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Resumo
Comentado por: Eliana Rache e Audrey Setton Lopes de Souza


Autor(es)
Ane Marlise Port Rodrigues Rodrigues
Port Rodrigues é psicanalista de crianças, adolescentes e adultos pela International Psychoanalytical Association (IPA); membro titular com função didática da Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre (SBPdePA).

Eliana Rache Rache
é psicanalista da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP), psicanalista de crianças e adolescentes da International Psychoanalytical Association (IPA), com formação na Asociación Psicanalítica Argentina, doutora em psicologia clínica pela Pontifícia Universidade de São Paulo (PUC-SP). Autora de Travessia do corporal para o simbólico corporal, publicado pela Editora CLA. Coautora de Roussillon na América Latina, publicado pela Editora Blucher.

Audrey Setton Lopes de Souza Souza
é psicanalista. Membro efetivo da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP) e professora no Instituto de Psicanálise da SBPSP. Membro do Departamento de Psicanálise da Criança no Instituto Sedes Sapientiae, onde é professora. Doutora em psicologia pela Universidade de São Paulo (USP). Docente aposentada do Instituto de Psicologia USP. Autora de escritos psicanalíticos em livros e revistas especializadas.


Notas

1.E. Bick. A experiência da pele em relações de objeto arcaicas.

2. Idem, p. 195.

3. E. B. Spillius. Melanie Klein hoje: desenvolvimento da teoria e técnica.

4. W. R. Bion. Ataques ao elo de ligação; W. R. Bion. Uma teoria sobre o processo de pensar.

5. Esse termo foi adotado por Bion (1962/1988) para se referir a um estado mental de receptividade da mãe que lhe permite acolher as emoções projetadas por seu bebê e dar significado a elas. A ideia é que o bebê, por meio da identificação projetiva, insere na mente da mãe um estado de ansiedade e de terror sentido como intolerável e ao qual é incapaz de dar sentido. A partir da introjeção dessa mãe receptiva e compreensiva, a criança é capaz de desenvolver sua própria capacidade de refletir sobre seus próprios estados mentais.



Referências bibliográficas

Bick E. (1967/1991). A experiência da pele em relações de objeto arcaicas. In M. Klein. Hoje. Rio de Janeiro: Imago.

Bion W. R. (1959/1988). Ataques ao elo de ligação. In W. R. Bion, Estudos psicanalíticos revisados. Rio de Janeiro: Imago.

Bion W. R. (1962/1988). Uma teoria sobre o processo de pensar. In W. R. Bion, Estudos psicanalíticos revisados. Rio de Janeiro: Imago.

Klein M. (1946/1991). Notas sobre alguns mecanismos esquizoides. In M. Klein, Inveja e gratidão e outros trabalhos (1946-1963). Rio de Janeiro: Imago.

Spillius E. B. (1988/1990). Melanie Klein hoje: desenvolvimento da teoria e técnica (vol. I e II). Rio de Janeiro: Imago.




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 DEBATE CLÍNICO

Territórios e fronteiras: por onde pisa o psicanalista de crianças?

Territories and borders: where does the child analyst step on?
Ane Marlise Port Rodrigues Rodrigues
Eliana Rache Rache
Audrey Setton Lopes de Souza Souza

A situação relatada aconteceu há quase trinta anos. Podemos pensar que se tratava de uma analista iniciante, sem experiência suficiente para manejar "mais analiticamente" a cena posta em ação.

Mas, se fosse hoje, faria diferente?

Lembro-me de ter exposto o ocorrido a colegas. Os comentários oscilavam desde "eu jamais faria isso", "não é papel do analista", "a mãe teria de ser encarregada" até "conseguiste transformar merda em adubo". Numa direção de comentários, parecia que eu estava violando fronteiras do enquadre, em outra, sentia-me com maior espaço para pensar livremente.

Naqueles tempos, o conceito de enactment não era tão presente em nosso meio e tudo o que saísse da conduta convencional e esperada para um psicanalista, era catalogado como atuação.

Transitar entre várias fronteiras torna-se o dia a dia do psicanalista de crianças e adolescentes. Depara-se e é desafiado com a interseção dos territórios do intrapsíquico e do intersubjetivo, com as relações de domínio entre pais e filhos e entre irmãos e familiares, com a escola e com outros profissionais envolvidos no atendimento, entre outros possíveis territórios e fronteiras a transitar.

Por onde pisa Cátia?

Ao abrir a porta da sala de espera e convidar Cátia para atravessar o corredor e entrar na sala de análise, deparo-me com a mãe, sentada na cadeira, parecendo novamente exaurida pela filha e dizendo: "Para, Cátia! Vai pisar tudo com cocô! Ela pisou num cocô de cachorro lá na rua e vem pisando por tudo. Olha, aí! Já encheu o tapete da A. de cocô!".

Cátia, agora perto dos seis anos, dirige-me um olhar de quem sabe o que está fazendo. Depois, olha para o tapete no qual segue pisoteando. Faz um movimento de entrar no corredor interno e na sala de atendimento, no embalo de pisotear por tudo (fica levantando e baixando os pés como quem carimba o tapete).

Vejo-me dizendo que, para entrar, teria de tirar os tênis. Primeiro diz que não vai tirar, mas, em seguida, concorda. Desamarro e tiro-lhe os tênis, levando-os nas mãos, juntamente com o tapete da sala de espera.

Já na sala de atendimento, digo-lhe que hoje ela tinha vindo com muita vontade de pisar com cocô por todo o meu chão e o meu tapete. Dá um sorriso de quem concorda e diz que tirei os tênis dela.

A: Sim, tirei, para te ajudar a não encher todo o chão de cocô e porque, pelo jeito, não ias conseguir parar sozinha. Tua mãe também não conseguiu te ajudar a parar, ela não tirou o teu tênis.
C: E agora tu limpas o tênis para mim?
A: Vem, vamos até a pia do banheiro, podes me ajudar.

 

Pego um lápis e vamos ao banheiro. Sob o olhar atento da menina, que faz que não com a cabeça quando lhe alcanço o lápis para me ajudar, vou tirando cocô das ranhuras de seu tênis sob a água da torneira. Vai apontando onde tem e pede que tire tudo. Está muito atenta e fica contente quando terminamos.


Enquanto estamos "nesse trabalho", digo-lhe que fiquei pensando em "por que será" que ela tinha se aproveitado tanto do cocô do cachorro na rua para tentar encher as minhas coisas de cocô.

 

C: Não sei, mas deu vontade.
A: Também não sei, mas lembrei que na última vez saíste bem brava comigo.
C: É mesmo!!
A: Lembra por quê?
C: Não lembro bem. Alguma coisa quando a gente brincava.
A: Uma coisa que aconteceu é que não te obedeci, quando querias mandar em mim. Não fiz tudo o que querias.

 

Relata o momento em que arrancou a boneca da minha mão porque não pus nela o sapatinho que queria. Eu quis escolher o sapato, e Cátia não aceitou.


Vínhamos trabalhando em como desejava ter sempre o comando e o controle: eu jamais poderia contrariá-la, por exemplo, escolhendo as cores com que pintaria o meu desenho enquanto ela pintava o dela ou as roupas da boneca. Sempre teria de perder os jogos para ela. Frequentemente, tapava com suas mãos os ouvidos quando eu falava algum pensamento que me ocorresse para introduzir algum significado no brinquedo ou jogo.


Nesse momento, nada respondeu, mas parecia ter ouvido. No primeiro ano de seu tratamento, por várias vezes, eu tinha a sensação de que não me escutava. De fato, ocorria de não me ouvir, imersa em um mundo à parte do qual me excluía. Ou, quando me incluía, sentia-me mais como uma extensão sua do que alguém com existência própria. No decorrer do segundo ano de tratamento, já se conectava mais com a minha fala.


Sem me ouvir, sem ter de pensar, sem ter de se perceber e de me perceber, não precisaria mudar nada em seu funcionamento hermético, autoritário, violento, onde se isolava num mundo em que se sentia muito só. Sentia-se poderosa pelo medo que a mãe tinha dela, pelas dificuldades dos pais em contê-la e transformar seus estados de desorganização.


Pego um pano para secar os tênis. Vejo que está muito satisfeita quando me olha e diz: "Obrigada, A.". Digo: "Gostas muito quando a gente te ajuda a segurar essa brabeza cheia de cocô. Te sentes cuidada e mais calma. Ficar sozinha com tudo isso é bem ruim".


Saímos do banheiro para a sala de análise. Pede uma casa de madeira para brincarmos de família. Repete uma brincadeira anterior na qual os pais têm um filho que tiraniza a todos e eu vou sendo os outros personagens. Quando inventou essa brincadeira, exigia que eu obedecesse às suas orientações. Mas a essas alturas, já suportava melhor algum obstáculo à realização de todas as suas vontades e acontecia de eu não cumprir com suas ordens por meio de algum personagem.


Há dois anos em tratamento, vinha tolerando melhor que eu fosse um outro, diferente dela.


Antes de chegar a mim, fizera avaliações neurológicas devido à sua impulsividade e ataques de raiva, quando quebrava várias coisas. Tinha muitas brigas com os pais, irmãs mais velhas, colegas e professores. Dificilmente aceitava algum limite. A medicação receitada pelo médico foi interrompida pelos pais por acharem que não estava fazendo efeito. Havia tentado um tratamento anterior, mas já de início mostrou seus ataques de fúria nas sessões "quebrando o consultório da terapeuta" (sic). Esta encerrou a avaliação, dizendo que o caso era "químico".


Por ocasião de sua primeira sessão comigo, aos quatro anos, a mãe entrou puxando a filha para dentro à força. Cátia estava furiosa e agredia a mãe com socos e pontapés. Não queria ter vindo. Já dentro da sala, arremessou um relógio (tipo despertador, que uso para verificar o tempo da sessão) contra a parede, quebrando-o em pedaços.


A mãe, imediatamente, começou a catar os pedaços do relógio. Vou na direção da menina, que parecia solta no espaço, num quadro de agitação e fúria. Instintivamente, segurei o seu corpo, sentei-me no divã, entrelaçando-a com minhas pernas e braços. Se debatia, tentando me morder, dar cabeçadas e se soltar.


Falei mansamente e devagar: "Como Cátia ficou assustada em vir na A.! Também nem me conhecia! Já tinha ido a outros lugares e não estava gostando nada disso. Está muito zangada". Também lhe disse que não sabia por que ficava tão furiosa, não só ali comigo, mas também em sua casa, no colégio, nas festinhas de aniversário de colegas. Mas que talvez juntas poderíamos descobrir e entender o que acontecia com ela.


Quando me dei conta, estava falando em tom bastante suave e nos embalando, sentada no divã. Aos poucos, foi se acalmando e pediu que a soltasse. Ao soltá-la, novamente tentou quebrar coisas e tive de contê-la por mais duas vezes nessa sessão.


Nas entrevistas iniciais com os pais, a mãe dizia ter medo da filha e que não conseguia ter domínio algum sobre ela. O pai reagia à agressividade da filha dando-lhe palmadas ou colocando-a de castigo, trancada no quarto. Os pais eram vistos regularmente e já estavam conseguindo dar mais limites e continência à filha por ocasião da cena na sala de espera. Sentiam-se perdidos e perplexos com o comportamento da filha. Em grau de intensidade menor, lembravam-se da avó paterna que era muito briguenta e impulsiva.


Posteriormente ao "dia do cocô", numa sessão de sexta-feira, quis fazer bolas de jornal que prendíamos com fita adesiva em volta, dando um formato esférico.


Durante a semana, havíamos trabalhado em sua maior percepção de que na minha vida existiria um outro, um marido. Não havia, até então, imaginado essa possibilidade. Sua reação havia sido de espanto, de surpresa, mais do que de ciúmes. Já podia me perceber mais separada dela e que, além disso, na minha vida existissem outros além dela. Também começaram a aparecer pesadelos com figuras de ladrões que invadiriam a casa e matariam alguém. Considerei o surgimento dos pesadelos como um grande progresso, pois até então não aparecia esse tipo de material onírico.


Voltando às bolas de jornal, quis uma brincadeira em que cada uma jogaria as bolas na outra. Enquanto brincávamos disso, o assunto era o fim de semana e o que cada uma de nós faria. Conta que iria passear com os pais e irmãs para visitar os avós noutra cidade. Quer saber o que vou fazer.


Pergunto se imagina que vou passear com alguém, já que ela vai passear com a sua família.

Responde: "Garanto que vai passear com teu marido!". Nesse momento começa a jogar as bolas de jornal com raiva e força em mim. Digo: "Nossa! Ficou mais brava comigo depois de imaginar que eu ia passear com meu marido. Até parecem bolas de cocô!". Diz, bem satisfeita: "Aí tu ias ficar toda cheia de cocô e fedorenta e teu marido não ia te querer". Sigo: "E eu ficaria só para ti! Quanto ciúme!".


Uma organização mais neurótica, com maiores possibilidades de triangulação edípica, de figurabilidade e de simbolização, começa a se fortalecer e a emergir. No final da sessão, estamos as duas rindo daquela brincadeira. E fomos cada uma para o seu fim de semana.


Método analítico versus técnica
Em reuniões clínicas, comenta-se uma maior presença de pacientes com estruturas não neuróticas, em que predominam mecanismos de defesa como cisão/splitting, em vez de recalque. Os excessos traumáticos (também traumas narcísico-identitários descritos por René Roussillon) estariam predominantes sobre as configurações neuróticas, quando a criança alcançou transitar pelo complexo edípico e desenvolveu a latência. A latência entendida enquanto uma organização psíquica em que o ego se encontra diferenciado do outro, o superego está desenvolvido como herdeiro do complexo de Édipo e é possível ter recursos estruturais para ingressar na cultura, saindo da endogamia para a exogamia.


Mesmo que mantenhamos o método analítico (com a associação livre, a atenção flutuante e o trabalho na transferência) para acessar os derivativos que chegam do inconsciente, recebemos pacientes em quem a possibilidade da associação livre será um resultado do trabalho analítico desenvolvido anteriormente, por tempo indeterminado e variável caso a caso. Portanto, as variações da técnica clássica, já criativamente introduzidas pelas pioneiras na psicanálise infantil por meio da técnica do brincar e do jogar, seguem desafiando o psicanalista que recebe casos de não neurose, crianças, adolescentes e adultos.


No início de seu tratamento, Cátia pedia papel e canetinhas para desenhar. No entanto, esse material servia como veículo de descarga de tensões e de sua descrença em si mesma e no outro (enquanto possibilidade transformadora de seus sofrimentos). Sistematicamente, a folha de papel acabava toda furada e rasgada, e as canetinhas tinham suas partes destruídas.


O caminho para um uso mais simbólico para o papel e seus desenhos ainda teria de ser percorrido por mais tempo, mas sua impulsividade já estava em vias de maior contensão. Ficou bem feliz quando conseguiu desenhar o contorno de um parque de diversões com brinquedos dentro. Comentei que naquele momento já dava para desenhar e brincar mais, pois já suportava melhor quando o desenho não saía exatamente como queria e sabia que eu poderia ajudá-la se quisesse. Também disse que, quando sua mãe não ficava assustada com sua brabeza (via que eu não ficava), a segurava e acalmava, e seu pai não batia nela nem a trancava no quarto, sentia-se bem mais tranquila, como se fosse num parque para brincar.


O transgeracional

O trabalho com os pais, em sessões mensais, acolhia as queixas, o desânimo e a falta de esperanças sobre melhoras da filha. O pai a comparava com sua própria mãe, que sempre fora impulsiva e batia nos filhos. Tivera uma relação conflituosa com ela. Referia que só melhorara depois da meia-idade, quando aceitou ir ao psiquiatra e tomou medicação estabilizadora de humor.


Mostrava-lhe como essa relação difícil com sua mãe se atualizava com a filha. Só que agora quem batia era ele. Era bastante acessível e queria melhorar a relação com Cátia. Sentia-se muito triste quando batia, podendo identificar-se com a filha em seus choros e gritos (ele-filho que apanhava da mãe).


Quanto à mãe da paciente, já estava em tratamento individual quando trouxe a filha. No entanto, seu tratamento não alcançava modificar seu medo das crises de fúria de Cátia. Somente em sessões sistemáticas (na época, uma sessão por mês no primeiro ano de tratamento e, depois, mais espaçadas) com o marido junto ou ela sozinha, pudemos entender que temia ser violenta com a filha se usasse sua força. Não se imaginava capaz de ser firme sem ser violenta. Na família da mãe não havia histórico de violências. Seus pais eram percebidos como adequados. Algo de uma tendência à passividade na avó materna era percebido na mãe de Cátia. Pensamos que sua passividade poderia estar encobrindo seu temor de ser violenta na abordagem das crises de fúria da filha.


No decorrer de poucos meses, os pais já haviam mudado o manejo dos momentos difíceis, contendo fisicamente e conversando com a filha até que se acalmasse.


Numa linha mais kleiniana, pela qual iniciei meu aprendizado, a ênfase era o trabalho do intrapsíquico com a criança, sem maior espaço para os pais. Nessa época, contudo, já me agradava a abordagem de Donald Winnicott, que considerava que o contexto psíquico dos pais influenciava primariamente os problemas e as capacidades dos filhos (não eram somente projeções e reintrojeções de fantasias inconscientes, dentro de um universo de objetos externos e internos). Porém, a inclusão cada vez maior dos pais no trabalho analítico com a criança ou o adolescente foi se dando aos poucos na minha clínica, na medida em que a clínica mostrava que o paciente fazia parte de um campo transgeracional em que traumas e conflitos não elaborados passavam de geração em geração. Isso não quer dizer que os problemas da criança sejam mero sintoma da patologia parental. Considero que o paciente também contribui com sua carga pulsional e suas possibilidades egoicas nos destinos de sua neurose ou de sua não neurose. No entanto, é inegável o poder da mãe e do pai (e do ambiente e da cultura) sobre o pequeno ser em desenvolvimento.


Sessões conjuntas do paciente com ambos pais, com mãe e pai em separado, com avós e babás tornaram-se mais uma das ferramentas técnicas no trabalho com crianças e adolescentes. Muitos avanços na área da psicanálise de crianças e adolescentes são possíveis pela abordagem da área vincular e transgeracional.


Do quantitativo pulsional ao qualitativo: a busca pelo objeto em Cátia e Marcos

O objeto é fundamental na continência e transformação de angústias e conflitos e na construção das estruturas psíquicas do ser.


Conforme o relatado anteriormente, a intensidade pulsional de Cátia não encontrava na mãe nem no pai a possibilidade de transformação de quantidades (excessos, raivas, fúrias) em qualidades (qualificação simbólica por palavras, desenhos, brincadeiras e jogos). O medo que a mãe sentia da filha, deixava Cátia cada vez mais assustada com a própria agressividade. A impossibilidade da mãe de contê-la a deixava vivenciando agonias terríveis e primitivas, como ficar solta no espaço sem ter onde se agarrar (cena em que quebrou meu relógio na primeira sessão de análise, quando a mãe foi em direção ao relógio quebrado, deixando-a solta no espaço). Tampouco o pai conseguia tranquilizar a filha, pois revivia os fantasmas da relação com uma mãe violenta e repetia o traumático ao bater na própria filha.


Foi necessário criar um novo espaço, na linha de um espaço potencial e de uma área intermediária, para que Cátia, sua mãe, seu pai, o fantasma da avó paterna e outros personagens pudessem entrar em cena e com a analista fossem transformando o quantitativo, com os excessos traumáticos, em qualidades simbólicas, sonhos, elementos úteis para o fantasiar, para o brincar e para a vida onírica e de relação com o outro.


No trabalho com Cátia, houve forte envolvimento e investimento afetivo dos pais no tratamento da filha, resultando em grandes evoluções e amadurecimentos em todos.


Já Marcos encontrava-se em situação bem mais difícil. Seu pai não aceitava que o filho necessitasse de tratamento psíquico. Dizia que o filho só precisava fazer esportes e que a mãe do menino era responsável por todos os problemas dele.


Falhas importantes em ser sentido, contido e pensado pela mãe e pelo pai desde bebê ativaram em Marcos ódio e sadismo intensos, não adequadamente intermediados pelas figuras parentais. Esse menino de nove anos nunca tivera um amigo, estando sempre sozinho no pátio da escola ou na sala de aula. No entanto, mostrava seu lado saudável e vital nas sessões quando brincava, buscando o contato com seus objetos e comigo.


Seus pais separaram-se quando tinha quatro anos. Permaneciam sob acusações e queixas mútuas desde então e não davam esperanças de que essa situação pudesse mudar. A mãe referiu ter um diagnóstico de depressão. O pai mostrava-se obsessivo e rígido em suas rotinas, com pobre alcance subjetivo. Morava com a madrasta de Marcos, a qual já tinha filhos de outro casamento e um filho com o pai. A madrasta não aceitava a presença de Marcos em sua casa. Além de ciúme, não gostava dele, achando-o muito esquisito. O pai encontrava com o filho no clube e em shoppings.


Sessão com Marcos
Estávamos no quarto mês de tratamento com três sessões semanais. Havíamos montado o cenário do personagem João, que seria ele mesmo com dezesseis anos, sem amigos e cercado por vários animais. Adorava cavalos, cães e gatos. No início da brincadeira, tinha havido uma tentativa de encontrar amigos, que o teriam convidado para uma festa. O personagem vai até o local onde seria a festa. No entanto, eles o enganaram, dando o endereço errado. Decepciona-se imensamente, retorna à casa e vai brincar com os seus animais. No cenário, temos ainda os bonecos de pano representando um pai, uma mãe, um irmão menor, uma irmã bebê e uma empregada. Eu me encarregava dos outros personagens, segundo ia me orientando nas falas e nas condutas. Primeiramente, fazia festas somente entre João e seus animais. Esses iam ficando mais violentos, ao que lhe dizia que estava começando a soltar os seus bichos, as suas feras. Quando, após certo tempo, perguntei se não ia deixar o irmão entrar na festa, primeiro recusou, mas depois permitiu. Deixou que montasse no cavalo e o fez cair, quebrando um braço e as pernas. O boneco do irmão ficou um ano na cadeira de rodas. O personagem da madrasta foi mandado para a prisão, depois para um planeta distante para nunca mais voltar e, por último, declarou que ela estava fora do jogo, que não existia mais na brincadeira: "Ela não existe mais" (sic).


As brincadeiras de cunho sádico em torno do personagem do pai adquiriram forma e pareciam expressar a busca de Marcos por um pai que registrasse verdadeiramente a sua existência. Colocava o personagem do pai sempre deitado na cama ou vendo TV: "Ele é muito parado, não se mexe para nada" (sic). Ordenou a seus animais que jogassem bombas perto do pai e no pai. Eu lhe dizia: "Queres fazer ele se mexer, nem que seja machucando". Com as bombas, o pai teve uma perna quebrada e passou a andar de muletas.


Devido ao intenso frio com neve e gelo que foi tomando conta do sítio onde era a casa, queria que seus animais pudessem dormir dentro da casa. O pai estava de pé, perto da janela. Seguia dizendo que ele não fazia nada. Refere, então, que a calça do pai caiu (abaixando a calça do boneco), mostrando sua cueca, que seria vermelha. Nesse exato momento, o animal que vai entrar em casa é um touro que, vendo o pai com a cueca vermelha, atinge-o, furando com seus chifres suas nádegas, seu ânus e seu corpo. O pai volta ao hospital para tratar dos muitos ferimentos. Penso que, frente à fragilidade materna, busca o pai, mesmo que sob roupagem sádica. Mesmo que a cena nos remeta a aspectos da sexualidade de Marcos, parece predominar uma forte vivência de desamparo.


Digo: "Esse pai não se mexe e deixa seu filho João tão sozinho com seus animais, agora foi castigado por ele, e que castigo!". Ele concorda com a cabeça. Sigo: "Noutras vezes, tu também ficas tão sozinho com a mãe e a mãe muitas vezes está triste, nem quer sair de casa". Concorda novamente.


Observa-se que Marcos tem de lidar com a falha materna já anterior à paterna. Reclamava da mãe por não sair para passear com o cachorro ou para outras atividades fora de casa. Nessa brincadeira, a mãe cuida da nenê, trocando fraldas e dando seu "mamá". Mas os filhos se reportam à empregada sempre que querem alguma coisa.


Penso que nesse movimento de Marcos em torno do pai existe seu desejo por ele; o desejo pelo objeto que falta e que está além da mãe. A meu ver, está pedindo que o retire das indiscriminações com a mãe ou que o salve quando ela está em seus períodos de desinvestimento depressivo. Mas o pai, em geral, tem uma postura queixosa. Diz que as mulheres são muito mandonas, ou ciumentas e infantis, e que o melhor é não se meter com elas. Sem contar com o pai e desamparado em muitos momentos pela mãe, aumenta sua retração narcísica e, por vezes, parece preferir a apatia e a indiferença, como num desejo de não desejo. Diz: "Queria entrar para dentro de uma cúpula de vidro, não sair lá de dentro e não precisar me relacionar com ninguém" (sic).


Quando Marcos mostra-se sádico em sua brincadeira, ainda está lutando pela vida e pelo objeto. Mas a impossibilidade do objeto pode reativar o pulsional sádico e/ou narcísico (volta para o ego). Numa de suas raras iniciativas de interação com colegas, Marcos está num shopping passeando com o pai, num sábado à tarde. Lembra que alguns colegas de aula estarão no cinema às 18 horas, vendo um filme que também gostaria de assistir. O pai reclama por não ter avisado antes, para que pudesse se organizar. Diz que pode deixá-lo às 18 horas e telefona para a mãe buscá-lo às 20 horas. Ela se recusa a sair de casa. Resultado: o pai o deixa na casa da mãe e Marcos não vai ao cinema.


Sabemos que, mediante o seu discurso, a mãe introduz o pai ao filho. Mesmo com a ausência ou morte do pai, ele permanece como inscrição psíquica no filho quando convocado pela mãe para ocupar o seu lugar simbólico: sua função paterna. Conforme Jacques Lacan, esse pai simbólico, ao intervir na relação dual imaginária entre mãe e filho, liberta-o da relação indiferenciada e incestuosa com a mãe. Porém, Piera Aulagnier lembra que o desejo do pai também conta, não sendo apenas a mãe que o convoca.


Com Marcos estamos no campo das dificuldades do ser, das cisões e retrações narcísicas com suas imensas feridas, com intensas vivências de desamparo. A triangulação necessita desenvolver-se mais. Temos uma detenção em seu desenvolvimento. É preciso trabalhar na construção do próprio ego e buscar ajudar os pais nas difíceis tarefas de parentalidade, em que a diferenciação deles com seus próprios pais e com seus filhos também necessita encontrar um território de transicionalidade e criação do novo.


Quando Marcos aceita o tratamento, gosta de vir às sessões e me coloca no lugar de vários personagens, brincando comigo, penso que mostra sua esperança de encontrar os seus objetos e de ser encontrado, mesmo com enganos e endereços errados no seu caminho. Quer a intermediação do objeto para lidar com a intensidade de seus afetos e busca pelo brincar, falar e pensar na sessão, dando comigo significado para dolorosas vivências. Há períodos em que parece ter desistido e que não pareço alcançá-lo, e dói muito. Nesses momentos, falo do que sinto: que estou muito preocupada com ele, que está muito longe, que parece que não vai voltar para brincar e conversar comigo, que deve estar sofrendo muito para querer se fechar tanto assim. Como se fosse para sua cúpula de vidro. Reage incrédulo: "É mesmo, tu tá preocupada assim?".


Finalizando
Freud, no "Projeto" (1895), articula o enfoque econômico-quantitativo dos estímulos exógenos e endógenos sobre o aparelho psíquico com aspectos qualitativos: formação de barreiras antiestímulos e da memória; defesas; períodos de consciência e a percepção de qualidades; condição livre ou ligada de quantidades e processo primário e secundário; a ação específica para a experiência de satisfação por meio do auxílio alheio, etc.


Nas releituras do projeto de Freud, o papel fundamental do auxílio alheio (mãe ou cuidador) frente à imaturidade e ao desamparo da criatura humana é destacado. A barreira antiestímulos também é entendida como a possibilidade de a mãe usar seu processo secundário em contato com o processo primário de seu bebê para dar conta de quantidades de desprazer e dor em busca de alívio e transformação.


O conceito de rêverie, introduzido por Wilfred Bion, coloca o objeto diretamente implicado nas transformações de elementos beta em alfa para o desenvolvimento do psiquismo e da pensabilidade, aumentando a capacidade simbólica.


O psicanalista em geral, mas o psicanalista de crianças e adolescentes em especial, transita atualmente em territórios mais vastos e alargando suas fronteiras, sendo cada vez mais exigido em seus recursos intrapsíquicos e em suas capacidades de relação com os múltiplos outros do campo da realidade.


Considero que o psicanalista atual está mais solto e autorizado a entrar nas cenas propostas pelo paciente e seus familiares, exercendo papéis (enactments referidos por Roosevelt Cassorla) sobre os quais terá de pensar e buscar entender. Assim, esse agir torna-se importante parte da compreensão da dinâmica emocional em jogo, desde que se dê conta do que está se passando no campo analítico. As análises do analista mais longas e aprofundadas, com uma maior instrumentação teórica e técnica, permitem que "se brinque" mais livremente no espaço do tratamento.


É fundamental a presença de outros para estabelecer ligações entre o cindido/recalcado e a palavra, fazendo com que assim um sentido possa emergir.


Tanto Cátia como Marcos eram crianças que mantinham esperanças de encontrar sentidos e uma melhor compreensão de suas manifestações emocionais ou condutas. Puderam levar-me em seus caminhos, fazendo-me andar por territórios desconhecidos e repletos de mananciais de sentidos, ampliando as fronteiras de nossas vivências.


Eliana Rache
De volta para o futuro
Agradeço à revista Percurso por ter me convidado a participar da seção "Debates Clínicos" e a tratar de tema instigante sobre a clínica de crianças: continua ela a ser igual ou teria mudado nesses trinta últimos anos?


Para localizar o trabalho do analista de crianças, o título do texto é sugestivo: "Por onde pisa o psicanalista de crianças?". A resposta pode ser captada no uso mais singelo de nossa associação livre na sessão apresentada a seguir.


Uma criança, tipo indomável, adentra o consultório, cocô no sapato, provocação nos olhos, vai pisando e borrando por onde passa. Sim, justamente onde pisa o analista. Creio que está respondida a pergunta que compõe o título. Desde sempre é sabido que é o analista de crianças (apesar de não lhe ser uma prerrogativa) quem deveria estar pronto para pisar os mais diferentes terrenos.


Nos inícios não era bem assim. O terreno kleiniano, escrupulosamente delineado, dizia-nos que tínhamos de caçar a agressividade presente nas pobres criaturas. Projeção/introjeção era a dança programada, tendo por parceiros a mente da criança e alguma outra tela projetiva. A bússola expressa pela relação mãe-bebê orientava como e quais elementos?- fezes, urina, leite?- entravam e saíam do corpo da criança em sua relação com a mãe, sendo o valor de troca dado pelo sinal positivo ou negativo de acordo com a experiência boa ou má.


Acompanho o trabalho primoroso de nossa colega aqui apresentado, nos idos dos anos 1990, colorido pelo "frescor" (freshmindness) próprio de uma jovem iniciante no trabalho com seus pequenos pacientes. Para os padrões da época, vejo-a desenvolta, rompendo os cânones?- "lavando os tênis do pacientezinho". Para os padrões de hoje, vejo-a perfeita. Nesse sentido, pareceu-me um movimento tipo "De volta para o futuro"?- o que está hoje em seu trabalho clínico já tinha estado lá há trinta anos atrás. Na primeira sessão apresentada, respingos existem de marcas da época em que era kleiniana: a analista refere-se tanto a ela (analista) como à paciente usando os nomes próprios de cada uma: "Como Cátia ficou assustada em vir na A.!". Isso era uma prática absolutamente natural, o que deixava as chamadas "interpretações" distantes como que recitadas em um palco. Também fui acometida desses modismos. Mas como fazer diferente? Era a maneira de assim nos sentirmos verdadeiramente sacramentadas pelo grupo de analistas. O que fui deduzindo ao longo do tempo, à medida que fui declinando dessa prática, era que, para não colocar em evidência a pessoa verdadeira do analista nem daquela criança que estava ali de carne e osso, devia-se criar uma atmosfera na qual não se usasse pronomes pessoais. Se a analista entrasse no lugar do "eu" e o paciente no lugar de "você" ficaria comprometida toda a pureza que deveria envolver a transferência. Outro tipo de interpretação era aquele que transformava as emoções das crianças em "cocô" e "xixi" porque, ao se apresentarem dessa maneira, ficariam consagradas na ordem do arcaico incontestável, apoiando-se na teorização das equações simbólicas preconizadas por Hanna Segal nos idos dos anos 1960. Nesse mote, ouvimos nossa analista introduzindo "bolas de cocô" onde apenas a paciente a atacava com muita raiva por constatar que ela não era propriedade sua. De fato, as bolas eram atiradas com muita raiva, mas não precisavam ser de cocô para transmitir a dimensão agressiva.


Se não tivesse havido Melanie Klein, Wilfred Bion, Donald Winnicott e tantos outros, os analistas de trinta anos atrás não poderiam ter a liberdade de criar suas compreensões próprias num diálogo inexaurível com todos eles. É o que nos conta A.: num percurso iniciado nos moldes kleinianos, logo o ambiente é convocado e os pais passam a fazer parte constitutiva do tratamento das crianças. Em termos pedagógicos, estaria justificado dispensar os pais do tratamento se somente o superego parental fosse delegado ao superego do analista. Se assim o fosse, nesse tipo de funcionamento, cujas raízes pedagógicas têm em Anna Freud sua origem, não estaríamos com nosso pensar psicanalítico bem acessado para o trabalho.


O que teria acontecido com Cátia se assim tivesse sido? Teria visto na analista uma cópia de sua mãe ou de seu pai e seu comportamento continuaria igual?- ela apenas teria ido para a "professora" psicóloga. Como compreender que o pai de Cátia fazia uma identificação com o agressor, sua própria mãe, e ficava infligindo em Cátia aquilo de que ele mesmo tinha sido vítima, isto é, dos ataques impulsivos de sua mãe? E quanto à mãe de Cátia? Ela sabia que tinha medo de Cátia, o que Cátia sabia também. Entretanto, o que não passou desapercebido ao arguto olhar da colega é que, para a mãe, firmeza era igual violência, ser firme seria se opor a Cátia, contrariá-la, frustrá-la, levantar a impulsividade da menina... Optava por não usar de sua agressividade já que não sabia dosá-la. Com certeza, enfrentar Cátia seria ter de enfrentar sua própria agressividade, que era o que ela realmente temia.


Sem termos acesso a esses dados emocionais dos pais, não teríamos como desenredar aspectos psíquicos mesclados entre todos os integrantes da família e devolver o que é de quem e, com isso, liberar a criança para que ela, pouco a pouco, se aproprie do que lhe pertence. "Isso não quer dizer que os problemas da criança sejam mero sintoma da patologia parental", como nos diz a colega, e, de fato, a criança terá de fazer respirar seu self verdadeiro em seu "new beginning" com a ajuda do analista.


Considero esse tópico do grupo parental ser recebido pelo analista de criança que está sendo tratada condição sine qua non para o bom resultado da terapia da criança/adolescente. A primeira questão de receber os pais está no fato de poderem ter contato com a pessoa que está tratando de seu filho e se sentir também acolhidos, com segurança para investirem no tratamento. Haja vista o trabalho delicado feito por A. na ajuda dos pais de Cátia, o que não pôde ser realizado com os pais de Marcos.


O quadro de Marcos (9 anos) era mais difícil. Não só começara a análise mais tarde do que Cátia (4 anos), como seus pais ainda mantinham acesas as farpas raivosas de uma separação mal resolvida. Nesse caso, seria necessário um investimento muito grande, pelo menos de um dos pais, para que o tratamento de Marcos pudesse vingar. A mãe deprimida não tinha a energia da qual o menino poderia se beneficiar. Se não conseguia ter luz nem para sua própria lamparina, como dedicá-la ao filho? Como entrar num espaço para ouvir falar de seu filho, aquele que nunca teve seu olhar? O pai, por seu lado, estava acomodado em sua nova família, não precisando de nada mais senão que Marcos não o ocupasse. Por meio de uma falsa atividade exuberante, estabelecia o que era bom para o filho: esportes e se livrar da depressão da mãe. Por aí vemos o quanto sua entrada para um espaço em que outras "verdades" iriam ser ditas mostrava-se bastante distante.


Na minha clínica foi entrando primeiramente a mãe do paciente. Aí eu estava numa linha winnicottiana na qual "o bebê não existia sem a mãe". E devo a Winnicott a entrada para sempre do objeto, do ambiente e do outro na minha compreensão teórico-clínica. Pouco a pouco foram entrando as "funções" e a pergunta era "quem exerce a função de mãe?" entre as babás, as tias e até o pai. O horizonte se alargava para saber quem poderia ocupar esse lugar que antes só cabia às mães. Mas, além de tudo isso, alguma característica do psiquismo da mãe poderia estar sendo complementária ao do pai, encobrindo áreas de seu próprio psiquismo e muitas vezes obnubilando o da própria criança.


Voltemos à clínica do caso Cátia. Era a agressividade o fio solto mais evidente?- motivo da queixa. A mãe de Cátia negava sua própria agressividade, mas seu marido facilmente se tornava agressivo. No momento em que a mãe de Cátia começar a usar de sua agressividade, seu marido terá de conduzir melhor a sua própria. Terá início um tipo de circulação de agressividade alinhada de outra maneira no espaço entre o casal, e Cátia se beneficiará dessa situação. No caso de Marcos, pergunto-me o quanto da própria depressão negada do pai, escondida atrás de sua rigidez obsessiva e bravatas do tipo lugar-comum, não estava depositada na mãe de Marcos. Comecei a levar em conta essa abordagem da área da vincularidade, que foi me trazendo um enriquecimento e, mais, uma segurança no trabalho com crianças e adolescentes.


O transgeracional foi também acrescentado como ferramenta indispensável aos grupos parentais. A colega se deteve mais no trabalho do transgeracional, e como estou plenamente de acordo com os pontos alegados apenas tenho a me congratular com ela quanto a seu uso.


Por isso, hoje, quando recebo uma criança ou adolescente, digo aos pais que eu começo minha avaliação por um mapa das relações emocionais, ou, numa linguagem mais moderna, uma rede de conectividades entre os diversos membros da família. E, nesse sentido, vou começar a fazer perguntas que podem parecer estranhas a eles, mas é como vou poder conhecer a criança que chega, que nada mais é senão a semente de todas essas encruzilhadas afetivas emocionais.


Além desses arranjos, que foram sendo feitos no setting da análise de crianças e adolescentes, nossa colega muito bem pinçou da clínica os pacientes não neuróticos dimensionados nessa clínica da contemporaneidade.
Conhecidos primeiramente como pacientes borderline, pacientes-limite e agora chamados não neuróticos, eles se impuseram ao mostrar uma sequência de processos psíquicos típicos de sofrimentos narcísicos identitários, reconhecidos em crianças, adolescentes e adultos. O desenho dessa clínica foi se configurando tendo o trauma como figura central, cuja violência, ao arrastar consigo aspectos do psiquismo para fora do circuito constitutivo do eu, comprometem-no em sua função de apropriar-se de si mesmo?- falta em Ser. Além disso, tais clivagens ocasionam dois funcionamentos distintos do psiquismo de forma simultânea: uma delas segue as regras do princípio do prazer/desprazer, num imbricamento pulsional cuja especificidade está na representação; a outra é a não representada, que, sob a égide da pulsão de morte, segue os destinos da compulsão à repetição, dificultando qualquer ligação simbólica. É justamente assim que o inconsciente não recalcado se manifesta por meio do não representado em expressões como sensações, percepções, impulsos motores ou atos. Essas configurações, por não apresentarem representações, convocam o trabalho do negativo que se faz presente na contratransferência do analista e cuja habilidade consiste em saber o momento para introduzir as "construções faltantes". Portanto, no trabalho com crianças, como nos dois casos aqui apresentados, fica mais evidente esses processos não representados do que em adultos.


No caso de Cátia vejo a questão da impulsividade, por onde entramos no sofrimento narcísico identitário em dois tempos diferentes. No momento da primeira sessão, a desorganização dos impulsos toma conta do quadro. A excitação não consegue ser transformada em pulsão e seguir seu caminho transformando-se em fantasia. Vejo uma perturbação inicial, talvez ainda do tempo da preocupação materna primária, na incapacidade da mãe de Cátia de fazer o holding e o handling da menina, o corpo a corpo inicial de segurar e largar dentro de uma harmonização afetiva entre as duas, comprometendo o investimento das pulsões na relação, com consequências sérias para o desenvolvimento. Ao não se estabelecer o circuito das pulsões de vida, elas vão ser descarregadas predominantemente na ação. A primeira sessão é paradigmática nesse sentido. Cátia não queria ter vindo, "estava furiosa e agredia a mãe a socos e pontapés [...] arremessou um relógio [...] contra a parede, quebrando-o em pedaços". Na verdade, quando a mãe foi catar os pedaços do relógio, não tinha condição de perceber que era a filha em pedaços que precisava ser contida, o que providencialmente foi realizado pela analista. Segurando-a contra seu corpo, dava o contorno físico tão necessário à integração (tão bem trabalhada por Winnicott!) de Cátia. Mas dava muito mais ainda com as palavras, no ritmo que ia imprimindo nesse corpo a corpo do embalar, até que Cátia "foi se acalmando e pediu que a soltasse". Depois de dois anos de trabalho analítico e do desenvolvimento de Cátia, sua impulsividade está diferente. Apresenta-se contida dentro de um domínio sádico sobre o objeto (analista), conforme o texto nos indica: "Vínhamos trabalhando em como desejava ter o comando de tudo, eu jamais poderia contrariá-la". E, se voltarmos para a sessão do cocô, acompanhamos a provocação agressiva na forma do desafio à analista?- "dirige-me um olhar de quem sabe o que está fazendo"?- e segue largando os impulsos ritmados nas carimbadas de cocô no tapete do consultório. As relações ainda sob a óptica narcísica do objeto mostram a dificuldade no trabalho com Cátia.


Como já foi dito, o tratamento de Marcos era mais difícil não só pela falta do acompanhamento familiar como ainda pela situação de desamparo psíquico que se encontrava. As situações traumáticas que carregam consigo, clivagens cindindo o funcionamento psíquico, podem ser observadas quando Marcos simultaneamente personifica, encena o brincar com bonecos, mostrando que tem condições de representar, e se retrai, não se representa, como o estado que ficou diante das consequências da não ida ao cinema, sua dificuldade de se ligar e ter amigos. São os aspectos em carne viva de seu psiquismo que ainda não encontraram uma pele simbólica para que com o analista fizesse esse trabalho de simbolização primária.


Audrey Setton Lopes de Souza
Quero iniciar agradecendo o convite para participar desta iniciativa que propicia o diálogo com a clínica, a meu ver, parte imprescindível do aprendizado da psicanálise.


Também desejo ressaltar a relevância do debate sobre a clínica com crianças na dimensão proposta pela analista: "Territórios e fronteiras: por onde pisa o psicanalista de crianças?". Há muito tempo, tenho conversado com colegas sobre a importância de discussões sobre o que fazem os analistas de crianças (e de adultos) em sua clínica, uma reflexão sobre a teoria da técnica, à luz dos novos aportes teóricos que cada vertente psicanalítica nos proporciona.


Quando nos propomos a partilhar experiências clínicas, recebemos narrativas e, como novos leitores, as interpretamos como um encontro entre a nossa sensibilidade e a intenção do narrador. O que pretendo apresentar é, antes de tudo, certa forma de escuta que pode emergir desse material. Reforço também a riqueza desta possibilidade de troca de olhares entre modalidades de escuta.


Agradeço também a liberdade e coragem da analista de nos apresentar esse rico material que nos convida a "Transitar entre várias fronteiras", tornando-se "o dia a dia do psicanalista de crianças e adolescentes". Ao discutir sobre "por onde pisa Cátia", nos convida a refletir por onde pisam os analistas de crianças.


Seu relato se inicia apresentando as reações da mãe de Cátia às manifestações de sua filha. Seu desespero e impotência lançam luz sobre a importância da dimensão intersubjetiva para a construção de um objeto interno continente. A psicanálise contemporânea tem se debruçado sobre o papel do objeto como regulador das emoções e seu importante papel na construção das simbolizações. Tais insuficiências de simbolização geram manifestações, predominantemente, através do corpo ou do ato, e não raro confrontam o enquadre analítico e seus recursos, como a clássica posição de neutralidade, o silêncio e a inatividade do analista, as regras do setting, etc.


Ao apresentar sua narrativa, a analista vai tecendo hipóteses e construções teóricas com as quais concordo em grande parte. Escolhi, como recorte, pensar este material privilegiando o que considero uma "clínica viva do pensamento kleiniano", as modificações técnicas oriundas das contribuições dos pós-kleinianos. Vou destacar as contribuições de Bick para compreender os efeitos das primeiras relações na constituição de um objeto continente, capaz de acolher as identificações projetivas e as ameaças de desintegração, vivenciadas no início da vida. Nessa fase a dependência do objeto é absoluta; a separação é experimentada como a perda de partes do próprio corpo. A autora destaca que o bebê, no início de sua vida, graças ao uso da identificação projetiva e às qualidades de rêverie da mãe, vive uma ilusão de continuidade com ela e, portanto, não é confrontado com a realidade da separação. Por outro lado, repetidos descompassos afetivos na dupla trazem à luz, precocemente, a realidade de corpos e mentes separadas entre o bebê e sua mãe; provocam perturbações no desenvolvimento da pele psíquica e podem levar à constituição de uma "segunda pele" através da qual "a dependência do objeto é substituída por uma pseudoindependência, pelo uso inapropriado de certas funções mentais, com o propósito de criar um substituto para esta função de pele continente" .


Pensando sob esse vértice, o desespero da mãe de Cátia poderia ser significado como uma impossibilidade de acolher as identificações projetivas de sua filha, devolvendo a ela seu desespero e desesperança sem qualquer possibilidade de digestão dessas experiências emocionais, colocando em relevância o papel do analista nessas situações, e nos convocando a refletir sobre os desafios do campo analítico na atualidade, sobre as possibilidades de flexibilização do enquadre e do lugar do analista, quando nos vemos implicados, como objetos, nos processos constitutivos. Uma clínica na qual a intervenção psicanalítica deve dirigir-se para a possibilidade de criação de algo novo, que nunca esteve no campo psíquico, e não só para o que foi esquecido; significa conceber a análise como campo de construção de um objeto continente.


A descrição da analista de como pôde acolher as manifestações de sua paciente e seu sapato cheio de cocô, mostrando que não se assusta com ela, contendo-a e propiciando-lhe uma experiência de segurança, de poder encontrar-se com alguém que a ajuda a digerir suas sensações insuportáveis de ódio e perigo de dependência, culmina com sua fala que, a meu ver, traduz a importância da experiência analítica na construção desse novo objeto continente: "A. Gostas muito quando a gente te ajuda a segurar essa brabeza cheia de cocô. Te sentes cuidada e mais calma. Ficar sozinha com tudo isso é bem ruim". Também mostra todo o esforço necessário antes da construção de uma interpretação, como há um grande trabalho a ser realizado entre a dupla paciente-analista antes que a interpretação, em seu sentido mais usual, possa ser formulada.


O outro recorte clínico apresentado pela analista também aponta nessa mesma direção, ao mostrar a importância do lugar do analista que, desde a primeira sessão, se coloca ativamente contendo a agressividade da criança para poder, depois, conversar com ela. Precisou ativamente segurá-la para poder, em outro momento, formular: "Como Cátia ficou assustada em vir na A.! Também nem me conhecia! Já tinha ido a outros lugares e não estava gostando nada disso. Está muito zangada". Além de lhe apresentar seu projeto analítico: "Também lhe disse que não sabia por que ficava tão furiosa, não só ali comigo, mas também em sua casa, no colégio, nas festinhas de aniversário de colegas. Mas que talvez juntas poderíamos descobrir e entender o que acontecia com ela".


Estamos no campo do trabalho com a transferência negativa, campo no qual se situam os trabalhos pós-kleinianos sobre contratransferência e sobre a comunicação em análise de crianças e de pacientes mais comprometidos . Tais trabalhos também apontam para modificações técnicas, decorrentes do uso clínico do conceito de identificação projetiva.


Em 1946, Melanie Klein apresentou sua teoria da identificação projetiva, mostrando que a projeção pode se dar para dentro do objeto, alterando sua identidade, ampliando o conceito de transferência e, por consequência, o de contratransferência. Wilfred Bion retomou esse conceito e estabeleceu uma diferenciação entre identificação projetiva normal (ou realista) e anormal. Ele destacou o papel comunicacional dessa identificação projetiva, que consiste em introduzir no objeto um estado mental, como um meio de comunicar-se a respeito desse estado. Acho sempre importante destacar que essa comunicação só é possível se encontra aquele que a acolhe e decodifica. Tal visão interpsíquica foi logo estendida para a sala de análise, para a relação analista-analisando, ampliando a compreensão da contratransferência.


Esse modelo de interação não verbal, característica da relação mãe-bebê, põe o analista no lugar daquele que exerce a função de acolher e transformar, por meio de sua rêverie , as experiências não digeridas de seus pacientes, num trabalho muitas vezes para além das palavras.


Outra perspectiva a ser destacada nesta análise é o sempre necessário trabalho com os pais, que precisam ser auxiliados em suas dificuldades de contenção das angústias de seus filhos. Fica claro em seu relato a dificuldade desses pais em exercer sua função de rêverie e como, enredados em suas dificuldades transgeracionais, viam-se impedidos de desenvolver sua parentalidade.


O conceito de parentalização refere-se ao processo pelo qual passam os pais para permitir que se tornem pais de seus filhos. Nesse trabalho interno, vivenciam profundas transformações identificatórias nas quais são reeditados conflitos antigos. A partir desses vínculos afetivos, construídos nesse interjogo interno e relacional, é constituído o processo de subjetivação da criança. No processo de construção da parentalidade estão envolvidos aspectos psíquicos inconscientes que são transmitidos por gerações: aspectos intergeracionais e transgeracionais. Vemos no relato apresentado, como esses pais são inundados por questões relativas à sua própria experiência arcaica, em aspectos que muitas vezes não foram elaborados, o que tornava difícil para eles sustentar o lugar parental necessário à sua filha.


Nesse sentido, o trabalho com os pais torna-se primordial e concordo com a analista quando aponta que:

[...] a intensidade pulsional de Cátia não encontrava na mãe nem no pai a possibilidade de transformação de quantidades (excessos, raivas, fúrias) em qualidades (qualificação simbólica por palavras, desenhos, brincadeiras e jogos). O medo que a mãe sentia da filha, deixava Cátia cada vez mais assustada com a própria agressividade. A impossibilidade da mãe de contê-la, deixava-a vivenciando agonias terríveis e primitivas como ficar solta no espaço sem ter onde se agarrar (cena em que quebrou meu relógio na primeira sessão de análise, quando a mãe foi em direção ao relógio quebrado, deixando-a solta no espaço). Tampouco o pai conseguia tranquilizar a filha, pois revivia os fantasmas da relação com uma mãe violenta e repetia o traumático ao bater na própria filha.

 

Todo o trabalho de construção desse objeto continente na análise, aliado ao trabalho com a família, permitiu que Cátia pudesse caminhar em direção à simbolização de suas experiências, à renúncia ao modelo de relação bidimensional e à entrada em um modelo tridimensional que permite a emergência do triângulo edípico.


Passemos à reflexão sobre as questões da análise de Marcos, um menino de nove anos, praticamente sem amigos e que começa a ser apresentado pela analista como: "Já Marcos encontrava-se em situação bem mais difícil. Seu pai não aceitava que o filho necessitasse de tratamento psíquico. Dizia que o filho só precisava fazer esportes e que a mãe do menino era responsável por todos os problemas dele".


Considerando a disponibilidade familiar para um trabalho analítico, não há como discordar da analista, mas, no que se refere às produções associativas de Marcos, encontramos um panorama bem diferente. Antes de pensar no conteúdo de suas brincadeiras, quero destacar sua capacidade de simbolização, que o permite expressar-se de forma a dar acesso ao conteúdo de suas angústias e fantasias nas quais podemos perceber, além do aspecto sádico, uma gama de significações que remetem às relações com seus objetos e seu anseio e esperança por novas relações.


A esperança, expressa no contato com a analista, é, a meu ver, diferente dos contatos iniciais de Cátia, que precisou da esperança inicialmente na e da analista, para, após a confiança construída na relação com ela, poder emergir para um modelo tridimensional de mente.


O relato da analista revela um ambiente familiar no qual prevalecem rivalidades entre os pais e uma dificuldade para dar lugar às manifestações de Marcos, como um terceiro descolado dos conflitos familiares; ele encontrou esse lugar com a analista. Marcos parece ter escolhido um modelo de retração de suas relações, por temer não conseguir lidar com suas fantasias sádicas decorrentes das dificuldades, suas e de sua família, para dar lugar às fantasias agressivas, mas encontra no ambiente analítico um espaço para representá-las e transformá-las. Tenho muitas dúvidas se são dirigidas a esse pai real ausente ou se, na relação transferencial, reclama pela possibilidade de um terceiro (pai ou mãe) que o escute para além da rivalidade entre eles. Em um universo em que desvitalizadas possibilidades identificatórias lhe são oferecidas, Marcos se retrai, mas busca, no seu trajeto com a analista, um espaço para a construção de si mesmo.


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Percurso é uma revista semestral de psicanálise, editada em São Paulo pelo Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae desde 1988.
 
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