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ÍNDICE TEMÁTICO 
63
Fronteiras e travessias
ano XXXII - Dezembro 2019
201 páginas
capa: Liana Cardoso Soares
  
 

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Resumo
Determinadas características dos sonhos nas psicoterapias psicanalíticas de casal e família chamam especial atenção. Neste artigo, retomamos propostas centrais de René Kaës em Polifonia dos sonhos, procurando evidenciar as discussões desde Sigmund Freud acerca de espaço psíquico e sonhos. A obra teórico-clínica de diversos autores ao longo do século XX evidencia a necessidade de abertura desse espaço. Kaës propõe a concepção não mais de um, mas de três umbigos do sonho. Texto também clínico, compartilhamos aspectos do atendimento de casais e famílias que vêm ao encontro de tais discussões.


Palavras-chave
sonhos, psicoterapia psicanalítica de casal e família, família, casal, grupos, René Kaës.


Autor(es)
Maria de Lourdes Caleiro Costa Costa
é psicanalista, membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, no qual integra o conselho editorial da revista Percurso, membro da Associação Brasileira de Psicanálise de Casal e Família (ABPCF) e da Associação Internacional de Psicanálise de Casal e Família (AIPCF).


Notas

1. Crença dos habitantes de Matimati (M. Couto, Terra sonâmbula, p. 17).

2. Kaës destaca as contribuições de Green e Laplanche "para qualificar o espaço do sonho em Freud. O fechamento do espaço psíquico é necessário para que o sonho advenha: nenhum sonho é possível sem isso. Essa hipótese forte estabelece o quadro das concepções freudianas do trabalho do sonho, do sonho como cena intrapsíquica, como realização alucinatória do desejo e, sobretudo, do desejo de retorno ao espaço materno. Correlativamente, o conhecimento do espaço do sonho permitiu conhecer as qualidades do espaço onírico: são homólogas" (R. Kaës, La polyphonie du rêve, p. 24).

3. S. Freud, Interpretação dos sonhos, p. 666 (tradução de L. Ballesteros). Na tradução de Paulo César de Souza, lemos: "na interpretação percebemos que há ali um novelo de pensamentos oníricos que não é possível desembaraçar... o ponto em que ele assenta no desconhecido. Os pensamentos oníricos que encontramos na interpretação têm de permanecer geralmente inconclusos" (S. Freud, Interpretação dos sonhos, p. 575).

4. R. Kaës, La polyphonie du rêve.

5. Em El grupo y el inconsciente, Anzieu destaca o pioneirismo de Bion e faz uma descrição detalhada do início de seus atendimentos de grupo como psiquiatra militar, em um hospital durante a Segunda Guerra Mundial (p. 134).

6. R. Kaës, La polyphonie du rêve, p. 4.

7. Idem, p. 5.

8. R. Kaës, op. cit.

9. C. Joubert, La théorie du lien. Esquisse d'une metapsychologie du lien en psychanalyse, p. 2.

10. Expressão de P. Aulagnier, A violência da interpretação: do pictograma ao enunciado.

11. C. Joubert, op. cit., p. XX.

12. P. Aulagnier, A violência da interpretação: do pictograma ao enunciado, p. 276, grifo da autora.

13. R. Kaës, Du Moi-peau aux envelopes psychiques. Genèse et développement d'un concept.

14. Idem, p. 38.

15. R. Kaës et. al., Penser l'inconscient; Développement de l'oeuvre de Didier Anzieu, p. 124.

16. R. Kaës, La polyphonie du rêve, p. 3.

17. R. Kaës, op. cit., p. 118.

18. R. Kaës, op. cit., p. 9.

19. R. Kaës, op. cit., p. 216.

20. R. Kaës, op. cit., p. 47.

21. R. Kaës, op. cit., p. 58.

22. P. Benghozi, Le travail psychanalytique de rêverie et de figurabilité en psychanalyse groupale et familiale, p. 6.

23. F. Urribarri, Contribuciones al psicoanálisis del malestar contemporáneo. Aportes a una genealogía del psicoanálisis argentino, p. 17.

24. R. Kaës, Du Moi-peau aux envelopes psychiques. Genèse et développement d'un concept, p. 22.

25. P. Aulagnier, op. cit.

26. P. Aulagnier, op. cit., p. 94.

27. Idem.

28. S. Kleiman, apud C. Joubert, La théorie du lien..., p. XX.

29. R. Kaës, op. cit., p. 204.

30. J. L. Borges e O. Ferrari, Sobre os sonhos e outros diálogos, p. XX.

31. J. L. Borges e O. Ferrari, op. cit., p. 157.

32. M. Couto, op. cit., p. 17.

33. R. Kaës, op. cit., p. 216.



Referências bibliográficas

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Abstract
Certain characteristics of dreams in psychoanalytic psychotherapies of couples and families draw special attention. In this article, we resume some significant ideas proposed by René Kaës in Polyphony of the dreams, focusing the discussions regarding psychic space and dreams since Sigmund Freud. The clinical and theoretical work of several authors throughout the 20th century highlights the need to open this space. Kaës proposes the conception of no more one, but three navels of the dream. Also a clinical text, we share some aspects of psychotherapy sessions with couples and families that meet such discussions.


Keywords
dreams, psychoanalytic psychotherapy of couple and family, couple, family, groups, René Kaës.

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 TEXTO

À propósito dos sonhos em psicoterapia psicanalítica de casal e família

Dreams in psychoanalytic psychotherapy of couples and families
Maria de Lourdes Caleiro Costa Costa

“Se dizia que aquela terra era sonâmbula.
Porque enquanto os homens dormiam, a terra se movia espaços e tempos afora." 1

 
Os sonhos têm lugar marcante na terapia psicanalítica de grupos. Características muito específicas no que diz respeito a processos vinculares chamam a atenção. Na clínica de casal e de família, pela intensidade dos vínculos, isso tende a se acentuar.

Filhos têm sonhos que retomam questões do vínculo dos pais com os avós e que se repetem nessa segunda geração, possibilitando aos pais o processamento de determinadas questões que até então não eram mais que sombra paralisante. Por vezes, narrativas oníricas que falam do que foi silenciado há duas ou três gerações, muitas delas de violência e desamparo, que se repetem com outras faces no presente. Cônjuges que tomam em seus sonhos questões da família de seus parceiros e que, na sequência, se repetem no sonho deste último, evidenciando uma questão da relação do casal. Multiplicam-se imagens que surgem no sonho de pais, de irmãos, de cônjuges e que são retomadas logo adiante no sonho de outro, possibilitando a expressão onírica do que ainda não tinha encontrado palavras.

Esses sonhos nunca deixam de provocar muita reflexão. Que condições possibilitam esses processos de produção de sonhos a partir dos sonhos de outros? Como se dá isso de imagens do sonho de um serem tomadas para sonho de outro? Sim, é para; porque antes esse sonho não seria possível. Que papel os processos de figuração têm nisso? E o analista? Intervenções, interpretações, presença. Posto grupos, casais e famílias, que magnitude ganham os processos de presentação/apresentação? Pensar essas questões com base em Polifonia dos sonhos, de René Kaës, será o percurso deste artigo. Outros autores se seguirão.

Nesse livro de 2002 de Kaës ganham destaque a leitura de Interpretações dos sonhos, de Freud, pedra angular da psicanálise, e as questões trazidas desde então, com base na clínica com crianças, com psicóticos, com borderlines e com autistas, da clínica voltada para os traumas de guerras e para o atendimento de grupos. Afirmam-se seus desdobramentos teóricos-clínicos. Kaës fala de um segundo e mesmo de um terceiro umbigo do sonho. Mas vamos ao início.

 

Considerações iniciais

De Interpretações dos sonhos a Além do princípio do prazer, o fundamental. No interior da língua, uma outra língua, estranha. O sonho, por suas funções de elaboração e ligação, constrói outras cenas, cenas possíveis, a partir de cacos, restos, excessos. Proteção do sono, realização de desejos. Via régia de acesso ao inconsciente, primeira instância e, depois, a partir de 1920, quando corpo e psique estão expostos às forças pulsionais, qualidade de processos psíquicos, representações a serem construídas. Mas em Freud, sempre intrapsíquico, individual, os dispositivos da análise refletem esse espaço assim circunscrito.[1] Fechado mas vasado, desde sempre pelo umbigo do sonho, lugar do desconhecido, vórtice de onde o desejo se impõe. Diz Freud:

 

[...] foco de convergência das ideias latentes, nó impossível de desatar... ponto pelo qual está ligado ao desconhecido. As ideias latentes descobertas na análise nunca chegam a um limite e temos que deixá-las perder-se por todos os lados no tecido reticular do nosso mundo intelectual.[2]

 

Kaës sublinha na obra de Freud e em autores subsequentes momentos de possíveis aberturas do espaço psíquico. Marco forte nesse sentido, Mal-estar na civilização põe em evidência o sofrimento psíquico de origem social, o sujeito sendo atravessado por efeitos psíquicos dos grupos aos quais pertence. Porém, o espaço psíquico de produção dos sonhos continua fechado.

Em Melanie Klein, outras perspectivas. Ela fala dos fantasmas inconscientes, do sonho como cena de uma ação e dos mecanismos de identificação projetiva e de introjeção. Esses três conceitos geram a noção de espaço psíquico interno em estreita relação com o espaço psíquico de outros. A identificação projetiva, por seus efeitos emocionais, pode ser pensada como um primeiro aspecto relacional do inconsciente. Mas, apesar dessas aberturas, o sonho permanece como determinação e produção intrapsíquica.[3]

Finalmente, Kaës aponta Bion, Meltzer e Winnicott como os autores que trouxeram as bases de todas as pesquisas ulteriores acerca dos grupos e dos sonhos.

Bion, com base no atendimento de esquizofrênicos, estuda os sonhos ao procurar compreender processos do pensamento desses pacientes.[4] Propõe a função alfa, exercida pela mãe, que metaboliza e interpreta o que o bebê não pode acolher. Esses elementos apropriados pelo bebê constituem sua possibilidade de sonhar. O psicótico estaria saturado de elementos beta, não transformados. Afirma Kaës: "Com a capacidade de rêverie, Bion faz bascular a pesquisa sobre os sonhos na direção das condições intrapsíquicas e intersubjetivas da atividade onírica".[5] Meltzer fala da "experiência vivida do sonho" e joga luz sobre os processos pelos quais o analista coloca à disposição de seu paciente a mesma capacidade de rêverie da mãe em relação a seu bebê.[6] E Winnicott, entre muitas de suas contribuições, fala da qualidade do espaço transicional e da capacidade de utilizá-lo. O que se destaca aqui como questão, com base nesses três autores, diz Kaës, é a capacidade onírica de um outro, especialmente da mãe.[7] 

Destaca ainda o trabalho de inúmeros psicanalistas que, a partir de suas clínicas, contribuíram para a discussão desses "limites sempre moventes" do que seja espaço interno e espaço externo: Bion, relações de continente-conteúdo; Sami-Ali, inclusão mútua; Green, duplo(s) limite(s) do espaço psíquico; Anzieu, envelopes psíquicos individual e grupal. Também Ferenczi, quando diz que o destinatário do sonho faz parte do próprio sonho; Pontalis, cuja citação "o sonho não é mais o que era" abre o livro de Kaës, fala?- baseado na clínica e na escrita?- da matriz materna do sonho; Bleger, por seu conceito de comunicação sincrética e tantos outros. Em acordo com Janine Puget e Isidoro Berenstein, Kaës fala da especificidade do conceito de vínculo em psicanálise e da necessidade de diferenciá-lo da relação de objeto. Nas palavras de Joubert, diz: "O aparelho psíquico grupal é um modelo de partida para pensar a questão do vínculo, com os conceitos de alianças inconscientes, espaço onírico comum e vínculo como objeto específico no campo da psicanálise".[8] 

 

"O vetor sensorial"[9] 

Piera Aulagnier e Didier Anzieu têm lugar preponderante nas concepções de Kaës sobre o trabalho com grupos, sonhos, espaço psíquico, configuração de vínculos, processos psíquicos e seus efeitos. Anzieu, em relação a quem Kaës marca diferenças fundamentais, é provavelmente seu interlocutor principal.

Estamos no registro do sensorial, do Originário (P. Aulagnier, 1975). Essa busca da dependência originária se manifesta nos grupos e, portanto, no grupo da família, nos diz Kaës, pela busca imperiosa do ambiente. Nas sessões de terapia de família, afetos, emoções, o que é da ordem do sensorial, circulam também aquém da linguagem.[10]

Aulagnier sublinha a necessidade de a mãe satisfazer as necessidades pulsionais do recém-nascido, antecipando-as, interpretando-as, de maneira que se possa ir constituindo uma possibilidade de o recém-nascido produzir objetos de satisfação. Marcas mnêmicas do encontro boca/seio constituem o pictograma; quando a experiência é prazerosa, o registro é de união, quando desprazerosa, de rejeição. Um desdobramento disso é: boa-boca produz seio: prazer; má-boca destrói seio: sofrimento.

Essas experiências, não se inscrevendo no psiquismo por meio da imagem de palavra, não podem ser lembradas e:

 

[...] só se tornam dizíveis pelo analista através da reconstrução teórica [...] porém, tudo o que se construir no primário terá a marca do originário. É através do primário que a psique representa um não-eu, espaço no qual ela projetará a causa dos afetos que invadem seu campo, o que os tornará aptos a serem secundariamente dizíveis.[11]

 

Essas afirmações de Aulagnier ajudam a pensar uma questão frequente na clínica de casal e família que é a das fronteiras (dentro/fora, eu/não eu, pais/filhos, mãe/filhos, pai/filhos, e todas as outras configurações possíveis, família/fora da família, familiar/não familiar?- ambos?- dentro e fora da família) vividas muitas vezes como ameaçadoras, sendo que é a invasão ou falta de contenção, por vezes vazio?- pela mistura bastante nuançada disso?- o que sobrevém. É preciso notar também que Aulagnier fala da alternância, ao longo da vida, dos três processos de constituição do psiquismo: originário, primário e secundário.

Anzieu dedica-se ao estudo minucioso dos processos inconscientes e dos grupos e propõe uma série de conceitos que continuam bastante atuais para se pensar situações clínicas. Em um artigo de 2007,[12] Kaës escreve sobre o Eu-pele e os envelopes psíquicos e assinala a necessidade desses envelopes (onírico, sonoro, grupal) para a formação do "pré-Eu corporal". Nesse momento, o autor está muito próximo de Aulagnier ao falar de pictograma; os dois se referindo ao momento primordial de constituição do psiquismo de tal forma que, pelo uso das expressões Eu-pele, pré-Eu, e união-rejeição, ficam evidenciados nesse mergulho do que é da ordem do sensorial, "o contato possível e o limite provável".[13] 

Em O grupo e o inconsciente, Anzieu fala do grupo e do sonho como vias reais de acesso ao inconsciente. Trabalha as manifestações do inconsciente no grupo, mas esse inconsciente permanece individual. É nesse ponto que a concepção de grupo proposta por Kaës se distancia daquela de Anzieu e se afirma na direção da abertura do espaço psíquico:

Para mim o grupo não é só uma tópica projetada, contendo inconscientes individuais projetados no eu do grupo. O grupo é um aparelho de transformação da matéria psíquica, dos processos e das formações inconscientes e conscientes individuais. Os efeitos dessas transformações precedem cada sujeito, elas se transmitem e informam seu próprio espaço psíquico. A hipótese e o modelo que propus implicam a noção de um inconsciente que não corresponde aos limites do aparelho psíquico individual.[14]

 

A polifonia dos sonhos

Nove anos antes, Kaës publica A polifonia dos sonhos, um estudo teórico-clínico minucioso em que articula muitos dos aportes da psicanálise para compreensão das relações entre sonho e espaço psíquico. Com base em processos que ocorrem na clínica de grupos, notadamente de casal e família, propõe a ideia de um segundo umbigo do sonho, conceito por meio do qual as discussões acerca dessa clínica, com consequências também para as discussões da tópica psíquica, ganharam novas articulações e perspectivas. Fala da tessitura onírica, a matéria onírica sendo sustentada pela tessitura do grupo, toda atravessada por ressonâncias identificatórias e fantasmáticas. O sonho é uma polifonia de muitas vozes; cada sonhador sonhando no cruzamento de muitas vozes. A "segunda fábrica do sonho transforma essas produções polifônicas para que sejam restituíveis com o lastro de uma figurabilidade inédita, pré-consciente, no discurso do grupo pelo intermédio do porta-voz".[15] Esses processos associativos, sustentados pelo pré-consciente, pelos movimentos de identificação, tornam possíveis ligações, antes não possíveis, entre processos primários e secundários. Mergulhados nesse banho sonoro, olfativo, visual, tátil e nos muitos processos de transferência, tornados possíveis em um grupo, é que outros sonhadores, continua Kaës, podem encontrar apoio para sua própria atividade de representação e deixar seus próprios pensamentos se formarem.[16] Esses sonhos acontecem em função do próprio sonhador, mas também, como porta-voz, em função de outro participante e em função do processo do grupo.

Com nítidas marcas de figuração do que está acontecendo no espaço comum e compartilhado, esses sonhos se apoiam e se nutrem no desconhecido intrapsíquico e no desconhecido intersubjetivo, sendo que cada um desses espaços psíquicos tem formas de funcionamento próprios. No grupo, ilusão grupal, alianças inconscientes, dentre as quais os pactos inconscientes, ideologias, pensamentos mitopoiéticos e cadeias associativas específicas concorrem para a formação de um "tecido germinativo do sonho", e Kaës, com Mikhail Bakhtine, interroga: "Quem pensa, quem experimenta, quem sonha?".[17] 

Retomando os estudos de Bakhtin sobre a estrutura do romance polifônico, quando propõe a noção de polifonia do discurso, os de Freud, quando primeiro diz que não há comunicação nos sonhos, mas suas análises nunca os separaram de seu relato, aqueles de Ferenczi que, desde cedo, diz que o relato faz parte do sonho, os de K. Abraham acerca dos sonhos coletivos, e considerando o que a clínica de grupos evidencia sobre os processos de figuração, Kaës afirma: o endereçamento do sonho se constitui antes do sonho, em sua fabricação e no seu relato, mas, "aquém disso, sua formação traz a marca do encontro com o outro, o outro do objeto, e o outro no objeto, porque ele se produz em um espaço onírico comum, um espaço poroso, estranho e algumas vezes inquietante".[18] Considera-se aqui o campo da intersubjetividade todo atravessado?- que também é?- por fantasmas e significantes comuns e compartilhados.

Sendo essas as bases da psicoterapia psicanalítica de grupos, com relação à família, "berço onírico", isso se intensifica e ganha contornos específicos.

Kaës cita Ruffiot, que leva adiante a proposta de Aulagnier: "O pictograma é uma espécie de escritura ilegível sem o espelho da família"[19].

A clínica de família e as discussões clínico-teóricas consequentes se desenvolveram em grande parte em torno do atendimento a psicóticos. Do "berço onírico originário", evidenciam-se sonhos que não puderam ser sonhados, contidos, compartilhados. A possibilidade de rêverie da mãe se desdobrando na capacidade do bebê de sonhar seus próprios sonhos, a chegada do outro, a presença do pai, da figura paterna, contornos necessários, mas não instituídos, limites turvados, corpos alienados. Os sonhos que não puderam acontecer dentro, acontecem fora, diz Recamier.[20] Cenas de violência, abandono, perseguição. Quem sonha? Quem não pôde sonhar?

Isso se dá de modo diferente, mas chama a atenção a frequência com que casais e famílias trazem a mesma imagem: despedaçamento. Ou sua ameaça.

Encontramos em Anzieu a mesma expressão. Ele se reporta a imagens de crianças esquizofrênicas bem pequenas e também ao momento inicial de grupos: um retorno a essas imagens, face a um espelho fracionado pela presença de desconhecidos, incapaz de refletir qualquer unidade. Fala de Ego ideal e feridas narcísicas. Podemos pensar que encontramos esses mesmos efeitos de múltiplos espelhos quando os pais estão com-fundidos com as próprias figuras parentais, por vezes justamente pela violência, e os repetem também com os filhos. Podemos pensar em Ego ideal em relação a famílias, contrastando enormemente com as crises por que passam essa instituição e as consequentes feridas narcísicas. Em outros casos, sua idealização, como último refúgio narcísico?- e a impossibilidade de mantê-lo.

Houve uma quebra de paradigmas nos anos 1950, 1960 e 1970 que continua a ter seus efeitos. Saiu-se de uma estrutura mais rígida para uma ordem social em que pais estão mais ausentes, porque de alguma forma precisam, sem que haja uma rede de proteção afetiva de outros agentes nem mesmo da família estendida. Algo não foi construído, constituído no meio do caminho, dentro, entre.

Kaës aponta falhas de continência, distúrbios narcísicos e a multiplicação exponencial de quadros somáticos. Além da impossibilidade crescente de se sonhar. Benghozi concorda. "Estamos concernidos por problemáticas de continência. As sintomatologias evidenciam essencialmente problemas narcísicos. O mecanismo de defesa central é a clivagem". O que encontramos essencialmente na clínica, diz ele, são "patologias de continência genealógica".[21] Urribarri fala de "uma progressiva perda de legitimidade e de crédito das instituições e de uma aceleração da temporalidade e da lógica da urgência, defasando a transmissão dos legados genealógicos".[22]

Demandas sob a égide da urgência chegam à clínica evidenciando a eminência de rupturas; ruptura de si, de um outro, da família.

Benghozi fala da necessidade da abordagem psicanalítica de grupo, de casal, de família e de instituições que trabalhe a garantia de um enquadre de continência que, por sua vez, permita acolher o depósito de incrustações sensoriais e afetivas, dispersadas, despedaçadas.

 

Necessidade de continência, escuta
e presença

Diante das patologias do novo mal-estar na civilização, assinala Kaës, ganham sentido as propostas de Anzieu, do Eu-pele e, mais tarde, as de Green sobre o duplo limite, incisivo ensaio para se articular as bordas internas e externas do espaço psíquico individual.[23] Eu-pele; envelope sonoro, olfativo, auditivo, tátil e também onírico, grupal, familiar. De uma cisão inicial à possibilidade de continência.

Cada família tem uma sonoridade. Um fundo sonoro com o qual é preciso entrar em ressonância, diz Aulagnier; camadas e camadas de memória, algumas nas falas, nos relatos de sonhos, e, outras sem palavras, marcas mnêmicas.

É preciso escutá-las.

E "constituir uma história, racional e original, para se sustentar"[24].

Escutar a fala de cada um, que muitas vezes se sobrepõem à de outros, mas é preciso também garantir o espaço da fala de cada um?- eu quero escutar cada um, todos terão seu tempo. O prazer de escutar. "O prazer ligado à criação de um novo pensamento."[25] 

"O ouvir precede o entender, mas o desejo de entender-compreender o signo determina, a partir daí, o efeito do escutado."[26]

É preciso que cada um possa se ouvir, ouvir o outro; adiante escutar. Envelope sonoro, envelope onírico.

Rêverie. Função alfa, a confiança na capacidade de sonhar seus próprios sonhos, função gama, o grupo, a família, o casal poder sonhar seus próprios sonhos.

Numa semana, ela sonha que suas roupas transbordam; todas espalhadas pelo quarto, não cabem mais nos armários. Rimos; o prazer das conquistas, a análise caminhando. Algumas semanas depois, o primeiro sonho dele, seus livros, espalhados pelo chão da casa, alguns abertos, páginas marcadas.

Às vezes, riso, outras vezes, indignação, ora surpresa, ora uma voz mais forte, outras vezes uma mudança de lugar?- ao lado de quem luta para dizer algo; presença.

Polifonia, multiplicidade de vozes; a transferência existe, por vezes insiste, e são muitas. Às vezes, mais maciças, alianças mais compactas; às vezes, de um em um; três, um, da família, do casal; todas as direções e combinações possíveis. Algumas para serem interpretadas, outras informadas e muitas vezes memorizadas, aguardando eventualmente a hora de sua cena.

Os sonhos; escutá-los, acolhê-los. Interpretações mais voltadas para sua função no que diz respeito ao processo do grupo. A escuta simultânea das dimensões intrapsíquicas e interpsíquicas, os dois umbigos do sonho. As primeiras permanecem sobretudo como informação, memória. Talvez em outro momento, transformadas em outras figuras, somadas às do grupo, geralmente porta-vozes do que ali acontece; e pedem passagem.

Em determinados momentos, a necessidade de trazer figuras, pessoas, cenas para se fazerem presentes?- e outras imagens, falas, expressões, sentidos podem vir. Podem ser vistos, espelhos, espelhos invertidos, os que se desdobram, imagens que se multiplicam. Cenas em ação, dramatização. Muitas vezes surgem determinados sons, determinados cheiros abrindo caminho para retomada de determinados elos?- e outras falas serem possíveis. Outras vozes, outras vocalizações. Na feliz expressão de Sonia Kleiman, "Fazer com, entre e outros. Esse é o trabalho do vínculo, cenas de produção e afetação de presença".[27] 

Tendo como norte a afirmação, a independência de cada um dos sujeitos. Não mais a alienação em outros da família, mas a abertura afetiva para Outros desses vínculos.

 

O terceiro umbigo do sonho

A experiência do sonho nas civilizações é vasta. Estudos antropológicos encontraram suas marcas nos primeiros grupos humanos, experiências da véspera, e memórias anteriores, sendo transformadas para melhores condições de sobrevivência no dia seguinte. Outros saltos foram dados quando começaram a ser compartilhados. Seus relatos fortaleciam as condições de vida do grupo.

Memórias do passado, mensagens dos parentes mortos, predições para o futuro tonaram-se estruturantes para a vida dos grupos, para a instituição?- neles?- do lugar de cada um. Grandes grupos, civilizações.

Quando, dentro do quadro da psicanálise, esses sonhos, verdadeiras narrativas mitopoiéticas, foram estudados, sua compreensão ficou mais voltada para aquela do contexto social e cultural. Considerando numerosos desses estudos, bem como de etnólogos, experiências xamânicas e diversos antropólogos, Kaës supõe um "terceiro umbigo do sonho, um terceiro lugar onde o sonho se liga ao desconhecido, um terceiro novelo de relações sociais, representações culturais, onde se articulam com o sonho o rito e o mito".[28] 

Um terceiro lugar de estranhamento e constituição dos sujeitos.

Por ora, mal-estar de nossa civilização, muitos têm sonhado cada vez menos.

Na voz dos poetas, isso ganha a dimensão de pesadelo e de morte.

Borges, que já havia escrito nos versos de seu poema, O sonho: "Serei todos ou ninguém. Serei o outro / Que sem sabê-lo sou, aquele que olhou / Esse outro sonho, minha vigília. A julga, / Resignado e sorridente".[29] Em páginas sombrias, escreve:

 

[...] a Biblioteca, na rua México, entre a Perú e a Bolívar. Meus sonhos comumente se situam ali. Então, eu sonho que estou em um lugar qualquer e depois, por algum motivo, quero sair desse lugar. Consigo, e novamente me encontro em um lugar exatamente igual, ou no mesmo lugar. Agora, isso se repete um par de vezes, e então eu já sei que é o sonho do labirinto. Eu sei que isso continuará se repetindo indefinidamente, que esse quarto será sempre o mesmo, e o quarto contíguo será o mesmo, e o contíguo do contíguo também. Então eu digo: bem, esse é o pesadelo do labirinto, tenho que tentar tocar a parede, e tento tocá-la e não consigo.[30]

 

Mia Couto responde:

 

A guerra é uma cobra que usa nossos próprios dentes para nos morder. Seu veneno circulava agora em todos os rios de nossa alma. De dia já não saíamos, de noite não sonhávamos. O sonho é o olho da vida. Nós estávamos cegos".[31]

 

E Kaës enfatiza o quanto todas essas pesquisas vêm reafirmar a descoberta central de Freud: o sonho como realização de desejo. Sim, diz ele, elas mostram que "o desejo de sonhar no espaço onírico comum e compartilhado é uma realização do desejo mais antigo do ser humano".[32]


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