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ÍNDICE TEMÁTICO 
63
Fronteiras e travessias
ano XXXII - Dezembro 2019
201 páginas
capa: Liana Cardoso Soares
  
 

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Resumo
Com base em questões sobre os conceitos de perversão e transgressão, este artigo interroga as operações estruturantes do sujeito e a incidência das mudanças na cultura em sua constituição e na produção da subjetividade. Nesse percurso, aspectos concernentes à formação do eu na relação inicial com o outro ganham destaque, possibilitando pensar a origem do sujeito ético. Ao mesmo tempo, busca-se afirmar a importância da história vivida e da cultura de pertinência de cada um no que concerne a abrangência do reconhecimento do outro como semelhante humano. O trajeto percorrido convida a relançar a pergunta sobre quais são as características da atualidade e seus efeitos na relação do sujeito com a alteridade.


Palavras-chave
perversão, transgressão, constituição do sujeito, subjetividade, sujeito ético.


Autor(es)
Maria do Carmo Vidigal Meyer Dittmar Dittmar
é psicanalista, membro dos departamentos de Psicanálise e de Psicanálise com Crianças do Instituto Sedes Sapientiae. Professora do curso psicanálise com crianças e membro do Conselho Editorial da revista Percurso.


Notas

1.Crença dos habitantes de Matimati (M. Couto, Terra sonâmbula, p. 17).

2.Kaës destaca as contribuições de Green e Laplanche "para qualificar o espaço do sonho em Freud. O fechamento do espaço psíquico é necessário para que o sonho advenha: nenhum sonho é possível sem isso. Essa hipótese forte estabelece o quadro das concepções freudianas do trabalho do sonho, do sonho como cena intrapsíquica, como realização alucinatória do desejo e, sobretudo, do desejo de retorno ao espaço materno. Correlativamente, o conhecimento do espaço do sonho permitiu conhecer as qualidades do espaço onírico: são homólogas" (R. Kaës, La polyphonie du rêve, p. 24).

3.S. Freud, Interpretação dos sonhos, p. 666 (tradução de L. Ballesteros). Na tradução de Paulo César de Souza, lemos: "na interpretação percebemos que há ali um novelo de pensamentos oníricos que não é possível desembaraçar... o ponto em que ele assenta no desconhecido. Os pensamentos oníricos que encontramos na interpretação têm de permanecer geralmente inconclusos" (S. Freud, Interpretação dos sonhos, p. 575).

4.R. Kaës, La polyphonie du rêve.

5.Em El grupo y el inconsciente, Anzieu destaca o pioneirismo de Bion e faz uma descrição detalhada do início de seus atendimentos de grupo como psiquiatra militar, em um hospital durante a Segunda Guerra Mundial (p. 134).

6.R. Kaës, La polyphonie du rêve, p. 4.

7.Idem, p. 5.

8.R. Kaës, op. cit.

9.C. Joubert, La théorie du lien. Esquisse d'une metapsychologie du lien en psychanalyse, p. 2.

10.    Expressão de P. Aulagnier, A violência da interpretação: do pictograma ao enunciado.

11.    C. Joubert, op. cit., p. XX.

12.    P. Aulagnier, A violência da interpretação: do pictograma ao enunciado, p. 276, grifo da autora.

13.    R. Kaës, Du Moi-peau aux envelopes psychiques. Genèse et développement d'un concept.

14.    Idem, p. 38.

15.    R. Kaës et. al., Penser l'inconscient; Développement de l'oeuvre de Didier Anzieu, p. 124.

16.    R. Kaës, La polyphonie du rêve, p. 3.

17.    R. Kaës, op. cit., p. 118.

18.    R. Kaës, op. cit., p. 9.

19.    R. Kaës, op. cit., p. 216.

20.    R. Kaës, op. cit., p. 47.

21.    R. Kaës, op. cit., p. 58.

22.    P. Benghozi, Le travail psychanalytique de rêverie et de figurabilité en psychanalyse groupale et familiale, p. 6.

23.    F. Urribarri, Contribuciones al psicoanálisis del malestar contemporáneo. Aportes a una genealogía del psicoanálisis argentino, p. 17.

24.    R. Kaës, Du Moi-peau aux envelopes psychiques. Genèse et développement d'un concept, p. 22.

25.    P. Aulagnier, op. cit.

26.    P. Aulagnier, op. cit., p. 94.

27.    Idem.

28.    S. Kleiman, apud C. Joubert, La théorie du lien..., p. XX.

29.    R. Kaës, op. cit., p. 204.

30.    J. L. Borges e O. Ferrari, Sobre os sonhos e outros diálogos, p. XX.

31.    J. L. Borges e O. Ferrari, op. cit., p. 157.

32.    M. Couto, op. cit., p. 17.

33.    R. Kaës, op. cit., p. 216.



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Abstract
Based on some issues regarding the concepts of perversion and transgression, this article questions the structuring operations of the subject and the incidence of changes in culture both in its constitution and in the production of subjectivity. In this path, aspects concerning the formation of the self in the initial relationship with the other are highlighted, allowing us to think deeper about the origin of the Ethical Subject. At the same time, it intends to affirm the importance of the lived history and the culture of belonging of each person in what concerns the scope of recognizing the other as a human being. The route taken invites us to relaunch the question regarding the characteristics of our current days and their effects on the subject’s relationship with alterity.


Keywords
perversion, transgression, constitution of the subject, subjectivity, ethical subject.

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 TEXTO

Perversão, transgressão e subjetividades

Perversion, transgression and different types of subjectivity
Maria do Carmo Vidigal Meyer Dittmar Dittmar

Introdução

Como pensar as operações estruturantes, imprescindíveis para a constituição do sujeito, diante da variabilidade das normas na cultura? E qual a incidência dessas pautas contingentes nas subjetividades? As muitas questões que podemos formular em torno do conceito de perversão são significativas para trabalhar tais temas[1]. Embora muitas vezes associada, por oposição, à ordem moral prevalente em determinada época, a perversão é mais bem definida como uma perturbação que altera profundamente a relação do sujeito consigo mesmo e com os outros e, nesse sentido, requer ser entendida a partir das relações estruturantes do sujeito. Para Silvia Bleichmar, também a origem do sujeito ético remonta às relações iniciais. No entanto, por outro lado, a instauração no sujeito singular do que pode ser chamada de ética do semelhante não garante que se universalize e seja extensível a todos os humanos, o que nos leva a indagar acerca dos elementos que compõem nossa cultura de pertinência.

Neste artigo, parto dos estudos de Jean Laplanche, Silvia Bleichmar e Eugene Enriquez. Também trabalho com um texto de Flávio Ferraz sobre Masud Khan, com o objetivo de afirmar a importância e a possibilidade de articular diferentes perspectivas teóricas. A obra Transgressões[2], organizada por Carlos Alberto Plastino e publicada em 2001, trouxe contribuições essenciais. Na apresentação do livro, Plastino chama a atenção para a dupla face das normas: sua vertente organizadora e estruturante, por um lado, e sua vizinhança com as questões da dominação, por outro. O autor também pergunta: como relacionar a inscrição das normas no registro singular com sua vigência ou não na vida social?

 

Édipo, castração e perversão em Silvia Bleichmar

Contava Bleichmar que, na defesa de seu doutorado, orientado por Laplanche, em 1983, ele lhe perguntou se não estava na hora de abandonar os tempos do Édipo de Jacques Lacan. Ela respondeu a ele: não vou abandonar nada que não saiba por que abandonar, sem ter pelo que substituir.

Podemos dizer que essa questão está presente em toda produção teórica de Bleichmar; em 2005, quando proferiu a conferência intitulada "O que resta de nossas teorias sexuais infantis"[3], encontramos algumas posições muito claras. Nessa conferência, a autora questionou algumas formulações tomadas como universais teóricos e apresentou sua definição de complexo de Édipo, castração e perversão. Bleichmar busca diferenciar dos supostos universais teóricos aqueles que seguem tendo permanência daqueles que devem ser descartados. Para isso, como alternativa à oposição entre metapsicologia e mito[4], proposta por Laplanche para pensar questão próxima a essa, a autora toma como eixo a oposição entre constituição do psiquismo e produção da subjetividade.

O conceito de perversão é, nesse sentido, exemplar, uma vez que costuma estar associado a pautas morais e, portanto, a produção das subjetividades, que é variável e concernente a determinados períodos históricos.

A primeira formulação freudiana sobre as perversões a apresentava como negativo das neuroses, como exercício das pulsões parciais?- o que pode favorecer que, desligadas do contexto da construção teórica de Sigmund Freud, as perversões sejam compreendidas tomando como eixo a condenação moral de práticas sexuais não genitais. Sua formulação seguinte, ao trabalhar a questão do fetichismo, leva a pensar a questão da perversão como estando ligada ao não reconhecimento pelo sujeito da realidade da diferença sexual, o que posiciona a angústia de castração no centro das defesas acionadas pelo Eu. Para Bleichmar, ambas as teorias estão marcadas por formas contingentes de produção da subjetividade, e tais formas mudaram.

O complexo de castração, tal como descrito por Freud, baseia-se em uma teoria sexual infantil, que é construída pela criança diante de alguns ingredientes?- como bem formula Laplanche, ao questionar a transposição dessas teorias singulares para um universal teórico da psicanálise: a ameaça de castração e a percepção da diferença sexual são elementos empíricos, circunstanciais à vivência de determinadas crianças e que podem não se apresentar para elas. Em Laplanche, o complexo de castração é uma teoria sexual infantil que opera como um organizador psíquico, sendo que a codificação da percepção da diferença sexual e sua articulação ao complexo de Édipo não é um universal a-histórico. Consequentemente, outras formas de organização são possíveis e precisam ser descritas[5].

A isso, Bleichmar acrescenta que a produção da subjetividade, na época de Freud, estava baseada na ocultação da sexualidade dos adultos (e, de fato, em algumas descrições clínicas da época, podemos ver que aquilo que é dito e não dito pelos adultos imprime sua marca nessas teorias), enquanto que, atualmente, temos excesso de informação. Poderíamos discutir com Bleichmar: o excesso de informação não elimina os enigmas do nascimento, da sexualidade, da diferença, da morte, etc. Creio que ela não se oporia a essa afirmação. Seu alvo não é a inevitabilidade dos enigmas e das teorizações a que conduz. Na mesma direção de Laplanche, o que Bleichmar questiona é a universalização das teorias sexuais infantis, contingentes e singulares, pelas teorias psicanalíticas.

Para Bleichmar, partindo da leitura que faz de Lacan, a castração deve ser pensada com relação à falta e à incompletude narcísica, por um lado, e à alteridade, por outro.

Bleichmar considera necessário redefinir o Édipo como o modo com que cada cultura pauta os limites de apropriação do corpo da criança como lugar de gozo do adulto. Ou seja, Édipo como exclusão da criança na circulação de prazer entre os adultos e como proibição do incesto como proibição do gozo intergeracional. Penso que a autora busca exatamente articular em relação ao mito edípico o que é contingente e imprescindível e, assim, designa que, além de alguma regulação ou pauta ser imprescindível, embora variável, tal regulação necessariamente incide sobre o desejo de apropriação do adulto em relação à cria, tendo, nesse sentido, uma especificidade. O que segue sendo estruturante é o interdito de apropriação da criança pelo adulto. Além disso, no livro Paradoxos da sexualidade masculina, Bleichmar faz menção a uma função terciária de mediação de desejos entre a criança e o adulto[6].

Partindo dessa base conceitual, ela propõe que o que está no centro da problemática perversa não é o tipo de prática sexual, mas a dessubjetivação e o desconhecimento, tanto do outro como de si mesmo. Essa abordagem permite pensar no estatuto metapsicológico da perversão, diferenciando-a de seu aspecto moral e normativo. Para Bleichmar, o que está em jogo na perversão é a impossibilidade de reconhecer a totalidade do objeto de amor, impossibilidade que é correlativa à falta de apropriação psíquica de aspectos inconscientes do próprio sujeito, que, por sua vez, é dominado por correntes pulsionais parciais e levado a práticas compulsivas que não é capaz de integrar em seu próprio psiquismo. Considera ainda que essas práticas cumprem uma função defensiva diante do transbordamento pulsional, que colocaria em risco a estrutura do Eu. Esse aspecto me parece importante: o sujeito perverso não é apenas levado a exercer dominação sobre o corpo do outro. Ele próprio é passivo e dominado de forma incoercível por aspectos pulsionais inconscientes.

 

Perversão, transgressão, contestação

Perversão, transgressão e contestação são termos que remetem, por oposição, à vigência de certa normatividade organizadora, seja do sujeito, seja da sociedade. Como os diferenciar?

No artigo "Um mundo sem transgressão"[7], que integra o já mencionado livro Transgressões, Eugène Enriquez nos oferece ferramentas importantes para pensarmos sobre a diferença entre pautas estruturantes e contingentes, embora coloque em foco a vigência das normas no campo social. Condizente com a perspectiva que dá direção ao livro, Enriquez considera a transgressão como um movimento de rejeição da ordem existente e de criação do novo, e não como mera violação da lei. A transgressão, assim concebida como positiva e criativa, só é possível quando da vigência de dada regulação social compartilhada. Ele enfatiza a dimensão coletiva da normatividade vigente e do movimento transgressivo. Chama a atenção para o fato de que, quando essa regulação definha, não é a transgressão que tem lugar, e sim a perversão e a paranoia. É essa formulação que dá origem ao título do artigo, sendo central em seu argumento.

A tese de Enriquez se apoia no trabalho efetuado por Georges Bataille e Roger Caillois sobre a existência de um mundo sagrado ao lado do mundo profano. Para o autor, o mundo profano é aquele das leis dos homens, que regula sua vida cotidiana, as quais, em sociedades democráticas, são suscetíveis de combate, contestação e, consequentemente, mudanças. Tais mudanças estão dentro da expectativa de todos e podem ocorrer com alguma frequência, sem que acarretem algum problema nos alicerces da sociedade.

Em contraste com esse mundo profano e mutável, o mundo sagrado apresenta "as feições da ordem das coisas e dos seres"[8]. Embora também seja um produto de cultura, é vivido pelos sujeitos como transcendente. A ele correspondem dois campos de fenômenos: as proibições estruturantes fundamentais e as proibições essenciais a uma sociedade. As proibições estruturantes fundamentais são a proibição do incesto e a proibição do assassinato de pessoas de uma mesma sociedade, ambas imprescindíveis no alicerce da existência coletiva. Nesse sentido, não podem ser realmente transgredidas coletivamente, embora o sejam excepcionalmente. Sua transgressão coletiva colocaria em questão a própria humanidade, embora o desejo de sacrilégio seja sua contraface intrínseca (se tais interditos existem, é porque designam o desejável e o perigo que o envolve). A transgressão radical das proibições estruturantes é impossível, sob pena de negar o trabalho da cultura e a imunidade da espécie humana. Se a transgressão desses interditos advém de modo "normal" ou instituído?- como na obra de Sade ou por ocasião dos crimes nazistas, diz Enriquez?-, transforma-se em seu contrário: na perversão.

No que diz respeito às funções estruturantes, tratamos aqui do plano social, e a referência à Totem e tabu é explícita. Podemos relacionar a proposta de Bleichmar de sustentar como imprescindível e universal, no plano da estruturação psíquica do sujeito singular, a universalidade do interdito do gozo intergeracional (correspondente, como já foi dito, à exclusão da criança na circulação de prazer entre os adultos e à proibição da apropriação da criança como lugar de gozo do adulto).

No que diz respeito ao que Bleichmar circunscreve como produção da subjetividade, variável a cada momento histórico, interessa-nos o que Enriquez designa como proibições essenciais a uma sociedade. Elas são incluídas no campo do designado mundo sagrado, por serem experienciadas pelos sujeitos como sagradas, mas participam de fato do mundo profano, podendo mudar de época para época e de sociedade para sociedade. Essas proibições essenciais se exprimem nos valores e princípios centrais da sociedade, nos ideais do Eu coletivo e na força do supereu coletivo. "Dito de outro modo, elas enunciam não só a preeminência da sociedade sobre o indivíduo, como também o fato de que todo sujeito psíquico é um sujeito social, um sujeito de direito, um sujeito histórico [...] portanto criador, por menor que seja, da história coletiva."[9] E completa:

Cada um é atravessado (e é o representante) pela "consciência coletiva" (Durkheim), pelo "imaginário social" de uma época, e partilha as "significações imaginárias centrais" (Castoriadis) da sociedade. Quando este não é o caso, a sociedade tende a se decompor e a anomia, a prevalecer. Há, portanto, em todo conjunto organizado, uma certa "cultura", quer dizer, um certo número de princípios, valores, práticas sociais, símbolos, significações imaginárias que orientam a ação dos indivíduos e dos grupos, que os socializam, que dão acesso a sua identidade e que forjam a coesão do grupo (seja qual for seu tamanho).[10]

É em relação a essa cultura compartilhada (tão bem definida por Enriquez), tomada como sagrada em determinado momento, que se coloca a questão da transgressão e também do sacrilégio?- que dela se avizinha, mas se diferencia. Enquanto o sacrilégio apenas torna profano o que era tido como sagrado, a transgressão pressupõe este passo, mas vai adiante: além de destruir antigos objetos, a transgressão instala novos valores. É nesse campo que o autor entende que alguns valores vividos como sagrados, tais como a racionalidade econômica e instrumental, os nacionalismos exacerbados e a heterossexualidade normativa, foram incluídos na categoria de profanos e volatilizados em prol de outros objetos de culto, como a dignidade de cada ser humano, a singularidade de cada cultura, a liberdade sexual, etc. Foi o que ocorreu entre os anos 1965 e 1980.

Considero importante destacar que alguns dos valores que colocamos no centro de nossas questões já se encontravam em pauta nos anos 1960. Fundamental que estejam presentes, pois está claro que não estão assegurados como princípios fundamentais, e a reação atual mostra como essa profanação dos antigos valores ainda é considerada como sacrilégio; se uma nova regulação social pôde se configurar desde então, não é hegemônica. Ao contrário, cinde a sociedade e desperta enormes e violentas resistências.

No entanto, o que há de novo no front? A reação dita conservadora é suficiente para explicar essa sensação de abalo sísmico, a romper o solo de valores mais humanitários, que, se não estavam assegurados, pareciam estar se consolidando?

Enriquez esboça uma visada aos movimentos históricos na construção desses valores. Ele considera que naqueles anos (1965-1980), algumas proibições sociais tidas como sagradas deram lugar a outras consideradas mais justas, mas que esse movimento foi interrompido entre os anos 1980 e 1995. Europeu, Enriquez passa ao largo do fato de que foi nesse período (1965-1980), dito libertário, que se instauraram as ditaduras na América Latina. De qualquer forma, diz ele, nas configurações sociais que se desenvolveram após esse processo, ditas pós-modernas, predominou o que denominou totalitarismo democrático de tipo capitalista. E aí, sim, podemos pensar que nós, latino-americanos, readquirimos a democracia quando esta já estava inserida nessa lógica, que ele considera como uma forma de totalitarismo. No denominado totalitarismo democrático de tipo capitalista, o dinheiro é o valor supremo e, embora a liberdade individual exista, a ausência de regulação mascara um tipo de totalitarismo que favorece a busca de sucesso individual e o desaparecimento dos ideais coletivos. Nessas condições, as práticas consideradas por muitos como transgressivas não o são. Na ausência de ideais e de um supereu coletivos, e muitas vezes também intrapsíquicos (nos sujeitos singulares), e de uma suposta liberdade individual, não restaria mais nada para transgredir. Ou melhor, só restaria o campo da perversão, em que cada um busca manipular e instrumentalizar o outro para seu próprio gozo.

No entanto, nesse texto escrito em 2001, Enriquez considera que, a partir de 1995, é possível detectar a configuração de um novo sagrado, que pode então se tornar objeto de contestação. Ele conclui afirmando que a transgressão, que não apenas profana o sagrado, mas propõe novos valores, só é possível se há objetos sagrados, e há de percebê-los, habitá-los, criticá-los?- para que seja possível não só profanar como também construir algo novo. Afirmação que tomo como um convite para que nos perguntemos quais são as características deste momento, que cultura tomamos como sagrada e condiciona nossa subjetividade.

Por ora, interessa-me retomar a questão que não me parece suficientemente contemplada: como pensar o registro singular das normas e interdito na dinâmica dos sujeitos psíquicos e sua articulação ao registro da vida social? Seriam registros completamente diferentes ou registros indissociáveis? Para tanto, parece-me interessante, antes, voltar à questão da perversão no psiquismo individual.

 

O sujeito perverso em Masud Khan

Seguindo Bleichmar, procuramos distinguir a configuração perversa, no sujeito singular, de sua conotação moral, ligada a normas contingentes. Ao entender a perversão como dessubjetivação de si e do outro, a autora nos permite aproximar perversão, apropriação do corpo do outro e ausência de interdito.

Buscando avançar na compreensão do funcionamento psíquico do sujeito perverso e de sua origem, recorro a um texto escrito por Flávio Ferraz[11]. A escolha desse texto se deve a que, além de apresentar o pensamento de Masud Khan sobre a perversão, Ferraz procura pensar aspectos da metapsicologia subjacente, derivada de Donald Winnicott, em especial por meio da trajetória do conceito de dissociação a partir de Freud. Esse percurso de Ferraz me interessou particularmente por abrir uma série de questões interessantes em relação a conceitos fundamentais, e nos vemos diante da importância e dificuldade de trabalhar com base em diferentes perspectivas teóricas. No final do texto, o autor apresenta a proposta clínica de Khan.

A descrição de Ferraz, seguindo Khan, é muito rica e acrescenta bastante à compreensão da perversão. Destaco que, próximo à concepção de Bleichmar, Khan coloca no centro de sua concepção sobre a perversão o conceito de alienação, o que é enfatizado por Ferraz. O livro de Khan chama Alienação nas perversões e, nele, segundo Ferraz, Khan resume o argumento básico de seu livro nos seguintes termos: "o perverso coloca um objeto impessoal entre seu desejo e seu cúmplice: este objeto pode ser uma fantasia estereotipada, um artifício ou uma imagem pornográfica. Os três o alienam de si mesmo, assim como, desafortunadamente, do objeto de seu desejo"[12].

A perversão é considerada uma patologia do ego, relacionada ao mecanismo de defesa da dissociação do ego e aproximada ao campo das psicoses. Nessa concepção, a forma de realização sexual do perverso, sempre compulsiva, visa a um alívio para os estados de angústia e, nesse sentido, a função sexual é usada para a satisfação de necessidades pré-sexuais, buscando reparar e compensar a insuficiência dos cuidados maternos originários e a consequente falha na transicionalidade. O caráter paradoxal da cena perversa consiste em que, apesar de uma suposta intimidade, que dissolve as fronteiras do Eu, o mecanismo da dissociação do Eu garante a ausência de envolvimento e entrega genuínos, de forma que a cena sempre fracassa e nunca representa, de fato, a gratificação esperada. Por isso se repete compulsivamente. O acting-out, em que o agir sobrepuja a elaboração psíquica, consiste na única forma de comunicação do perverso com o outro. Embora rudimentar e falseada, é uma experiência importante, em virtude do isolamento e do enclausuramento narcísico característicos dessa forma de funcionamento psíquico.

Como afirma Ferraz, Khan considera que Freud, ao tratar da clivagem do ego em seus últimos textos, abriu as portas para as patologias do ego em geral, mas discorda que tal mecanismo se limite a ser uma mera defesa contra a castração. Assim, extrai da teoria freudiana sobre o fetichismo e a dissociação outras consequências. No entanto, para o autor, estamos aqui em outro paradigma metapsicológico que se aparta de Freud e também de Melanie Klein, embora tenha se originado desta segunda.

Ainda para Ferraz, o mecanismo da dissociação do Eu é peça central nessa mudança de paradigmas e, na segunda parte do texto, o autor descreve a trajetória do conceito, partindo de Freud, passando por Klein até chegar em Winnicott. Neste último, a dissociação é uma defesa do bebê contra uma integração malsucedida, devido às falhas do ambiente. Nesse sentido, o processo de defesa não é do Eu, mas no Eu, comprometendo o processo de sua própria constituição diante da cisão que acontece primariamente na organização ambiente-indivíduo, sendo a cisão no Eu seu desdobramento. Considero essa perspectiva bastante interessante.

Nesse artigo, o que mobiliza Ferraz é realçar a precocidade do mecanismo de dissociação na problemática perversa em oposição à centralidade do complexo de Édipo e da angústia de castração na perversão, tal como pode se depreender do exemplo freudiano do fetichismo. Nesse sentido, a perversão é considerada como uma questão pré-edípica.

A direção proposta, de investigar processos precoces que alteram a formação do Eu na relação com o outro e as simbolizações iniciais, é interessante e creio que pode ser articulada à compreensão de Bleichmar, muito embora essa autora a inclua na dimensão edípica, na medida em que pensa o Édipo dos pais como determinante do lugar que a criança vem a ocupar para eles, o que enlaça a criança na cultura desde as origens.

É indubitável a importância que o psiquismo do adulto tem para a criança na vertente winnicottiana, mas considero que a possibilidade de compreender a falha da mãe ambiente se enriquece a partir do estruturalismo lacaniano. Nessa vertente, a estruturação psíquica dos pais antecede os movimentos estruturantes na criança, não cabendo falar em pré-edípico. É necessário, no entanto, chamar a atenção para o fato de que Bleichmar, com base em Laplanche, se apropria do estruturalismo, mas também o questiona, especialmente ao criticar seu caráter a-histórico, e propõe pensar em termos de estrutura edípica de partida, que se inscreve no psiquismo infantil a partir de um processo de transformação e metábole[13]. Ainda dentro dessa perspectiva, não é possível considerar que a formação do Eu ocorra em um campo de necessidades pré-sexuais, tal como concebido por Winnicott. Na teorização laplanchiana, embora haja lugar para pensar o somatopsíquico pré-sexual inicial (nomeado campo autoconservativo), o termo pulsão designa o que se produz no bebê a partir do encontro com o outro originário, em uma relação essencialmente assimétrica, alterando em profundidade o organismo biológico da cria. Nessa concepção, pode-se dizer que não há pulsão sem objeto, e não há objeto sem pulsão.

No que diz respeito ao psiquismo do adulto, Ferraz nos conta como Khan descreve a forma como as figuras parentais se apresentam para a criança: o pai não é registrado como pessoa significativa, e a falha materna, que propicia a formação psíquica singular do perverso, relaciona-se com a presença simultânea e contraditória do excesso de cuidados e indulgência, que favorece a dependência e o infantilismo, e com as exigências traumatizantes baseadas na pressuposição de maior maturidade na criança, favorecendo, simultaneamente, um desenvolvimento precoce do ego. Uma mãe ao mesmo tempo sedutora e traumatizante, afirma Khan, recuperando a primeira teoria da sedução freudiana, e que cria uma aguda dissociação egoica na criança.

A proximidade com o pensamento de Bleich­mar e, por que não, de Enriquez, é mais uma vez possível. Na descrição de Khan, podemos supor que é o funcionamento dissociado da própria mãe que causa a falha ambiental e determina a patologia, o que permite pensar em um adulto que se apropria do corpo da criança, sem possibilidade de reconhecer sua alteridade.

Mas é necessário seguir assinalando diferenças. Em Khan, o adulto, por ser sedutor e traumatizante, causa a estruturação perversa, diferentemente da Teoria da Sedução Generalizada, que considera que o adulto é inevitavelmente sedutor[14], o que acarreta a necessidade de interrogar a especificidade da sedução que está em jogo na relação entre o adulto e a criança no futuro perverso. Em alguns momentos, Laplanche buscou investigar as características específicas do que denominou mensagem enigmática, que dariam origem a configurações não neuróticas, mas a questão segue aberta para novos desenvolvimentos[15]. De qualquer forma, o autor deixa claro que pensar nos efeitos das mensagens sobre os sujeitos requer considerá-las no cerne da teoria tradutiva, que integra o conceito de après-coup. Não é possível aprofundar esse tópico neste momento, mas vale assinalar que é uma perspectiva que, tal como a ideia de metábole, rompe com a possibilidade de transpor de forma direta as condições do psiquismo do adulto para o que se inscreve na criança. Da mesma forma, em Bleichmar, um aspecto importante na compreensão clínica são os sucessivos movimentos de recomposição psíquica que ocorrem no decorrer da história do sujeito e que reinscrevem o que foi vivido inicialmente, alterando os efeitos das marcas precoces em um psiquismo que busca constantemente significar a experiência. Elas não deixam de existir, mas perturbam ou são reintegradas em novas narrativas pelas crianças. Consequentemente, a constituição psíquica e a subjetividade não se constroem de forma linear e definitiva com base na experiência precoce[16].

Cabe, ainda, mencionar a terceira parte do texto de Ferraz, fundamental para defender a importância de uma perspectiva integradora das "diferentes psicanálises". Nela, o autor chama a atenção para a clínica que deriva de colocarmos no centro de nossa atenção aspectos clivados do psiquismo. Salienta a complexidade da clínica na perversão, uma vez que a relação com o analista não propicia a satisfação física que cumpre função defensiva diante da angústia. Propõe, ao lado da interpretação do significado dos aspectos dissociados e atuados na realidade, dar atenção ao que de novo é possível produzir na experiência do paciente em presença do analista e coloca em destaque a necessária atividade do analista.

Embora não seja possível nos estendermos sobre esse modelo, acredito que tal perspectiva é essencial para os desafios com que nos defrontamos cotidianamente na clínica atual, e nos leva a reafirmar a importância de trabalhar no entrecruzamento de perspectivas teóricas diversas e também, em profundidade, sobre o campo que se estabelece entre analista e paciente, assim como sobre o funcionamento mental do analista.

 

Retomando a questão da articulação entre o psiquismo individual e social

Após essa retomada da perversão como configuração psíquica singular, retomo a pergunta de Plastino: como pensar o registro singular das normas e o interdito na dinâmica dos sujeitos psíquicos e sua articulação ao registro da vida social? Seriam registros completamente diferentes ou registros indissociáveis? A questão é de vulto, e apresento apenas alguns aspectos que contribuem para estabelecer diferenças e relações entre a figura clínica da perversão e a perversão nos vínculos e relações sociais.

Baseados em metapsicologias distintas, vimos que tanto Bleichmar (dessubjetivação e desconhecimento de si e do outro) como Khan (alienação de si e do outro) colocam no centro da problemática singular da perversão a compulsão e a impossibilidade de se relacionar com o outro como alteridade, buscando circunscrever a questão que se apresenta para o sujeito.

A questão da alteridade é um tema fundamental para Bleichmar, que, tendo como referência a obra de Emmanuel Lévinas, pensa a ética a partir da perspectiva do reconhecimento da presença do semelhante em sua alteridade. Ela procura compreender a origem do sujeito ético a partir das relações iniciais com o adulto e, para dar conta desse processo, o conceito de narcisismo transvazante cumpre uma função importante[17]. É um conceito que surge no contexto de uma afirmação sobre a dupla função materna na constituição do aparelho psíquico, e que, a meu ver, tem potencialidade articuladora, estando situado em um lugar teórico que permite fazer trabalharem diferentes perspectivas do campo psicanalítico que procuram entender os primeiros movimentos de ligação pulsional e simbolização no aparelho psíquico incipiente do bebê.

Para compreender esse conceito, é preciso partir da Teoria da Sedução Generalizada, pois, como já afirmamos, Bleichmar pensa os momentos de instalação da pulsão com base em Laplanche. No entanto, em contraste com o que predomina na obra do autor, ela enfatiza a presença da sexualidade amorosa e terna do adulto na constituição dos movimentos de simbolização e do narcisismo da criança. Considera que, além de instalar o campo do pulsional desligado (tal como propõe Laplanche), o adulto permite que se estabeleçam as vias de ligação da excitação pulsional que ele mesmo criou, cumprindo uma função narcisizante e simbolizante. É o investimento amoroso do adulto que tem, então, um papel decisivo nas ligações pulsionais que serão facultadas à criança e estarão na base da formação do Eu, sendo a contrapartida da implantação pulsional. Atravessado por seu inconsciente, o adulto tem, ao mesmo tempo, a partir de seu sistema egoico narcisista, uma representação totalizante do bebê, estabelecendo-se um jogo identificatório que não se reduz a especularidade, pois inclui o reconhecimento da alteridade do bebê, e será fundante do Eu da criança. É o fato de que a constituição da criança foi atravessada pela amorosidade do outro que dá origem na criança a essa mesma ética de reconhecimento do outro. Um tipo de amorosidade bastante singular, que possibilita ao adulto mergulhar e, de certa forma, perder-se no universo de sentidos do bebê, como descrito por Winnicott, e, ao mesmo tempo, reconhecer sua alteridade.

Para Bleichmar, as condições do narcisismo transvazante na mãe dependem de seu narcisismo secundário, decorrente da elaboração do Édipo. Nessa direção, podemos pensar que o interdito de apropriação do corpo da criança no psiquismo do adulto é uma das condições para que se relacione com a criança, pressupondo-a como um sujeito diferente de si mesmo, e que, muitas vezes, a origem de fracassos estruturais na criança, como a configuração perversa, decorre de uma falha na possibilidade de o adulto sair de si mesmo para reconhecer, simultaneamente, a identidade ontológica e a alteridade da criança. No entanto, além da estrutura psíquica singular do adulto, condições fortuitas podem obstar a função do sistema representacional do auxiliar materno/adulto, incidindo na relação originária. Em texto anterior, eu me referi a esse ponto da seguinte forma:

Esses obstáculos podem derivar da história pessoal, familiar ou coletiva, assim como também de fatores genéticos ou acidentais, que criam determinadas condições no corpo biopsíquico do bebê, durante a gestação ou nos primeiros tempos de vida. Ressaltamos que é uma perspectiva que dá grande importância aos tempos reais de construção do psiquismo na relação com o outro; e, nesse sentido, é preciso contemplar a forma como os acontecimentos históricos incidem tanto no psiquismo do adulto como no do bebê.[18] 

Assim, mudanças importantes nas pautas que configuram nossa subjetividade produzem efeitos na constituição psíquica nas origens do sujeito. Além disso, se consideramos o psiquismo como estando aberto a recomposições, essas alterações sociais, por après-coup, produzem efeitos subjetivantes ou dessubjetivantes nas singularidades, nas relações interpessoais e coletivas. Novos acontecimentos podem não apenas desencadear algo que estava latente como também ressignificar o anterior e ter, inclusive, efeitos desestruturantes?- sendo este um dos aspectos que nos permitem compreender vínculos perversos em sujeitos que não possuem, necessariamente, estruturação perversa.

O que considero, também, bastante interessante é que, para Bleichmar, uma vez instaurado no sujeito singular a possibilidade de reconhecimento do outro simultaneamente como semelhante humano e como outra pessoa (alteridade), nada garante que esse reconhecimento se universalize de forma a abranger todos os seres humanos. Ou seja, nada garante que a presença no aparelho psíquico singular de uma ética do reconhecimento do outro nas relações intersubjetivas opere também nas relações sociais. Será o discurso ideológico que definirá, para cada um, os atributos daqueles que serão considerados semelhantes, a partir do que a cultura de pertinência valida como tal.

Cabe recuperar aqui a definição de Enriquez de cultura como conjunto organizado, que inclui um conjunto de práticas, símbolos e valores considerados essenciais a uma sociedade, incluídos no campo do sagrado e que se apresentam como não contestáveis, mas que podem sê-lo. Valores que, como afirma o autor, quando definham, não dão lugar à transgressão, mas à perversão e à paranoia no campo social.

Dessa forma, o caminho percorrido nos mantém de acordo com as perspectivas teóricas que diferenciam a perversão, enquanto figura clínica, da perversão nas relações sociais. Também nos permite sustentar a importância de a psicanálise seguir revisando seus fundamentos, para que possamos nos manter ocupando um lugar afirmativo na cultura, a partir de nosso próprio campo. Nesse sentido, a articulação entre diferentes perspectivas teóricas é imprescindível, dada a complexidade do humano.

 

À guisa de conclusão

Com base em metapsicologias distintas, vimos que tanto Bleichmar (dessubjetivação e desconhecimento de si e do outro) como Khan (alienação de si e do outro) buscam circunscrever a questão que se apresenta para o sujeito perverso de forma menos ligada a um julgamento moral. Ambos colocam no centro da problemática singular da perversão a compulsão, que submete o próprio sujeito, e a impossibilidade de se relacionar com o outro como alteridade. Essas observações nos levaram a investigar, nas duas perspectivas, aspectos do processo de formação do Eu na relação com o adulto das origens. Para Bleichmar, a origem do sujeito ético remonta a essa relação primária e é concomitante à formação do Eu, sendo dessa relação que advém a possibilidade para o sujeito de se relacionar com o outro como semelhante em sua alteridade. No entanto, afirma ela, é a cultura de pertinência que define, para cada um, aqueles que vão ser considerados como semelhantes humanos e, consequentemente, tidos como merecedores dos mesmos direitos e submetidos aos mesmos deveres que cada um considera válido para si mesmo. Tal afirmação nos conduz de volta às perguntas acerca das mudanças na cultura que incidem sobre a produção da subjetividade e que podem favorecer ou legitimar relações perversas (que desconhecem a subjetividade do outro) em sujeitos que não são necessariamente perversos.

A pergunta persiste: quais são as características deste momento histórico que incidem na produção de nossa subjetividade e na configuração dos sofrimentos psíquicos? A partir das ferramentas oferecidas por Enriquez, podemos nos indagar se estamos em um mundo sem transgressão possível, diante do esgarçamento de princípios e valores, em que imperam a paranoia e a perversão no campo social, ou se podemos apreender, como diz ele, "diversos elementos que ‘fazem sistema' [...] se reforçam uns aos outros e que se apresentam como não contestáveis e como devendo ser defendidos, pois prometem eles sozinhos a felicidade humana futura"[19], configurando-se em um novo sagrado que, uma vez percebido, pode indicar os caminhos de uma necessária transgressão.

Acompanhando Enriquez, vimos que muitas das mudanças que têm nos impulsionado, enquanto psicanalistas, a operar transformações tanto em nossa prática clínica como no campo teórico já se encontram presentes desde os anos 1960. A dissociação que temos progressivamente efetuado entre família tradicional e as funções constituintes do psiquismo, assim como entre diversidade de escolha e práticas sexuais e psicopatologia, tem permitido acolhermos na clínica as diferentes formas de sofrimento humano, sem ter como referência pautas morais e contingentes. Trata-se de um trabalho teórico-clínico que permite, por um lado, melhor circunscrever a particularidade de determinadas figuras clínicas, tais como buscamos fazer com a perversão, e, por outro, pensar nos efeitos das mudanças nas configurações familiares e nas complexas questões de gênero, levando em conta as singularidades. Nada é simples neste campo, e seguimos imersos em categorias que nos determinam, mas considero que estamos bem preparados. Afinal, temos tido mais de cinquenta anos para efetuar muitas das transformações e elaborações teórico-clínicas que nos têm sido imprescindíveis.

Creio que o que é relativamente novo e, articulado a elementos macroeconômicos e políticos, compõe e fortalece um sagrado incontestável é a onipresente e onisciente tecnologia digital, incluídas a inteligência artificial e as inúmeras redes sociais[20]. As diversas telas incidem sobre nós, muitas vezes a partir de uma lógica invisível, interferindo profundamente na relação de cada um consigo mesmo, com o outro e com mundo. Diante delas, temos uma experiência paradoxal: elas nos unem e separam, informam e deformam, cristalizam e dissolvem fronteiras, para dizer o mínimo. De fato, cada um de nós tem muito a dizer sobre essa experiência, na qual estamos todos imersos e, de certo modo, seduzidos e encantados, muito embora também estejamos de alguma maneira temerosos e atentos, pois os efeitos de controle, recusa, paralisia, isolamento entre iguais e reiteração do mesmo tendem a se intensificar com o avanço da inteligência artificial e da biotecnologia. De qualquer forma, as telas e as redes nos atravessam e produzem, colocam em jogo a tensão entre a aspiração de um encontro, de convívio (com-vívio), de ser com o outro, e a experiência de apagamento e invisibilidade, diante da qual parece ao sujeito que não tem ninguém ali. Mas tem, sempre tem alguém ali. Mesmo que seja o próprio sujeito diante da tela.

No contexto deste artigo, cabe perguntar a nós mesmos sobre o tipo de experiência que se produz nas telas e redes, como intervir?- tanto na clínica como no cotidiano e no âmbito social?- diante das inúmeras figuras da perversão que se apresentam e como favorecer o encontro com o desconhecido em si e a alteridade do outro em tempos em que imperam a tecnologia e os encontros virtuais.



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Percurso é uma revista semestral de psicanálise, editada em São Paulo pelo Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae desde 1988.
 
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