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TÍTULO DE ARTIGO


 

AUTOR


ÍNDICE TEMÁTICO 
62
História, criatividade e resistência
ano XXXI - Junho 2019
165 páginas
capa: Tunga. Lezart (detalhe)
  
 

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Resumo
Realização?Ana Claudia Patitucci, Bela M. Sister, Célia Klouri, Cristina Parada Franch, Danielle Melanie Breyton, Deborah Joan Cardoso e Silvio Hotimsky. Colaboração?Lisette Weissmann.


Autor(es)
Laura Sacchet Jaskulski Jaskulski
são psicanalistas, Membros Efetivos do cepdepa.


Notas

1.Presentação (presentación) é um dos conceitos importantes na Psicanálise das Configurações Vinculares. Ressalta a alteridade do outro que se impõe, enquanto presença dos sujeitos nos vínculos, marcando uma diferença que não pode ser desconsiderada ou apagada. O conceito alude àquilo que não foi vivido anteriormente e que dá espaço à novidade da experiência. À possibilidade de se surpreender com o outro e, dessa forma, criar novas marcas intersubjetivas.

2.O conceito de ajeno é muito importante para Janine Puget e não pode ser traduzido literalmente para o português. Possui algumas similitudes com alheio, alteridade, diferente, outro, mas essas traduções não dão conta de todo o conceito.


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 ENTREVISTA

Janine Puget - Uma experiência conceitual

Janine Puget - A conceptual experience
Laura Sacchet Jaskulski Jaskulski

Janine Puget é médica e psicanalista argentina nascida na França; membro da Associação Psicanalítica Internacional e membro titular da Associação Psicanalítica de Buenos Aires (APdeBA), onde é também diretora do Departamento de casal e família. Integra atualmente o grupo de Direitos Humanos da IPA-FEPAL. É membro fundadora da Associação Argentina de Psicologia e Psicoterapia de Grupo (AAPPdeG) e participa dos Psicoanalistas Autoconvocados em Buenos Aires. Puget é autora de diversos livros, dentre os quais destacamos: Lo Vincular: Teoria y clínica psicoanalítica (1997), em coautoria com Isidoro Berenstein, e Subjetivación discontinua y psicoanálisis. Incertidumbre y certezas (2018).

Como se percebe em seu engajamento institucional, Puget se dedica ao alargamento do campo da psicanálise para além do intrapsíquico. Em sua clínica, assim como em todo seu desenvolvimento teórico, se debruça sobre o tema da intersubjetividade nos casais, famílias e grupos, mas dedica especial atenção ao sujeito político e à subjetividade social no presente, subjetividade que se constitui sobre a areia movediça desses tempos que ela chama de ditadura econômica. 

Entrevistar Janine Puget nesse momento complexo da política no Brasil, assim como na Argentina, nos pareceu bastante oportuno. Puget foi extremamente receptiva à nossa demanda de entrevista e, em breve troca de emails, ficou combinado que enviaríamos um roteiro de aproximadamente dez questões para o qual ela teria o prazo de um mês para nos enviar suas respostas.

Frente a seu pensamento instigante, procuramos formular um roteiro abrangente de questões visando a produzir uma panorâmica do alcance de seu trabalho e proporcionar ao leitor um recorrido da extensão e importância da obra dessa autora, pouco traduzida para o português e insuficientemente acessível em nosso país, que segue, em alguma medida, resistente ao trabalho com grupos. 

Assim que enviamos as questões, Puget reagiu expressando seu espanto com aquilo que lhe pareceu excessivo... teria que escrever outro livro, ou trabalhar regularmente conosco por um longo período para fazer frente ao nosso roteiro. Seguiu-se então uma nova troca de mensagens e explicações de parte a parte, tentando acertar o passo de nosso encontro; afinal, tínhamos nos dedicado de fato ao trabalho e estávamos bastante interessados nesse intercâmbio. Talvez um pouco afobados na leitura de Puget, que também se mostrava disposta a dialogar, embora algo descompassada com a nossa proposta inicial.

Acabamos encontrando um novo formato: duas horas de conversa por Skype, no final do dia de uma sexta-feira. 

Tínhamos alguns dias para nos preparar para o encontro. Curiosamente éramos inexperientes no campo da conference call e neste quesito contamos com o valioso auxílio de James Wilkinson, que preparou o nosso salão, emprestando seu escritório com todos os recursos para que pudéssemos receber Puget em uma grande tela, com boa conexão para que nos víssemos e nos escutássemos bem.

Convidamos também para estar conosco a colega do Departamento Lisette Weissmann, que foi de fundamental ajuda, não apenas pelo seu domínio do espanhol e por conhecer pessoalmente nossa entrevistada, mas principalmente pela delicada e carinhosa presença, com a qual participou ativamente na composição do encontro e na revisão final da tradução.

Janine Puget chegou pontualmente ao encontro marcado, os lábios pintados, colar de pérolas, um belo xale nos ombros... quase podíamos adivinhar o aroma cítrico de seu perfume. Cristina Franch, que nos representava na direção da entrevista, ensaiou os primeiros passos: "Sou Cristina Franch, vamos nos apresentar...", ao que Puget interrompe imediatamente: "Não. Vamos fazer como costumo fazer. Não vamos nos apresentar com os nomes, vamos nos apresentar com as nossas ideias... Eu sei que você se chama Cristina. Sei que a Lisette se chama Lisette. Mas para o trabalho que temos de fazer não é tão importante que você se chame Cristina, não é mesmo?".

Um tanto desconcertados, entendemos que ela nos convidava a uma presença e participação mais espontânea e criativa. Tropeçamos um tanto, demoramos algum tempo para deixar de lado os livros que trazíamos debaixo dos braços e o roteiro que tínhamos nas mãos, até conseguirmos embalar em uma interessante experiência: "a aventura em que se meteram", como formulou Puget.

"Haverá um efeito surpresa em cada encontro que não passa pelo que se supõe que o outro é, mas pelo que acontece quando estão juntos...".

Assim foi para nós?- uma experiência conceitual?- e esperamos que, na edição que propomos, possa ser também para o leitor uma chamada à reflexão.

 

Danielle Melanie Breyton

 

percursoEstamos aqui em grupo e, para começar, pensamos em nos apresentar.

janine puget Sim, podemos nos apresentar. Mas, como eu costumo fazer, não vamos nos apresentar com os nomes. Para o trabalho que temos que fazer não preciso saber o nome de vocês. O importante é nos apresentarmos com nossas ideias, ou seja, conversar, nos escutar e ver o que construímos juntos.

Agradeço o trabalho que tiveram e o interesse que as minhas ideias despertaram em vocês. Quando me mandaram as questões, fiquei surpresa com a leitura profunda que fizeram e com a capacidade de síntese.

Vou contar como li o que me enviaram. Acho que as questões se apresentam em três grandes capítulos. O primeiro diz respeito à história das minhas ideias, como fiz essa construção teórica incluindo meu trajeto pessoal. A história das ideias é um capítulo importante. Outro capítulo é composto por algumas definições conceituais, que, por mais que tenham lido meus livros, dá para perceber que alguma coisa não falou com vocês, algo falhou e me parece que, com isso, podemos trabalhar. O terceiro capítulo teria a ver com o presente, sobretudo ligado à subjetividade social. Este, se a gente quiser, pode demorar um ano!

 

percurso Teríamos muito prazer.

puget E nós temos duas horas para que eu lhes conte minha vida, esclareça todos os conceitos, e, além disso, lhes diga o que penso da situação política atual na Argentina, no Brasil, ou em qualquer outro lugar, dentro de um marco conceitual que inclua a subjetividade social e a política. Digamos que me encontrei com uma tarefa nada fácil. É um desafio. Por um lado, demonstra o interesse da parte de vocês, mas, de outro, algo se excede. E temos que saber jogar fora esse excesso.

Digo que não é o que falta, e sim o que excede. Esses são conceitos importantes para mim. Mas o que excede, às vezes, não dá para ser hospedado, não dá para ser alojado. O excesso é necessário, mas em uma quantidade certa.

Então, pensei no que fazer com o excesso que me propuseram e que tem a ver com o contato com as ideias. Posso contar um pouco sobre meu percurso. Alguns momentos-chave para mim, por exemplo, quando colegas psicanalistas começaram a diferenciar meu trabalho com a psicanálise vincular da psicanálise individual. Isso foi um ponto de partida.

E, depois, eu gostaria de dialogar, que vocês comentem o que pensaram sobre o que leram. Que armemos alguma coisa juntos.

 

percurso Então, podemos começar pela sua formação e pelo seu trabalho com o vincular.

puget Comecei a minha formação psicanalítica como candidata à Associação Psicanalítica Argentina (APA), e, simultaneamente, criei e formei a Associação de Psicoterapia em Grupo (AAPPdeG). Sempre trabalhei com a psicanálise individual e com grupos terapêuticos. Desde o começo, o trabalho com grupos me impactou muito. A primeira coisa que me chamou a atenção é que, se entrevistava uma pessoa sozinha, conhecia um sujeito de uma forma. Mas quando essa mesma pessoa entrava em um grupo, eu não a reconhecia. Não se comportava do mesmo jeito, nem me parecia a mesma pessoa. Então, comecei a questionar o que estaria acontecendo. Era a mesma pessoa da entrevista e depois não a conheço quando está em grupo? Como é que a subjetividade se constitui quando se está em grupo? Não se trata de uma definição identitária, e sim o que vai se construindo em cada situação. O identitário, em cada um, não é tão importante quanto o situacional que vai acontecendo de acordo com quem está e assim vai se fazendo o vínculo. Cada um vai se fazendo, se tornando, em cada situação que vive.

Esse entendimento faço hoje, retrospectivamente. Penso que foi o início de todas essas complicações nas quais me meti, mas que considero muito importantes. Para conhecer alguém, deve-se saber que cada situação cria uma personagem nova. Não somos os mesmos, eu aqui hoje, eu na instituição ou vocês nas suas casas. Hoje, aqui, estamos nessa aventura em que nos metemos.

Assim, pouco a pouco, fui dando importância às situações e considerando que alguns conceitos importantes para a psicanálise tinham entrado em crise. Não que eu os tenha abandonado, mas começaram a não ocupar o mesmo lugar privilegiado que tinham antes.

 

percurso E quais seriam esses conceitos?

puget Aquilo que chamo de crise da representação seria um deles. Isso, hoje em dia, não é nenhuma novidade. Há vários filósofos e psicanalistas que falam da crise da representação. Quando esse conceito entra em crise, um pilar muito importante da psicanálise desaba. Freud, Melanie Klein e outros autores sempre se referiram a esse conceito. E ele continua sendo importante e útil, mas eu e Isidoro Berenstein introduzimos o conceito de presentação[i].

Resumidamente, representar é apresentar algo que já esteve antes e que se reapresenta. Não se reapresenta na versão original e sim sob um disfarce, outra roupa, outra forma. Por isso, sempre fala de um antes, que não tem origem no momento. Se reproduz o que é o passado, o passado que volta. Na psicanálise, o que se pontua são os conteúdos que aparecem e que têm a ver com a infância, com alguma coisa que já aconteceu e que se manifesta de diferentes formas.

É possível ter várias definições de representação. Estou dizendo tudo isso, para contar para vocês quais as paredes do meu corpo teórico que foram caindo durante meu percurso, para dar lugar a outro modelo. A mudança de modelo do conceito de representação para presentação tem a ver com a ideia de que um vínculo tem um componente que sempre perturba, descoloca, inquieta e, ao mesmo tempo, é o que lhe dá vida, pois tem algo de novo. As pessoas podem verdadeiramente se conhecer no contato com os outros, ao se escutarem quando estão juntos. Em cada encontro, há um efeito surpresa, que não passa pelo que se supõe que o outro é, senão pelo que acontece quando estão juntos. Por isso, eu poderia querer saber o nome de cada um de vocês, óbvio que gostaria de conhecê-los, mas não é o que vai acrescentar algo de importante no que estamos fazendo agora. É meramente formal. É um dado identitário. Mas o que eu faço com isso no momento do encontro? O que acrescenta à situação na qual estamos neste momento?

Então, como estabeleço um diálogo com vocês a partir de alguma coisa que lhes interessou? Eu lhes digo como os escutei. Vocês também vão me dizer como me escutaram, pois vieram com uma expectativa de que eu dissesse algumas coisas. E certamente não vou dizer o que esperam, porque isso é impossível. Vocês podem querer saber sobre um conceito. Mas a definição está no livro. O que temos que ver juntos é o efeito, em vocês, do que lhes digo. Então, o que tem que se levar em conta quando se pensa em um vínculo é justamente o que está acontecendo no momento do encontro. Se tenho a possibilidade, descarto o ajeno[ii] do outro, aquilo que não coincide com o que penso. Ou tento fazer coincidir aquilo que o outro pensa com o que eu penso. Um exemplo disso é o que lhes digo sobre vínculo. Vocês podem dizer: "Mas já foi dito por Bion!". Não, porque o que estou dizendo Bion não disse. A definição que estou dando é de outro marco teórico. Não é nem parecido.

É muito comum, nas conversas entre as pessoas, se escutar um pouco do que o outro diz, mas o que realmente é dito excede a quem escuta. Para dar conta desse excesso, há a tendência em reduzir o que não coincide a algo semelhante. Alguém diz: "Está doendo o meu estômago". E o outro responde: "É mesmo? O meu também está doendo". Quem iniciou a conversa tenta falar sobre a sua dor de estômago, e o outro, ao dizer que seu estômago também dói, acha que pode tranquilizá-lo. Mas isso não ocorre, pois o pedido é de escuta de sua dor e, às vezes, quem supostamente escuta não tem lugar para alojar essa dor, pois para isso teria que se deslocar de si. Um lugar teria que ser criado. Assim como, em uma casa, se abre espaço para um móvel novo.

A cada vez que você se conecta e se relaciona com o outro, aparece mais desconhecimento que conhecimento. Quando descobre que o outro não é o que você pensou que fosse, que não pensa do seu jeito, que pensa a partir do seu próprio eu, algo novo é possível de se escutar, que não é como eu me penso, e sim como o outro me pensa. Dar lugar para como o outro me pensa, me dá vontade de dizer para ele: "Não, eu não sou como você está dizendo". Mas o outro me diz: "Para mim você é assim". "Não, mas você não me escutou bem". "Escutei bem, sim. Mas quando eu o incorporo, o incorporo assim". Ou seja, acho que parte das nossas dificuldades de nos vincular, também como psicanalistas, é a de dar lugar à surpresa, dar lugar a que a vida não é como a pensamos. E que, se não é como pensamos, se não sabemos com o que podemos contar, não dá para fazer previsões. Não dá para fazer projetos para amanhã.

 

percurso Isso se relaciona com sua ideia de que o "analista é também um outro"?

puget Sim. Com o analista acontece a mesma coisa que acontece na vida de cada um, com o parceiro, com os amigos. Estamos sempre manejando com dois corpos teóricos em um mesmo dispositivo. O que inclui ver nas análises, por exemplo, o que chamamos de transferência e contratransferência e também a relação vincular entre dois outros. O analista não é apenas depositário das identificações e projeções de seu analisando. Ele é outro sujeito. Um outro que o paciente não conhece e que diz coisas que o descolocam.

Não se trata de dar explicações aos pacientes do que lhes está acontecendo, seguindo uma determinada teoria, e sim procurar criar espaços que gerem pensamentos. Como se faz para gerar pensamento entre dois outros? O analista não vai contar sua vida para ele. Vai falar de suas opiniões. E sobre o que opina? A respeito do que diz o paciente, o outro. Mas tentando também ser escutado pelo paciente. E o que escuta? Eu, por exemplo, lhes pedi que falassem, não que fizessem uma pergunta, porque se é pergunta vou dar uma definição e não será uma conversa. Eu gostaria de gerar mais uma conversa do que uma pergunta. Mas, eu não sei se isso vai servir para vocês.

 

percurso Como seria, em uma sessão analítica, a distinção entre o que é da ordem da presentação e o que é da ordem da representação? Qual o manejo clínico de cada uma delas?

puget Bom, se eu der, suponhamos, uma forma de diálogo a isto que você está me propondo, você teria que me dizer como você entende. Não como eu entendo. Se você me faz perguntas eu respondo, fico dotada de certo saber. Vou te dizer o que já está nos meus livros. O livro é um interlocutor que não incomoda. E eu, em compensação, te diria: "Diga você, se surge algum exemplo. Daí posso te dizer como eu o vejo". Então, isso que está me dizendo me coloca em um lugar em que não quero estar, que é o da possuidora do conhecimento. Gosto de escrever, mas quando estou em presença, como estamos neste momento, eu quero algo diferente. Quero que me digam o que leram do que escrevi, o que viram. A partir disto, podemos conversar sobre o que é presentação e o que é interpretar uma representação. Vamos fazer isso em presença, aqui, agora.

 

percurso Por exemplo, uma paciente chega ao meu consultório com muita dor no pescoço. Ela costuma se sentar em frente a mim e nesse dia me diz: "Posso deitar?" Digo que sim. Ela se deita. "Você tem uma bolinha para pôr no pescoço?". Dou uma bolinha para ela. "Mas dói muito, muito, continua doendo". Começamos a conversar sobre um desafio profissional sobre o qual tinha falado em uma sessão anterior. Então me pergunta: "Se incomoda se eu deitar no chão?". Se deita no chão com a bolinha. E na conversa que se segue, está muito ligada a questões religiosas. Espiritismo. Me pergunta se acredito em histórias de vidas passadas e se essas poderiam determinar como ela funciona hoje. Digo que acredito que as histórias se transmitem pelas gerações. Me coloquei com uma posição em que acredito. Nessa situação, houve uma presentação?

puget Está muito bem. Um caminho a seguir seria o da representação, em que buscaríamos compreender o que este sintoma da dor no pescoço representa, se tem a ver com as muitas coisas que ela tem por fazer, se é porque está muito tensa e etc. Por que não? Essa seria a metáfora da representação. Então, ela te propõe uma coisa que não é habitual, que é pedir que você lhe dê uma bolinha, se deita no chão e te pergunta se você acredita. Aí eu poderia lhe dizer: "Não sei se acredito. Não temos nenhuma razão para acreditar na mesma coisa". Diria: "Porque eu, aqui, sou psicanalista, e você sabe algo de espiritismo. O que acrescenta se eu pensar do mesmo modo que você? Podemos ver, digamos, entre nós duas, aonde nos levaria pensar algumas coisas religiosas; e como podemos pensar, entre as duas, algumas outras ideias". Acho que ela está buscando uma identificação. Se você pensa o mesmo que ela, vai ser bom. E se não for assim, ela vai te explicar por que você tem que pensar a mesma coisa que ela. Dizer não, aí, pode mostrar que você é uma outra pessoa. Que você é psicanalista e tem suas próprias ideias. Como ela já sabe, porque é sua paciente. Sabe que você pensa e diz algumas coisas dentro de outro marco conceitual. Então, só assim poderão ver o que vocês duas fazem. "Você com seus assuntos e eu com os meus". Isso seria uma intervenção. Uma intervenção não a partir do transferencial, mas do que chamo de interferência. O que ela te diz interfere e o que você lhe disser vai interferir no que ela imagina que você teria de fazer. Porque ela quer reduzir o seu ajeno, o seu outro, o outro da sua alteridade à semelhança. Você não quer que te reduza à semelhança. Você quer que possam fazer algo juntas, a partir das diferenças de vocês. Entende?

 

percurso Sim. Então, na presença, o importante seria que as diferenças aparecessem, marcando a discriminação entre o paciente e o outro, analista. A presentação serviria a esta discriminação?

puget Exatamente. Se não se sustenta a diferença, não tem efeito. Existe uma tendência dos seres humanos a reduzir as diferenças, ou a transformá-las em diferenças binárias, que se complementam. "Isso me faz falta, você o tem, você me dá e já fico completo". Mas sustentar a diferença não vai levar à semelhança. Não vai reduzi-la, senão o contrário. Quanto mais nos conectamos, mais a diferença vai existir. Foi o que aconteceu com a leitura que vocês fizeram, por exemplo. Quanto mais se conectaram, mais conflito vocês tiveram. Em uma leitura muito rápida, está tudo bem. Mas quando se aprofundaram, as perguntas surgiram: "E isto o que é? Onde coloco? O que quer dizer?". Quanto mais alguém se conecta com o outro, faz um vínculo, mais aumentam as diferenças. E aí, gosto muito de usar o conceito de Derrida, que fala de di-ferir, de différance, em francês, em que, à medida que um se conecta, mais se difere do outro. Quanto mais se afasta, mais produção existe. Esse é um conceito muito difícil, porque nós estamos acostumados, desde que começamos a ler Freud, a pensar o contrário: que quanto mais se conhece mais se complementa. E eu estou dizendo que quanto mais se conhece mais se afasta.

 

percurso Os conflitos se colocam pela diferença.

puget Mais conflitos se colocam. Na vida cotidiana de uma família sempre há conflito. Um conflito permanente, porque nunca tudo coincide. Essa é a vida da família. Se tudo coincidir, seria como essas famílias endogâmicas, nas quais não entra ninguém e todos seguem o mesmo. É um cemitério, é como a morte. O conflito é vida. Mas, que não cheguem a fazer a guerra, não é?

 

percurso A senhora fala sobre a impresença. Poderíamos pensar que, quando a diferença se coloca, algo da impresença pode surgir? Na distância da diferença, aquilo que não foi representado poderia surgir com muita força?

puget Esse é um problema, porque o conceito de impresença é difícil de captar. A impresença não é nem presença nem ausência. É algo que não se pode definir com conceitos claros, mas que sustenta o efeito de presença. A impresença é aquela que produz efeitos. Pode-se dizer que a relação entre dois ou mais leva à criação da imanência, que também é um conceito inefável, digamos. Estas produzem fundamentos, a partir dos quais surgem novas ideias. Descobre-se um mundo muito mais amplo do que aquele que existia. Esse mundo amplo que se descobre é infinito e produz angústia. Pode produzir também apaixonamento, felicidade, inquietação. Então, às vezes, se trata de reduzir esses efeitos de presença a algo que possa ser enquadrado dentro de um marco que o contenha. Quando, na realidade, o efeito de presença abre infinitos caminhos que perturbam e ao mesmo tempo enriquecem.

 

percurso A senhora está se referindo também ao enquadre, que estabelece um limite na sessão de análise?

puget Bom, o que aconteceu é que, em um dado momento, se deu um deslize na revolução das ideias sobre o famoso enquadre, do qual tanta gente falou. Bleger, na Argentina, e tantos outros. O enquadre foi muito usado dentro de uma concepção estrutural das relações, que tem estrutura de margens fixas e, se essas margens se movem, se imaginam certas coisas e outras não. Se o paciente chega tarde, então ataca o enquadre, etc. Isso para mim já não tem muita vigência. Não é que não exista. Também existe. Mas dou muito mais importância a que não existam margens, que não existam enquadres. Existem algumas comodidades práticas. Para se encontrar é necessário fixar um horário, por exemplo. É uma condição prática. Aqui, também tivemos que organizar alguma coisa para poder conversar, mas não é o importante, é o necessário, a condição mínima para a gente se encontrar. O importante é o que fazemos juntos e não se respeitamos as paredes.

Falo de um espaço aberto, em permanente movimento, que não tem margens fixas e que tem o que Deleuze chama de linha de fuga. Agora, se um paciente faz permanentemente o que se costuma chamar de "ataque ao enquadre", ou seja, não vem, nunca se desculpa, trata mal, etc., aí você pode chegar a algo.

Mas isso não é o mais importante, o mais interessante. Quando Bleger falou do ataque ao enquadre, ele pensava que no enquadre se depositam aspectos psicóticos da personalidade. Mas isso não é o essencial de uma relação analítica. Os pacientes preferem que você fale com eles do ataque ao enquadre ou do que implica o enquadre, a deixá-los com um analista que queira conversar com eles, pensar com eles. Às vezes dizem: "Eu não vim para isso. Eu vim para que me explique. Eu vim para não sofrer mais, para que me diga por que tenho angústia. Para que me diga coisas assim, muito concretas". Às vezes posso dizer. Não é que tudo isso não vale mais. Mas ao não ser central, ocupa outro lugar.

 

percurso É um modo diferente de trabalhar o enquadre.

puget Claro. Mas eu não estou mais preocupada com o enquadre. Estou preocupada com a dificuldade de fazermos alguma coisa juntos, em que eu não seja apenas um depositário de transferências e de identificações primárias, o que também posso ser. Mas sabendo escolher quando, sei lá, casualmente. O mais urgente é aprender a se relacionar e poder ver como se constroem opiniões, porque o analista está sempre opinando. Está possuído de um conhecimento que lhe permite saber como é o Édipo do paciente, tem ferramentas como as de conversar e ter opiniões. Agora, existem certas opiniões que os pacientes aceitam revisar, por exemplo, se o paciente diz algo sobre seu pai ou sobre sua mãe, você pode perguntar como ele chegou a essa ideia, isto é, como formou essa opinião. Mas com o âmbito político não se dá a mesma coisa.

 

percurso Com o âmbito político não se dá da mesma forma?

puget Não, não é o mesmo porque os pacientes não aceitam discutir opiniões. Não sei os de vocês, mas os meus não aceitam. Não se questionam. Sabem como é, é a verdade. Se perguntamos como lhes ocorreu essa ideia, dizem que todo mundo sabe. Então, aí, são certezas, e desfazer uma certeza ou questionar uma certeza não é fácil. Estou tentando incluir um pouco do meu último livro sobre a subjetividade social nisto que estamos falando. Então, gostaria de perguntar se vocês estão vivendo um período muito especial no Brasil.

 

percurso Muito especial. Muito difícil.

puget Nós aqui também. É muito complicado, eu sei. É possível que não se fale disso nas sessões?

 

percurso Depende do paciente. Alguns pacientes absolutamente não falam disso nas sessões. E outros falam muito e veementemente, nos deixando, algumas vezes, em posições muito difíceis. Por exemplo, uma paciente que, na primeira sessão da segunda-feira, logo após a confirmação da eleição do atual presidente, chega ao consultório dizendo: "Ganhamos!". Ela estava muito feliz e sabia que eu tinha posições diferentes das dela. Foi difícil para mim, porque estava verdadeiramente triste com a eleição deste presidente. A situação foi muito indigesta.

puget Gostaria de saber dos outros também.

 

percurso Penso que é um momento em que está muito difícil de sustentar a diferença. Os conflitos estão colocados, e as diferenças quando aparecem são violentas, geram um embate muito grande. E os consultórios também sofrem com esse problema.

puget Com os outros que estão aqui, hoje, também acontece a mesma coisa?

 

percurso Sim, penso que não eram só os pacientes que traziam essa questão, mas nós mesmos, entre o primeiro e o segundo turno dessa eleição, estávamos muito indignados. Entre uma sessão e outra, íamos ver as notícias. Isso interferia no nosso estado de ânimo e na nossa escuta. O paciente trazendo explicitamente ou não, já estávamos tomados pela indignação com a possibilidade de esse presidente ganhar.

puget Não acreditavam que os outros votassem nele?

 

percurso Não acreditávamos que votassem nele. Não acreditávamos que ele pudesse ganhar. Estávamos indignados e, durante três semanas, esse sentimento foi muito intenso. E isso interfere.

 

percurso Sobre a sua pergunta, se era possível não falar disso nesse período. Eu, pelo menos, trabalhei falando disso. Precisava falar para poder escutar o paciente, onde ele estivesse. O impacto desse período em mim me fez ter a necessidade de pontuar alguma coisa do que estava acontecendo. Dizer: "Eu estou vivendo no mesmo mundo que você. Também estou inquieta com os acontecimentos". Nesse momento, era impossível não falar sobre o que vivíamos.

 

percurso Mas, quando a tua opinião era a mesma que a do paciente, talvez fosse mais fácil compartilhar o mundo. Quando o paciente votava nesse candidato, não que não fosse possível, mas era mais difícil esse compartilhamento.

 

percurso Eu não sentia a necessidade de dizer em quem eu votaria. Mas dizer: "São tempos difíceis. As coisas estão muito agudas."

puget Isso que a colega disse agora há pouco. O exemplo em que a paciente chega feliz, contente porque ganhou. Nesse momento, o que você disse para ela?

 

percurso Disse que era um momento de muita polarização e que me entristecia muito ver a população tão dividida, tão cindida. Naquele momento, foi o que consegui dizer.

puget É uma linda intervenção, porque você não aceita tal e qual, mas diz para ela onde te leva. Que, para você, leva à tristeza. E essa senhora estava muito contente. Você poderia lhe dizer: "Bom, não pensamos o mesmo, e eu não fico contente com isso". Mas são situações difíceis de abordar e não é todo paciente que aceita. Eu tive uma experiência parecida. Disse: "Bom, claro, você está em outra. Você é do contra, não é?". Ele me olhou com desprezo: "Já sei o que você quer. Já sei pelo que se interessa". E é verdade que ainda não tinha encontrado a forma de dizer, por exemplo: "Podemos ter opiniões diferentes, mas podemos pensar em como formamos nossas opiniões". Mas não aceitam. Pensam primeiro em si. Está evidente o que está acontecendo, não é nem bom nem mau, não interessa se é de um lado ou de outro. É um grande desafio, porque não estamos acostumados a falar disso, de opiniões ligadas à subjetividade social. Porque aí existem valores em jogo, e eu posso valorizar que exista uma fábrica, um prédio maravilhoso para os muitos ricos, e o outro pode valorizar que existam pessoas que não têm o que comer. E podem me dizer: "Essas pessoas não trabalham. Não querem trabalhar!". Aí já existe uma cisão. Não é fácil discutir sobre isso. "Você pensa isso, temos valores e eles formam a subjetividade social de cada um". E é assim. São questões de valores. Alguns podem pensar que todo mundo tem que comer porque assim vão ter sucesso no futuro. E outros podem achar que não... existem muitas formas. Acho que é o terreno mais árduo que temos neste momento, trocar ideias, escutar o outro sem entrar em um campo de batalha.

 

percurso Comigo aconteceu uma situação difícil no atendimento de uma família, há uns quatro ou cinco anos. Eu estava fazendo um trabalho com refugiados que vinham da Venezuela e chegou uma família com mãe, pai e um garoto que tinha uns oito anos. Eles começaram a contar como saíram da Venezuela, como vieram para cá, e que, graças ao Brasil, que lhes deu trabalho, estão aqui. Contaram que são de partidos diferentes, o filho apoia Chávez e eles são contra Chávez. Sempre que participavam de manifestações contra Chávez, o filho gritava: "Vamos, Chávez!". O filho fazia desenhos e dizia: "Chávez não vai embora, Chávez não vai embora". Em um determinado momento, o menino saiu correndo do consultório, e eu fui atrás dele. Quando o alcancei, ele me olhou e perguntou: "De que lado você está?". Voltamos para o consultório e contei aos pais o que acontecera, e eles explicam para o filho: "Olha, aqui estamos em outro país. Ela é uma psicóloga...". E começaram a falar de como foi difícil, do medo que o filho tinha e que ele não falava mais espanhol, só português, era o tradutor dos pais, ele achava que tinha que se comportar bem e tinha muito medo de ser expulso daqui também.

puget Uma adaptação forçada, não é mesmo?

 

percurso Totalmente.

puget Diria que esse trabalho é infinito. Como podemos trabalhar para esclarecer as diferenças? Porque sempre há uma permanente necessidade de organizá-las, ou em forma de guerra, matando uns aos outros, ou anulando-as. Esse garoto diz: "Eu quero saber quem você é". É importante sustentar essa situação em que possamos estar juntos, sem que o garoto tenha que começar a falar português maravilhosamente, porque ele continua sendo venezuelano. Aí se poderia dizer mais ou menos assim: "Conversem entre vocês sobre em que se baseiam suas opiniões para apoiar um ou outro governante".

Por vezes, quando eu insisto um pouco em conversar sobre questões políticas, o paciente pode me dizer: "Olha, eu não vim aqui para isso, porque isso eu não posso mudar. Eu venho pelo que posso mudar". E digo: "Bom, não é bem assim. Podemos não mudar a realidade, a realidade que se vê todos os dias. Mas temos que fazer alguma coisa, porque ela se impõe a nós". "É, não... mas isso depende da minha infância...". Eu digo: "Não. Não depende da sua infância." Não dou uma aula, mas digo alguma coisa sobre como temos que fazer algo com aquilo de que não gostamos, que se nos impõe, que produz efeitos e vai nos modificando, apesar de nós. Não somos as mesmas pessoas se saímos de manhã da nossa casa e vemos pessoas dormindo na rua. Suponho que no Brasil também há gente dormindo na rua. Vamos a um restaurante e pagamos caro, como ficamos com isso? É como se nada tivesse acontecido? Não pode ser! O dormir na rua e o restaurante caro existem. E não é porque não posso mudar isso que não devemos falar nada! O que conseguimos ao não falar é que os pacientes se fechem em seu mundo interno. E se alguma coisa os afeta, imaginam que é pela ativação de um mundo interno infantil ou de pulsões negativas. Se for assim, se o mendigo que está na rua se refere à pobreza afetiva do paciente, tudo bem. Mas se não se referir a isso, mas ao homem com fome, à família com fome, a algo que existe e que não é a minha fome? Como faço para ser modificado por esses estímulos sem enlouquecer? Como aceitar que alguma coisa acontece comigo por causa do que está acontecendo, e que eu não posso mudar? Não consigo dar de comer às famílias que estão dormindo nas ruas. O governo deveria se ocupar disso. Aqui temos um conflito entre o social e a política atual. Mas o social está mais além da política, que hoje em dia vocês podem não gostar, e eu também não.

Convém saber o que implica ser sujeito social. Não é ser sujeito de um vínculo entre dois ou mais outros ou ser sujeito de uma instituição. É ser sujeito de um país, de um espaço em que vamos nos constituindo como sujeitos, e que não coincide com o que nós queremos ser. O que nos obriga a certo sentimento de responsabilidade cidadã, pois somos todos responsáveis, não acusatoriamente. Se não podemos jogar o lixo na rua, porque somos responsáveis pela limpeza da cidade, não podemos aceitar qualquer coisa que os jornais nos dizem e adaptar-nos. Nós não podemos ser conformistas. Temos que ter energia vital para habitar os espaços sociais de uma forma que não nos impeça de crescer e de pensar, que nossas capacidades vitais não se atrofiem e que nos permitam, a cada um de nós, construir uma forma própria de ocupar o espaço social.

 

percurso Como a senhora pensa a questão da subjetividade social? Trata-se da relação do indivíduo com o social ou existe uma subjetividade social como algo que é comum a todos?

puget Eu não empregaria a palavra comum. Poderíamos dizer que o espaço social é um conjunto de moléculas, de pequenas partículas de estímulos que vão e vêm no ar, e que não podemos sintetizar, mas que afeta a cada um de nós. De formas diferentes, mas nos afeta. Um autor francês, Didi-Huberman, escreveu um livro sobre a luz dos vaga-lumes, que acende e apaga. Eu tomo isso como metáfora do que estou falando. Estamos o tempo todo expostos a luzes que acendem e apagam, que não dependem de nós, mas que nos modificam. E, na modificação, vamos adotando valores que vão se transformando nos valores de hoje em dia. Os jovens, atualmente, falam de uma forma diferente das outras gerações, porque estão impactados e subjetivados pelos efeitos dessas luzes que os fazem pertencer a um grupo de uma determinada maneira. Acham que, com uma fala bem empregada, pertencem.

Isso é o que não devemos fazer com nossos pacientes. Não devemos doutriná-los para que usem a nossa linguagem. Mas, às vezes, suponho que no Brasil também, é possível reconhecer com quem um paciente se analisa pelo idioma que ele fala. E isso é grave! O nosso trabalho é questionar. Questionar-nos e questionar como se escolhe e como se pensa. E também aceitar que somos influenciáveis, porque somos todos influenciáveis. De repente, escutamos uma pessoa que diz algo que nos agrada e saímos contentes, e se um outro diz algo de que não gostamos, ficamos bravos. Aparentemente nada aconteceu, mas nos acontece o que chamo de "efeito de poluição".

 

percurso O que seria o "efeito de poluição"?

puget O mundo está cada vez mais poluído por causa das "conquistas": das fábricas, dos plásticos, da internet, de tudo isso. O ar está cada vez mais poluído. Ao circularmos pelo mundo, temos que lutar contra a poluição que nos invade ou contra a multiplicidade de ideias quando esta começa a se tornar inaceitável. Aí temos que escolher e aceitar que estamos permanentemente escolhendo dentro da multiplicidade. Vivemos em um mundo de multiplicidade, e como nenhuma mente pode receber toda a multiplicidade de efeitos, vai se selecionando o que pode. Se não processamos esses efeitos, não quer dizer que não estejam sendo selecionados. Não existe nada mais instável que a subjetividade social. Por exemplo, as definições de esquerda e de direita, no âmbito político. Poderíamos nos sentir tranquilos por estarmos identificados com um determinado grupo mas, dentro desse mesmo grupo, todo mundo briga. Nos grupos de esquerda, todos brigam. Isso acontece no Brasil, na França, na Argentina... Temos que aceitar que é muito difícil sustentar uma discussão ou um encontro quando já se supõe que as posições são irreconciliáveis e que não é possível aprender. E acho que o nosso trabalho não é fazer com que os pacientes se reconciliem e sim que aprendam a lidar com a multiplicidade e com os diferentes.

 

percurso Essa poluição tem a ver com o que excede, com o que não se pode aceitar?

puget Não se pode aceitar, mas nos afeta.

 

percurso O que vivemos atualmente não parece ser a diferença radical proposta pela senhora, que parece ser algo positivo, mas uma diferença extremista, o extremismo nessa poluição. No Brasil, por exemplo, há grupos que defendem a tortura, a liberação das armas.

puget A tortura é a máxima objetalização do sujeito, que anula a diferença. Tira dele tudo o que tem a ver com sua subjetividade pessoal e o reduz a uma condição de objeto. A diferença radical é um conceito que define o que é um vínculo. E, insisto, a diferença é o que se tenta diminuir, quando o vital seria que aumentasse e ganhasse mais lugar. Mas, o mau manejo da diferença radical a transforma em binarismo: branco ou preto. O difícil é justamente sustentar o heterogêneo, o irreconciliável, a abertura de caminhos que não se sabe quais serão. E, aparentemente, os que votam em pessoas como Bolsonaro, em um ditador, em qualquer país, buscam e acreditam que haverá ordem. Odeiam a desordem, mas a nossa vida é desordenada. Não sei se no Brasil acontece a mesma coisa, mas aqui os taxistas são majoritariamente fascistas. Nos últimos tempos um pouco menos, mas ainda dizem: "Tem muito trânsito. Que venha alguém colocar ordem. Tem que matar essa gente!". Agora os taxistas estão vivendo uma profunda crise e começam a achar que assim também não vai dar certo. Todos buscam, equivocadamente, ser invulneráveis. Acho que temos que aceitar que somos vulneráveis, muito vulneráveis e essa é a nossa riqueza. Mas é também um estado de risco, o risco de ser afetado.

 

percurso Pensando sobre essa questão da poluição, a senhora também escreveu sobre a megaoferta sexual nos dias de hoje, que indica uma mudança e talvez uma outra forma de repressão.

puget Os valores do que é a intimidade mudaram completamente, daquilo que se pode ver e daquilo que não. Continuam existindo segredos porque isso é inerente à vida humana, mas já não são os de antes. Outro dia, um paciente que acabara de se divorciar me disse que o filho estava contente porque, até então, ele era o único da classe que tinha pais que viviam juntos. Todas as outras crianças tinham pais separados e duas casas. Então, ele achou fantástico. O conflito continua existindo.

Mas também pode ser que esteja se imprimindo na mente das pessoas que a família não é uma estrutura familiar com papéis fixos e sim um sentimento que permite criar funções e que essas, não necessariamente, passam pelo sexo e pela idade. Uma outra paciente que estava em conflito com o marido foi surpreendida por um pedido de separação. Ela tem um netinho, de uns oito anos que, quando a viu triste, disse: "Agora você se senta aqui, eu vou trazer um copo d'água e vou ler para você. Porque você não está bem, então, agora, vou cuidar de você, como você cuida de mim". Essa é uma função. Uma função fantástica! Ele assumiu a função, ninguém o ensinou. Disso é possível apreender que as crianças de hoje sabem que podem assumir funções que não são dadas pela idade ou pela consanguinidade e, sim, por algo que vai acontecendo. As crianças da era vitoriana não falavam na mesa, não podiam conversar com os adultos. As crianças de hoje em dia falam, sabem que se pode falar. E é difícil, para nós, aceitar que uma criança ocupe a função parental. Mas para as crianças não é, muitas assumem essa função.

Hoje, não há mais a necessidade de o casal ficar junto para sempre. É possível ver em um casamento de jovens, uma juíza dizer: "Eu não vou lhes dizer que os uno para sempre, mas para sempre enquanto se amarem". Uma juíza revolucionária! Há vinte anos isso não seria dito.

 

percurso Vinicius de Moraes, escritor, músico e poeta brasileiro, dizia: "Que o amor seja eterno enquanto dure".

puget Claro, mas Vinicius foi um precursor em todos os sentidos. Com uma liberdade, uma musicalidade e uma poesia que são raras. Há precursores que em algum momento sabem captar alguma coisa muito especial, poetas, artistas ou músicos que rompem com valores e enquadres, e transgridem. E nós também temos que ser transgressores. Transgressores não violentos, que nos permitam abrir novos caminhos. Vivemos um momento em que os excessos, o consumo de drogas, de comida ou de bens, estão como que dominando o mundo. Ao lado deles, temos o seu oposto, a pobreza. É como se tivesse ocorrido uma ruptura das regras fixas, sem que se saiba, ainda, o que fazer com essa imensidão de problemas que surgem no âmbito da sexualidade, da polissexualidade, da polirrelação amorosa, do uso das drogas, das internets, das crianças que sabem usar os aparelhos melhor que os adultos...

É como se existisse algo que nos ultrapassa, e enquanto isso, organizam-se governos, como os que vocês têm, os que nós temos, que são tipos de ditaduras fascistas. Acontece na Itália, em Israel e em muitos países. É necessário, então, se perguntar o que está acontecendo. Como é que estamos votando em favor do que faz mal, favorecendo o ódio, as divisões e os maus tratos, mas isso não me serve para entender a subjetividade social. Os textos de Freud, em sua maioria, não servem para esse entendimento, porque introduzem um modelo de elaboração a partir de um núcleo inicial. Tudo que é subjetividade social é remetido às primeiras relações objetais como metáfora. Isso não me serve.

Para mim, é completamente outro material. É como Einstein e Newton. O que o Einstein fez não tem nada a ver com o que o Newton fez. É outra linguagem, outro vocabulário, outra observação. E o vincular, pensado como proponho, coloca a diferença radical como condição necessária. Se eu tivesse sido mais "newtoniana", teria pedido a cada um de vocês que se apresentassem, me dissessem o que lhes interessa, o que fazem, com que trabalham e teríamos visto se alguns interesses combinavam. Baseado nisso, procuraríamos fazer alguma coisa. É uma possibilidade. Mas eu teria dito: "Digam-me quem são, para que eu os conheça com todos os traços identitários". E depois? O que faríamos com isso? No meu caso, eu não saberia o que fazer.

 

percurso A senhora falou sobre novas questões que surgiram no campo da sexualidade, como a polissexualidade, a polirrelação amorosa e isso nos fez lembrar de uma colocação sua, de que a teoria vincular levou-a a pensar em novos significados do corpo. Quais seriam esses novos significados?

puget O que vocês querem dizer com corpo? Porque existem muitos corpos. Corpo como zona erógena? O corpo da teoria? Há um corpo de ideias, um corpo físico-biológico. Há uma relação entre corpos que sempre produz algum efeito. Há o corpo da cultura.

Na cultura atual, por exemplo, o jovem faz tatuagens, que deixam marcas no seu corpo, como uma maneira de se apropriar dele. O desenho torna seu corpo diferente daquele que lhe foi dado ao nascer. Então, se fazemos uma diferenciação temos que pensar de que corpo me falam.

 

percurso Pensamos no corpo erógeno.

puget Bom, desse corpo erógeno Freud falou muito. Agora, na perspectiva do vincular podemos, por exemplo, pensar nos conflitos de casais que têm a ver com a intolerância pela ajenidad do corpo do outro. O corpo do outro é sempre um outro. Há certos signos, certos gestos do corpo que alteram muito os casais. Quando um dos membros do casal, por exemplo, se toca e o outro não suporta isso. Se não fosse seu parceiro não se importaria, não diria nada. E por quê? Digamos que o corpo do outro se manifesta com gestos que eu não gosto. O que é que não gosto? Justamente, aquilo que me faz ver que existe um corpo que se conduz sozinho. Que não se rege pelo casal, senão que é um corpo que tem uma marca de ajenidad, de uma alteridade inapagável. Nunca será meu.

Esse corpo, no seu significado vincular, representa isto: a inapagável alteridade do outro. Todos os temas de infidelidade, por exemplo, que sempre são muito dolorosos, têm a ver com "como pode ser que esse corpo que era meu tenha sido de outro?". O corpo do outro não é meu! Nunca foi. Eu me apodero e imagino que tenho direito sobre ele. Mas ele é sempre ajeno. Tem outro ritmo, outra cor, outro calor, outro frio, outra sensibilidade. E você pode achá-lo agradável ou terrivelmente irritante, intolerável.

Então, podemos falar do corpo erógeno como uma permanente evidência da diferença radical. São dois corpos e, mesmo que sejam gêmeos, são diferentes. Não têm a mesma sensibilidade. Há uma dificuldade do ser humano em aceitar a alteridade do outro porque imediatamente ela é associada ao desamparo, à agressão.

 

percurso Como a senhora pensa o papel das instituições psicanalíticas em momentos de polarização política como os que acontecem na Argentina e no Brasil? As instituições devem se manifestar publicamente sobre os extremismos ou em defesa da democracia? Soubemos que existe um grupo de psicanalistas autoconvocados em Buenos Aires. Como surgiu este grupo?

puget Eu faço parte desse grupo de psicanalistas autoconvocados. Estávamos muito apreensivos com o que estava acontecendo e decidimos nos reunir uma vez por semana para trocar ideias. É um encontro entre psicanalistas e convidamos pessoas da política, filósofos, intelectuais, economistas, que vêm nos dizer o que pensam sobre o que está acontecendo. Justamente, amanhã, tenho que falar nos psicanalistas autoconvocados, e ainda não sei o que um psicanalista pode acrescentar à política. Somos especialistas de pequenas porções de relações humanas. É bom saber que há psicanalistas que se preocupam com questões políticas, que temos um lugar agradável para nos encontrar. Nem todos pensam da mesma maneira, uns são mais de esquerda que outros, mas, no geral, compartilhamos dos mesmos valores. Mas além do prazer de nos encontrarmos, de ter um grupo ao qual pertencemos, não sei o que podemos acrescentar. Vamos ver se amanhã sai alguma coisa. Porque o modelo psicanalítico não é o modelo que nos permite pensar tudo isso que estamos conversando agora. E nas instituições psicanalíticas, não sei a de vocês, mas na minha não existe nenhuma possibilidade de trocar ideias nesse aspecto. Porque já se sabe quem é o quê. Quem é pró, quem é contra. Na minha instituição, estou em um departamento de família e casal, e aí trabalhamos muito as questões da política. E vem alguém e diz: "Nesse grupo não é bom entrar porque falam de política e isso não é psicanálise!". Mas outros vêm. Eu gostaria de saber se vocês têm alguma ideia de por que é tão difícil. O que um psicanalista acrescenta ao pensamento político, ao pensamento crítico? Eu não considero que todos devem pensar da mesma maneira. Ao contrário, defendo a multiplicidade, mas que se possa discutir, que seja possível enriquecer-se com o que pensa o outro. Mas acho que existe um limite que não se consegue passar. Não sou muito otimista nesse sentido.

Dentro do que vocês me propuseram, acho que o acento agora é continuar nesse espectro da subjetividade social. Nas definições conceituais não me dediquei porque acho que isso cada um tem que ir trabalhando. Ir vendo como se apropriam das ideias e o que fazem com elas. Não me interessa se as usam como eu penso, mas se geram inquietações. Se geram vontade de continuar pensando, e não para tomá-las como tal, e sim apropriar-se delas para ver o que se faz com elas. E como se começa a pensar? Eu acho que cada um de vocês teria que poder, pelo menos uma vez na vida, perguntar-se como chegaram aonde chegaram. Por que decidiram ser psicanalistas? O que lhes interessou? Por que vocês têm certo tipo de paciente e não outros? E hoje em dia, que conflitos querem resolver? Que música escutam quando os pacientes falam? A gente escolhe frases, palavras, entonação, maneiras de modular a voz, por exemplo. E nem todo mundo escuta a mesma melodia. Então, eu acho que é interessante que cada um de vocês se pergunte o que está disposto a escutar, e o que pode escutar. Há coisas que você não pode escutar. Tem que aceitar, digamos, que você é surdo em muitas coisas. Minha filosofia hoje é que vou escutar o que sei escutar, o que posso escutar. Sei que não escuto tudo, escuto o que acho que entendo, que me gera alguma ideia. O analista do lado escuta outra coisa. Numa supervisão, o que se prioriza do material? O que cada um sabe fazer com ele. É uma grande aventura.

O problema é quando você acha que entende tudo. Isso é muito prejudicial, porque nunca se entende tudo. Para entender tudo tem que se reduzir a corpos teóricos muito concretos. Vivemos momentos de mudança de valores e de paradigmas sociais tão importantes, que não sei se somos capazes de captá-los e de saber o que fazer com eles. E também não sei se os jovens podem fazer algo com isso. Como, nós psicanalistas, por exemplo, lutamos em relação às mudanças climáticas? Não sei.

Mas, como seres sociais responsáveis, temos que fazer alguma coisa. Eu gosto desse termo responsabilidade social. O que é ser responsável, sentir-se sujeito responsável? Eu ocupo um lugar no meio social com o que tenho, e disso me ocupo. O que não quer dizer modificar o mundo social.

 

percurso Porque se trata da questão da continuidade do mundo.

puget Um garotinho que eu atendi dizia que o mundo ia desaparecer, não ia ter mais água, não ia ter mais isso ou aquilo, que o calor ia tomar conta do mundo. Eu achava que tinha a ver com algo do mundo interno dele, mas também tem algo que está aí. Um neto meu me dizia que ia morar em Marte porque "não dá mais para viver aqui".

 

percurso Poderíamos continuar nossa conversa por muito mais tempo... mas, infelizmente, está na hora de encerrarmos. Parece que fizemos uma entrevista muito boa. Estamos agradecidos e encantados, por sua disponibilidade e generosidade.

puget Espero que não estejam encantados, mas que sirva para abrir novos caminhos.

 

percurso Novos pensamentos...

puget Isso. Que saiam com mais dúvidas do que as que tinham antes. Eu também saio com mais dúvidas. Acho que essa experiência é justamente isso.


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Percurso é uma revista semestral de psicanálise, editada em São Paulo pelo Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae desde 1988.
 
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