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Resumo
Resenha de Daniel Kupermann, Transferências cruzadas. Uma história da psicanálise e suas instituições, Rio de Janeiro, Revan, 1996, 254 p.


Autor(es)
Noemi Moritz Kon
(Noni) é psicanalista, Membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, Mestre e Doutora pelo Departamento de Psicologia Social do Instituto de Psicologia da USP e autora de Freud e seu Duplo. Reflexões entre Psicanálise e Arte (Edusp/Fapesp, 1996), A Viagem: da Literatura à Psicanálise (Companhia das Letras, 2006), organizadora de 125 contos de Guy de Maupassant (Companhia das Letras, 2009) e co-organizadora com Cristiane Curi Abud e Maria Lúcia da Silva de O racismo e no negro no Brasil: questões para a psicanálise (Perspectiva, 2017). Docente no curso "Conflito e Sintoma: Clínica Psicanalítica" do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae.



Notas

1 J. W. von Goethe, Fausto, Parte I, cena I, citado por S. Freud in Totem e Tabu (1913[12-13]), p. 188.2

S. Freud, op. cit.

3 D. Kupermann, Transferências cruzadas. Uma história da psicanálise e suas instituições, p. 103.

4 D. Kupermann, op. cit., p. 118.

5 D. Kupermann, op. cit., p. 118.

6 D. Kupermann, op. cit., p. 123. Infelizmente, seria demais, para o escopo desta resenha, apresentar todo o desenvolvimento realizado por Daniel Kupermann a respeito do caso de Amílcar Lobo, candidato da Sociedade Psicanalítica do Rio de Janeiro, que trabalhou como psiquiatra, durante os anos da ditadura militar brasileira, no doi-codi/rj, na equipe de torturadores. A direção da sprj não só procurou ignorar a denúncia das ligações de Lobo com a tortura, como procedeu a uma inversão de valores, buscando castigar a denunciante, a então analista da SBPRJ, Helena Besserman Vianna. Muito já foi escrito a respeito desse funesto caso e nunca é demais retomá-lo. Carmen Lucia Montechi Valladares de Oliveira, em “A historiografia sobre o movimento psicanalítico no Brasil”, descreve sucintamente o episódio: “A Analista da Sociedade Brasileira de Psicanálise do Rio de Janeiro (sbprj), Helena Besserman Vianna, restitui no seu livro o caso que começa em 1973, durante o período mais repressivo da ditadura militar brasileira. Nessa data, ela envia à Sociedade Psicanalítica Argentina uma denúncia publicada no jornal clandestino Voz operária, orgão do Partido Comunista Brasileiro, sobre as ligações com a tortura do psicanalista Amílcar Lobo, em formação na Sociedade Psicanalítica do Rio de Janeiro (sprj). A informação é publicada na revista argentina de psicanálise Questionamos e, graças a pressões de diversas instituições consultadas, chega à direção da IPA, então dirigida pelo francês Serge Lebovici. Este, após ter consultado os dirigentes envolvidos, conclui que Amílcar Lobo foi caluniado. A partir daí, Besserman Vianna é designada “caluniadora” pelas duas Sociedades cariocas, submetida a intimidações e, pior ainda, passa a ser perseguida pelos militares. No Brasil, o caso se torna público somente em 1980, quando os prisioneiros políticos, torturados pelo regime, denunciam as atrocidades da ditadura e designam Amílcar Lobo como torturador. Por questionarem suas instituições, Hélio Pellegrino e Eduardo Mascarenhas são expulsos. Apesar da repercussão nacional e internacional, principalmente na França e por iniciativa de René Major e Elisabeth Roudinesco, que obrigou a retirada do torturador da lista de afiliados da ipa e ao mesmo tempo questionou a atitude de alguns dos dirigentes das instituições envolvidas, o caso, que sofreu inúmeras reviravoltas, permanece ainda hoje sem uma reflexão de fundo sobre a ética no seio do movimento psicanalítico, e o mal-estar reina entre os psicanalistas”, C. L. M. V. Oliveira, “A historiografia sobre o movimento psicanalítico no Brasil”, p.149. Kupermann avança na reflexão propondo: “Mas uma pergunta não encontra resposta nas análises da época: qual a relação (direta, particular e singular) entre os efeitos transferenciais produzidos nas análises didáticas da SPRJ com o surgimento de um membro de equipe de tortura em seus quadros? Em outras palavras, pretendemos demonstrar que o caso de Amílcar Lobo é também uma produção do sistema de formação da SPRJ, ou seja, esta sociedade não apenas acobertou ou foi conivente com as práticas de Amílcar Lobo, como colaborou ativamente para sua perpetuação”, D. Kupermann, op. cit., p. 185. As vicissitudes da transferência têm mesmo um caráter universal, uma vez reproduzidas certas estruturas das sociedades de psicanálise. A ideologia apolítica do “baronato” (expressão de Hélio Pellegrino) da SPRJ produziu um psicanalismo alienante, ingrediente indispensável para que as instituições psicanalíticas se colocassem a serviço do sistema social dominante, ainda que de maneira camuflada.

7 J. Lacan, “Luz!”, Letra Freudiana, Ano i, p. 59, apud D. Kupermann, op. cit., p. 160.

8 D. Kupermann, “Transferências cruzadas, transferências nômades. Sobre a transmissão da psicanálise e as instituições psicanalíticas”.

9 D. Kupermann, Transferências cruzadas…, p. 226.

10 M. Balint, “On the psycho-analytic training system”, International journal of psychoanalysis, 29, Londres, 1948, p. 167, apud D. Kupermann, Transferências cruzadas…, p. 120.

11 D. Kupermann, Transferências cruzadas…, p. 174.

12 D. Kupermann, Transferências cruzadas…, p. 207.

13 M. M. Cytrynowicz e R. Cytrynowicz, História do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae.



Referências bibliográficas

Balint M. (1948). On the psycho-analytic training system. International Journal of Psychoanalysis, 29, Londres. Cytrynowicz M. M.;

Cytrynowicz R. (2006). História do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae. São Paulo: Narrativa Um.

Freud S. (1913[12-13]/1976). Totem e tabu. Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, vol. xiii.

Kupermann D. (1996). Transferências cruzadas. Uma história da psicanálise e suas instituições. Rio de Janeiro: Revan.

_____. Transferências cruzadas, transferências nômades. Sobre a transmissão da psicanálise e as instituições psicanalíticas. Disponível em . Acesso em 6 jun. 2010.

Oliveira C. L. M. V. (2002). A historiografia sobre o movimento psicanalítico no Brasil. Revista Latino Americana de Psicopatologia Fundamental, ano V, n. 3, set. Disponível em . Acesso em 6 jun. 2010.

Vianna H. B. (1994). Não conte a ninguém… Contribuição à história das sociedades psicanalíticas do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Imago.




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 LEITURA

Sobre totens e tabus

as encruzilhadas trágicas da história da experiência transferencial na institucionalização da psicanálise.


On totems and tabus
Noemi Moritz Kon

"Aquilo que herdaste de teus pais, conquista-o para fazê-lo teu”: o ditame de Fausto de Goethe, destacado por Freud [1 ]e recuperado por Daniel Kupermann, define bem o campo das questões desenvolvidas em Transferências cruzadas. Uma história da psicanálise e suas instituições, sua dissertação de mestrado, defendida na puc do Rio de Janeiro, e publicada em 1996. Define bem, também, como aponta o autor, toda a complexidade envolvida no projeto de transmissão do saber psicanalítico que se sustenta, fundamentalmente, na transferência –sobretudo, à figura de Freud –, transferência que se dispersou posteriormente, sendo herdada e reconfigurada pelos vários grupos que reclamaram para si a condução do processo de institucionalização e transmissão da psicanálise.

Sendo assim, o legado freudiano a ser repartido é, antes de tudo, um saber/poder transferencial, e conquistar e manter este legado transferencial deixado por Freud é a missão das instituições psicanalíticas.

Para recuperar a história das trágicas transferências cruzadas, do processo cíclico do erigir e do tombar dos totens, do estabelecimento, do rompimento e do re-estabelecimento dos tabus, o autor retoma e analisa o longo processo de institucionalização da psicanálise.

Kupermann parte da análise da potência sedutora de A interpretação dos sonhos, texto instituinte da experiência que funda toda a psicanálise – a experiência do inconsciente, vivida pelo próprio Freud –, e pela qual somos atraídos, como cúmplices-espectadores, ao aceitarmos o convite para o mergulho em sua intimidade onírica.

Segue apresentando os movimentos iniciais de institucionalização da psicanálise, quando Freud, ainda em vida, procurava desviar de si a responsabilidade exclusiva do vínculo transferencial: o grupo dos primeiros discípulos reunidos na “sociedade psicológica das quartas-feiras”, de 1902 a 1907; a fundação da ipa (Associação Psicanalítica Internacional) em 1910, no segundo Congresso de Psicanálise; as primeiras dissensões (Adler, em 1911, e, principalmente, Jung, em 1912); a formação do “comitê secreto” para a proteção da “causa freudiana”, em 1912; a burocratização e a padronização da formação de psicanalistas, a partir da fundação do Instituto de Berlim, em 1920. Posteriormente, analisa os acontecimentos ocorridos após a morte de Freud, em 23 de setembro de 1939, ou seja, a divisão de seu espólio, a contenda pela legitimidade, oficialidade, autoridade e representatividade pelos diversos grupos de formação instituídos.

Nessa empreitada, Kupermann evidencia o sentido propriamente psicanalítico do desenrolar da história da psicanálise – num vetor, digamos, político-edípico-transferencial –, e coloca a nu a disputa pelo poder e pela designação daqueles que se proclamarão como os legítimos herdeiros do chefe da horda, ou seja, daqueles que procurarão conquistar e controlar os domínios freudianos, assumindo como seu, ainda que em nome do pai, o laço transferencial.

Tudo se passaria como (ou, quase como) aquilo que foi narrado pelo próprio Freud, em Totem e tabu [2]: o pai, que tem a exclusividade do poder transferencial, deve morrer para que seja possível a sua permanência na forma da conservação da tradição, o que se dará por meio do estabelecimento da fratria dos irmãos, assassinos do pai, daqueles filhos castrados que foram tornados potentes apenas para darem continuidade à herança recebida pelo homicídio. Mas sabemos, por Freud, que a comunidade só pode se sustentar se puder se conservar unida ao redor do corpo ainda e sempre quente do pai. Pai morto, pai posto e fortalecido. Jamais superado: é ele o próprio totem. Identificados ao totem, os irmãos instauram e perenizam o tabu do pai vivo, ainda que em ausência. A fundação da sociedade se dá, assim, por meio do pacto, pacto culposo, selado para impedir que algum dos irmãos assassinos ouse assumir para si o posto de sucessor, do vórtice de toda a transferência.

Para o clã psicanalítico, entretanto, tudo se passa quase como aquilo que foi narrado em Totem e tabu, pois Freud, à diferença do chefe da horda primeva, se quis morto, necessitou-se morto, para se tornar ainda mais vivo e vivo para sempre, na perpetuação, por meio da transmissão instituída, do liame transferencial dirigido a ele.

Ora, se a transferência a Freud é a via da assunção e o fundamento da manutenção do poder psicanalítico e de sua institucionalização, ela é, da mesma forma, o móvel pelo qual se faz a transmissão de seu saber. Disso decorre que o ponto nuclear (quase que de fissão) para a compreensão do processo singular de transmissão da psicanálise seja o locus mesmo no qual se concretizam e se presentificam o conflito e a dominação, isto é, aquilo que foi denominado de “psicanálise de formação”, “psicanálise de controle” ou, ainda, “psicanálise didática”, quer ela tenha sido conduzida em presença de Freud (ou por ele mesmo), quer tenha sido conduzida em seu nome, por meio de seus representantes.

“A análise de formação se apresenta, assim, como espaço privilegiado para observarmos o efeito dessa rede transferencial, uma vez que o analista (didata) é representante oficial da psicanálise enquanto saber e prática, da organização psicanalítica enquanto formação social e também do inconsciente atualizado de seu analisando, o candidato a psicanalista”, observa Kupermann [3].

A análise do candidato a psicanalista contraria tudo o que se desejaria de um processo analítico; coíbe a liberdade de reflexão, a abertura crítica, a autonomia, a espontaneidade, a flexibilidade e a irreverência. A seleção institucional que privilegia os candidatos “normais”, “fiéis”, “obedientes”, docilizados (que se diferenciam fortemente da leva inicial de psicanalistas excêntricos que rodearam Freud na primeira hora) e a análise de formação regulamentada e burocratizada produzem os sintomas mais nefastos do campo psicanalítico – “o pensamento inibido, o dogmatismo e a tendência geral dos candidatos a serem excessivamente respeitosos aos seus analistas” [4], a impossibilidade de lidar com a diferença, com o ódio e com a transferência negativa. Analista e analisando abrem mão do mais precioso em função da promessa de pertencimento institucional e de garantia de mercado e, mais do que tudo, abandonam a crítica ao teor ideológico que permeia todo o processo de institucionalização da psicanálise, esquecendo-se ativamente de que “a psicanálise é produto e produtora de si própria, de sua prática e de seus destinos” [5]. Portanto, é o próprio sistema psicanalítico de formação de candidatos que produz a sua “normalidade”, por meio do conformismo, da submissão, do respeito e da obediência excessivos aos analistas formadores e suas teorizações. É este mesmo sistema a fim de que ela assuma a função quase exclusiva de mantenedora do status quo, na forma do sectarismo, da intolerância e da “fúria apostólica”, uma vez que “qualquer crítica (justificada ou não) envolvendo o analista (ou sua linha teórica, método clínico, filiação institucional etc.) não pode ser suportada e elaborada”[6].

Chegamos aos nossos dias e aos difíceis problemas envolvidos no processo de formação de um psicanalista, e isso tanto nas sociedades ditas oficiais, como naquelas que, como os filhos, rebeldes, procuraram criar novos métodos de seleção e de treinamento para seus candidatos, mas que acabaram, muitas vezes, apenas reproduzindo os vícios de seus pais.

Todos conhecemos as aventuras e desventuras do posicionamento crítico de Jacques Lacan que, se foi capaz inicialmente de denunciar um estado de coisas no qual se perpetuava a transferência alienada e hierarquizada na formação oficial das sociedades psicanalíticas, uma psicanálise, portanto, adaptativa, esterilizante e negadora da posição desejante dos candidatos, terminou por repetir aqueles a quem criticava, ao postular para si a transferência passional inicialmente dedicada a Freud. Como o “último freudiano” e como o novo mestre mítico-fundador, Lacan capitalizou, no propalado retorno a Freud ou, melhor, ao lugar de Freud (que só ele poderia ocupar), a transferência, assumindo a totalidade do saber, que, como vimos, no caso da transmissão da psicanálise, se confunde com o vínculo transferencial não analisado. É de Lacan a frase elucidativa: “[…] Eu não me considero o sujeito do saber. A prova – é preciso recordá-lo – é que o sujeito suposto saber, fui eu que inventei isso, e precisamente para que o psicanalista, o que é o mais comum, pare de se crer, quero dizer, idêntico a ele” [7].

Ora, se a experiência institucional proposta por Lacan teve o mérito de constatar, e em primeiro lugar, a morte de Freud e sua consequência imediata, isto é, que a ipa não poderia mais sustentar ser ela a única legítima herdeira do legado freudiano, não foi capaz de impedir a repetição do mesmo. A institucionalização da nova ordem de coisas pelo lacanismo posterior “transformou as importantes críticas elaboradas por Lacan em respostas inquestionáveis e em uma servidão voluntária à letra de um mestre que tem, decerto, seus representantes terrenos” [8]. “Assim, [é certo que] se constituíram novas tradições na psicanálise que se apresentaram como críticas das tradições instituídas, mas a problemática da transmissão, na sua dimensão perversa, persistiu e insistiu intacta, como se o essencial não tivesse sido tocado pela crítica enunciada e anunciada” [9].

Outras experiências de rompimento com o main stream psicanalítico foram levadas a cabo em todo o mundo, inclusive no Brasil, com a insurgência de pequenos grandes mestres montados na potência transferencial não analisada, na monopolização das funções de controle – de analista, supervisor, professor e, por vezes, de ídolo e amante –, numa onipresença perversa e infantilizadora. Mas, certamente, nenhuma teve o mesmo alcance crítico que a epopeia lacaniana, apesar da incoerência que lhe dá sustentação.

À tentação narcísica do analista de função didática – de modelar seu analisando e ocupar o lugar de mestre e padrão supremo, seu ideal de eu ou supereu – corresponde a filiação submissa, que se escora na fantasia, também narcísica, da garantia de futuro rico e brilhante, tal qual o do pai idealizado. Um ponto cego complementar. Este é o nó trágico da questão transferencial e que ordena toda a transmissão da psicanálise: a perpetuação da neurose de transferência catalisada pela figura de Freud, tornada ainda mais complexa e intensa ao ser reiterada, deslocada, ampliada, burocratizada e, então, negada no âmbito da institucionalização da psicanálise.

É Balint, seguindo a tradição ferencziana, quem afirma:

Penso que nenhum analista terá muita dificuldade em diagnosticar a condição causadora desses sintomas. Toda a atmosfera recorda fortemente as cerimônias primitivas de iniciação. Do lado dos iniciadores – o comitê de formação e os analistas didatas – constatamos segredo sobre nosso saber esotérico [relativo à história dos conflitos e crises], enunciação dogmática de nossas exigências e uso de técnicas autoritárias. Do lado dos candidatos, isto é, aqueles que se devem iniciar, constatamos a aceitação imediata das fábulas exotéricas [que dizem respeito à história das conquistas e glórias do sistema], submissão ao tratamento dogmático e autoritário sem muito protesto e comportamento excessivamente respeitoso. Sabemos que o objetivo geral de todos os rituais de iniciação é forçar o candidato a identificar-se com seu iniciador, a introjetar o iniciador e seus ideais, e a constituir, a partir dessas identificações, um poderoso superego que irá influenciá-lo por toda a sua vida [10].

A questão, portanto, insiste: “a alienação que a constituição de toda sociedade psicanalítica parece produzir é inevitável, ou podemos dela nos proteger?” [11]. Retornamos ao início de nossos questionamentos: como possuir e fazer nossa a herança que recebemos de nosso pai, sem nos tornarmos reedições do chefe narcisista e autoritário ou, a sua contraparte, o cordeiro dócil, submisso e alienado, ambos reprodutores do status quo?

A estas questões, Kupermann responde com otimismo, vislumbrando um novo arranjo teórico-institucional, uma emergência inédita na história da psicanálise, que ele denomina de “transferência nômade”: transferência “que não é dirigida a um único mestre, a uma teoria una e hegemônica e a um endereço institucional fixo” [12]. Resultado da experiência de diluição dos mitos criados em torno dos antigos mestres, a transferência nômade implica angústia pelo não sabido, mas também incita à curiosidade pelas novas possibilidades. Ensejaria, então, formas organizacionais alternativas de formação de psicanalistas, mais ventiladas, e que seriam capazes de minimizar o sufocamento de um convívio institucional, até então pautado na identificação superegoica, colocando em questão a relação transferencial absoluta, que só traz revolta ou servidão. A constituição de novos grupos imporia, também, limites às tentativas de manter a hegemonia formativa, oferecendo uma opção heterogênea de aproximação à psicanálise e à formação psicanalítica.

Uma concepção interessante sobre o novo diálogo que vai sendo estabelecido entre os irmãos psicanalistas potencializados.

Entre nós

De todo modo, é importante pontuar a atualidade de Transferências cruzadas. Ao retomar a obra de Daniel Kupermann, quatorze anos depois de sua publicação, evidencio, com prazer, sua consistência e pregnância. A acuracidade e a clareza dos argumentos desenvolvidos, que procurei apresentar aqui sumariamente, incitam a que se reflita também, e em particular, sobre o nosso lugar de formação, o Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae.

Nossa associação de psicanalistas foi constituída num momento específico da história da psicanálise e também da história brasileira, na metade dos anos de 1970, e se fez pela contraposição ao conservadorismo e autoritarismo que se evidenciava na sociedade como um todo e também na Sociedade de Psicanálise de então (na forma, por exemplo, da recusa, por duas vezes, da candidatura de Regina Chnaidermann para seus quadros e na chamada “de volta pra casa” de seus membros que haviam participado da formação do Curso de Psicanálise no Instituto Sedes Sapientiae), pelo engajamento na luta contra a ditadura brasileira e na preocupação pelo social explicitados na “Carta de Princípios” do Instituto Sedes Sapientiae, pela receptividade aos psicanalistas exilados do regime autoritário argentino [13].

Esta é nossa marca de nascença.
Caldo primordial de qualidade, que nos impôs, de partida, o trabalho com as diferenças internas e, também, externas ao campo psicanalítico, mas que nem por isso nos eximiu ou nos exime da responsabilidade de evitar recair no mesmo vício da ortodoxia do passado e do presente, o que nos leva necessariamente a ter de lidar de forma crítica com o apetite pela prerrogativa da transferência e com a cobiça pelo mercado.

A abertura do Departamento a psicanalistas procedentes de outros caminhos formativos e o dispositivo de Admissão são uma resposta produtiva e de enfrentamento à estagnação libidinal decorrente do processo histórico e político de institucionalização da psicanálise. Criada pelo coletivo do Departamento de Psicanálise, a Comissão de Admissão configura um espaço analisador e de responsabilidade ante o risco sempre iminente do privilégio do poder/saber psicanalítico, pois é potencialmente instituinte e sustentadora de uma política democrática e, portanto, dispersora do monopólio transferencial.

Não nos propalamos nem como os eleitos, nem, tampouco, como os herdeiros oficiais do legado freudiano – talvez façamos pouco caso ou nem mesmo desejemos este troféu – mas nem por isso estamos imunes à tentação da transferência absoluta.

Se a história nos oferece um arcabouço essencial para refletirmos sobre o processo de institucionalização da formação de psicanalistas e nos incita à busca criativa por invenções que zelem pela ética e pela liberdade próprias à psicanálise, ela nos serve igualmente como advertência para que não nos esqueçamos de sermos combativos ao desejo sempre insistente de, nas encruzilhadas trágicas e perversas da formação e da institucionalização da transferência alienada e alienante, erigir novos-velhos totens e novos-velhos tabus.

Romper com a herança covarde e gananciosa, que impele ao depauperamento burocrático da psicanálise, é, certamente, a melhor forma de honrá-la.

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Percurso é uma revista semestral de psicanálise, editada em São Paulo pelo Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae desde 1988.
 
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