EDIÇÃO

 

TÍTULO DE ARTIGO


 

AUTOR


ÍNDICE TEMÁTICO 
  
 

voltar
voltar à primeira página

Resumo
Resenha de Claudinei Affonso, Paula Peron e Regina Celia Cavalcantti de Carvalho (orgs.), Sujeitos da Psicanálise?– Freud, Ferenczi, Klein, Lacan, Winnicott e Bion?– Diálogos teóricos e clínicos, São Paulo, Escuta, 2018, 118 p.


Autor(es)
Arnaldo Chuster Chuster
é médico, psicanalista, membro efetivo e didata da Sociedade Psicanalítica do Rio de Janeiro (sprj), filiada à Associação Psicanalítica Internacional (ipa); membro efetivo e didata do Newport Psychoanalytical Institute (npi), Califórnia; professor e membro honorário do Instituto W. Bion, Porto Alegre.

voltar à primeira página
 LEITURA

As vicissitudes da noção de objeto no percurso de 100 anos da Psicanálise [Sujeitos da Psicanálise]

Vicissitudes of the notion of object in the 100 years of psychoanalysis
Arnaldo Chuster Chuster

Posso afirmar, com a minha experiência, como leitor e escritor em psicanálise, não ser muito comum encontrarmos livros de psicanálise com a diversidade de Sujeitos da Psicanálise, que tem o característico cuidadoso acabamento da Editora Escuta.

Na introdução, somos avisados sobre a intenção dos autores na concepção do livro: a proposição de levar a cabo a árdua tarefa de iluminar o terreno no qual se edificaram diferentes escolas de psicanálise e no qual se encontram os pilares que circunscrevem o campo a que pertencem. Embora eu não concorde com o consagrado termo escolas de psicanálise e, obviamente, tendo que deixar de lado a discussão desse mérito (pois, na minha opinão, o ensino da psicanálise é impossível e considero que tampouco se trate de estilos como, por exemplo, dos pintores ou escultores), prefiro pensar que o livro se propõe a importante possibilidade de confrontarmos identidades e diferenças entre os icônicos pensadores da psicanálise: Freud, Ferenczi, Melanie Klein, Lacan, Winnicott e Bion. Este conteúdo abrange um percurso de quase cem anos de desenvolvimentos.

Certamente, o contexto do livro trata dos principais pensadores da psicanálise, que fazem parte da leitura básica de todos os psicanalistas, sejam eles psicanalistas experientes, em formação ou estejam entre os demais estudantes de diversas disciplinas. Mas, ao mesmo tempo, penso que essa afirmação pode não fazer justiça aos muitos pares da época desses pensadores, e também aos nossos contemporâneos, que o livro deixa de fora. Por exemplo, os coordenadores dizem que se inspiraram em Thomas Ogden - o título de uma de suas obras inspirou o do presente livro -, porém o autor foi deixado de fora. Qualquer psicanalista pode apresentar uma lista enorme, da sua preferência, de pensadores importantes e originais, mas isso não vem ao caso. A proposição central não se perde por causa dessa escolha, ou seja, a referência a Freud, Ferenczi, Klein, Lacan, Winnicott e Bion.

Como esperar a congregação, em um livro, de todos os autores criativos do vasto universo da psicanálise? Precisaríamos de uma enciclopédia para essa tarefa.

Na introdução do livro, é esclarecida a circunscrição do espaço de discussão, com o aviso de que escrevê-lo foi uma feliz consequência de um curso (iniciado em 2006) organizado por professores da PUC de São Paulo. Enfatizo o termo feliz, porquanto um livro de psicanálise é sempre uma conquista prazerosa, de um percurso que exigiu muito empenho e trabalho. Um reflexo do esforço que os psicanalistas fazem, todos os dias, nas sessões de análise com seus analisandos.

Sugiro, como possibilidade de orientação para a leitura, ao percorrer os textos, buscar identidades e diferenças, para destacar, em cada pensador, o objeto da psicanálise. Claro que, ao fazer esta leitura, assumo o produto da minha singularidade imaginativa, inclusive por sugerir uma via distinta da apresentada pelos autores, que buscam pelas diferenças na concepção da constituição do sujeito, em cada um dos autores estudados.

O objeto da psicanálise é um conceito com um viés epistemológico, definido como o produto final do desenvolvimento teórico e clínico de um autor. Trata-se de um referencial crítico que o autor pode utilizar para checar os parâmetros de seu trabalho: um referencial de singularidade do analista. Geralmente ele se encontra formulado mais ou menos no meio da trajetória produtiva da vida um psicanalista, e pode ser seguido tanto em seus antecedentes como em seus desdobramentos.

Em Freud, o objeto da psicanálise é o superego, o herdeiro do complexo de Édipo, ao qual ele dedicou sua vida para entender e ampliar. Comecemos pelo texto de Thais Garrafa, a autora de "Introdução à obra de Sigmund Freud", o primeiro artigo do livro. Lá encontramos tal premissa enunciada com clareza: "Abrir mão da própria censura, não colocar a própria individualidade no debate, submeter à sua própria análise os afetos que lhe são despertados no contato com os pacientes" (p. 28).

Podemos, interpretando essa passagem, ser levados a pensar o objeto da psicanálise em Freud como sendo o superego, agente do que se pretende e não se pretende fazer na clínica, conceito fundamental, que congrega os esforços de Freud para entender a mente humana e que abriu o terreno para os demais psicanalistas. Desejos inconscientes e valores éticos e morais em conflito permanente seriam o pano de fundo de uma existência prenhe de sofrimento. Em alguns, sofrimento normal, em outros tantos sofrimento neurótico.

Talvez, dentre todos esses pensadores, seja mais difícil discernir qual seria o objeto da psicanálise para Ferenczi. Porém as autoras do artigo "Ferenczi: o trauma na clínica psicanalítica", o segundo do livro, Adriana Barbosa Pereira e Claudia Peron, apontam para uma afortunada expressão que é o trauma posto em cena. Penso que essa expressão diz quase tudo sobre o que Ferenczi entendia como seu objeto da psicanálise, e que culmina na técnica ativa. Expressão ambígua, que inclusive recebeu críticas de Freud quanto aos seus propósitos[i]. Freud aponta aqui, com certa indiscrição, é fato, para a necessidade de análise para o analista, ainda que nem sempre sirva de garantia frente a anseios profundos humanos.

Não há técnica que não seja criativa, na minha opinião. Mas é necessário um alerta para que a criatividade necessária ao exercício da profissão não seja confundida, sob o risco de submergir às pressões antiéticas tão comumente produzidas por ideologias, falsas teorias, sociedades fechadas e outras tantas vicissitudes que intoxicam o contexto psicanalítico.

Em Klein, o objeto da psicanálise são os objetos internos, que é a sua versão do superego de Freud, ou seja, uma contribuição aos efeitos da introjeção dos valores éticos, o medo de perder o amor parental e a pressão dos próprios desejos. Ao trazer as origens do conceito para fases mais primitivas do desenvolvimento psíquico, Klein faz uma importante torção, que culminará em uma outra teoria em psicanálise! No artigo "Klein e os primeiros mil dias de vida" (p. 53), Elisa Maria Ulhôa Cintra expõe com cuidadosa abordagem a questão da interação entre as posições kleinianas, segundo a qual esses objetos se revelam na criação do espaço psíquico e passam a figurar como foco da clínica. O início do artigo dá a ideia clara da amplitude percebida pela autora: "Pensar na transmissão do legado de Klein leva-nos diretamente aos efeitos que a sua obra produziu em nós e em uma infinidade de pessoas pelo mundo afora" (p. 53).

Também cabe ressaltar a contribuição de Klein à compreensão da destrutividade humana e a apreensão da linguagem pré-verbal, o que culminará na possibilidade de tratamento psicanalítico em crianças e em casos de psicose.

Em Lacan, no circuito real-simbólico-imaginário, encontramos o objeto da psicanálise. Alessandra Cassia Leite Barbieri, no artigo "A palavra de Lacan" (p. 71), vai tecendo os conceitos de Lacan, apresentando de maneira didática como essas três dimensões se imbricam. Segundo a autora:

Alinhavando com as três dimensões, os três registros mencionados anteriormente, temos: o corpo fragmentado do autoerotismo, podemos localizá-lo na dimensão do Real; o corpo unificado, a imagem narcísica total, na dimensão do Imaginário; o simbólico é o Outro, a dimensão que faz possível fazer a diferenciação entre Real e Imaginário, o meio por meio do qual se produz uma imagem (p. 78).

Parece suficiente, para Lacan, trabalhar com esta imbricação, conforme aponta Barbieri, ou seja, em cada uma das dimensões apontadas, encontramos o humano em sofrimento psíquico.

A autora conclui seu artigo descrevendo a estratégia do analista, próxima à estratégia de uma guerra, em que o analista, ao ocupar o lugar do suposto saber, permite ao imaginário do analisando se dirigir para um ponto onde se surpreende, sem esperar, com a força do simbólico, enquanto o inacessível real, que liga ambos, dribla o par analítico, jogando-o em direção ao mistério da vida.

Em Winnicott, penso que o objeto da psicanálise é o objeto transicional. Regina Celia Cavalcanti de Carvalho, no artigo "A transferência em Winnicott" (p. 87), embora não mencionando diretamente esse conceito primordial, o menciona através de seus conceitos derivados, que se desdobram na compreensão do fenômeno da transferência. A transferência é sempre transicional e o principal objeto do analista.

Esta autora deteve-se em diferenciar os efeitos da teoria winnicottina a partir dos seus desdobramentos na clínica. Segundo ela:

 

Trataremos aqui de considerar as especificidades e a abrangência das proposições de Winnicott a respeito de uma dimensão clínica estritamente relacionada com a compreensão dos processos de desenvolvimento inicial e imprescindível no entendimento da prática psicanalítica de crianças e adultos: a transferência" (p. 87).

 

E qual seria a razão desta escolha, dado que a transferência é o motor da clínica psicanalítica? Basicamente, a que resultaria de entender, a partir dos efeitos iniciais da relação da criança com a mãe, que "...podemos traçar a origem de um fenômeno transferencial específico: a regressão na transferência" (p. 88).

Esta compreensão faz toda a diferença, visto que, em Winnicott, a regressão se daria no sentido de fases anteriores do desenvolvimento, não somente a transferência clássica de papéis parentais. Não como reedição de um conflito anterior da vida libidinal, mas antes como a oportunidade da revelação do verdadeiro self na transferência. E, graças ao foco no fenômeno da transferência, Chú Cavalcanti faz desabrochar a trama conceitual winnicottiana.

Em Bion, o objeto da psicanálise é o objeto psicanalítico. Elisabeth Antonelli, no artigo "Bion e o Aprender da experiência" (p. 95), ao sintetizar o complexo trajeto do autor, mostra que o instrumento do analista, produto de sua Teoria do Pensar, tem como resultante e referencial crítico o objeto psicanalítico. Ou seja, a função alfa, que requer uma compreensão da matemática, com base na nossa experiência emocional, expressa o que seria o superego para Bion, que, todavia, entende que lidamos com um espectro de muitas possibilidades, que intermediam as relações transferenciais.

Com toda razão, Elisabeth Antonelli termina seu artigo com uma bela metáfora dessa intermediação, citando o matemático Poincaré: o pensamento é apenas um lampejo entre duas longas noites, mas esse lampejo é tudo.


topovoltar ao topovoltar à primeira páginatopo
 
 

     
Percurso é uma revista semestral de psicanálise, editada em São Paulo pelo Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae desde 1988.
 
Sociedade Civil Percurso
Tel: (11) 3081-4851
assinepercurso@uol.com.br
© Copyright 2011
Todos os direitos reservados