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Autor(es)
Carlos Henrique Kessler
é psicanalista, membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre; Professor do Instituto de Psicologia – UFRGS; Diretor da Clínica de Atendimento Psicológico do IP-UFRGS; Doutor em Teoria Psicanalítica – UFRJ. Organizador de Tramas da clínica psicanalítica, autor de diversos artigos em livros e revistas da área.

Luiz Meyer

Urania Tourinho Peres
é psicanalista, membro fundador da clapp/Bahia (1970), e do Colégio Freudiano da Bahia (1988) – atual Colégio de Psicanálise da Bahia. É membro da École Lacanienne de Psychanalyse (Paris) e membro correspondente de Insistance A.E. da Escuela Freudiana de Buenos Aires. Autora dos livros Mosaico de letras (Escuta, 1999), Depressão e melancolia (Zahar, 2003), e das coletâneas Melancolia (Escuta), A culpa (Escuta, 2001), Emilio Rodrigué – Caçador de labirintos (Corrupio, 2004).

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 DEBATE

Transmissão via inconsciente

Transmission via the unconscious
Carlos Henrique Kessler
Luiz Meyer
Urania Tourinho Peres

Realização: Gisela Haddad e Vera Zimmermann

Uma visada sobre o panorama atual das instituições comprometidas com a transmissão da psicanálise aponta para uma crescente diversificação dos circuitos de formação, a abertura de suas estruturas e a multiplicação do número de profissionais que se definem como psicanalistas, com percursos e experiências diferentes. Ao longo do último século, estas transformações no campo da formação foram marcadas por debates e questionamentos, fossem sobre os modelos tradicionais ou aqueles considerados inovadores da instituição psicanalítica. Algumas associações mantêm o rigor dos processos de seleção/avaliação e requerem um longo investimento na manutenção de análises didáticas e supervisões, até que seus candidatos a psicanalistas possam ser reconhecidos como seus membros. Outras privilegiam o caráter transferencial que atravessa a tríade da formação psicanalítica (análise pessoal, formação conceitual e supervisão) em suas exigências teórico-clínicas. Considerado o pilar da manutenção das instituições formadoras de novos psicanalistas, a análise dos candidatos a analistas vem sendo sistematicamente considerada o pomo da discórdia, gerando prós e contras à sua padronização e regulamentação. Sem dúvida a complexidade da análise de um analista transcende as instituições psicanalíticas e ocupa um lugar privilegiado como ponte necessária e permanente entre a psicanálise e a cultura vigente. Além disso, a ideia de que todo analista deve experimentar os efeitos de uma análise em sua própria subjetividade suscita questões importantes. Pensemos em algumas: 1- é esperado que uma análise se constitua em um saber crítico sobre si no intuito de promover transformações; 2- como motor da psicanálise, uma análise contém a teorização de uma prática cujos impasses a reformulam permanentemente; 3- uma análise só pode avançar até onde o analista percorreu em sua experiência do inconsciente; 4- é somente a posteriori que se pode medir o efeito de sua transmissão.

Enquanto as instituições tendem a ser conservadoras, a conduta psicanalítica é convocada a ser libertadora e muitas vezes subversiva. Cada psicanalista iniciante, tal e qual os primórdios de uma constituição psíquica, precisa olhar e se espelhar em modelos, e à instituição cabe criar mecanismos que levem seus membros a se diferenciarem – condição necessária para a liberdade de pensamento – sem que se perca o lugar de pertencimento. Nos países em que a Psicanálise mantém sua vitalidade (caso do Brasil), convivem diferentes modelos institucionais que se tornaram objeto de transferência para aqueles que os elegem visando a uma formação. Seguindo a proposta do tema desta edição, a seção Debates da revista Percurso convidou alguns colegas de instituições diferentes a contribuir com sua experiência, ampliando as trocas e diálogos sobre o tema da análise como item de formação e transmissão.

CARLOS HENRIQUE KESSLER Em sua trajetória, Freud trilhou um caminho que, por ser inaugural, teve que ser inventado. Em Paris, foi em busca das lições de Charcot; em Viena, recebeu o apoio de Breuer – clínico reconhecido na cidade – que inclusive indicou muitos de seus primeiros pacientes, o que viabilizou os “Estudos sobre a Histeria”. Mais radicalmente, constituiu, através do endereçamento de suas cartas a Fliess em Berlim, um analista para si. E foi estabelecendo as condições para a sua própria formação e a configuração deste novo campo, o da psicanálise.

Alguns anos depois, a “reunião das quartas- -feiras” torna-se o espaço em que os primeiros discípulos se reúnem, debatem material clínico, trocam experiências. As análises dessa primeira geração de analistas, mesmo que intensivas, duram muitas vezes apenas alguns meses, o que segue ocorrendo ao longo da vida de Freud. Pessoas de vários lugares do mundo passam um período em Viena para se analisar, visando a iniciar a prática analítica no retorno a seu local de origem. Podemos pensar que a maneira como se dá a formação vai tendo, neste princípio, um molde intuitivo e pragmático.

No texto “Linhas de progresso na terapia analítica”, Freud propõe que a psicanálise possa ser estendida a mais pessoas a partir da formação de um maior número de analistas, ainda que essa aplicação em larga escala implicasse uma espécie de “psicoterapia para o povo” na qual seriam misturados “o cobre da sugestão ao ouro puro da análise livre”. É nessa época que Freud irá estabelecer o conhecido tripé: análise pessoal, estudo teórico e controle (ou supervisão).

Na esteira desse pronunciamento foi fundado, nos anos 1920, o Instituto de Berlim, inclusive com a proposta de efetuar atendimentos gratuitos. Dessa prática, recheada das melhores intenções, desdobrou-se toda uma regulamentação da formação do analista. Na medida em que aumentavam os candidatos, a formação passava de um modelo artesanal, singular, para um industrial, com condições preestabelecidas, não mais pautadas pela necessidade de cada analista em função de impasses advindos de sua clínica. Tais condições teriam levado Lacan a questionar a burocratização da formação e da prática analítica.

Existem inquietantes formulações propostas por Lacan sobre o tema da formação. Notória é sua manifestação de que só se conhecem formações do inconsciente. No encerramento do Congresso sobre a transmissão, em 1978, ele declara que não existiria transmissão e, um pouco mais ameno no Seminário 17, sugere que o que se transmite é a castração.

No Seminário de 1967-8, que dedica ao “Ato Psicanalítico”, Lacan vai destacar a condição de “tendo sido analisante”, como aquela que deixa uma marca, tornando o sujeito “advertido” de que não pode se considerar como constituinte, causador, de sua própria ação. É desse lugar que o analista escuta. Assim, cada psicanalista reinventará a psicanálise a partir do que ele puder extrair do fato de ter sido, durante algum tempo, psicanalisante. Não se trata, então, de adquirir um saber, um ensinamento; mas, sim, uma posição, uma ética. Uma análise se revela didática se tiver levado a passagem de psicanalisante a psicanalista. O divã é o lugar “prínceps” da formação, como sempre foi proposto por Freud.

Lugar necessário, mas não suficiente. O trabalho teórico também se impõe. Tomemos por exemplo o que se passou com Jung, de quem Freud nutria grandes expectativas, ao ponto de indicá-lo como primeiro presidente da ipa. Quando Jung aponta para uma etiologia não sexual das neuroses, propõe o inconsciente coletivo e os arquétipos, Freud vê-se compelido a solicitarlhe que reconheça não estar mais no campo da psicanálise. Jung acolhe tal consideração e propõe a Psicologia Analítica. A psicanálise nos coloca, enquanto psicanalistas, necessariamente como freudianos. Senão, trata-se de outra coisa. E, então, nos toca estudar a psicanálise, aprofundá-la, situados numa filiação. Estabelecido um ponto de referência de que se pode procurar abordar as produções mais díspares, mesmo aquelas ainda não dadas na obra ou no tempo destes autores. Da mesma forma, buscar escutar as demandas da forma que se apresentam em nosso tempo, situadas pela época que vivemos. Se estas têm ou não as mesmas características daquelas do tempo de Freud, seria outra questão que ocupa os psicanalistas. Não se fica condenado a reproduzir apenas frases prontas; todavia, se quisermos estar nesse campo, impõe respeitar o limite que o caracteriza e constitui.

Ainda que faça parte dos três componentes consagrados como indispensáveis à formação e prática analíticas, a supervisão, surpreendentemente, não é trabalhada teoricamente na mesma proporção. Surgida inicialmente em espaços informais – desde os relatos de Freud a Breuer, até a forma como se deu o tratamento do “Pequeno Hans” – a supervisão ficou estabelecida inicialmente em duas perspectivas. Concepções opostas, uma segue o modelo médico e deveria tentar evitar erros clínicos (propõe o controle de uma análise); outra consideraria o controle como uma continuação, sob outra forma, da análise (análise do candidato em controle). Haveria aqui diversas considerações a fazer, mas acrescentemos apenas que, em Lacan, a supervisão deve igualmente se impor como efeito da análise pessoal, a partir da necessidade de que o sujeito assuma os riscos de sua prática. Uma intervenção de Safouan, de 1975, tem sido citada por vários analistas. Ele salienta a dimensão terceira da supervisão. Consequência: trata-se de reconhecer que a supervisão não se destina apenas ao jovem analista, ao candidato em formação inicial, mas cumpre uma função necessária à própria sustentação da prática analítica.

Bem, esse percorrido decanta nossa posição em relação às questões colocadas pela Revista. Para dar um passo a mais: seria um paradoxo a psicanálise fazer-se como um exercício de singularidade e, ao mesmo tempo, propor “conformar- se” às normas institucionais?

Freud já apontou para a dimensão do malestar inerente a nossa imersão na cultura. Um dos raros consensos entre vários analistas é o de que cada um necessita constituir seu próprio estilo de intervenção. Não existem fórmulas prontas para fazer um sujeito “falar o que lhe vem à cabeça”, condição o mais próxima possível do sonhar (ou ao menos do devanear), o que seria uma pré-condição para a emergência daquilo que concerne ao inconsciente.

Mas também se sabe, desde os primórdios de nossa civilização (ao menos desde que isso foi relatado por Platão), que, para haver desejo, faz-se necessário haver limite, lei. Lacan – mais uma vez – pode nos auxiliar. É na Proposição de 1967 sobre o psicanalista da Escola que ele enuncia uma de suas tantas afirmações polêmicas: o analista se autoriza de si mesmo (ou não se autoriza senão de si mesmo…). Nenhum lugar aqui para o que seria delírio de autonomia. Apenas não há como ocorrer psicanálise se isso não for sustentado a partir da posição do analista. Depois Lacan vai acrescentar um adendo: com alguns outros, apontando para a função da Instituição. A esse respeito, encontro algo interessante na ata de fundação da appoa, minha instituição: “a transferência que sustenta uma instituição psicanalítica é uma transferência de trabalho: nem o culto fúnebre de um texto, nem o culto melodramático de uma expressão autoral, mas a circulação de interrogações que voltam para o texto ou a fala que as produz”. E também: “a formação é permitida, nunca garantida, e nunca sancionada como acabada”.

Quando propostas de regulamentação da Psicanálise foram levadas ao Congresso Nacional por grupos religiosos, estabeleceu-se um raro momento de aproximação entre as várias instituições e dali adveio um consenso mínimo, de que o que pode conferir alguma legitimidade à prática analítica é o reconhecimento, dentro dos critérios internos a uma instituição da comunidade analítica. Acata-se aqui uma certa heterogeneidade, dentro do critério mínimo: reconhecer-se freudiano. E pode-se pensar também que o trabalho entre Instituições tenha aqui um lugar. Já o analista que tem – se isso é possível – uma prática solitária, dita independente, o analistainstituição, dificilmente teria condições de nortear- se nesta práxis apontada já por Freud como impossível. Por mais que tenha sido analisado, como pensar que possa constituir uma vacina à emergência do próprio narcisismo, sem a formação continuada, a supervisão, o contato “com alguns outros”?

FLÁVIO CARVALHO FERRAZ A questão colocada pela revista Percurso tem uma relevância enorme no âmbito das discussões sobre os modelos de formação psicanalítica. Um dos poucos pontos do processo de formação que parece ser consensual entre as diversas correntes e instituições psicanalíticas é a necessidade da análise do analista. Mas, no que tange a tudo que cerca sua realização, aí o caso é diverso: as divergências de posições costumam chegar às raias do irreconciliável. Com efeito, a multiplicação dos profissionais que se dizem psicanalistas, bem como das instituições que se dizem formadoras de psicanalistas, tanto introduziu no campo uma abertura salutar, como também potencializou riscos. As instituições psicanalíticas filiadas à ipa mantiveram até hoje a exigência da análise didática para seus candidatos. Mas o conjunto de preceitos e ordenamentos que cercam tal análise sofreu modificações com o tempo. Hoje em dia, em algumas instituições, a análise didática se propõe a ser uma análise como outra qualquer, o que significa: o analista não participa de avaliações institucionais do seu paciente, apenas o analisa. Todavia – e aí é que a questão se complica – , a análise deve ter frequência e duração determinadas por um regimento, o analista deve ser escolhido dentre uma lista de didatas e a ocorrência do processo analítico deve, evidentemente, ser atestada à instituição.

Se concebermos o processo analítico como algo que diz respeito exclusivamente ao sujeito psíquico, então não é difícil perceber que sérios problemas começam a ser esboçar. Conforme já tive a oportunidade de expressar, nesta mesma revista, a análise pessoal do analista, no que traz de aproveitamento para que este atinja as condições para analisar, significa um trabalho essencial rumo ao alcance do sentido daquilo que vem a ser o próprio objeto da psicanálise. Eis aí, no meu entender, o elemento central da análise do analista, que não deixa de ser, contudo, secundário ao simplesmente analisar-se. Ocorre que, dada a condição supraintelectual do objeto da psicanálise, entra-se em contato com ele apenas quando se desvela na experiência da análise pessoal. Trata- se, portanto, de uma experiência singular que não tem como se dar no estudo teórico, visto que sua natureza é outra, qual seja, a verdade singular – idiopática – do sujeito. A teoria, para o analista, é que será fertilizada por tal experiência; e isso diferencia sobremaneira o modo como se dá o processamento do texto teórico para o analista militante e para o exegeta acadêmico.

Um dos desafios mais complexos na formação do analista, a meu ver, é a transmissão do conceito de objeto da psicanálise. Laplanche, no formidável livro Novos fundamentos para psicanálise, reafirma com precisão algo que sempre o deteve em seus esforços de aclaramento da essência do objeto específico da psicanálise, que vem a ser o psíquico propriamente dito. Esse objeto se diferencia e se distancia do objeto da conservação em função do movimento do apoio. Ora, os objetos tanto da medicina como da psicologia se mantêm no nível da conservação e, por essa razão, permanecem ligados ao conjunto de objetos naturais, passíveis de investigação pelos métodos científicos que foram convencionais até um certo momento da história da ciência, e que ainda são válidos – grosso modo – para as disciplinas que compõem a Naturwissenchaft. Já o objeto psíquico, pelo que comporta de subversão na sua própria gênese como objeto, exige uma subversão correlata no método apto à sua apreensão. Teorizamos sobre isso, sim. Explicitamos à exaustão que ele sobrenada no discurso, mas não é o discurso; e que, portanto, o analista não responde à demanda, mas insiste em manter- se numa atitude compatível com a Versagung (“recusação”, numa tradução ruim mas possível). Ora, trata-se aqui da transmissão teórica de uma especificidade da epistemologia psicanalítica que é, poder-se-ia dizer, bastante sofisticada (é incrível como boa parte do establishment científico mundial custa tanto a compreendê-la!). Aquele que se propõe a ser analista é, geralmente, psicólogo ou médico, e, por conseguinte, esteve imerso numa outra ideia de ciência, com seu objeto e sua consequente metodologia de acesso. Não é fácil processar esta virada.

Ocorre que, mesmo que a transmissão dessa ideia seja parte essencial do trabalho de formação teórica – que se desdobra também e a fortiori no trabalho de supervisão – seu sucesso ficará na dependência do trabalho da análise de cada analista em formação. Sem dúvida, o analista deve encarar uma “mínima epistemologia” que o leve a ter clareza sobre sua zona de intervenção, mas o acesso ao objeto psíquico só se dará se for em si mesmo e na experiência da transferência. Mais ainda: as dificuldades defensivas na manutenção da postura analítica (aqui condensadas no apelo à Versagung) não se resolvem na teoria. Manter-se analista diante dos impasses do campo transferencial – sem ceder aos impulsos defensivos que, quando não são grosseiramente actings sintomáticos do ódio não processado, travestem-se (cada vez mais!) de “alteração benevolente” de conduta e manejo em razão de supostas “necessidades regressivas” do paciente – é uma operação que requer análise, mais do que teoria.

Como eu mesmo já afirmei noutra ocasião nesta revista, o aparato psíquico do analista se empresta na função de analisar. Portanto é fundamental que sua análise o leve a sensibilizar-se para as manifestações do inconsciente – ou expressões do psíquico, que são simbólicas – e a produzir as discriminações que lhe possibilitarão funcionar como suporte da transferência do seu analisando. O que entra em questão aqui é o fato de que o ofício de analisar não se resume a conhecimentos técnicos de um dado método de trabalho, mas pressupõe a participação do instrumento psíquico do analista na tarefa de acompanhar o analisando em sua própria descoberta. Saber analisar é “saber não saber”, e isso difere radicalmente de outros saberes, que se aplicam em outros ofícios. E analisar o desejo de ser analista é fundamental a fim de se atingir uma posição em que as moções narcísicas submeter-se-ão aos imperativos da análise: o analista deve saber deixar de existir após ter sabido existir profundamente, na medida da necessidade de seu analisando (o que não significa resposta à demanda). Terá que tolerar a resolução da transferência de seu analisando ao fim da análise, o que implicará ser descartado à guisa de objeto transicional.

Então, é exatamente pela importância que atribuímos à análise pessoal que, na experiência de formação em nosso Departamento, procuramos preservar ao máximo a análise pessoal, o que significa, fundamentalmente, não exercer sobre ela um controle institucional e deixar que a escolha do analista se defina apenas pela transferência.

Não negamos que uma análise “didática” tenha seus efeitos, mas não há como deixar de apontar para os riscos que lhe são intrínsecos. Silvia L. Alonso recorre a Laplanche para lembrar que a análise feita “sob encomenda” por uma instituição pode instaurar, de partida, um “ponto de surdez”, já que a ambição do analisando de tornar-se analista encontra-se com a proposta implícita de que seu analista vai torná-lo, ao analisando, um analista. Corre-se o risco, então, da instauração de uma “surdez institucionalizante”.

Para além do problema intrínseco à análise didática, poderíamos mencionar diversos efeitos da perversão institucional de sua prática. Até mesmo Otto F. Kernberg, que foi presidente da ipa, afirma que o papel do analista didata foi incorporado a uma “estrutura de oligarquia administrativa” que introduz uma atmosfera autoritária nos institutos de formação. Sem falar nas vantagens financeiras que o status de analista didata assegura, uma vez que este vê assegurada para si uma fonte de pacientes para análise. Mas a força da escolha pela transferência pode se insinuar por uma outra brecha que se abre pela perversão das práticas institucionais: o estabelecimento de análises burocráticas e a busca posterior, pelos analistas, de análises pessoais fora da lista estrita que lhe foi imposta, fato que já ocorre com frequência. Como fato correlato, consultórios de didatas podem se ver esvaziados de candidatos.

Diante disso, o que dizer sobre as instituições de formação que não impõem listas de analistas? Abdicam-se do controle das análises, mas ainda assim consideram-na essencial, que mecanismos lhes restam? O passe, nas instituições de inspiração lacaniana, visa a uma solução até certo ponto interessante, que substitui o controle burocrático por uma espécie de “exame” coletivo dos efeitos da análise sobre o analista. No entanto, não há mecanismo humanamente possível que isente tal prática dos jogos de poder inerentes a toda e qualquer associação.

Se se explicita simplesmente a necessidade da análise, mas não exerce nenhum controle – nem mesmo se ela ocorreu minimamente em algum dia –, então corremos o risco de ver naufragar boa parte dos esforços de formação em razão da deficiência do eixo básico do “tripé” analítico, visto que os outros dois – o estudo teórico e a supervisão – são mais acessíveis ao controle institucional. Uma solução intermediária é o acompanhamento do analista em formação mediante um processo de escuta do que ele tem a dizer de tal formação, escuta que pode ter efeitos simultaneamente analíticos e de avaliação, tanto do analista como da instituição. É o que, no âmbito no nosso curso, tem-se procurado implementar. Todavia, já se entrevê, de partida, que se trata de uma solução que nenhuma virtude maior tem do que aquela de ser possível. Não há “solução” definitiva para este problema. A não ser eximir-se da prática de autorização para ingressar numa outra, que vem a ser a do reconhecimento, solução que parece razoável, muito embora incida no risco de se valer de uma mudança vocabular para resolver apenas nesse plano – o semântico – o impasse que perdura na realidade. Isso nos faria vestir a carapuça do dito francês: plus ça change, plus c’est la même chose. O fio da navalha sobre o qual transitamos diuturnamente é o da não transformação de regras burocráticas – que têm a enorme vantagem de serem explícitas – em equivalentes sem letra, mas consuetudinárias, já que o jogo do poder se insinua a cada fresta de todo campo institucional. Sem querer tergiversar, eu diria que assumir tal problema como situado no campo daqueles cuja solução é assintótica já é um bom começo…

LUIZ MEYER Acredito que o convite feito a mim para participar da sessão “Debate” desta Revista está ligado ao fato de que, embora sendo membro da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, instituição ligada à International Psychoanalytical Association (ipa), tenho adotado em relação a uma de suas exigências básicas para a formação – a análise didática – uma posição extremamente crítica (Meyer, Luiz. Análise subalterna. Rev. Bras. Psicanál, v.36, n.1, p.145-59, 2002 e Meyer, Luiz. Subservient Analysis. Int. J. Psychoanal, v.84, n.5, p.1241-62, 2003).

Há um consenso entre os analistas, ou melhor, entre as entidades que se organizaram para formar analistas, de que o caminho a ser seguido pelos que pretendem tornar-se analistas compreende uma análise pessoal, o estudo da teoria e acompanhamento do trabalho clínico através de supervisões. A análise pessoal, sob a forma de análise didática, tem várias características que a tornam, a meu ver, uma prática antianalítica. Nela o número de sessões semanais é pré-determinado. Há também a exigência de que a pessoa se analise por, no mínimo, 500 horas, as quais sendo cumpridas a desobrigariam de continuar sua análise. Isso confere à análise didática um caráter regulatório, de fundo “acadêmico”, como se se tratasse de uma tarefa burocrática a ser cumprida, atendendo regulamentos, e não da aventura da descoberta do inconsciente.

A análise didática só pode ser feita por analistas credenciados pela Instituição, especificamente para esta tarefa. Tais analistas, devido a essa posição, devem responder às demandas de quem os credenciou. São, portanto, reféns da Instituição e trabalham para manter o status quo do qual dependem, perpetuando o funcionamento do sistema. O candidato, ou analista em formação, encontra-se preso do mesmo modo ao compromisso –ou contrato – assumido com o seu analista didata: daquela análise deve resultar um analista. Percebe-se que segundo esse esquema a análise didática precede o trabalho analítico e o determina. Este não se desenvolve a partir dos conflitos transferenciais e contratransferenciais e dos impasses que nascem na e da relação analítica.

Um modelo que bem descreve essa modalidade de trabalho é o da procissão. Nele a pessoa integrada a uma irmandade anda seguindo um traçado de ruas conhecidas, observando as paradas rituais, repetindo litanias, levando em uma das mãos a hóstia consagrada e na outra a relíquia venerada. Como se requer de uma procissão, a cada ano ela deverá repetir seu percurso.

Estamos longe do que nos ensinou o poema de Antonio Machado:

Caminante son tus huellas
El camino, y nada más
Caminante no hay camino
Se camina al andar

É necessário, entretanto, ser equânime: o fato de a análise didática ser um fetiche e uma formação ideológica não é determinado unicamente, como se poderia pensar à primeira vista, pelo modo como se organizou e se cristalizou a estrutura de poder no interior da ipa. Sua característica fundamental é a de ser uma “análise de formação”. Nisso ela não difere de todas as outras análises praticadas em todas as outras instituições, voltadas, de um modo ou de outro, para essa meta. Explico-me: a exigência de que um aspirante a analista se submeta a uma análise retira- lhe a liberdade de descobrir, por conta própria, o quanto ela é vital para sua prática. Essa exigência ou imposição de análise ao aspirante a analista, crença e prática que se tornou naturalizada e fato consumado no meio analítico, não faz mais do que, a modo da análise didática, abrir a parte de fora para dentro, bloqueando o caminho inverso, o da descoberta de dentro para fora da necessidade de procurar uma análise.

Não se trata apenas de diferenciar o movimento de fazer análise para tornar-se analista do movimento de desejar tornar-se analista a partir da própria análise.

O que está implícito, em minha visão, é o despropósito de fazer da análise pessoal pré-condição para tornar-se analista. Penso então que a análise do eventual futuro analista não deve anteceder o encontro com o paciente, mas ser provocado por ele. A turbulência daí resultante e o sentimento de despreparo que o acompanha, a experiência em geral violenta e angustiante que assinala o contato do próprio inconsciente com um grito se tornará então o motor e a condução para que a análise deixe de ser “de formação”.

URANIA TOURINHO PERES Fui sempre motivada a encontrar um acontecer comum, relativo ao processo de análise, a nossa prática de analista, a nossa relação com a teoria e, enfim, nossa vida institucional. Nesse processo o que primeiro me ficou claro foi o que chamei de “Final de Analista”, ideia compartida entusiasticamente por Emilio Rodrigué, e que procura traduzir a noção de que, ao longo de nossas vidas de analista, vamos vivendo um processo, a semelhança do processo analítico, que resulta, se tudo corre bem, em um liquidar de transferências, que modifica a posição de analista. Esse processo não conduz, necessariamente, a que a prática analítica seja abandonada, mas pode acontecer que a ela venha se somar uma outra atividade, quase sempre criativa, que de alguma maneira seja chamada a exorcizar a “inquietante estranheza” dessa prática. Os restos deixados no analista pela posição abstinente ou, se quisermos, como disse Lacan, o lugar de dejeto ocupado. O ponto a destacar é o de que uma mudança de posição se efetua.

Não me parece forçado pensar a relação do inconsciente com o estranhamento, assim como o chamado final de análise. Não é pouco frequente que um paciente insista na procura de algum sinal que lhe confirme o seu final de análise, alguma palavra que o apazigúe, que o analista lhe dê a mão na sua última descida do divã. É sempre estranhamente inquietante um final de análise, ou, para ser mais precisa, quando o dispositivo analítico deixa de existir. Este percurso, que de uma maneira sintética poderia ser dito como o da passagem de ser falado para encontrar o ser falante, não se exime de um sofrimento. Sempre me chamou a atenção uma discordância entre o que uma análise se propunha e se propõe, e o que as instituições psicanalíticas praticavam e praticam. Ou seja, enquanto uma análise, em princípio, pretende que o indivíduo se liberte de um discurso parental que o constituiu e modelou, que deixe as vestimentas e insígnias que lhe foram impostas, mas que o abrigaram necessariamente, para poder caminhar em direção à singularidade de sua existência; as instituições, de algum modo, refazem em sentido inverso este percurso. A suposição de um saber teórico, a suposição de um saber analítico, a suposição de um poder pelo saber são vestimentas oferecidas ou impostas e cumprem sua força modeladora de um discurso. Uma transmissão teórica que aliena e não liberta o pensar, mas o amordaça na exigência de uma compreensão e de um domínio de um pensamento que vem do Outro, e traz consequentemente a sua força alienante. É justamente aí que vemos acontecer e ser reforçado o caminho aparentemente facilitado das repetições, o “efeito papagaio”. Efeito de graves consequências na medida em que desvitaliza, mortifica a psicanálise. Teoria é uma palavra que etimologicamente remete a contemplação, a contemplação pressupõe uma disposição receptiva, que implica a singularidade de quem contempla. É dessa contemplação singular que o discurso teórico se constitui.

Quando Lacan instituiu o passe, ele o fez movido pela certeza de que a repetição de sua teoria, pelos discípulos, não fazia a psicanálise avançar. O passe seria o lugar em que o analista deveria dar um depoimento de sua análise, e a transmissão desse depoimento deveria constituir- se em uma elaboração teórica, um lugar de inovação da teoria. Para Lacan o passe fracassou, pois tudo o que resultou foi uma tentativa de encontrar nos depoimentos uma confirmação de seu pensamento. A teoria não necessita verificação, não estamos no campo das ciências, mas a teoria necessita ser reinventada. Aliás, dizer que a psicanálise se reinventa é, decididamente, uma afirmativa que sempre escutamos. A questão que se coloca é de fato reinventá-la.

O espaço institucional é muitas vezes um espaço que tende a fazer um apagamento das diferenças, porque elas são difíceis de ser suportadas. E é nesse ponto que a instituição pode recusar-se a trabalhar com o inconsciente, ainda que dele se ocupe a falar, e sua influência se faz na direção contrária à que, em princípio, deve tomar uma análise nessa passagem do ser falado para o ser falante.

Pensando a complexidade do espaço institucional na psicanálise é que podemos compreender o gesto de Lacan de dissolver a sua Escola; assim como podemos compreender os cismas e a evasão de membros. Não acreditamos nas multinacionais na psicanálise. Contudo, a instituição é fundamental, na medida em que apenas ela pode lutar por uma transmissão que seja menos agressiva ao inconsciente. Dizer não à instituição é impossibilitar a totalidade dentro da qual podemos nos singularizar.

Quero concluir com a convicção de que as incertezas dominam nossa prática, e é por considerar a psicanálise uma prática de estranhamento que podemos estar abertos à invenção.

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