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Resumo
Resenha de Renato Tardivo, Cenas em jogo: literatura, cinema, psicanálise, Cotia/SP, Ateliê, 2018, 142 p.


Autor(es)
Roberta Nazaré Bechara Ventura Ventura
é bacharela em Ciências Sociais, fonoaudióloga clínica, aluna do curso Clínica Psicanalítica Conflito e Sintoma do Instituto Sedes Sapientiae.


Notas

J. M. Masson (ed.), A correspondência completa de Sigmund Freud para Wilhelm Fliess 1887-1904. Trad. Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Imago, 1986, p. 265.

O. Matos, A Escola de Frankfurt: Luzes e Sombras do Iluminismo. São Paulo: Moderna, 2009, p. 59 apud

R. Tardivo, Cenas em Jogo: Literatura, Cinema, Psicanálise. Cotia/SP: Ateliê Editorial, 2018, p. 124.


J. Lacan, Seminário, livro 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise 1964 / Jacques Lacan; texto estabelecido por Jacques-Alain Miller; trad. M. D. Magno. Rio de Janeiro: Zahar, 2008, p. 208


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 LEITURA

Um encontro entre literatura, cinema e psicanálise [Cenas em jogo: literatura, cinema, psicanálise]

An encounter of literature, cinema and psychoanalysis
Roberta Nazaré Bechara Ventura Ventura

O livro de Renato Tardivo se abre em uma dobradura a cada um dos capítulos. São cinco. No primeiro deles traz de sua dissertação de mestrado a análise comparada que construiu entre livro e filme Lavoura Arcaica. Enquadres, movimentos de câmera, cortes, fotografia e som ressoam a palavras, pontuações e figuras de linguagem no intercambiar da linguagem cinematográfica para a literária com que desdobra sua análise. No segundo capítulo, Tardivo traz, de seu doutorado, leituras de filmes brasileiros recortados pela contemporaneidade de suas produções e por temáticas a princípio assemelhadas, são eles: Abril Despedaçado, O Cheiro do Ralo e Linha de Passe. Suas análises aqui conversam com as obras literárias nas quais os filmes foram baseados, mas tomam rumo mais independente nas temáticas das particularidades lidas nas versões cinematográficas. No terceiro capítulo, o autor se debruça sobre um de seus grandes temas de análise, as dinâmicas entre ficção e realidade, a partir da obra que explicita essa metalinguagem por excelência, o filme Jogo de Cena, de Eduardo Coutinho. No quarto capítulo, Tardivo nos brinda com uma delicadíssima leitura de Budapeste, livro de Chico Buarque, numa aproximação que faz com a linguagem fotográfica. Por fim, demonstra sua tese, a partir das leituras realizadas, que é a sua interrogação final na forma de uma poética-crítica particular, muito sustentada nas teorias fenomenológicas, estéticas e sociológicas que traz como companhia. A psicanálise percorre o livro como um alinhavo que ora se dá a ver como operador de leitura, ora se esconde no cerzir da escuta do autor.

A arte de ler

Ler, para Tardivo, é colocar a obra de arte para tocar, revolver a obra segundo a própria pulsação que o artista nela cavou. Em diálogo estreito com a noção de execução do campo da estética, a leitura de um livro, a contemplação de um quadro, apertar o play em uma música ou filme não é nem completar, nem repetir um sentido, é fazer continuar a vida que a obra já contém. Referido ao campo discernido como da psicologia da arte tal como a delineia Frayze-Pereira, Tardivo se desvia de aproximações reducionistas entre teorias psicológicas e arte. Ao se abrir para o campo das obras, nos mostra Tardivo, tanto espectador como pesquisador têm de se haver com questões de ordem transferencial e, consequentemente, de se comprometer. Haverão ambos de contar com sua disposição para introduzirem-se num campo em que há "vertigem e perda de pontos fixos" (p. 122). A esse modo de trabalhar, cunhado como psicanálise implicada, diferenciando-se da psicanálise aplicada, projeta-se uma leitura atenta a aproximações, relações, entrelaçamentos e considerações entre trabalho do artista, obra e trabalho do espectador.

Tardivo nos diz de uma posição frente à obra de arte que implica uma experiência de recepção menos à caça de significados e mais à abertura de sentidos. Dito de outro modo, uma leitura menos referenciada à ordem da interpretação e mais aberta às condensações de sentidos e deslizamentos significantes. Não se trata de resolver o enigma da obra, mas de abri-lo. Multiplicá-lo. Aprofundá-lo. Resolver a obra seria matá-la, enterrá-la num sentido único. Debruçar-se sobre uma obra, como Tardivo o faz, só pode abri-la a enigmas múltiplos. Em lugar de uma explicação, projeta-se para ressignificações.

À medida que se comunica e se revela a alguém, a obra de arte vira meio de compartilhamento de mundo. O autor evoca Merleau-Ponty para tratar da construção de sentidos que se abre numa leitura de uma obra de arte. Nos termos da fenomenologia, perceber é trocar sentidos com o mundo: "ver e ser visto, tocar e ser tocado, afetar e ser afetado" (p. 129). Ambiguidade insolúvel, muito embora, vivida. A percepção, não como a soma dos sentidos, aponta para uma experiência que se dá de forma indivisa, que é sinestésica, e, portanto, não se dá na ordem da recepção no corpo com todos os sentidos, mas como uma apreensão de mundo. O contato por via da percepção com a obra falaria de uma maneira de existir contida nela e, sendo assim, falaria a todos os sentidos de quem lê. O corpo dessa percepção então não é uma ferramenta de acesso a uma realidade dada fora. Mas de um fora a fora. Esse corpo que não é o da ciência positivista, tampouco o que faz sintoma inconsciente, é um corpo que capta o avesso das coisas, que pode habitar um romance, mergulhar no sensível, no invisível, no não coagulado. Com isso, se corrompe a um modo particular da fenomenologia, o dualismo do sentir e do entender. Entrelaçadas objetividade e subjetividade, a abertura à alteridade implicaria um mergulho na ambiguidade do encontro e do mal-entendido.

Nesse ponto, Tardivo propõe o questionamento da fé perceptiva, aquela que tende a atestar que o mundo é tal como se pode perceber, que é quando ideologia e realidade "correm uma para a outra" (p. 133), como o autor destrincha na análise de Abril Despedaçado.

Ficção e não ficção

Para tratar da questão da realidade e da ficção (em predominância nas leituras de Budapeste e Jogo de Cena), Tardivo resgata a dimensão ficcional do aparelho psíquico. Nesse lugar entre o vivido e o imaginado, lugar caro à psicanálise, Tardivo remonta à reviravolta de Freud bem conhecida pela carta 69[i], na qual Freud se dirigiu a Fliess e que nos dá a ver a sua perturbação quando se vê diante da falha da sua neurótica, para em seguida criar a teoria da fantasia na qual se apoia a edificação da psicanálise. A teoria da sedução não resistiu à clínica da histeria do próprio Freud, uma vez que um acontecimento circunscrito na ordem do real não daria então conta do desencadeamento da divisão psíquica, do trauma. Não seria, portanto, exatamente na realidade do vivido o ponto de gatilho do erigir de uma defesa psíquica a constituir as chamadas psiconeuroses de então. Freud nos dá a ver a nuance: o discurso de seus pacientes não assentava tão somente na realidade vivida, tampouco numa mentira e não necessariamente em um delírio, mas na sua rede fantasmática. Nesse ponto, Tardivo assume essa que seria a condição ficcional do aparelho psíquico freudiano como ponto para a sua discussão da construção de realidades.

A realidade no psiquismo toma uma formação interpretante a partir do fantasma (p. 126). Nesse ponto, o vivido já contém e é contido pelo imaginado. Uma cópia da realidade nem a fotografia, que um dia pareceu fazer, de fato pôde fazê-lo. Ao mesmo modo, do inconsciente somente sabemos pelo seu decalque. A temporalidade revelada do après coup nos diz de "um vivido que é representado -depois, já que as marcas só são ativadas quando relacionadas entre si" (p. 127). Tardivo aqui está às voltas com a questão da representação: não se trata de revelar sentidos ocultos, mas de olhar para os mecanismos de construção de sentidos, o que ele refere também por construção de verdade e de realidades.

Na linha tênue entre ficção e não ficção é que se desenrola o filme de Coutinho, que Tardivo convoca para aprofundar a ideia de construção de verdade do sujeito, mas também, do mundo. As histórias narradas por atrizes e por não atrizes, o confundir-se entre as verdadeiras donas das histórias e suas intérpretes traçam, pela montagem de Coutinho, uma bela ilusão de ótica entre papéis encenados e revividos, colocando-os, na leitura de Tardivo, ora em exato e ora em distintos lugares.

As ambiguidades postas às cenas das histórias que, sendo ficção, parecem verdade e, sendo verdade, parecem construção, não eliminam a factualidade do vivido, mas o reordenam para além da fantasia singular de cada um, na ordem do desvelar mecanismos coletivos de construção de verdades.

Papéis circulares e papéis que circulam

Em diálogo estreito com a Teoria Crítica, Tardivo remete suas indagações, quanto aos mecanismos de construção de verdade, diretamente para o campo social. A fim de refletir as análises fílmicas que apresenta nos capítulo I e II de seu livro, cita a filósofa Olgária Matos, na formulação de uma das questões mais fundamentais para a perspectiva poético-crítica de Tardivo quando, como ele diz, "realidade e ideologia correm uma para a outra" (p. 124) e segue a autora, que indaga:"como romper o ciclo fatal de uma história que se naturalizou, perdeu seu papel humano, e de uma natureza que se artificializou e se tornou fantasmal, irreconhecível e estranha ao homem que nela vive?"[ii].

O menino analfabeto lê o livro por meio das figuras e Tonho, seu irmão, vive o livro; muda a velocidade em que gira o tempo dos seus dias. Tardivo descreve a cena mais ou menos desse modo, referindo-se aos irmãos do sertão nordestino diante da bolandeira que faz com calor e sobriedade a rapadura da família, em Abril Despedaçado. O menino de batismo recente, nome ainda sem pega, é sacrificado e Tonho escapa da roda da mórbida repetição familiar e social. O rompimento do círculo de violência pelo sacrifício do menino, na versão de Salles, difere do romance de base, talvez não dirimindo o aspecto trágico, mas possivelmente acrescentando, como sugere Tardivo, um alento: uma saída por Eros, na figura da circense Clara, da exogamia e da condenação à violência repetida, cujo caminho inexorável leva à morte. A saída que se apresenta na obra de Salles, nos lê Tadivo, é a da ressignificação da violência. O autor ecoa a pergunta: seria o sacrifício do menino (e também o de André, personagem de Linha de Passe) um fim inevitável? Uma saída possível?

Tardivo aproxima, em Linha de Passe, psicanálise com sociologia urbana, a fim de pensar a impossibilidade de sedimentação de memória, que se dá em famílias cuja condição de pobreza material e cuja necessidade de permanente deslocamento inibem a construção de uma perspectiva de futuro. O autor abre uma veia importante da relação entre processos psíquicos e processos sociais, diante das análises dos filmes que seleciona fazer. Traz das representações fílmicas a batalha pela existência, a humilhação social e relações alienantes e perversamente articuladas entre realidade e artifício nas vivências dos enredos e formas narrativas.

As negociatas do comprador Lourenço?- de objetos carregados de história e afetos de pessoas falidas em necessidade extrema de algum ou qualquer dinheiro?- é o que se desenrola no filme O Cheiro do Ralo. O mundo estéril de Lourenço se baseia em transformar objetos de afetos e história em quinquilharia. Tardivo vê, no projeto de vida desse personagem, nossa sociedade que, ao mercantilizar afetos em torno de objetos, cumpre o seu projeto de anulação dos afetos.

Chafurdado no cheiro do ralo e no fetiche da mercadoria é como Lourenço toma os objetos de afetos dos seus vendedores (estes em condições de subsistência); assume ainda a crueldade dos tempos liberais nas falas em que insiste em deixar claro que "cada um vende porque quer" (p. 62). A noção de liberdade sem liberdade, como a que parecemos viver, nos remonta à escolha entre a vida e a bolsa de Lacan, em seu Seminário 11[iii]: ou se perde os dois ou se fica sem a bolsa. A liberdade que se apresenta é aquela diante da qual não há liberdade: há apenas a falsa escolha entre uma subsistência dessubjetivada, mórbida vida, e a morte efetiva.

A crueza da personagem de Heitor Dhália, na leitura de Tardivo, completa sua faceta perversa quando a subjugação que faz do todo pela parte comparece na relação de amor-fetiche que estabelece com uma moça ao desejar e, sempre explicitar, exclusivamente uma parte do corpo desta moça. Imagem preciosa à conceitualização freudiana da perversão está na cena recortada e analisada por Tardivo: diante da pergunta da moça (que não tem nome) se comprar uma parte do seu corpo era a fantasia de Lourenço, obtém como resposta dele que não, "isso seria sua realidade" (p. 65). O que na neurose se recalca e compõe a fantasia do sujeito, na perversão se realiza.

Sem referenciais internos consistentes, atolado no que acumula diante da miséria dos outros e de sua própria miséria que não escoam pelo ralo do banheiro, causa enunciada do mau cheiro, a vida de Lourenço, na releitura de Tardivo, emblema uma circularidade perseverante de um ralo sem vazão. A saída sarcástica e indiferente do personagem esconde a vulnerabilidade de quem se vê no lugar de desprezo que tenta tanto emanar para fora, mas que lhe é próprio e, portanto, não sai e impregna a sua própria existência. Circularidade essa evocada também ao redor da caldeira de rapadura, quente e sombria, contrastada pela luminosidade erótica da vida lá fora. Quando rompida a repetição circular fechada e mórbida, algo passa a poder dar vazão e circular em percursos diversos.

Em tempos de verdades forjadas em fake news e espalhadas em caráter de contaminação digital, as quase oitenta folhas em impressão frente e verso sobre papel da perspectiva poético-crítica de Tardivo nos permitem uma suspensão da temporalidade fugaz, para uma temporalidade algo entre o impermanente e o incrustado.


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Percurso é uma revista semestral de psicanálise, editada em São Paulo pelo Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae desde 1988.
 
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