanálise se encontra inserida, como o das questões de gênero e da problemática do complexo de Édipo. Vemos Freud sustentar o quanto as correntes opostas, masculinas e femininas, ativas e passivas, inserem o indivíduo em uma zona de conflitos que o mobilizam a buscar tantas saídas possíveis. Van Haute e Geyskens fornecem indícios da força dessa tese freudiana: “A bissexualidade leva Freud?– e todos nós??– a se confrontar com uma incerteza estrutural acerca não apenas do objeto de desejo, mas também do lugar a partir do qual o desejo ganhar forma”. Daí a ênfase na disposição bissexual e em suas consequências como um dos pontos chave deste manuscrito, que demonstra como a letra do criador da psicanálise pode ser reavivada e se oferecer como instrumento diante dos desafios que despontam em nossa prática e em nossa reflexão teórica atuais. No mais, que a curiosidade do leitor tenha sido despertada para mergulhar nas palavras de Freud que sobreviveram ao tempo.


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