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Resumo
Resenha de Giovanni Boccaccio, O Decamerão (recurso eletrônico), volumes I e II, tradução Raul de Polillo, introdução Edoardo Bizzarri, 3a ed., Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 2018, 926 p.


Autor(es)
Vanessa Figueiredo Corrêa Corrêa
é médica psiquiatra, poeta, membro filiado ao Instituto da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo e membro do Grupo de Estudos Psicanalíticos de São José do Rio Preto e Região

Eduardo Noriyuki Yamada Yamada
é médico pediatra.

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 LEITURA

Decamerão, a literatura em tempos de pandemia

[O Decamerão]


Decameron, literature in times of pandemy
[The Decameron]
Vanessa Figueiredo Corrêa Corrêa
Eduardo Noriyuki Yamada Yamada

Uma obra literária pode ter maior ou menor importância de acordo com as circunstâncias da época. Entretanto, dada sua relevância, alguns livros são continuamente retomados por diferentes gerações de leitores. Esse é o caso de Decamerão, escrito entre os anos de 1348 e 1353, e obra máxima de Giovanni Boccaccio, pai da prosa italiana moderna e pertencente à chamada três coroas juntamente com Dante Alighieri, pai da língua italiana, e Francesco Petrarca, pai da lírica moderna.

No cenário de enfrentamento da pandemia pelo Covid-19, sua leitura torna-se significativa. Além da importância histórica, o conteúdo do Decamerão oferece elementos para se pensar o momento atual, uma vez que foi escrito no período da peste negra, pandemia que teve início na Ásia Central e espalhou-se pela Europa, dizimando cerca de um terço da população.

À época, por não haver conhecimento sobre sua transmissibilidade, bem como da sua evolução natural, qualquer tratamento?- médico, religioso ou supersticioso?- mostrava-se pouco eficaz. As mortes e o medo geraram o caos na sociedade medieval: colapso na estrutura política e judiciária, rompimento das relações familiares e reformulação dos costumes. Situações extremas tornaram-se mais comuns: violência e excessos luxuriosos, fanatismo religioso, isolamento social e autoflagelação. Essa também é a situação de Florença, cenário da narrativa:
 

Em meio a tanta aflição e a tanta miséria da nossa cidade, a reverenda autoridade das leis, tanto divinas como humanas, caíra e dissolvera-se. Os ministros e os executores das leis, assim como os outros homens, estavam todos mortos, ou enfermos, ou tinham perdido os seus familiares, de modo que não podiam desempenhar função alguma. Por decorrência deste estado, era lícito, a todos, fazer o que bem lhes agradasse (p. 33).

 

A peste impunha a supressão de projetos pessoais ou comunitários e a população passou a viver em função da morte, perdendo inclusive a capacidade de ritualizá-la:

 

Uma só conduta, sempre igual, era posta em prática pela maior parte dos vizinhos. Estes agiam movidos não menos pelo terror de que a corrupção dos corpos lhes fizesse mal, do que pela caridade que nutriam em relação aos trespassados. Sozinhos, ou com o auxílio de alguns portadores, quando conseguiam encontrá-los, tiravam das casas os cadáveres; punham os corpos diante da porta da residência, onde, principalmente de manhã, eram vistos, em quantidade incontável, pelos que andavam perambulando pela cidade, e que, ao vê-los, tomavam providências quanto ao preparo e à remessa dos caixões.


Eram tantos os mortos que, por escassez de caixões, os cadáveres se punham sobre simples tábuas. Não foi um só o caixão que recebeu dois ou três mortos ao mesmo tempo. Também não aconteceu apenas uma vez o fato de esposa com marido, ou dois ou três irmãos, ou pai com filho, serem contidos no mesmo féretro. (p.36)

 

Em contraste com os elementos tanáticos, paralisantes indissociáveis ao contexto da peste, a obra segue requisitando a presença de Eros para que seja possível a criação de uma nova ordem, fazendo-se valer de narrativas marcadas predominantemente pelo erotismo (cerca de setenta por cento dos textos refere-se a relações sexuais ou amorosas de uma maneira geral).


Boccaccio avisa, no Proêmio do livro, que os eventos narrados não serão desagradáveis. Ao contrário, seu objetivo é demonstrar a gratidão, ofertar alívio e amparo, principalmente às leitoras, para quem dedica a obra:

 

E quem negará, por importante que seja, que convém dar este alívio, este conforto, mais às mulheres belas, do que aos homens? Elas conservam ocultas, dentro do seu seio delicado, as labaredas amorosas. Temem envergonhar-se; retraem-se. As labaredas escondidas têm mais vigor do que as ostentadas; e disto sabem os que já as provaram. Além do que, elas, as mulheres, constrangidas pelos desejos, pelos caprichos e pelas determinações dos pais, das mães, dos irmãos e dos maridos, se mantêm a maior parte do tempo fechadas em seus aposentos; ali se ficam, ociosas, sentadas, querendo e não querendo; na mesma hora, alimentam pensamentos diversos, e não é possível que tais pensamentos sejam sempre alegres. (p. 23).


As mulheres, já mencionadas, que lerem estas novelas poderão colher deleite e conselho útil, das coisas reconfortantes mostradas pelas narrativas. Elas ficarão sabendo aquilo de que convém fugir, e aquilo que, semelhantemente, se deve seguir. Não creio que deleite, conselho e exemplo possam obter-se sem que se sofram aborrecimentos. Se forem conseguidos sem aborrecimentos (e Deus queira que assim seja), elas, aquelas mulheres, rendam graças ao Amor, que, libertando-me dos próprios vínculos, me permitiu que atendesse aos prazeres delas. (p. 24).

 

A trama acompanha dez jovens (sete mulheres e três homens) com idade entre 18 e 27 anos, de origem e educação nobres, que se abrigam em uma casa de campo, na esperança não apenas de sobreviver, mas também de manter a lucidez e saúde. Nesse ambiente bucólico, buscam conservar as rotinas e as práticas habituais. E, para se estabelecerem como grupo organizado, acatam, em comum acordo, duas regras:


1. Revezar diariamente a coordenação do grupo, definindo entre eles um Rei ou Rainha, de modo que todos comandassem por um dia;
2. Entreter os demais com uma história contada por cada jovem, respeitando o tema proposto pelo líder do dia.


Assim, além de acompanhar a história dos próprios narradores, tem-se um total de cem narrativas breves (denominadas Novelas), divididas em dez Jornadas, de onde provém o título Decamerão (de deca, "dez", e hemeron, "jornadas").


Em relação à forma, o livro apresenta preocupação com a simetria, própria das grandes obras literárias ligadas ao Renascimento (como a Divina comédia, dividida em cem cantos). E todas as Jornadas terminam com um poema. As Novelas são encadeadas entre si (recurso inovador para a época, pois até então as obras eram compostas por textos independentes que não se interrelacionavam). Em sua maioria, os textos apresentam ritmo ágil e linguagem acessível, bem próxima da oralidade, qualidade que Walter Benjamin atribui a uma boa narrativa.


Apesar da denominação "Novela", os contos possuem diferentes características entre si, ou por abordarem eventos históricos, ou por apresentarem narrativas fantásticas e fantasiosas. Também há aqueles com estrutura semelhante às fábulas, nos quais uma base de educação moral se faz presente . Essa função educativa é atribuída à narrativa por Walter Benjamin, que define sua função utilitária em alguns casos:

 

Essa utilidade pode consistir seja num ensinamento moral, seja numa sugestão prática, seja num provérbio ou numa norma de vida?- de qualquer maneira, o narrador é um homem que sabe dar conselhos. Mas se "dar conselhos" parece hoje algo de antiquado, é porque as experiências estão deixando de ser comunicáveis.

 

Graças à troca de vivências os personagens de Decamerão não só sobrevivem à peste como mantêm viva a imaginação e acolhem uns aos outros, refugiando-se do terror da morte que os rondava. Os jovens podem se amparar dentro do grupo sem abrir mão das singularidades: suas personalidades são delineadas por meio das escolhas do tema e da visão de mundo que transparecem nas narrativas de cada um. Boccaccio distancia a fantasia da realidade, deixando claro que contar histórias é um exercício de liberdade e nada tem a ver com as ações do contador na vida real. Pânfilo, por exemplo, considerado comedido e prudente, ao falar permite-se narrar de forma exagerada e engraçada.


O uso constante da ironia demonstra uma visão crítica ao tratar de temas como traição, casamento, a condição da mulher etc. Sagacidade, inteligência, perspicácia e esperteza são valorizados em detrimento da nobreza, pureza e hierarquia.


Em relação à temática, o Amor está ligado à Natureza, sem prescrição de que deva ser sublimado. A obra se afasta da tradição medieval agostiniana e se aproxima dos interesses mundanos, próprios da Escola Humanista. Além do erotismo, os temas muitas vezes exploram a comicidade, inaugurando o uso do riso de forma universal e alegre.


Boccaccio em vários momentos deixa clara a importância que dá a uma boa narrativa. A novela de número 51, por exemplo, está exatamente no meio da obra, e é uma metanovela: relata a situação de um cavaleiro que se oferece para transportar uma mulher até seu destino e, para distraí-la, começa a lhe contar uma história. Mas ela, vendo ele era mau narrador, diz: "Senhor, este cavalo tem trote muito duro; por isto, peço-lhe que me permita pôr-me de novo a pé" (p. 513). Assim o interlocutor compreende, na fala dela, uma crítica ao que ele está narrando, que causa sofrimento; então muda de história, dessa vez contando-a de modo mais harmônico, e assim seguem a viagem. Dessa forma Boccaccio faz um elogio à oratória, como o próprio relata, a respeito de "ditos espirituosos" em outra novela:

 

Quero recordar-lhes que a natureza das frases é de tal ordem que elas, como a ovelha morde, também devem morder quem ouve; não devem morder como morde o cão, porque, se assim mordessem, não seriam frases, e sim vilania. (p. 520)

 

Mesmo não sendo excessivamente descritivo, Decamerão pode ser comparado a afrescos, em que cada jornada fornece imagens da época, retratando, além dos valores éticos e morais, elementos cotidianos como vestuário, hábitos alimentares etc. Os protagonistas das novelas compreendem homens e mulheres, podendo ser cristãos, judeus, muçulmanos, homo ou heterossexuais, da nobreza, da burguesia, do clero, que com maior ou menor grau de esperteza lidam com os problemas sociais, familiares, amorosos, financeiros e religiosos, alternando-se nos papéis de heróis ou anti-heróis.


O Decamerão para hoje
Após quase setecentos anos de sua publicação, Decamerão continua oferecendo um abrigo ao leitor que busca sobreviver psiquicamente à peste. A pandemia do covid-19 ameaça até os mais desavisados e tem potencial de ser uma experiência traumática para grande parte da população. Diante da solidão ressaltada pelo isolamento social e da desesperança, trazidas não só pela ameaça física, mas também pela crise política e financeira, cresce o sentimento de impotência. E assim, observam-se reações muito semelhantes às descritas no início do Decamerão: desde a utilização de defesas maníacas, como a negação, até a ativação de núcleos paranoides preexistentes, aumentando os índices de doenças psiquiátricas como depressão e suicídio.


Walter Benjamin, discorrendo sobre a importância da narrativa, lembra que os combatentes de guerra, apesar de viverem inúmeras experiências, voltavam das trincheiras mais empobrecidos de histórias para contar, e não mais ricos, porque a vivência traumática é imensurável e por isso inenarrável.


A busca por formas de enfrentamento faz ressurgir a necessidade de contar e ouvir histórias. Muitos aplicativos de redes sociais, identificando essa carência como nicho de mercado, passaram a oferecer um recurso chamado stories, em que os usuários teoricamente contariam alguma história por meio de palavras ou imagens; mas na prática esse espaço acaba sendo usado para que as pessoas divulguem apenas fatos de seus interesses, com predomínio da informação em detrimento da narrativa. Por outro lado, também houve um grande aumento da procura pelo livro físico ou virtual, levando a leituras individuais ou em grupos online.


A informação pura não traz em si a potência elaboradora que a narrativa possui; por não abrigar metáforas, não tem os nutrientes que colaborariam para a reconstituição do tecido mental esgarçado pelo trauma. Como lembra Benjamin:

 

A cada manhã recebemos notícias de todo o mundo. E, no entanto, somos pobres em histórias surpreendentes. A razão é que os fatos já nos chegam acompanhados de explicações. Em outras palavras: quase nada do que acontece está a serviço da narrativa, e quase tudo está a serviço da informação. Metade da arte narrativa está em evitar explicações.

 

Nesse sentido, a leitura de Decamerão encerra em si um grande potencial de colaboração para preservação da saúde mental dos leitores.


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Percurso é uma revista semestral de psicanálise, editada em São Paulo pelo Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae desde 1988.
 
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