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Resumo
Tradução - Martha Gambini e Renato Mezan Este texto, originalmente publicado no International Journal of Psychanalysis (vol. 91, p. 821-837, 2010), é aqui reproduzido com permissão do autor. O artigo pode ser encontrado também em L’année psychanalytique internationale (vol. 2011, p. 177-193, 2011). O autor examina a contribuição de Donald Winnicott para a análise do narcisismo e das formas do postulado de autoengendramento que ele engloba. Em “Luto e melancolia”, Sigmund Freud constrói o fundamento dessa análise, mas Winnicott torna-a clinicamente utilizável. A seguir, são examinadas diversas proposições de Winnicott que esclarecem essa análise: o objeto criado-encontrado, a função “espelho” da mãe e a experiência da troca na amamentação primeira, a questão da “utilização do objeto” e seu lugar no reconhecimento da alteridade do objeto.


Palavras-chave
narcisismo, criatividade, destrutividade, reflexo, rosto da mãe, ilusão.


Autor(es)
René Roussillon Roussillon
é membro titular da Sociedade Psicanalítica de Paris (França) e professor de psicologia clínica e psicopatologia na Universidade de Lyon (França). Recebeu o prêmio M. Bouvet em 1991 por seu livro Paradoxes et situations limites de la psychanalyse. Também é autor, entre outras obras, de Le plaisir et la répétition: Théorie du processus psychique, Agonie, clivage et symbolisation, Le jeu et l'entre(jê), La naissance de l'objet, Le transitionnel, le sexuel et la réflexivité.


Notas

1.Eco, em memória à maneira como Narciso tratou os ímpetos amorosos de Eco, produzindo nela vergonha, anorexia e ressecamento.

2.Todos os numerosos filhos dessa família vão mal; toxicomania, psicose, comportamentos antissociais estão presentes como "soluções" encontradas por eles.

3.Para um desenvolvimento sobre este exemplo, cf. R. Roussillon, Le transfert délirant.

4.Para mais detalhes sobre este ponto, cf. R. Roussillon, Le plaisir et la répétition.

5.Para mais detalhes sobre este ponto, cf. R. Roussillon, Le plaisir et la répétition.

6.G. Gergeli, Naissance da la capacite de régulation des affects.

7.Cf. R. Roussillon, Paradoxes et situations limites de la psychanalyse.

8.Para complementações sobre este ponto, cf. R. Roussillon, Agonie, clivage et symbolisation.



Referências bibliográficas

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Winnicott D. W. (1989). La craintre de l'effondrement et autres situations cliniques. Paris: Gallimard.





Abstract
The author discusses D. Winnicott’s contribution to the analysis of narcissism and of the different forms assumed by the postulate of self-creation that is its “trademark”. In “Mourning and Melancholy”, Freud establishes the basis for this analysis, but it is Winnicott who makes it clinically useful. Roussillon examines several propositions of Winnicott about these issues, among them the found/created object, the mirror function of the mother, the experience of exchange in the first breast-feeding, and the “use of an object” as a step towards the recognition of the otherness of objects in general.


Keywords
narcissism, creativity, destructiveness, reflex, mother’s face, illusion

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 TEXTO

Desconstrução do narcisismo primário

[tradução Martha Gambini e Renato Mezan]


Deconstruction of primary narcisism
René Roussillon Roussillon

Introdução

Neste trabalho, dedicado ao narcisismo primário e à sua análise, parto de três ideias de Donald Winnicott, que podem ser consideradas como premissas da teoria da transicionalidade e da ilusão. Elas introduzem uma reflexão sobre a análise do narcisismo e as precondições teóricas que o tornam interpretável. A obra de Winnicott "prolonga" o pensamento de Sigmund Freud e ao mesmo tempo o renova. Seu pensamento se situa no interior da configuração global proposta pela metapsicologia freudiana.

Este artigo desenvolve as três proposições seguintes:

Ao introduzir a função dos cuidados maternos e da presença do ambiente na construção do narcisismo primário, Winnicott torna o narcisismo "analisável". Ele permite dar um passo para fora do solipsismo que caracteriza a posição narcísica, segundo a qual tudo procede do sujeito e apenas dele mesmo, o que tende a minimizar a parte dos objetos e do ambiente na construção de si. No mesmo movimento, Winnicott torna interpretável a própria teoria do narcisismo, desconstruindo a maneira pela qual ela é infiltrada por certo número de postulados narcísicos.

Entre o sujeito e ele mesmo, interpõe-se o objeto materno e sua função de "espelho afetivo", que mediatiza a organização da identidade. A identidade primeira constitui-se por meio da construção e do desaparecimento de uma identificação narcísica, a qual adquire sentido no interior de uma relação homossexual primária "em duplo".

Finalmente, um processo de diferenciação que preside à descoberta do objeto entra em relação dialética com essa identificação narcísica. Esse processo só pode ser compreendido em função das respostas dadas pelo ambiente primário à destrutividade do sujeito.

Esses três enunciados são "áridos" e evocam alguns comentários.

Decomposição do narcisismo primário

A contribuição de Freud centra-se principalmente na análise dos diferentes "estados" da psique (neuróticos, narcísicos, psicóticos) com base na exploração dos efeitos sobre a identidade das contingências da estruturação da diferença dos sexos e das gerações e das contingências da organização da diferença que une e separa o sexual e a sexualidade infantil do sexual e da sexualidade adulta. Winnicott nos convida a prolongar e completar a contribuição de Freud, dedicando-se a pensar o impacto da construção primária da diferença eu/não eu sobre os estados narcísicos e sua regulação. Ele é um dos autores essenciais para a análise dos "estados narcísicos" da psique e das formas patológicas dos processos de defesa do eu-sujeito diante das ameaças traumáticas precoces.

Para Winnicott, o narcisismo primário não pode ser concebido de modo "solipsista". Sua instalação tem de ser pensada no interior da relação primeira que se estabelece com o ambiente, levando em conta as particularidades deste último. No entanto, capturado por uma forma de ilusão primitiva, o sujeito tende a apagar esse dado da sua constituição. Assim, analisar o narcisismo primário significa reintroduzir aquilo que a ilusão narcísica primária apagou. Significa reintroduzir a parte dos objetos primeiros em sua instauração: o narcisismo deve ser pensado a dois, e até mesmo a três.

Nos estados de sofrimento narcísico-identitários, o sujeito permanece preso à ilusão primeira. Ele busca se pensar unicamente em função de si mesmo. Aí reside seu impasse; ele "esquece" que não se autoengendrou, nem em seu ser carnal, nem em sua psique. É esse o sentido do artigo de Winnicott "O uso do objeto", no qual ressalta que não é possível conceber o narcisismo de um sujeito sem considerar o objeto como "outro-sujeito", ou seja, um sujeito outro, habitado por uma vida psíquica e por desejos que lhe são próprios. Esse outro-sujeito pode ser tanto "atual"?- isso se tornou clássico desde a resoluta tomada em consideração da contratransferência como "reveladora" dos aspectos ocultos da transferência?- quanto "histórico", ou seja, aquele com o qual o sujeito se construiu. Para compreender bem os enunciados de Winnicott, é preciso partir novamente da contribuição de Freud.

Na fórmula presente em "Luto e melancolia"?- "a sombra do objeto caiu sobre o eu"?- Freud fornece a primeira referência fundamental para pensar a "confusão" do eu e do objeto. Ele indica de modo decisivo a orientação a ser dada para a análise do narcisismo. De fato, se o sofrimento provém da "sombra do objeto caída sobre o eu", o analista deve tentar ajudar o sujeito a "devolver ao objeto a sua sombra", a fazer com que o sujeito saia da confusão na qual suas defesas narcísicas o colocam, a desconstruir o postulado narcísico básico do autoengendramento da sua vida psíquica.

Freud sublinha a seguir (1923, 1926) que uma das características do narcisismo é, de fato, não somente que ele "remete tudo" a si, que traz todos os investimentos em direção ao eu, mas que, além disso, faz sumir ou tende a fazer sumir aquilo que vem do outro. Desde 1923, em "O eu e o isso", e mais ainda em 1926. Em "Inibição, sintoma e angústia", Freud enfatiza o processo pelo qual o eu "assimila" e se assimila àquilo que não consegue reduzir. O narcisismo "assimila" o objeto, e assimila a sombra dos objetos que "caíram sobre o eu". Simultaneamente, ele oculta o fato de que uma "sombra" caiu sobre o eu, e agora está misturada com ele. O objeto "perdido" não enluta o eu. Trazendo o investimento do objeto perdido para ele mesmo, o eu também incorpora os traços desse objeto. Voltaremos mais adiante ao sentido que deve ser dado à fórmula "sombra do objeto", que a contribuição de Winnicott também esclarece.

O processo narcísico não apaga somente o traço do objeto, apaga também o processo por meio do qual ele é apagado; apaga para o sujeito aquilo por meio do qual este se constitui, aquilo que "deve" aos objetos com os quais se construiu; e, por fim, o próprio movimento pelo qual o sujeito assimilou a parte do outro na sua organização própria. São esses os processos constitutivos da ilusão narcísica primeira.

O objeto-espelho primeiro

Podemos agora começar a situar a contribuição mais específica de Winnicott. Como suas hipóteses nos auxiliam, na prática psicanalítica, a buscar e a identificar retrospectivamente os traços que agora se tornaram "silenciosos" e que permanecem "mudos", assimilados, o impacto do que foram as respostas primeiras dos objetos, os primeiros "espelhos" humanos diante dos ímpetos pulsionais e das necessidades primeiras do sujeito?

Ali onde o quadro clínico apresentado pelo sujeito parece se desdobrar unicamente na relação consigo mesmo, Winnicott nos convida a reintroduzir a parte histórica do objeto primeiro, a reconstruir aquilo que "deve" ter se passado entre sujeito e objeto, para que a configuração narcísica atual seja o que é.

A hipótese central de Winnicott é que o objeto primeiro é esperado pelo sujeito como um "espelho afetivo e representativo" de si mesmo. Na relação que o sujeito mantém consigo mesmo, Winnicott reintroduz a distância, a bifurcação produzida pelo espelho primeiro do objeto. Restabelece o paradoxo da identidade, que se constitui num movimento de "retomada" do reflexo produzido pelo outro. Faz da identidade o "precipitado" das identificações narcísicas primárias, das identificações incorporativas de um objeto-espelho e duplo de si. Mais adiante, falaremos do modelo teórico aqui implicado, pois no momento é a questão clínica que está nos ocupando.

Uma consequência clínica concreta da hipótese de Winnicott é que, ali onde o sujeito se "define" intimamente como idêntico a ele mesmo, ali onde ele se identifica e identifica seus estados internos, existe algo de um outro, de uma alteridade produzida pelo "reflexo" do outro, resultante da identificação com aquilo que seus objetos primeiros refletiram dele.

Tentar restabelecer "psicanaliticamente" a parte dessa alteridade, desconstruir o postulado narcísico solipsista de identidade consigo, é tornar possível ou restabelecer a função "objetalizante" da pulsão. Trata-se de permitir "reencontrar" o traço do objeto "perdido" no eu, a sombra assimilada.

Uma primeira sequência clínica, retirada de um tratamento padrão de uma paciente que apresentara no passado uma anorexia severa, pode ilustrar essa problemática e o tipo de trabalho que ela implica.

Eco[1] é uma mulher cuja anorexia alimentar clínica está desaparecendo no decorrer da análise. Em contrapartida, sua vida social é ainda extremamente restrita. Ela "se poupa", convencida de que consegue diminuir o ritmo do tempo, e mesmo pará-lo. Reduz o conjunto de suas interações sociais ao mais estritamente necessário. Ela própria quebra seus tímidos ímpetos, reprime os afetos. Durante as sessões permanece frequentemente imóvel, silenciosa. É com a maior parcimônia que evoca alguns aspectos de sua vida interior. Digo a mim mesmo que ela "anorexiza" o trabalho psicanalítico, assim como "anorexiza" a totalidade de sua vida e do seu funcionamento psíquico, que ela os "neutraliza". Mas essa constatação tem pouca utilidade prática. A ideia de que Eco me faz experimentar?- e assim me comunica?- aquilo que ela própria sofreu, numa forma de transferência "reversa" e procurando me fazer compartilhar seu mundo interno, só serve para que eu concorde em aguentar sem represálias excessivas as particularidades da transferência.

É em outro lugar, em outra face da transferência, que será preciso encontrar as condições para relançar os processos pulsionais. Quando Eco puder começar a sair da sua defesa "de si para si", da sua defesa "narcísica", ela abrirá essa problemática à transferência, e o processo analítico, vai adquirir sentido. Vou começar a ajudar essa externalização da sombra do objeto, chamando a atenção para o fato de que ela parece se tratar, e me tratar, segundo o modelo com o qual seu ambiente primeiro tratou dela própria.

De fato, a continuação do trabalho analítico conduz pouco a pouco à instalação na transferência da seguinte conjuntura intersubjetiva: Eco começa progressivamente a formular o que acontece com ela ao vir para a sessão. Ela chega com certo prazer, tem vontade de me explicar isso ou aquilo que se disse ou que compreendeu entre as sessões. Mas assim que se encontra diante de mim, no momento em que entra em meu consultório, a fonte e a vontade desaparecem imediatamente. Ela se sente seca, sem qualquer impulso. De repente, o que teria a dizer lhe parece insípido, sem interesse, e isso antes mesmo de começar a falar. O desejo que experimenta antes de estar em presença do analista se rompe subitamente. Às vezes, essa transformação acontece quando vou buscá-la na sala de espera, assim que abro a porta no momento mesmo em que me vê.

Pouco a pouco, o pensamento fugidio que se apodera dela nesse momento começa a se tornar formulável. Vendo meu consultório repleto de dossiês e de livros, pensa que sou um homem muito ocupado, sem dúvida bem pouco disponível, e que ela não passa de uma coisinha de pouquíssima importância para mim, "o grande professor". Progressivamente, esses elementos transferenciais vão poder ser ligados a certas particularidades da história da relação com a mãe. No momento do nascimento de sua irmã, Eco sentiu-se brutalmente desinvestida, pois a mãe dirigia toda a atenção ao bebê, como se fosse incapaz de pensar em duas crianças ao mesmo tempo[2]. Algum aquecimento pulsional se produz após a perlaboração desse momento da sua história. Mas o fundo da relação de Eco com o mundo permanece globalmente inalterado.

Será preciso perlaborar do mesmo modo as condições do cotidiano da sua vida de criança, bem além do acontecimento singular do nascimento da irmã, pois as características então evidenciadas parecem atravessar o conjunto da sua história relacional com a mãe. No dia a dia, no cotidiano da vida familiar, a mãe vai se revelando como uma mulher hiperativa, sempre em movimento, nunca acessível, atingível. À mesa, por exemplo, a mãe se agita, serve um e outro, come de pé num canto da mesa, sem se sentar, sem nunca se acalmar. Ela serve a todos, começa a tirar a mesa antes mesmo que a refeição tenha terminado, numa espécie de "furacão doméstico". Quando Eco esboça um movimento em direção a essa mãe, quando sente um impulso, este não tem sucesso, pois a mãe já está em outro lugar: já se virou, ocupada com outra coisa. Eco desliza sobre um objeto liso, inatingível. O movimento pulsional se quebra, tomba, a pulsão se decompõe, recua, se retrai. Ao mesmo tempo, a vida se restringe. O objeto não é "utilizável", e a pulsão não consegue realizar o seu movimento: ela terá de ser neutralizada o mais rapidamente possível. Eco vai necessitar de numerosas repetições dessa sequência durante as sessões, e o mesmo número de interpretações repetidas na transferência sobre o efeito de "decomposição" das "respostas" maternas sobre seus movimentos pulsionais e afetivos, para que mudanças significativas no seu modo de relação com a vida pulsional e afetiva possam ser integradas.

Essa conjuntura clínica não seria inteligível se recorrêssemos a um pensamento solipsista. Ela implica uma concepção intersubjetiva da vida pulsional e uma concepção intersubjetiva da organização da pulsão. A noção de uma pulsão "mensageira", ou seja, dirigida a outro-sujeito, dependendo para seu desenvolvimento da "resposta" desse outro-sujeito, impõe-se então ao clínico. Essa noção permite uma ampliação da escuta psicanalítica e do pensamento clínico psicanalítico.

No exemplo de Eco, fui inicialmente confrontado com um comportamento "dela para ela" no centro de seu quadro clínico atual. Esse comportamento tem um valor "auto", solipsista. Ele se dá no seu funcionamento narcísico, e não parece ser dirigido a ninguém em particular. Fora das sessões, Eco se "comporta" da mesma maneira. A sombra do objeto caiu sobre o eu, que assimilou seu impacto: o problema tornou-se "auto", interno. Mas, na medida em que esse comportamento se introduz nas sessões, assume um valor interativo, afetando o analista no interior do espaço analítico e adquirindo o valor de "mensagem agida", de mensagem transferencial. Acabei por lhe atribuir o valor de uma forma particular da transferência, de um agieren de transferência. Na medida em que afeta o analista, na medida em que outro-sujeito se sinta concernido e possa refletir o comportamento como uma mensagem agida e dirigida, a questão de uma dimensão intersubjetiva do comportamento e de sua ação sobre o outro pode ser aberta.

Ao fazer da melancolia o modelo fundamental do impasse narcísico, Freud propõe uma direção para a análise, oferecendo-lhe um vetor do qual Winnicott vai tirar o melhor partido clínico e técnico. Graças à hipótese de um objeto "espelho afetivo" do sujeito, Winnicott torna a intuição de Freud operacional para a análise das figuras psicopatológicas dos estados narcísico-identitários.

Vou desenvolver mais adiante essa questão com base no "estádio do espelho" de Lacan e da inflexão que Winnicott lhe dá. Antes, gostaria de assinalar outro aspecto das hipóteses de Winnicott pelos diferentes complementos que ele introduz e que tornam possível uma "desnarcisação" da própria teoria.

A teoria "narcísica" da pulsão destaca unicamente a tendência à descarga: o objeto é considerado apenas como aquilo pelo qual a pulsão consegue se descarregar. O objeto não está implicado como "outro-sujeito". Se o objeto estiver presente, a pulsão poderá ser "descarregada", "liberada". Se estiver ausente, o sujeito corre o risco de uma perda: então, ele terá de desenvolver autoerotismos paliativos para enfrentar essa ameaça e esperar o retorno benéfico do objeto. Quando se enfatiza a função do objeto na construção de si, insistindo em suas "respostas" aos movimentos libidinais do sujeito, é introduzida uma nova dimensão da vida pulsional, que contém implicitamente a ideia de que a pulsão também traz uma "mensagem" dirigida ao objeto, uma "mensagem" à espera de uma resposta. A pulsão é construída no interior do interjogo (interplay) que se estabelece entre sujeito e objeto.

Um rápido primeiro exemplo vai permitir que se compreenda melhor o que essas hipóteses acarretam no trabalho clínico.

Um paciente declara durante a sessão que se sente "vazio", "com a mente em branco". Uma interpretação "clássica" desse estado, como me foi ensinada quando eu aprendia o ofício de psicanalista durante as supervisões, relacionava esse "vazio" interno à falta ligada à avidez pulsional do sujeito. A orientação da análise era a de ir em direção dos processos de tudo ou nada que caracterizam a primeira avidez. Mais tarde, aprendi a relacionar?- além disso?- esse sentimento de "vazio" interno aos processos de alucinação negativa do pensamento. O vazio também aparecia, eventualmente, como um espaço côncavo, em espera, um espaço de recepção possível. Com Winnicott, outra interpretação complementar se delineia, sem anular a pertinência das duas precedentes, mas as orientando de modo diferente. O vazio pode ser considerado como o efeito sobre o eu da "sombra" de um objeto que permaneceu sem responder, silencioso, diante dos apelos do sujeito, um sujeito insensível aos seus impulsos e que até o evitou com hostilidade. "O absurdo", declarava Albert Camus na abertura de seu ensaio sobre mito o de Sísifo, "nasce da confrontação entre o apelo humano e o silêncio despropositado do mundo". O "vazio" da resposta do objeto é a seguir "incorporado" e deixa no eu o traço do eco do silêncio e da maneira pelo qual este conseguiu "quebrar" o élan pulsional anterior do sujeito. Eco fornece uma boa ilustração desse processo.

Quando Winnicott declara a Margareth Little[3], durante o seu tratamento, que "sua mãe era caótica", não está buscando designar a mãe com o "objeto mau", o que não seria pertinente nem psicanaliticamente útil, na medida em que essas noções de "bons" e "maus" objetos são formas emprestadas de definições infantis do objeto, que não correspondem a categorias utilizáveis pelo analista para pensar a história. Evocando uma mãe "caótica", Winnicott permite que sua paciente não sinta seu caos interno como o simples efeito de uma pulsão anárquica e desorganizadora ou como efeito de uma libido ávida e sem limite. Permite que ela encontre a inteligibilidade de um impulso interno confrontado a uma resposta caótica e desorganizadora do ambiente. Reestabelecer, na relação de si a si, o impacto e a forma do que foi a "resposta" histórica do objeto-espelho primeiro permite que o movimento inicial seja reencontrado e que haja uma nova chance de receber, na relação presente, outro tipo de resposta à "mensagem" dirigida ao objeto pelo movimento pulsional.

Meu exemplo clínico para ilustrar essas últimas considerações diz respeito a um homem que apresenta acessos de colapso de tipo melancólico, caracterizados por uma queda do tônus vital e, sem dúvida, das defesas imunitárias. Ele melhorou bastante com um primeiro período de análise com uma analista mulher, mas, quando me procurou para continuar a exploração psicanalítica de seus estados internos, ainda sofria de um estado depressivo global e de numerosas inibições do seu potencial vital. Ele havia assistido a diversas conferências minhas sobre os estados narcísicos e acreditava que eu poderia lhe trazer algo diferente da sua primeira análise.

Resumidamente, a primeira parte do processo analítico foi dedicada à elaboração transferencial de sua relação com um pai não afetivo, rígido e pouco presente. A elaboração de uma hostilidade intensa diante de um personagem paterno que frustrava o amor de seu filho e que manifestava por ele pouco interesse verdadeiro melhorou a depressividade, mas não de forma decisiva. A relação transferencial começou a deixar emergir e a tornar sensíveis os efeitos da relação do sujeito com uma mãe que sofria de uma psicose maníaco-depressiva e que apresentava aspectos delirantes. Quando essa relação veio para o primeiro plano na análise, ocorreram dois episódios depressivos graves, com aspectos melancólicos marcantes. A cada vez, manifestou-se uma desorganização psicossomática grave, na qual o sujeito se "decompôs", ao mesmo tempo que suas defesas imunitárias colapsaram. O episódio decisivo da elaboração dos colapsos depressivos produziu-se no momento em que puderam ser relacionadas as quedas de tônus vital do sujeito, seus momentos de "decomposição" e a resposta do objeto materno aos impulsos da criança que ele tinha sido. Foi preciso reconstruir, passo a passo, as características da "conversa primitiva" entre o bebê?- e depois entre a pequena criança que o paciente foi?- e essa mãe, que alternava momentos melancólicos e momentos maníacos.

Na perspectiva aberta por Winnicott, prolongando a observação de Freud sobre a sombra do objeto, o trabalho psicanalítico permite reconstruir e perlaborar o efeito do caráter caótico e inconsciente das respostas afetivas maternas. Por vezes, a mãe aceitava seus élans, chegando até a permitir que se incrementassem de forma exagerada, para depois mudar bruscamente de atitude, rejeitando-os. Na maior parte do tempo, a resposta da mãe a qualquer movimento afetivo era desviar o rosto, retirar-se, ou mesmo rejeitá-lo por meio de um ataque. A confusão é uma confusão entre amor e ódio, entre impulsos amorosos e movimentos hostis. Então, o impulso se rompe, o tônus decresce, entra em colapso, então ele se decompõe. Os ímpetos afetivos próprios mostram-se à criança como destrutivos para o objeto, e o paradoxo introduzido por esta confusão perturba a atividade psíquica. Se para o bebê o bom (o amor) e o mau (a destrutividade segundo a interpretação materna) não se opõem mais, se passam a se engendrar reciprocamente, o princípio do prazer e sua forma transformada em princípio de realidade entram em parafuso, e a atividade psíquica tende a cessar.

Nas diferentes situações clínicas evocadas, a parte mais fundamental do meu trabalho foi reintroduzir na dinâmica psíquica do sujeito as particularidades das respostas e reações do objeto primário aos seus movimentos pulsionais. Ali onde o quadro clínico apresenta o impasse de um sujeito cujos processos psíquicos andam em círculos e tendem a se repetir sem mudanças, eu reintroduzi a particularidade do que foi a resposta do objeto. Busquei reconstruir essa resposta a partir dos indícios transferenciais que o sujeito produzia durante a sessão.

O processo se desenvolve em dois tempos. O primeiro é atual e acontece na transferência. Ele é inicialmente acolhido e trabalhado nesse nível. Como o processo "insiste", a reconstrução histórica torna-se possível num segundo momento: ela permite estabilizar o processo, tornando a mudança durável.

Essas considerações conduzem naturalmente a um aprofundamento da contribuição de Winnicott, que diz respeito, de um lado, ao processo de identificação subjetivante e, de outro, à hipótese proposta por ele quanto ao que chama de "utilização do objeto".

O processo de subjetivação: a identificação subjetivante

Minha leitura de Winnicott "com Freud" leva-me a propor o conceito de relação homossensual primária "em duplo" para designar as condições primeiras do encontro mãe-bebê. Elas desembocam no processo de subjetivação que origina a organização da configuração narcísico-identitária primeira.

Os teóricos de língua francesa diferenciam "sexual" e "sexualidade". Utilizam o termo "sexualidade" para designar um comportamento, e o conceito de "sexual" para os fatores de prazer/desprazer que infiltram todos os processos psíquicos. Nessa perspectiva, o "sensual" é, portanto, uma forma do sexual. Assim, para um psicanalista de orientação francesa, embora nem tudo seja sexual, há algo de sexual em tudo, na medida em que o investimento pulsional nunca deixa de acompanhar um processo psíquico ou um procedimento de encontro intersubjetivo. Falar de "homossensualidade primária" ou de "homossexualidade primária" para qualificar essa relação ressalta o fato de que prazer e desprazer são relativos ao movimento no qual o outro é encontrado ou perdido como "duplo" de si.

Três propostas de Winnicott parecem contribuir para refinar essa concepção: o objeto criado-encontrado, a função "espelho" da mãe e a experiência de troca da amamentação primeira.

Segundo a concepção do objeto criado-encontrado, a adequação do ambiente materno que "apresenta" o seio no momento apropriado e de maneira adequada para o bebê permite que este viva a ilusão fecunda de ser capaz de criar, graças à alucinação, o seio que na verdade ele "encontra" na percepção. Diferentemente da descrição metapsicológica habitual do funcionamento psíquico, que enfatiza a oposição entre alucinação e percepção, Winnicott descreve um registro metapsicológico "paradoxal", "transicional", no qual essa oposição é suspensa. O seio "percebido" vem ao encontro do seio "alucinado": sobrepõe-se a ele como um duplo real, concreto. Tal processo está na origem da criação, no bebê, da ilusão subjetiva de ser capaz de criar a satisfação que encontra. Graças à adequação materna, a alucinação primitiva se transforma numa ilusão positiva, que sustenta a crença do bebê em suas capacidades de "produzir" um mundo satisfatório. Investimento de objeto e narcisismo não se opõem necessariamente: ambos conjugam seus efeitos para "produzir" um estado subjetivo particular, "transicional", no qual a representação alucinada do objeto e o objeto "objetivo" contribuem para a obtenção do prazer. Assim, autoconservação e investimento pulsional andam de mãos dadas, autoerotismo e investimento de objeto são convergentes. O prazer resulta da confluência deles, sendo produzido como "sinal" de seu encontro, de seu amálgama.

Uma concepção desse tipo supera de saída o impasse metapsicológico produzido pela oposição entre teoria da pulsão e teoria da relação de objeto. Não posso abordar, nos limites desta reflexão, todas as consequências de uma concepção que supõe que em certas condições o aparelho psíquico pode, sem confusão, perceber e alucinar simultaneamente[4]. Prefiro prolongar meu levantamento sobre as formas de relação em duplo no pensamento de Winnicott.

 

Um segundo aspecto do pensamento de Winnicott diz respeito à concepção proposta por ele do rosto da mãe como "espelho" dos estados internos do bebê. Winnicott apresenta sua hipótese como um desenvolvimento da intuição de Jacques Lacan sobre a função do estádio do espelho, e situa o lugar dela na problemática das identificações, no ponto de articulação da identificação "narcísica" e da identidade. O essencial da hipótese de Winnicott é que aquilo que o bebê "vê" quando olha o rosto da sua mãe é um reflexo de seu próprio estado interno, de seu próprio estado afetivo.

Essa teoria sugere diferentes comentários e complementos.

O primeiro comentário se refere à concepção da mãe "suficientemente boa" implícita nessa hipótese. A mãe, assim como o ambiente que a rodeia e que contém o pai, ajusta-se e ajusta suas expressões mimo-gesto-posturais às do bebê. Afina-se afetivamente ao bebê, cujos estados internos ela partilha e com os quais empatiza à sua maneira. O "rosto" da mãe reflete para o bebê esse acompanhamento "em duplo", tanto no plano estético e sensorial quanto no plano afetivo. No entanto, parece-me necessário ir além da proposição de Winnicott e considerar que não é apenas o "rosto" da mãe, mas todo seu corpo e seu comportamento que formam esse primeiro "espelho".

Esse "espelho", encarnando no corpo da mãe quando esta é suficientemente adaptada, suficientemente "maleável"[5] e sensível aos estados internos de seu bebê, produz um efeito de duplo "narcísico". Um duplo é um mesmo, um semelhante a si, mas é também um outro. Um duplo não pode ser somente um mesmo, pois neste caso ele produziria um estado confusional, e não um reflexo de si. Assim, a mãe vai ter também de marcar sua alteridade pela maneira com a qual ela reflete para o bebê sua própria partilha de afeto. As emoções e estados internos que ela "reflete" são "semelhantes", mas não idênticos. Eles têm o mesmo fundo, a mesma matriz, mas não a mesma forma. Os reflexos maternos são idênticos aos do bebê, mas não completamente: eles são homomórficos, mas não isomórficos. O ajustamento materno é intermodal. G. Gergeli[6] observou que, ao lado desse acompanhamento "em duplo" intermodal, a mãe também "marcava" que os estados afetivos que apresentava em reflexo aos do seu bebê não eram seus próprios estados afetivos, mas sim os do bebê. Enviando uma mensagem de metacomunicação, a mãe pode se "designar" a si própria como simples "espelho" dos estados internos do bebê. Ela pode se refletir como "espelho". É claro que para poder ser o espelho dos estados internos do outro, ela também deve ser capaz de sentir empatia com os estados afetivos dele, de identificá-los, reconhecê-los e, portanto, também de compartilhá-los, ao menos em parte.

A concepção de uma mãe "espelho" primeiro do bebê pressupõe que a relação primeira é organizada e investida como uma tensão, como um movimento para construir o encontro com o outro enquanto duplo potencial de si. Aqui também satisfação e prazer dependem da capacidade dos dois parceiros de se encontrarem e se apreenderem como "duplo" outro, como outro e mesmo. É esse movimento, essa tensão, esse balé, que o prazer e o desprazer regulam. Esse jogo de trocas entre mãe e bebê começa a construir a pré-forma dos símbolos, isto é, das representações do encontro primeiro, da partilha e da união para a qual ele tende. Se um movimento psíquico do bebê pode ser "ecoado" pela mãe, ele não é mais somente "descarga", mas começa a fazer parte do sistema de comunicação primitiva, tomando a forma de um "signo partilhado", de uma mensagem, que pode ser dirigida ao objeto. Esse comportamento é a primeira condição para que emerja um símbolo, considerado como símbolo de encontro e de união. O bebê e a mãe se encontram e se reconhecem no símbolo e, inversamente, o símbolo carrega o traço desse encontro e dessa união.

Mas o comentário da hipótese de Winnicott, para ser completo, tem de detectar outro aspecto implícito dessa concepção. Dizer que o rosto da mãe "é" o "espelho" do bebê significa não somente dizer que a mãe deve se comportar de maneira a se oferecer como "espelho" para seu bebê. É também dizer que, independentemente do que aconteça, o bebê trata aquilo que o rosto e o corpo da mãe manifestam como um "reflexo" de si mesmo, que ele se identifica com aquilo que é reverberado pelo modo de presença da mãe ou dos personagens significativos de seu ambiente. Independentemente do que aconteça significa que ele trata aquilo que a mãe manifesta como uma mensagem que lhe diz respeito "efetivamente", como uma forma de resposta aos seus próprios movimentos em relação ao objeto. Não importa se a resposta materna é um reflexo "fiel" dos seus movimentos, ou se é apenas o efeito do estado pessoal interno dela, ou da maneira com a qual ela interpreta e sente os sinais emitidos: o bebê recebe essas mensagens como outros tantos reflexos. Pressentimos a importância dessa observação para a compreensão da patologia do narcisismo, que aparece então como relativo às particularidades da maneira pela qual o "espelho" primeiro cumpriu a função que lhe é potencialmente atribuída: quer o (espelho) tenha refletido para o bebê um material insuficiente para que ele identifique seus próprios estados internos, quer estes tenham sido assim "neutralizados" pela ausência de resposta "em duplo", quer tenham sido "distorcidos" por um reflexo excessivamente deformado.

Essa concepção permite propor uma hipótese sobre aquilo que devemos compreender pela enigmática fórmula de Freud: "sombra de objeto". Em "Luto e melancolia", Freud ressalta que na origem do sentimento de perda do objeto na melancolia há uma decepção que provém do objeto. Minha hipótese é de que a sombra do objeto seria aquilo que ele não teria refletido para o sujeito dos seus próprios movimentos e estados internos, ali onde ele teria falhado na sua função de espelho, ali onde frustrou a expectativa narcísica primária do sujeito. Para prosseguir além de Freud e Winnicott, eu diria que o sujeito tende então a incorporar o objeto e a parte de si que ele sente como que confiscada por tal objeto quando não lhe reflete nada. Ele se cola ao objeto, num processo que os pós-kleinianos designaram como identificação adesiva. Essa identidade adesiva, para ser preciso e retomar o conceito de Esther Bick, encontra-se na origem de uma zona de não diferenciação do objeto e do sujeito, de uma zona comum que mantém fantasmaticamente objeto e sujeito colados um ao outro, como siameses. O luto pelo objeto é então fulminado em sua base e capturado por um paradoxo, já que renunciar ao objeto significaria ao mesmo tempo renunciar à parte de si sequestrada no objeto. Ora, a renúncia ao objeto, por exemplo, no luto, realiza-se em nome da preservação de si ou da sua integridade (como na angústia da castração, por exemplo).

A terceira vertente do meu levantamento aparece mais tardiamente na obra de Winnicott. É num artigo de 1969 que identifiquei seu traço mais manifesto, embora possamos suspeitar que aquilo que é formulado claramente naquele momento já estivesse implícito antes. Nesse artigo, Winnicott sublinha a importância da troca e da reciprocidade na primeira amamentação e, posteriormente, no conjunto da relação. Ele observa um movimento dos bebês para colocar o dedo na boca da mãe e, assim "alimentá-la", por sua vez, também aqui "em duplo". Da mesma forma, enfatiza a importância dessa reciprocidade na boa integração da experiência da amamentação. O "espelho" materno não é mais apenas um efeito de ilusão derivado do encontrado-criado, apenas um efeito de reflexo emocional ou estésico, mas implica também troca e reciprocidade, uma "amamentação mútua" e talvez também uma "transformação" mútua. O "espelho" materno contribui, também aqui, para a emergência de um modo de troca simbólico.

Processo de objetivação, descoberta da alteridade do objeto

A concepção da relação homossensual primária "em duplo", pressuposta na construção progressiva de um encontro do objeto como "duplo" de si, só é sustentável se for acompanhada e dialetizada por uma teoria da alteridade do objeto. O processo é de mão dupla: identificar-se ao outro e se identificar pelo outro; diferenciar-se do outro e diferenciar o outro de si. A diferenciação só tem sentido contra o fundo da construção do outro como duplo de si. É porque o outro é em primeiro lugar concebido como um "duplo" que a diferença pode ser construída de modo diverso como uma forma de clivagem ou de repúdio. Também nesse domínio Winnicott inova: completa as proposições de Freud e nos obriga a "escavá-las".

Para Freud, a realidade é um "dado" perceptivo primeiro. Existe desde o início um "eu-realidade", em relação dialética e de conflito com o eu-prazer. A prova de realidade se apoia na percepção e no par percepção-motricidade para exercer sua função e manter ativa, no estado de vigília, a diferenciação alucinação-percepção. Entretanto, em certos momentos de sua obra, sentimos como que um embaraço na reflexão. De fato, a realidade é mais que uma questão de percepção: é igualmente uma questão de concepção. Da mesma maneira, na relação com o objeto, não se trata apenas de "percepção", mas também de "concepção". O enunciado de Freud de 1915?- "o objeto nasce no ódio"?- implica mais do que a questão da "percepção" do objeto. O que complica o problema, como se pode imaginar, é o fato de que o investimento alucinatório do objeto vem se misturar à simples "percepção" desse objeto. Alucinação e percepção podem manter uma relação dialética, de conflito, ou ainda correr o risco de se confundirem.

Winnicott propõe a hipótese de uma sobreposição possível da alucinação e da percepção, hipótese para a qual o próprio Freud se dirige, em 1938, para solucionar o problema da psicose em "Construções na análise". Winnicott traz para o problema uma complicação adicional, e ao mesmo tempo permite renovar o tratamento dele.

Quando a percepção é investida, quando a alucinação do traço anterior se mistura com a percepção, produz-se uma experiência de ilusão sobre a qual paira uma ameaça potencial de confusão. Freud aponta isso desde 1926 e retorna à questão em 1938: de nada adianta querer "provar" para o sujeito a irrealidade da ilusão ou da alucinação. A ilusão não se opõe à realidade; a ilusão faz parte da relação com a realidade, diz o desejo que comanda a relação com a realidade. A prova de realidade não pode se fundar na percepção ou na motricidade quando estas se encontram libidinalmente investidas. Tampouco as experiências de prazer podem fundar as bases dessa diferenciação, porque desde a origem se baseiam na sobreposição e no encontro "em duplo" da alucinação e da percepção.

A ilusão produz afetos de desprazer, mas embora resulte em insatisfação, tampouco essa experiência produz uma desilusão capaz de diferenciar a realidade interna da externa. É essa a observação central de Winnicott. Na verdade, a experiência de desprazer produz o que propus chamar[7] de "ilusão negativa", que não é a desilusão, mas uma forma negativa de ilusão, que se funda na impressão subjetiva de que o sujeito destruiu sua capacidade de produzir a satisfação. Ela desencadeia dor, raiva e destrutividade, que por seu caráter desorganizador acabam levando o sujeito a restringir seu investimento do mundo exterior, a se retrair, a se fechar, o que leva à desobjetivação e à não descoberta da alteridade do objeto.

A hipótese de Winnicott torna o problema mais complexo, porque introduz entre experiência de desprazer e "descoberta" da realidade ou da alteridade do objeto uma etapa suplementar, um momento estrutural que inclui a parte do ambiente e da "resposta" dele ao movimento pulsional do sujeito.

O objeto é "encontrado" no ódio, é preconcebido na experiência de desprazer e na reação do sujeito a esse desprazer. O objeto é potencialmente percebido a partir de uma experiência de desprazer que mobiliza um movimento de destrutividade. A destrutividade não produz diretamente a desilusão, mas uma ilusão negativa: a ilusão de estar na origem do "mal" que habita o mundo[8]. Segundo Winnicott, o que vem depois vai depender da maneira pela qual o objeto reagir à destrutividade da criança. É aqui que o véu do "espelho" do objeto vai se manchar e se rasgar, endurecer ou endurecer seu reflexo.

Se o objeto exercer "represálias", mimetizando em "espelho" ou em duplo os movimentos pulsionais da criança, se realizar movimentos de revide, se retirar do vínculo ou da relação, essas "respostas" vão legitimar a "ilusão negativa" e fixar a vivência de um mal no ser, de um "mal-estar", de um núcleo de culpabilidade primária pré-ambivalente não dialetizado com o amor. A destruição ocorre: ela não é mais "mensagem" de desprazer, "sinal interno", "potencialidade" de diferenciação, mas se tornou um estado de fato, é uma destruição afetiva. O narcisismo permanece trancado no solipsismo.

Ao contrário, se o objeto "sobreviver" aos movimentos de destrutividade ou de raiva impotente, se se mostrar atingido sem exercer represálias, sem se retirar perceptiva e afetivamente da relação, se continuar a manter o vínculo, então a destrutividade não vai "quebrar" nada, permanecendo "potencial". Uma "prova de realidade" torna-se possível, uma diferenciação entre objeto interno e objeto externo começa a se tornar viável. O objeto é "descoberto" em sua exterioridade: não é mais somente "percebido" como exterior?- isso acontece muito cedo, como sabemos hoje?-, mas é "concebido" como exterior, concebido como objeto libidinalmente investido e exterior, outro, não simples duplo ou reflexo de si. A experiência de uma diferenciação entre o objeto interno?- o da fantasia destruído pela destrutividade e pela raiva impotente?- e o objeto externo?- o outro, aquele que "sobrevive"?- pode começar a adquirir sentido. A partir de então, a tópica psíquica pode começar a se organizar. É em dois ou três que saímos do solipsismo narcísico; é pensando a resposta do objeto, sua questão e suas formas, que saímos da ilusão narcísica primária e dos seus impasses existenciais.

O objeto investido como "duplo homossensual" de si, o objeto presente nessa função de reflexo de si, é investido e "amado". O objeto ausente, ou seja, o objeto que se ausenta dessa função, que se torna outro, não presente como "duplo" de si, o objeto não "narcísico", será odiado por sua ausência, pela falta que escava. A falta toma o lugar da ilusão negativa, e o conflito de ambivalência pode começar a se organizar. O objeto é amado por sua presença e odiado por sua ausência, o que quer dizer em sua presença "em outro lugar", sua abertura ao terceiro.

A resposta do objeto sela o destino da destrutividade e sua função na economia psíquica. Por um lado, ela vai se encapsular, voltando-se ou voltando seus efeitos contra a psique e contra o investimento psíquico; por outro, ela vai permitir a diferenciação entre um mundo interno, mundo da representação psíquica, mundo da fantasia, e o mundo externo, mundo da percepção investida, mas localizado fora da onipotência criativa do sujeito.

Conclusão

Tanto na construção do narcisismo primário quanto na experiência da sua desconstrução, Winnicott introduz uma distância entre o sujeito e si mesmo. Estabelece a distância que torna "analisáveis" e simbolizáveis narcisismo e saída para fora do narcisismo. Introduz aquilo que rompe a identidade consigo e que coloca a análise num impasse. Introduzindo uma fase suplementar, na qual se situa a questão do "reflexo" do objeto, das suas respostas aos movimentos pulsionais do sujeito, da sua parte própria na construção e desconstrução do narcisismo, ele "desnarcisa" a teoria. Winnicott pensa e torna pensável, com a ajuda de uma teoria na qual o solipsismo foi analisado e desconstruído, como o narcisismo se organiza ou se desorganiza, como se coloca em impasse ou encontra a saída da organização da falta, da descoberta dos objetos que o constituem.


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