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Resumo
O ensaio visa expor de forma breve os deslocamentos nosográficos das figuras clínicas do melancólico e do depressivo na emergência dos estudos de Sigmund Freud, bem como destacar aspectos distintivos da leitura de três autores contemporâneos sobre o tema: Maria Rita Kehl, Marie-Claude Lambotte e Pierre Fédida.


Palavras-chave
Depressão, melancolia, tempo, discurso, transferência.


Autor(es)
William Zeytounlian de Moraes Moraes
é mestre em história, tradutor e psicanalista.


Notas

1.S. Freud, Luto e melancolia, p. 171-172.

2."[...] a identificação é o estágio preliminar da escolha de objeto, e o primeiro modo, ambivalente em sua expressão, como o Eu destaca um objeto. Ele gostaria de incorporar esse objeto, e isso, conforme a fase oral ou canibal do desenvolvimento da libido, por meio da devoração. Abraham relaciona a isso, justificadamente, a recusa de alimentação que se apresenta na forma grave do estado melancólico" (idem, p. 182, grifo meu). Ainda sobre o tema da incorporação, cf. N. Abraham & M. Torok, Luto ou melancolia, in A casca e o núcleo

3.S. Freud, Luto e melancolia, p. 180-181.

4.S. Freud, Neurose e psicose, p. 176-183.

5."A análise nos dá o direito de supor que a melancolia é um exemplo típico desse grupo, e reivindicaríamos para esses distúrbios o nome de ‘psiconeuroses narcísicas'" (idem, p. 181).

6."Podemos, no entanto, postular provisoriamente que tem de haver afecções baseadas num conflito entre o Eu e o Super-Eu" (idem, ibidem).

7.Mais sobre o debate em torno das neuroses narcísicas, cf. M.-C. Lambotte, A deserção do Outro; e M. P. Fuks, Nos domínios das neuroses narcísicas e suas proximidades.

8.E. Roudinesco e M. Plon, Melancolia, in Dicionário de psicanálise, p. 507.

9.É o que a autora desenvolve nos quatro primeiros capítulos que compõem a primeira parte de O tempo e o cão.

10.    Tema dos três últimos capítulos que formam a terceira parte de O tempo e o cão.

11.    Desenvolvimento que amarra a primeira e a terceira parte do livro.

12.    M. R. Kehl, O tempo e o cão: a atualidade das depressões, p. 169-190.

13.    Idem, p. 153-168. Vale aqui citar, nas palavras de Benjamin, os perigos implicados na ideologia do novo: "Ficamos pobres. Fomos desbaratando o patrimônio da humanidade, muitas vezes tivemos de empenhá-lo por um centésimo do seu valor, para receber em troca a insignificante moeda do ‘atual'. À porta temos a crise econômica, atrás dela uma sombra, a próxima guerra. ‘Preservar' é um verbo que se aplica hoje a um pequeno grupo de poderosos que, Deus sabe, não são mais humanos do que a maioria; geralmente, são mais bárbaros, mas não da espécie boa" (W. Benjamin, Experiência e pobreza, in O anjo da história, p. 90).

14.    M. R. Kehl, op. cit., p. 137-151.

15.    Idem, p. 141.

16.    Idem, p. 201.

17.    Idem, p. 233.

18.    M.-C. Lambotte, op. cit.

19.    Idem, p. 87.

20.    Idem, ibidem.

21.    P. Fédida, É preciso ser dois para curar, in Dos benefícios da depressão: elogio da psicoterapia, p. 111-140.

22.    Idem, p. 122.

23.    "Quando se coloca a questão ‘O que cura numa psicoterapia?', as respostas adequadas são as que mais geralmente afluem. A relação, poder-se-ia dizer, ou ainda a transferência, o levantamento da amnésia infantil, a dissolução do complexo inconsciente, etc." (idem, p. 138).

24.    M.-C. Lambotte, op. cit., p. 91.

25.    Idem, ibidem.

26.    Idem, p. 92.

27.    M. R. Kehl, op. cit., p. 212.

28.    Idem, p. 224.

29.    Rilke morreu em 1926. Presenciou a Primeira Guerra Mundial. Há quem diga que ele é o poeta "jovem, mas já famoso" de que Freud fala em "A transitoriedade".

30.    Vale lembrar que "negócio" é a negação do ócio [neg-otium].

31.    Tradução minha. Publicada pela primeira vez na revista on-line Escamandro. Disponível em: https://escamandro.wordpress.com/2015/06/11/3-sonetos-a-orfeu-por-william-zeytounlian/. Consultado em: 15/2/2020.



Referências bibliográficas

1.S. Freud, Luto e melancolia, p. 171-172.

2."[...] a identificação é o estágio preliminar da escolha de objeto, e o primeiro modo, ambivalente em sua expressão, como o Eu destaca um objeto. Ele gostaria de incorporar esse objeto, e isso, conforme a fase oral ou canibal do desenvolvimento da libido, por meio da devoração. Abraham relaciona a isso, justificadamente, a recusa de alimentação que se apresenta na forma grave do estado melancólico" (idem, p. 182, grifo meu). Ainda sobre o tema da incorporação, cf. N. Abraham & M. Torok, Luto ou melancolia, in A casca e o núcleo

3.S. Freud, Luto e melancolia, p. 180-181.

4.S. Freud, Neurose e psicose, p. 176-183.

5."A análise nos dá o direito de supor que a melancolia é um exemplo típico desse grupo, e reivindicaríamos para esses distúrbios o nome de ‘psiconeuroses narcísicas'" (idem, p. 181).

6."Podemos, no entanto, postular provisoriamente que tem de haver afecções baseadas num conflito entre o Eu e o Super-Eu" (idem, ibidem).

7.Mais sobre o debate em torno das neuroses narcísicas, cf. M.-C. Lambotte, A deserção do Outro; e M. P. Fuks, Nos domínios das neuroses narcísicas e suas proximidades.

8.E. Roudinesco e M. Plon, Melancolia, in Dicionário de psicanálise, p. 507.

9.É o que a autora desenvolve nos quatro primeiros capítulos que compõem a primeira parte de O tempo e o cão.

10.    Tema dos três últimos capítulos que formam a terceira parte de O tempo e o cão.

11.    Desenvolvimento que amarra a primeira e a terceira parte do livro.

12.    M. R. Kehl, O tempo e o cão: a atualidade das depressões, p. 169-190.

13.    Idem, p. 153-168. Vale aqui citar, nas palavras de Benjamin, os perigos implicados na ideologia do novo: "Ficamos pobres. Fomos desbaratando o patrimônio da humanidade, muitas vezes tivemos de empenhá-lo por um centésimo do seu valor, para receber em troca a insignificante moeda do ‘atual'. À porta temos a crise econômica, atrás dela uma sombra, a próxima guerra. ‘Preservar' é um verbo que se aplica hoje a um pequeno grupo de poderosos que, Deus sabe, não são mais humanos do que a maioria; geralmente, são mais bárbaros, mas não da espécie boa" (W. Benjamin, Experiência e pobreza, in O anjo da história, p. 90).

14.    M. R. Kehl, op. cit., p. 137-151.

15.    Idem, p. 141.

16.    Idem, p. 201.

17.    Idem, p. 233.

18.    M.-C. Lambotte, op. cit.

19.    Idem, p. 87.

20.    Idem, ibidem.

21.    P. Fédida, É preciso ser dois para curar, in Dos benefícios da depressão: elogio da psicoterapia, p. 111-140.

22.    Idem, p. 122.

23.    "Quando se coloca a questão ‘O que cura numa psicoterapia?', as respostas adequadas são as que mais geralmente afluem. A relação, poder-se-ia dizer, ou ainda a transferência, o levantamento da amnésia infantil, a dissolução do complexo inconsciente, etc." (idem, p. 138).

24.    M.-C. Lambotte, op. cit., p. 91.

25.    Idem, ibidem.

26.    Idem, p. 92.

27.    M. R. Kehl, op. cit., p. 212.

28.    Idem, p. 224.

29.    Rilke morreu em 1926. Presenciou a Primeira Guerra Mundial. Há quem diga que ele é o poeta "jovem, mas já famoso" de que Freud fala em "A transitoriedade".

30.    Vale lembrar que "negócio" é a negação do ócio [neg-otium].

31.    Tradução minha. Publicada pela primeira vez na revista on-line Escamandro. Disponível em: https://escamandro.wordpress.com/2015/06/11/3-sonetos-a-orfeu-por-william-zeytounlian/. Consultado em: 15/2/2020.





Abstract
This essay intends to briefly expose the nosographic displacements of the melancholic and depressive clinical figures within Sigmund Freud’s investigations, as well as three contemporary authors’ contributions on the same subject, namely: Maria Rita Kehl, Marie-Claude Lambotte and Pierre Fédida.


Keywords
Depression, melancholy, time, discourse, transference.

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 TEXTO

Um percurso de leitura sobre melancolia e depressão: tempo, discurso e transferência

Some readings on melancholy and depression: time, discourse, and transference
William Zeytounlian de Moraes Moraes

Um percurso de leitura sobre melancolia e depressão: tempo, discurso e transferência
É traço marcante de um texto que seja considerado "clássico"?- ou "crucial"?- sua capacidade de inaugurar em torno de si ou genealogicamente um campo de investigações próprio. São textos cuja leitura inaugura leituras. Na psicanálise?- em que a construção e a transmissão dos saberes se dão pela circularidade entre teoria e clínica?-, inovações nas formas de ler reinventam as formas de escutar, e vice-versa.

São esses os méritos de um texto fundador como "Luto e melancolia", de Sigmund Freud. Escrito em 1915 como parte dos artigos de metapsicologia?- que ocuparam as horas de um Freud velho demais para a guerra, mas em franca militância pelo movimento psicanalítico?-, o texto lança os fundamentos de uma teoria psicanalítica dos processos de luto e dos quadros melancólicos. A partir dele, autores posteriores puderam apresentar suas contribuições à constituição de uma nosografia psicanalítica, precisões sobre os mecanismos das patologias da depressividade e indicações clínicas preciosas para o terapeuta. Nesse sentido, meu objetivo aqui é expor muito brevemente aquilo que julguei serem as principais contribuições de autores propriamente contemporâneos?- Maria Rita Kehl, Marie-Claude Lambotte e Pierre Fédida?- com relação a aspectos relevantes do sofrimento e da clínica da depressão e da melancolia.
 

• • •
Freud não passou perto de ser o primeiro a produzir um estudo sobre a melancolia. Desde a Antiguidade clássica, o tema do humor sombrio foi alvo de descrições e teorizações variadas na filosofia, na literatura e na medicina. No caso da medicina, tornou-se paradigmática pela teoria hipocrática dos quatro humores que, durante séculos, ajudou a descrever traços caracterológicos e patológicos decorrentes de um excedente humorístico no corpo: fleuma, sangue, bile amarela ou bile negra. A bile negra, nesse sistema, correspondia à melancolia: teria por elemento a terra, o outono por estação, Saturno por planeta regente. Se o caráter melancólico era marcado por cautela, racionalidade e gosto pela lógica, tendo pendor para o sonho, suas manifestações sintomáticas seriam ânimo triste, retração da vontade e da fala, atração pela morte e certo entorpecimento seguido de euforia.


Com a emergência da ciência moderna, essas categorias foram gradativamente caindo em desuso para ceder lugar a novos dispositivos discursivos sobre os tipos cronicamente marcados pela tristeza e certo desajuste existencial. Se a Revolução Francesa legou à filosofia e à poesia do século seguinte o sentimento de ennui inspirado pela decadência do Ancien Régime, a psiquiatria em franca ascensão no século XIX despe o humor sombrio de seus floreios literários, reduzindo-o a uma doença mental e subtraindo-lhe até mesmo o nome: a melancolia é sucessivamente a "lipemania" de Jean-Étienne Esquirol (Figuras 1 e 2), a "loucura circular" de Jean-Pierre Falret e a psicose maníaco-depressiva de Emil Kraepelin. Esta última designação é a mais corrente no mundo médico germanófono em que Freud se forma.

 

Foi no interior desse universo médico que Freud divergiu e criou sua teoria autoral. No contexto em que realizou o grosso de sua produção teórica, o que na tradição ocidental era designado como melancolia passou a ser descrito como depressão. Outra coisa era a psicose maníaco-depressiva kraepeliniana, caracterizada por certa produção delirante e quadros depressivos severos alternados por períodos de mania. Assim sendo, Freud abriu caminho para uma nosografia psicanalítica distinta da psiquiátrica com base em um quiasma que, caso não estejamos alertas, pode gerar equívocos: a melancolia clássica vai se transformar na depressão moderna, enquanto a psicose maníaco-depressiva/loucura circular/lipemania vai ser a "melancolia" na pena de Freud.


A posição de Freud consistiu em despsiquiatrizar a psicose maníaco-depressiva em um duplo movimento: o primeiro resgata o termo "melancolia" das mãos da fenomenologia e o segundo visa aproximá-la de uma experiência nada patológica, o luto. Grosso modo, Freud argumentou que, pelo trabalho do luto, o sujeito é capaz de se desligar do objeto perdido: trate-se de "uma pessoa amada ou de uma abstração que ocupa seu lugar", a prova da realidade torna a confrontação com a perda incontornável . Com certa aplicação de tempo e energia psíquica, é possível para o sujeito se desligar dos antigos investimentos libidinais para, posteriormente, estabelecer novos vínculos: feito o trabalho do luto, o ego encontra-se novamente livre para investir novos objetos, isto é, amar de novo, amar o novo. O caso da melancolia é diferente. Nela o sujeito se supõe responsável pela perda ocorrida, nega-a e julga-se possuído pelo morto ou pela doença que acarretou sua morte (incorporação) . Freud descreve esse processo em um parágrafo que é, talvez, o mais importante de todo o texto:

 

Não há dificuldade, então, em reconstruir esse processo. Havia uma escolha de objeto, uma ligação a certa pessoa; por influência de uma real ofensa ou decepção vinda da pessoa amada, ocorreu um abalo nessa relação de objeto. O resultado não foi o normal?- a libido a ser retirada desse objeto e deslocada para um novo?-, e sim outro, que parece requerer várias condições para se produzir. O investimento objetal demonstrou ser pouco resistente, foi cancelado, mas a libido livre não foi deslocada para outro objeto, e sim recuada para o Eu. Mas lá ela não encontrou uma utilização qualquer: serviu para estabelecer uma identificação do Eu com o objeto abandonado. Assim, a sombra do objeto caiu sobre o Eu, e a partir de então este pôde ser julgado por uma instância especial como um objeto, o objeto abandonado. Desse modo, a perda do objeto se transformou numa perda do Eu, e o conflito entre o Eu e a pessoa amada, numa cisão entre a crítica do Eu e o Eu modificado pela identificação.

 

No luto, o objeto é subtraído à realidade; na melancolia, "a perda do objeto se transformou em uma perda do Eu".


Cabe destacar alguns desdobramentos importantes desse estudo. Em primeiro lugar, no artigo "Neurose e psicose", de 1924 , Freud dá subsídios para a formalização nosográfica de uma organização psíquica [na fronteira entre a psicose e a neurose?], cuja [única?] figura clínica é justamente a melancolia . Outro passo importante na despsiquiatrização da psicose maníaco-depressiva que nada teria de psicose (conflito entre ego e mundo externo) nem da neurose de transferência propriamente dita (conflito entre o ego e o id), constituindo, isso sim, uma "neurose narcísica" (conflito entre o ego e o superego) . A importância dessas indicações breves em um texto tão sintético é equacionada até hoje. Isso porque considerar que neuroses de transferência, narcísicas e psicoses apresentam diferenças estruturais na forma pela qual o sujeito se relaciona com o entorno afetivo implicaria a necessidade, imperiosa para o psicanalista, de determinar suas etiologias específicas, tema de estudo tão negligenciado pela psiquiatria?- do niilismo terapêutico do século XIX às listas intermináveis de sintomas do DSM-5 .


Por outro lado, ainda que o texto de Freud enriqueça o psicanalista com formalizações metapsicológicas sobre o luto e a melancolia, pouquíssimo tem a dizer sobre a depressão que, em fins do século XX, se tornou o que foi a histeria um século antes: "uma verdadeira doença da época" . Se no plano da sintomatologia a depressão e a melancolia apresentam manifestações em comum?- negativismo, falta de ânimo, falta de autoestima, fantasias autodestrutivas, distúrbios somáticos, etc.?-, tal semelhança não se sustenta em uma abordagem mais estrutural. Para dizer em termos mais claros: a melancolia seria uma estrutura propriamente dita?- forma de ser com o Outro, de ser na linguagem, de ser na norma, como se queira dizer...?-, enquanto a depressão poderia se configurar como uma psicopatologia passível de atravessar qualquer estrutura (neurótica, perversa, psicótica). Sendo estrutura e sintoma coisas diferentes. Evidentemente, por diversos motivos, esse ponto não é consenso entre os autores.


Isso permitiu que Maria Rita Kehl e Marie-Claude Lambotte propusessem perspectivas distintas. Em O tempo e o cão, Kehl argumenta em dois sentidos diferentes, mas confluentes. Por um lado, lança mão de uma leitura historicizante da depressão de modo a compreendê-la como sintoma social. Seu problema central se resume à seguinte problematização: para além do discurso psiquiátrico-farmacológico que literalmente "produz" a depressão como uma mercadoria-diagnóstica com vistas a vender a mercadoria-remédio, por que o momento atual de capitalismo avançado parece produzir formas de subjetividade mais depressivas que qualquer outra época? Por outro lado, amparando-se em perspectivas caras à leitura lacaniana de Freud, a autora busca diferenciar a depressão da melancolia em termos de sua etiologia: o que, nas relações com os objetos primordiais, predispõe à depressão ou lança fundamentos para uma estrutura melancólica?


Para esmiuçar o primeiro aspecto?- "o que a depressão tem a ver com o momento histórico que vivemos?"?-, Kehl recorre a três autores: o poeta francês oitocentista Charles Baudelaire, o filósofo berlinense Walter Benjamin e o filósofo francês Henri Bergson . Na poesia de Baudelaire, Kehl destaca os efeitos subjetivantes da experiência traumática de um tempo desprovido de devir: a aceleração produtivista da vida, a massificação das cidades e a destruição do passado fizeram emergir na pluma do "poeta maldito" uma estética de choque cuja riqueza simbólica deixa entrever o empobrecimento imaginário de um psiquismo incapaz de encontrar confiança na vida e no porvir . Benjamin, por sua vez, teorizou o fenômeno moderno do empobrecimento narrativo sobre a própria existência: nossa [nova] forma de miséria consistiria na perda de uma dimensão do saber e da memória capaz de conferir sentido a uma trajetória humana coletiva. Em outras palavras, a modernidade é marcada pela perda da experiência (rememorativa, transgeracional, produtora de sentido), em prol de repetições indefinidas de vivências (presentistas, individuais, produtora de estímulos) . Bergson, por fim, empresta suas reflexões sobre a função da memória para que Kehl contraponha o tempo vazio das percepções, da informação, da cronologia, a um tempo de qualidade absolutamente diversa, tempo impregnado de passado, de sentimento de continuidade: a duração .


Esse é um aspecto importante da abordagem proposta por Kehl. Há algo na forma como a modernidade produz o tempo que predispõe o sujeito à depressividade. A experiência foi substituída pela vivência; o passado, pelo presente; a memória, pela informação; a duração, pelo tempo do relógio. Nesse sentido, a psicanálise seria capaz de restituir ao sujeito arrastado pelo ritmo paradoxalmente produtor e destruidor do capitalismo uma experiência cronológica tornada obsoleta nas cidades modernas: a de um tempo que não passa segundo o relógio, tempo de demora e permanência?- tempo do inconsciente.


Um tempo avesso às urgências da demanda do Outro, gancho usado por Kehl para pensar?- e, aqui, já estamos em terreno inteiramente psicanalítico?- as relações do futuro depressivo e melancólico com seus objetos primordiais. Para ser sintético e me ater apenas ao cerne do argumento, o futuro melancólico seria aquele cuja mãe não foi capaz de simbolizá-lo, mãe "morta", deprimida, sem desejo, sem cuidados, enquanto a mãe do depressivo, em sentido completamente oposto, teria possibilitado a identificação do bebê com o falo. Essa identificação é cara ao futuro depressivo que posteriormente vai ser desbancado de seu lugar privilegiado, caso contrário se tornaria psicótico. O ponto crucial na configuração da "posição do depressivo" residiria em dois tempos: primeiramente, a mãe "sufoca" o bebê com sua ansiedade e presença desmedida.

 

Na origem da predisposição à depressão?- que ocorre com frequência, a meu ver, nas estruturas neuróticas?- não está uma mãe que não deseja nada além do que seu bebê representa para ela. Mas pode estar uma mãe ansiosa, insegura, hiperativa, amorosa demais?- uma que atropela, com sua pressa e solicitude, ou seja, com sua própria demanda, a delicada constituição do tempo psíquico de seu bebê.

 

Posteriormente, na travessia edípica, diante da rivalidade fálica, a criança recua para junto da mãe como a criança castrada que nada pode . A entrada no Édipo é o período-chave para a constituição das fantasias infantis que visam reverter a perda narcísica implicada na entrada do pai em cena. No futuro depressivo envergonhado de sua impotência, porém, só resta defender-se da demanda voraz do Outro retirando-se passivamente a um tempo que não passa, a um espaço que não produz, a uma vida sem desejo .


Assim, o destino que muitas vezes parece ser partilhado pelos melancólicos e depressivos no plano da sintomatologia não corresponde a experiências infantis análogas. O melancólico experimentou de forma dolorosa uma ausência prolongada do Outro materno, ausência vivida como abandono e desinteresse. Já o depressivo, por ter sido atendido por uma mãe solícita e apressada, mãe que se antecipava às demandas do infans sem que este pudesse alucinar satisfações ou formular demandas, sofre de um tempo lento e vazio impregnado da presença do Outro. Outro demandante do qual é preciso fugir sob a ameaça de não poder lutar por seu próprio desejo, uma vez que o empobrecimento imaginário do depressivo não o ampara com cenas triunfantes de vitórias projetadas no devir. Fatalista que é, sua luta está perdida de antemão.


Adentrando o setting, Lambotte nos fornece indicações clínicas valiosas para a escuta de pacientes depressivos e melancólicos . Se Kehl desdobrou suas reflexões a partir de uma dupla problematização sobre sintoma social e estrutura psíquica, ambas enlaçadas pela temática comum da experiência do tempo na contemporaneidade, Lambotte se debruça sobre a seguinte questão: considerando a pluralidade de manifestações melancólicas e depressivas, que elementos discursivos nos permitiriam realizar um diagnóstico diferencial entre as duas? Para a autora, a chave está no que denominou "discurso depressivo" e "discurso melancólico". O depressivo, ainda que acometido de um sofrimento em maior ou menor medida excruciante decorrente de sua inibição e tristeza, seria capaz de se apropriar de sua biografia. Tem "condições de contar sua história": "depois que me aconteceu isso eu estou assim, eu não consigo mais fazer nada, etc." .


Penso aqui, a título de ilustração clínica, no caso de um rapaz de 14 anos que atendo. Entrando em análise já medicado pelo psiquiatra, mostrou com o tempo ser capaz de uma produção onírica e associativa bastante fértil. Ainda na primeira sessão me disse: "Vim aqui porque hoje percebo ‘minha tristeza' [é como chama a depressão]. Todo mundo dizia que tinha algo errado comigo, mas eu não via. Eu só sei que começou a acontecer há três anos, depois que saí da escola em que eu ia, no mesmo ano que meus pais se divorciaram...". Meses depois, era possível ver com clareza como a elipse de seu discurso ladeava a temática da humilhação sexual em diferentes períodos de sua infância. Foi, porém, o a posteriori da saída do pai da cena familiar?- com dia, mês e ano precisos?- que o fez reviver a trama pregressa de ataques sofridos como sintoma: "a minha tristeza".


É diferente, afirma Lambotte, do discurso melancólico. Essas pessoas estão "em um estado de inibição total" . Seu sintoma não tem história. Puxar as tramas da tessitura de sua vida guia o analista a um caos original, anterior a qualquer criação: lugar sem sentido, sem calor nem amor. Enquanto o depressivo é capaz de nos guiar narrativamente para as datas comemorativas de uma falta, o melancólico nos conduz ao coração das trevas do nada: "Eu sempre fui assim, não tenho nenhuma história para contar, sempre foi assim, eu nasci sob uma estrela ruim e, de qualquer modo, a vida é assim, você sabe, não existe verdade, não tem sentido, estamos todos no mesmo barco". É um discurso, assinala Lambotte, em que a própria pessoa se vê excluída em prol de elucubrações pseudofilosóficas de matiz niilista: algo sobre a verdade incontestável da ausência de amor e sentido nas relações, na vida, no universo...


Penso aqui em outro exemplo clínico: um homem de 52 anos, homossexual, cultíssimo, que experimentou ao longo de sua vida grande parte dos antidepressivos disponíveis no mercado. Seu discurso erudito sobre o desamparo e a solidão em que sempre se viu tinha no começo algo de cativante: combinava com suas roupas impecáveis e estilosas dignas de um dândi balzaquiano pronto para destilar ressentimento contra um mundo desprezível. Mas, com o tempo, além de repetitiva, sua fala e lógica se mostrou bastante pobre em associações. "Estou cansado", era como rompia invariavelmente o silêncio inaugural das sessões. Era preciso dizer algo novo sobre si. Mas como? Poderíamos começar revisitando uma mãe, há 52 anos, que queria ter um filho para ocupar o lugar da filha anterior, natimorta. Uma mãe, talvez, muito triste...


Sem entrar em muitos detalhes, Lambotte assinala que tais particularidades discursivas, isto é, de laço, requerem sequências de tratamento semelhantes. Tanto na depressão como na melancolia, é preciso uma retomada do investimento em objetos exteriores. Por quê? É aqui que a leitura do texto de Pierre Fédida, "É preciso ser dois para curar", pode nos auxiliar . Em termos gerais, o problema que o psicanalista francês nos apresenta é o seguinte: o que cura em uma relação analítica? Para responder a essa pergunta, que nos remete ao cerne da ética da psicanálise, é preciso antes de mais nada nos interrogarmos sobre o que entendemos por cura. Para Fédida, ainda é corrente uma noção de cura que remete genealogicamente à despossessão demoníaca: cura à la Jean-Martin Charcot, se pensarmos no uso da sugestão hipnótica ; cura à la moderna, tendo em vista as pretensas soluções farmacológicas disponíveis na drogaria mais próxima. De um jeito ou de outro, tratar seria algo como arrancar o mal de dentro do paciente, posição a que, segundo Fédida, o analista não pode ceder. O autor argumenta que, paradoxalmente, o analista só é capaz de curar se tirar de seu horizonte a própria cura. Ou, pensando no sentido etimológico da palavra, o analista só é capaz de curar na medida em que isso diga respeito ao processo?- curar é cuidar...?- e não às finalidades. É por esse viés que o autor realiza o giro tautológico que lhe permite responder à pergunta inicial. O que cura em uma relação analítica? Ora, o que cura em uma relação analítica é a relação. É preciso ser dois para cuidar .


Em termos práticos, portanto, é preciso que o melancólico e o depressivo conquistem certa mobilidade interior a partir da aproximação ao entorno afetivo. No caso do melancólico, Lambotte nos alerta para não apoiar nem concordar apressadamente com as ruminações negativistas sobre a Verdade e o Nada que o paciente nos comunica. Fazer isso é fechar a única brecha que ele mesmo nos oferece como entrada para seu sofrimento . Por outro lado, inundar o analisando com assertivas rasas sobre o sentido maravilhoso da vida e da benevolência alheia é apostar no tratamento analítico como compensação, restauração ou reconstrução da falha estrutural do imaginário do sujeito o que, para a autora, também é um erro . Tal reconstrução está fora de cogitação. Com sua abstinência provocadora, o analista deve depositar suas fichas em outra formação imaginária que não seja reconstrução do vínculo narcísico frouxamente estabelecido com a mãe, mas que se fundamente na construção?- sem o prefixo "re"?- ou na projeção de uma fantasia sobre o analista: a de que ele também esteve, só, no inferno, naquele mesmo inferno, e que voltou ileso. Assim, junto ao cadáver incorporado do Outro que desertou, o analisando pode ser capaz de voltar reiteradamente ao consultório para assimilar dessa vez o analista, sujeito suposto detentor de um saber sobre a vida e a morte .


Quanto ao depressivo, o outro analítico na transferência deve ser capaz de criar um ambiente de tempo ausente de demandas. Na contramão do ritmo acelerado da produtividade capitalista e do afobamento materno, em contraposição aos quais a lentidão depressiva se afigura como recusa, o analista se dispõe em uma nova duração, na qual o analisando pode se reposicionar frente ao seu desejo e ao Outro, de modo a dilatar sua vida retraída.

 

Ao deparar-se com o fato de que o Outro é um lugar simbólico, vazio de significações, vazio de amor e de demandas de amor, o sujeito está em melhor condições de sustentar sua posição a partir do desejo. Condição bem menos confortável do que a daquele que se imagina entregue às boas mãos de Deus, ou ao amor do Outro. Menos confortável e mais livre. Mais aberta à invenção, ao risco, à escolha.

 

O trabalho analítico com os depressivos consiste, assim, na busca da "duração de um tempo necessário para que o sofrimento se converta em experiência" . Sem excluir a dor da equação inerente a uma vida em expansão. Reconhecimento dos "benefícios da depressão" (Fédida), exercício da "capacidade de deprimir-se" (Winnicott).


Benjamin teve a intuição precisa de que Baudelaire era um "lírico no auge do capitalismo". Enquanto lírico, vinculava-se a uma genealogia de cantadores cuja tradição acalentava certa ideia de gênio sonhador, triste, mas criador. A melancolia sempre jogou bem com os símbolos. Por outro lado, situá-lo no ápice do capitalismo localiza sua depressividade em um tempo?- acelerado, industrial, em que o passado se tornou ruína?- e em um espaço?- a cidade de Paris (França) massificada e desfigurada pelo higienismo haussmaniano. É um deslocamento importante. Baudelaire é um moderno. Mas um moderno cujo fatalismo de versos como "Relógio! deus sinistro, assustador, indiferente, / E cujo dedo ameaça a nos dizer: Recorda!" dificilmente não nos faz lembrar o lugar-comum pictórico de vanitas, as vaidades da época barroca, por exemplo. Não é mais o tempo dos devotos que, por séculos, fizeram conviver ambivalentemente com sua esperança em um porvir de redenção e eternidade, o medo do suplício infernal da condenação. Ainda assim, é um tempo que se alimenta da matéria da vida, que aniquila o desejo, que entedia, que ameaça. Baudelaire é um fatalista.


Em contraponto, gostaria de terminar este ensaio com os versos de outro poeta, Rainer Maria Rilke. Como bom herdeiro da tradição artística a que pertencia, Rilke não se esquivou diante da morte. Seu ciclo de Elegias de Duíno são cantos de desespero, perguntas solitárias acerca do sofrimento que os impasses de existir apresenta a todos nós. A todos invariavelmente. As respostas que obteve, porém, foram bem diferentes daquelas de Baudelaire, mesmo tendo escrito depois . Diferente do tédio e do ressentimento baudelairiano, de uma retirada fatalista ou de uma entrega ao mal digna de um dândi, Rilke se volta às coisas e às pessoas no sentido de construir uma nova forma de lidar com o tempo, com a permanência, com a transitoriedade. É pensando na tarefa analítica com melancólicos e depressivos, tarefa de cuidado, de aproximação cautelosa e de experiência num tempo avesso à pressa dos negócios , que termino com estes versos de Rilke:

 

Sempre estamos em via.
Mas do tempo a passar,
o que há de ficar
é só ninharia.

O que hoje se apura
acabará logo, em breve;
só o que perdura
nos comove e compele.

Jovem, não gaste atitude
em ousada corrida,
ou voo tentador.

Tudo está na quietude:
breu, luz do dia,
livro e flor.


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