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Resumo
A inquietante questão da formação do analista é tratada neste trabalho, considerando a trajetória de Christopher Bollas, que começa nos EUA, vai à Inglaterra e chega à França. Seus estudos em literatura são vistos como decisivos para os planos teórico e clínico, ajudando a colocar em diálogo Freud, Winnicott e Lacan. Os conflitos institucionais e a experiência estética transformadora são explorados, levando ao limite a singularidade do analista.


Palavras-chave
formação do analista; Christopher Bollas; conflitos institucionais; experiência estética.


Autor(es)
Sérgio de Gouvêa Franco Franco
é psicanalista, com doutorado na Unicamp e pós-doutorado em psicologia clínica na pucsp. Presidente da Associação Universitária de Pesquisa em Psicopatologia Fundamental desde 2016. Membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae. Professor de psicanálise no Centro de Estudos Psicanalíticos. Professor de psicologia na fecap, onde foi Reitor no período de 2006 a 2010. Autor do livro Hermenêutica e Psicanálise na Obra de Paul Ricoeur. Em parceria com Manuel Berlinck e Karin Wondracek é autor também de Mandrágoras, a Clínica Psicanalítica, Freud e Winnicott, além de capítulos de livros e de artigos publicados no país e exterior. Tem formação inicial em engenharia, com mestrado no ipen/usp. Tem formação em psicologia, filosofia e estudos religiosos, com um segundo mestrado no Canadá. psiquiatra e psicanalista, formado pela Associação Psicanalítica da França, chefe do Departamento de Psiquiatria Pediátrica do Hospital Necker-Enfants Malades em Paris e professor de psiquiatria infantil e adolescente na Universidade René Descartes (Paris V).




Notas

1.Forma ligeiramente reduzida de conferência proferida na Sigmund Freud Associação Psicanalítica em Porto Alegre na noite do dia 22 de março de 2019.

2.Edição de 18 de janeiro de 2019.

3.Em A Poética, Aristóteles discorre sobre o papel da tragédia, valorizando o seu papel catártico, mimético e mítico.

4.Percurso, n.20, p. 114-120, mar. 1997.

5.When the Sun Bursts. The Enigma of Schizophrenia de 2015.

6.Referida ao pathos, ao sofrimento humano.



Referências bibliográficas

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____. (2015). When the Sun Bursts. The Enigma of Schizophrenia. New Haven: Yale University.

Freud S. (1900/1969). A Interpretação de Sonhos. In Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago.

Nettletonm S. (2018). A Metapsicologia de Christopher Bollas. São Paulo: Escuta.

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Winnicott D. W. (1971). O Brincar & a Realidade. Rio de Janeiro: Imago.

____. (1983). O Ambiente e os Processos de Maturação. Porto Alegre: Artmed.

____. (2000). Da Pediatria à Psicanálise. Obras Escolhidas. Rio de Janeiro: Imago.





Abstract
The disturbing matter about analyst training is the aim of this study, considering Christopher Bollas path, starting in the US, getting to England and after to France. His literature studies are considered decisively for theoretical and clinical plans helping to establish a dialogue among Freud, Winnicott, and Lacan. Institutional conflicts and the transformative aesthetic experience are explored, leading to the limit the analyst’s uniqueness.


Keywords
analyst training; Christopher Bollas; institutional conflicts; aesthetic experience.

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 TEXTO

Como se faz um psicanalista: a experiência de Christopher Bollas

The making of a psychoanalyst: the experience of Christopher Bollas
Sérgio de Gouvêa Franco Franco

Introdução

Há um programa em penitenciárias do Estado de São Paulo de Remissão de Pena por meio da Leitura. O projeto contempla várias penitenciárias paulistas, nas quais mantém clubes de leitura. Os detentos recebem um livro que deve ser lido em 30 dias. Para cada livro comprovadamente lido, o preso tem sua pena reduzida.

Recentemente, o conhecido escritor Ignácio de Loyola Brandão foi convidado para dirigir uma conversa com os detentos de um destes clubes de leitura em um presídio em Araraquara, interior do Estado. Segundo a pauta que recebera, deveria falar sobre gêneros literários, crítica e resenhas. Ao contrário de falar sobre estes temas áridos, Brandão resolveu, de improviso, contar histórias... Falou de coisas que aconteceram em sua vida e que ele tinha transformado em contos, crônicas e romances. Contou de onde vêm os assuntos de seus escritos... A atmosfera se transformou, revela ele em crônica publicada recentemente no jornal O Estado de S. Paulo[i]. As pessoas riram, calaram, ficaram em suspense, se entreolharam admiradas. Quando os detentos começaram a falar, Brandão ficou impressionado. Um dos presos disse: "ler é prazer, não é?". Ao que o escritor retrucou: "prazer e fuga". O preso deu uma gargalhada. Brandão conta que o que mais o abalou foi um presidiário que o acompanhou até ao ponto de sair da sala: "não quis perguntar na frente de todos, tive vergonha de não ter entendido. O que o senhor quis dizer foi: podem me prender, podem prender meu corpo, mas minha cabeça, minha mente serão livres. É isso?" Brandão respondeu: "É isso. Se há alguma que ninguém pode prender é a imaginação".

Imaginação que não pode ser presa... Podemos, talvez, comparar o psicanalista àqueles que trabalham com a imaginação: com o escritor, com o poeta, com o artista...

Jacques Lacan, sabemos, teria dito que psicanálise é ética, no seu Seminário VII, exatamente intitulado A ética da psicanálise. Christopher Bollas talvez pudesse ter dito que ela é estética. Estética aqui se refere não apenas ao artístico, mas à experiência do corpo que sente, que ri e que sofre; refere-se à experiência com os sentidos. Para Bollas, a imaginação ocupa lugar central no processo de transformação. Ele pensa a sessão analítica como uma experiência estética. Como Ignácio de Loyola Brandão percebeu, mais libertador do que discorrer sobre conceitos teóricos, o que muda a vida é a experiência. Quando o corpo ri, algo se transforma. Quando a mente antecipa um caminho, imagina uma solução, sonha a realização de um desejo, então algo se solta... Quando não se pode sonhar, o corpo adoece. Sonhar é um dos temas de Freud que Bollas quer retomar. Com Aristóteles, vamos além de uma crítica rasa à imaginação[ii].

 

Contexto histórico

Bollas nasceu em 1943, portanto em plena Segunda Guerra Mundial. Esta guerra que mudou nossa civilização, que colocou em questão não apenas o primado da razão, mas a certeza de um progresso certo para a humanidade. Bollas, podemos pensar, é uma resposta a este tempo inaugurado pela Guerra. Tempo quando fogem as certezas, tempo que valoriza e se frustra com a racionalidade técnica. Bollas se movimenta nesta era de confusão e tédio.

Sabemos da ligação de Bollas com o chamado grupo independente da Sociedade Britânica de Psicanálise. Logo após a Segunda Guerra, vão surgindo artigos, nos anos 40 do século passado, entre os escritores que mais tarde viriam a ser classificados como pertencentes a este grupo independente. Artigos que iriam colocar em questão o excesso técnico. O pediatra e psicanalista Donald Winnicott se pergunta sobre o valor de uma puericultura e enfermagem que alienam a mãe do cuidado intuitivo e espontâneo com seu bebê. Não é a mãe que precisa aprender com a ciência, mas a ciência que precisa aprender com a mãe. Winnicott critica a enfermeira, tecnicamente bem preparada para cuidar do bebê, por sua abordagem mecânica. Elogia a mãe que sabe a hora certa de amamentar e parar de amamentar. Elogia a mãe que mantém um contato vivo, humano e respeitoso com seu bebê. Um contato vivo, humano e respeitoso com o bebê, com o paciente, com a realidade. Este contato representa um modo de estar no mundo que une uma abordagem ao mesmo tempo ética e estética.

 

Objeto transformacional

Precisamos localizar Bollas naquilo que se convencionou chamar da psicanálise das relações de objeto. Ele está inserido em um movimento que, além de valorizar o intrapsíquico, valoriza também o interpessoal. Um movimento que valoriza a dependência humana do outro, do ambiente, do objeto. Somos descentrados, ensina Freud, lembra Laplanche. Nosso centro está fora. Não somos senhores em nossa própria casa. Dependemos profundamente do outro, somos pelo outro formados.

Winnicott, sabemos, inventou a noção do objeto transicional, um dos mais criativos conceitos da psicanálise. O objeto transicional de Winnicott tem o condão de levar o humano dos estágios autoeróticos e narcísicos às relações verdadeiramente de objetos: sair do amor próprio ao amor do outro. Winnicott é o mestre que nos mostra que se trata de uma transição, de um processo, de um trânsito. Ele mostra a importância de certos objetos que nos levam da situação autorreferida para a situação de verdadeiro contato com o outro.

Bollas vai propor a noção de objeto transformacional, já em seu primeiro livro A sombra do objeto. Ele vai nos falar dos objetos que produzem transformação. Como ele está profundamente interessado na mudança, vai estudar este processo. O modelo da transformação procurado inspira-se na relação inicial mãe-bebê. A mãe transforma profundamente o bebê, no início da vida. Ela coloca o bebê na linguagem, na sexualidade, na cultura. É pouco? Laplanche destaca as dimensões inconscientes do processo. Não se trata apenas de uma maternagem consciente. Como a mãe já tem um aparelho psíquico maduro, ela implanta no bebê, inconscientemente, um grande número de elementos. Resumindo, podemos dizer que a mãe tem um grande poder constitutivo e transformador.

O ser humano está sempre à procura de transformação, porque a experiência é vivida como incompleta, como deficiente, como precária. Estamos à procura de um objeto que nos coloque em uma nova posição no mundo, que nos leve adiante da prisão presente. Procuramos um objeto que tenha o poder parecido com o poder que transformou o bebê no contato com sua mãe. Qual objeto fará hoje um serviço parecido? Qual objeto terá este poder transformador? Um novo amor, mudanças profissionais, as próximas férias, as mudanças na política? O analista? Qual objeto?

O charme da posição de Bollas é que ele valoriza o objeto e valoriza a pulsão. Neste modo de pensar, há uma simetria entre pulsão e objeto. O objeto é fugaz, substituível, descartável. Está nos Três Ensaios. Os que valorizam a pulsão estão certos. Mas sem o objeto que se foi, resta a melancolia. Está em Luto e Melancolia. Os que valorizam o objeto estão certos. Cai sobre o eu a sombra do objeto. Sozinho, solitário, prisioneiro de suas próprias experiências, prisioneiro de seus recursos e falta de recursos, resta ao self a repetição, às vezes o desespero. A experiência com o objeto vivo é que pode ser libertadora. Apresenta-se o mundo que ainda vai ser, que vem, avizinha-se a transformação da personalidade. O mundo mais íntimo se encontra com o mundo externo. Intrapsíquico e interpessoal. Endógeno e exógeno, tudo junto e ao mesmo tempo.

A tese de doutorado de Bollas, em literatura, na Universidade de Buffalo nos Estados Unidos, foi sobre Melville, o autor do clássico Moby Dick. O protagonista do romance, o capitão Ahab, persegue obsessivamente uma baleia. Ao que o narrador marinheiro Ismael tudo observa e sofre. A pergunta seria: por que não outra baleia, por que não outro animal? A resposta é porque só aquela baleia, apenas aquele objeto está investido de toda a libido. Só este objeto pode mudar, transformar a vida de quem vai atrás dele. Trata-se de um objeto transformador. Não poderia ser outro. Com igual obstinação estamos atrás daquela experiência que transforma, que cria um mundo novo, que transforma como a mãe um dia fez. Emerge assim a experiência de si mesmo, que sempre precisa de renovação, que se cria e se recria, que sempre escapa, que sempre anseia por mais...

 

A formação do analista

Além de um dos mais importantes psicanalistas vivos, Christopher Bollas é um profícuo escritor, com cerca de duas dezenas de livros. Sua intensa atividade como escritor, incluindo não apenas muitos livros de psicanálise, mas alguns romances, deve ser entendida como fundamental e profundamente relacionada com sua prática clínica. Escrever e clinicar. Podemos dizer que ele entende o tratamento psicanalítico como pertencente a uma família muito mais ampla de experiências, que inclui a literatura, o teatro, as artes plásticas. Joyce McDougall já tinha aproximado a psicanálise da experiência dramática. Conhecemos os títulos de seus livros: Teatro do eu e Teatros do Corpo. Bollas não pode ser entendido à parte de seu profundo enraizamento nas ciências humanas, literatura e artes em geral. Ao contrário de isolar, é preciso integrar a psicanálise a toda a experiência pessoal e da cultura. Parte do empobrecimento e isolamento da psicanálise atual se deve a autoisolamento, que a retira do contato vivo com grandes manifestações da cultura, literatura e artes.

Como se faz um analista? À luz da experiência de Bollas, podemos dizer que o analista se faz integrando as vicissitudes e contingências da biografia de cada um. Trata-se de uma radicalização do valor da singularidade.

Quando esteve no Brasil em 1997, Bollas concedeu uma entrevista à Revista Percurso, do Instituto Sedes Sapientiae[iii]. A primeira pergunta feita foi sobre a relação entre literatura e psicanálise na formação do entrevistado. A resposta é boa, porque ele não permite a idealização de sua experiência. Não permite que seja transformado em modelo de formação:

Como alguém se torna psicanalista? - responde Bollas à pergunta da Percurso. Quais são as linhas para tal desenvolvimento? É muito difícil dizer. A verdade é que é impossível saber como isto ocorre. Não há uma ligação entre meus estudos de literatura e de história e a psicanálise; não há uma ligação no plano do conteúdo manifesto que possa fazer sentido. Eu não decidi, aos 21 anos, que para me tornar psicanalista seria necessário passar primeiro pelos estudos de história, depois literatura [...] para chegar à psicanálise. Em algum momento da minha carreira dei-me conta de que havia alguns pontos de ligações entre as primeiras escolhas e a minha vocação atual, porém não acredito que sejam passíveis de uma descrição fiel com o ocorrido. Portanto, esta questão, quando feita por um analista para outro, não tem resposta, não pode ter! A verdade é que ninguém pode responder a este tipo de questão. Para respondê-la pode-se apenas fornecer uma série de racionalizações: estive em Berkeley, estive estudando História, trabalhei dentro do contexto do século dezessete tentando caracterizar a Nova Inglaterra e aí recorri à psicanálise para melhor entender meu assunto... Entretanto, além dos estudos, eu era um jovem que foi em busca de uma análise- vejam, esta é outra trajetória; meus estudos incluíam a filosofia francesa, um pouco de Freud- esta é outra trajetória. Assim poderíamos traçar 25, 35, 50, 100 trajetórias diferentes e parcialmente simultâneas; como bem sabem, é impossível saber como alguém vem a se tornar um psicanalista.

A resposta vai assumir radicalmente as limitações, a castração, a morte. Ele não quer se iludir com um possível incensamento que venha receber do seu interlocutor. O analista se faz em sua análise, lutando duramente, às vezes terrivelmente, com suas próprias limitações e determinações inconscientes. Não há psicanalista sem um compromisso verdadeiro com o enfrentamento de si. Psicanalista é quem emerge deste processo, desta crise que é a própria análise. Tem a ver com ir um pouco mais além nesta coisa de encontrar e construir a própria singularidade. Trata-se de um trabalho duro, feito frente a outro, que escuta, observa, acompanha, interpreta, sofre e se afasta. Não pode haver dissociação perene entre estudo da psicanálise e a experiência de se analisar e ser analista. O analista é aquele que foi descontruído, em grande medida, em sua própria análise.

 

Início da vida

Bollas nasceu em Washington, capital dos EUA, em 1943; neste ano de 2019 vai completar 76 anos. Seu pai era francês, vivendo em Paris até o início da adolescência, depois morou na Argentina, na Inglaterra e finalmente foi morar nos EUA. Sua mãe era californiana, dona de casa e pianista. Christopher é o mais velho de três filhos. Estudou ciências políticas e história na Universidade de Virgínia e Berkeley. Neste período começou psicoterapia de orientação analítica, que, segundo ele, mudou sua vida. Depois desta seguiram outras importantes experiências de análise.

Em seu recente livro sobre esquizofrenia[iv], ele conta que neste período começou a trabalhar em um centro de atendimento de autistas e psicóticos na Universidade de Berkeley. Entrou em contato com o livro do psicanalista inglês Harry Guntrip sobre esquizofrenia, O Fenômeno Esquizoide. Depois deste livro seguiram outros autores e outros livros do grupo independente de Londres, notadamente estudou Winnicott e Fairbairn. Estas leituras todas mudaram completamente sua compreensão acerca dos pacientes com que estava em contato. Decidiu se tornar psicanalista, mas não quis fazer medicina ou psicologia. Decidiu seguir os estudos na Universidade de Buffalo, com um doutorado em literatura, com área de concentração em psicanálise e literatura. O departamento de literatura da Universidade de Buffalo dispunha naquele momento de um grande corpo docente, incluindo especialistas em psicanálise e fenomenologia. Em 1973, com 30 anos, foi para Londres fazer formação em psicanálise, já que nos EUA isto não lhe era possível, sem ser psicólogo ou médico.

 

Em Londres

Quando começou a se analisar em Londres, ficou chocado: descobriu que analistas ingleses eram muito diferentes dos norte-americanos: muito mais espontâneos, interpretavam com mais liberdade, e bem mais excêntricos também. Começou análise didática com Masud Khan, o destacado, rico e controvertido discípulo de Winnicott; uma análise que teve profundo impacto sobre Bollas, como ele mesmo admite. Seguiu-se ainda outra análise com Adam Limentani, que era àquele tempo o presidente da Associação Internacional de Psicanálise. Estudou com grandes nomes da psicanálise inglesa, Donald Meltzer, Herbert Rosenfeld e Hannah Segal, para citar apenas três nomes. Aproximou-se de Paula Heimann e Marion Milner, que se tornaram suas supervisoras. Apesar de admirar e aprender muito com estes grandes nomes, Bollas estranhou a intolerância a pensamentos divergentes, especialmente entre analistas kleinianos. Concluiu a sua formação em 1977, quando começou prática clínica como atividade principal, que exerce desde então. Além de analista e escritor tem tido períodos de docência intensa em várias universidades e centros de estudo em várias partes do mundo.

 

Lutas institucionais

Acho que vale a pena mencionar o ambiente psicanalítico que Bollas encontrou em Londres nos anos 1970. Havia pouco tempo, Anna Freud e Melanie Klein eram as duas maiores figuras, dominando completamente a cena. Podemos fazer críticas, mas as críticas não diminuem o tremendo valor destas duas excepcionais mulheres, que devido a sua grande força cobravam lealdade institucional e de pensamento a quem quisesse se aproximar. É só entendendo o talento delas e a disputa entre elas que é possível entender as angústias e indecisões por que passou o chamado grupo independente da psicanálise inglesa, também conhecido como o grupo do meio. O valor deste grupo independente só se compreende assim.

Elas se atacavam muito, com força, disputavam aguerridamente posições e compreensões teóricas. Os demais ficavam tensos e titubeantes. Era necessário escolher em que grupo se encontraria o analista didata, era necessário escolher a que grupo se filiar. Aos poucos foi surgindo a oportunidade de escolher um analista entre os independentes, aqueles que se recusavam a aceitar sem críticas Anna Freud ou Melanie Klein. A partir de um determinado momento constituíram-se estes três grupos. Os movimentos eram de bloco. A escolha dos cursos era regida por esta lógica, os grupos frequentavam as mesmas atividades. Os candidatos a membro ligados ao grupo independente sofriam certa discriminação, já que os sistemas teóricos de Klein e Anna estavam mais bem consolidados.

Tudo indica que estas disputas tinham grande impacto na subjetividade dos envolvidos. É provável que nas falas no divã aparecessem a inveja, o ressentimento, os medos e ameaças derivados deste ambiente. Precisamos reconhecer que em boa parte destas brigas, o que se passava era uma luta pelo poder institucional. A questão científica não era assim tão importante. Penso que precisamos nos deter nestas histórias para nos ajudar a não repetir facilmente os mesmos erros. O que aconteceu lá foi uma cristalização de posições, uma adesão a um número bem limitado de verdades, que limitou muito o avanço da psicanálise. Uma verdadeira traição ao pensamento do fundador da psicanálise, que entendia a disciplina como algo aberto, dinâmico e sempre capaz de mudanças e renovação. Sabemos que só após o afastamento de Anna e morte de Klein em 1960 foi possível construir um ambiente ecumênico, em que se pôde ser leal ao mesmo tempo à técnica e ensino de Freud, sustentado por Anna, e às inovações e aprofundamentos propostos por Klein.

O grupo independente inglês teve papel importante. Lutou contra a adesão acrítica por um lado a Klein e por outro a Anna. Os membros deste grupo se sentiam orgulhosos por não ter um líder. Winnicott, sabemos, lutou muito contra o kleinismo, contra qualquer sistema fechado. Lutou contra toda liderança que cobrasse uma fidelidade, digamos, cega. Exatamente por isto, Winnicott se tornou, podemos dizer, algo como um antilíder dos independentes.

Em um sentido, o que aconteceu em Londres é bem peculiar. Talvez, em outra direção, possamos pensar que disputas institucionais como estas podem ter ocorrido e estar acontecendo em toda parte do mundo. Vários autores têm tentado dar conta do fenômeno, reconhecendo que o que está em jogo em um ambiente com lideranças tão fortes é a transferência a estes líderes e aos grupos. A transferência, com manifestações tão agressivas, fica mais compreensível quando os nomes envolvidos são gente do calibre de Klein, Bion, Winnicott e Anna Freud. Creio que o fenômeno se sustenta porque há forte idealização. Ou seja, precisamos pensar em como se dá a dissolução da transferência não só ao analista, mas também aos grupos de formação e de pertença. Não por outra razão, Bollas tem dito que está contra qualquer ismo, a não ser talvez ao freudismo, como base de toda a psicanálise. Mesmo a transferência cega a Freud precisa ser colocada em questão.

 

De Londres para o mundo

Foi Paula Heimannn quem, em um determinado momento da formação de Bollas, recomendou que ele se voltasse aos franceses. Ela queria ver diminuído o impacto do dogmatismo presente no ambiente inglês, em particular o impacto da ortodoxia do kleinismo. Só assim, pensava ela, ele poderia se abrir para uma jornada mais criativa. Esta abertura aos franceses foi que permitiu a ele receber e aceitar convite de Pontalis para escrever na cintilante Nouvelle Revue de Psychanalyse. E assim passou a ir frequentemente a Paris, onde se relacionou não apenas com Pontalis, mas também com André Green. Bollas descobre outro mundo. Parte de sua grandeza tem a ver com um corajoso percurso que o leva dos EUA à Inglaterra e dali a um diálogo com a França. Vale ainda mencionar suas frequentes idas à Itália, tendo se tornado professor visitante da Universidade de Roma. Manteve vivos contatos com vários países da Europa, tendo contribuído para a formação do Grupo Europeu de Estudos do Pensamento Inconsciente, que tem se dedicado a estudar os caminhos do pensamento inconsciente. Um dos feitos deste grupo foi ter reunido duas dezenas de psicanalistas e filósofos para estudar uma única sessão psicanalítica bem documentada. Esteve em muitos países dando conferências, inclusive no Brasil. Em seus momentos de lazer, pinta. Algumas das ilustrações das capas de seus livros são de sua própria lavra.

 

O lugar da imaginação

Começamos falando sobre a imaginação, a partir da experiência de Ignácio de Loyola Brandão com presos em Araraquara. Quero pegar este fio outra vez... Não se trata de qualquer imaginação, a que valoriza Bollas. Mas a imaginação que aparece na literatura e funda a criatividade. Imaginação como pesquisa e como antecipação. Imaginação como instrumento de reconhecimento, transformação e ampliação da realidade. Imaginação que manifesta capacidade de simbolização, com grandes implicações para a prática clínica. O reverie de Bion é imaginação do psicanalista sobre seu paciente.

Talvez seja necessário trazer à baila uma diferença sobre dois tipos de imaginação, sustentada por Winnicott em seu último livro Brincar e Realidade. Trata-se de um capítulo do livro intitulado Sonhar, Fantasiar e Viver. Ele faz a diferença entre sonhar e fantasiar. O terceiro elemento do título- viver - faz discriminação de uma imaginação, digamos, do bem, o sonhar, de uma imaginação, digamos, maligna, o fantasiar. Esta imaginação produz vida, pergunta ele, ou não? Winnicott separa a imaginação que aparece nos sonhos e a imaginação que aparece no fantasiar patológico. É importante notar que ele está usando a palavra fantasiar aqui de um modo peculiar. Fantasiar, no texto de Winnicott, designa uma atividade psíquica estéril e fechada em si mesma, que carece de criatividade, um estado mental marcado pela dissociação, típica do devaneio. O que Winnicott está mostrando é que existe uma forma de imaginação que é fuga, alienação da realidade. Pode ser uma fantasia onipotente, maníaca, sustentada por um falso self, para usar uma expressão dele. Este fantasiar é doentio, não cria nada, apenas perturba a vida toda, sustentando um distanciamento da realidade. Esta distinção de Winnicott, Bollas cultiva. Há uma imaginação que está na literatura que produz saúde. Há uma imaginação que está na neurose que produz dissociação e alienação.

Não estou trazendo esta distinção de Winnicott agora apenas para enriquecer o tema da imaginação em Bollas. Estou trazendo também para mostrar como ele se apropria do pensamento e clínica de Winnicott, com criatividade e liberdade. Não está preso a uma filiação cega, nem a uma rejeição infantil. Ele se apropria de Winnicott com pensamento e reflexão próprias. Isto é que é o importante. O fato de Bollas ter formação em literatura faz com que ele compreenda a imaginação de modo mais amplo, com outros coloridos que não estão presentes em Winnicott. Ele usa seu conhecimento de Winnicott, mas usa também todos os elementos de sua biografia, integrando, digerindo, criando algo próprio.

 

O lugar da literatura

No livro A Metapsicologia de Christopher Bollas: Uma introdução, a autora Sarah Nettleton mostra o impacto da literatura na produção de Bollas. Winnicott não tinha a mesma formação literária. Estas distintas experiências profissionais marcam uma apropriação diferente de conceitos comuns. Bollas faz referências à literatura, às peças teatrais e aos filmes. Um dos efeitos é que ele entende e valoriza a simulação presente na fala dos pacientes, ele reconhece o personagem ali presente, sabe que todos são personagens, com efeitos de um sobre o outro. Bollas sabe que não há vida sem retórica, ainda que possamos desejar diminuir o efeito retórico da vida. Desconfia, ou mesmo afirma, que nós não estamos em condições de plenamente compreender o personagem que somos. Ele nos escapa. Nosso personagem é atravessado por marcas inconscientes, pelo nosso idioma, termo que usa Bollas para falar da singularidade de cada um. Há uma estética de cada um que se expressa no personagem, de um modo inescapável. Para Bollas, a obra está sempre impregnada pelo idioma do artista, quer seja uma ópera, quer seja um quadro, um poema, quer seja a própria vida. Por isto a análise é necessária, mas ela sempre segue incompleta e interminável. Nem a mais longa e feliz análise nos leva além das limitações e determinações inconscientes.

Esta influência da literatura, e das artes em geral, permite a Bollas outra apropriação dos conceitos analíticos. Como ele tem apreço pelo personagem, pela ficção, ele usa com cuidado a visão de falso self, desposada por Winnicott. Para Winnicott o falso self tem a tarefa de proteger o verdadeiro self. No livro O ambiente e os processos de maturação, Winnicott assegura que se trata de uma estrutura que existe para defender e ocultar o verdadeiro self.

Aqui podemos ver uma diferença na compreensão dos dois autores. Para Bollas o conceito de personagem está relacionado com uma forma de apresentação do self. Trata-se de um modo singular de comunicação entre selves, entre idiomas, que se dá por certa forma de expressão. A forma da expressão é fundamental, ela comunica algo. Um conceito fundamental para a clínica de Bollas, que nos convida a estar atentos ao modo como as coisas são ditas e expressas e não apenas ao conteúdo. Sempre estamos diante de um personagem. Sem o personagem não é possível a comunicação. Nada se pode dizer sem enredo, sem narrativa, sem palavras. Para Winnicott há algo negativo naquilo que é chamado de fictício, um sentido negativo que não está em Bollas. Para Bollas, a ficção é inescapável, trata-se de uma expressão do próprio ser. Vemos que Bollas lida com a imaginação de um modo enriquecido pelos estudos do discurso e da literatura.

 

Freud e Winnicott

Estamos falando da relação de Bollas com Winnicott. Adam Phillips, autor importante e estudioso dedicado da obra de Winnicott, em seu curto e precioso prefácio para o livro Christopher Bollas Reader, ainda sem tradução para o português, destaca não a filiação de Bollas a Winnicott; destaca a filiação de Bollas a Freud. Mostra que Bollas faz o movimento que se convencionou chamar de retorno a Freud. Acho importante dizer isto. Mais que um winnicottiano, Bollas é um freudiano. Bollas faz um retorno a Freud, para ser preciso, ele faz especialmente um retorno a certo conceito particular de Freud, ao conceito de livre associação. Bollas estuda, pesquisa e escreve sobre o tema. Ele lamenta a enorme resistência dos psicanalistas a este achado, denunciando uma diminuição da importância dele.

Para Bollas, os psicanalistas estão excessivamente atarefados com suas teorias, excessivamente preocupados com disputas institucionais, a ponto de não levarem adiante as enormes consequências da centralidade do inconsciente e da livre associação, que explora o inconsciente. Mais do que uma técnica, a livre associação revela a insondável inconsciência de nós mesmos. Traz à tona algo do estranho que mora em nós. O inconsciente está presente sempre, não podemos negar. Resta, portanto, o mistério das coisas, o nosso próprio mistério. A livre associação é o recurso que parcialmente desvela este mistério. As escolas psicanalíticas e suas disputam acabaram tomando o lugar daquilo que deveria ser mais central: a livre associação e o próprio inconsciente. A consequência desta nefasta mudança de ênfase e de metodologia é que a psicanálise perdeu força e influência no mundo contemporâneo. Só uma dedicação corajosa ao inconsciente e uma renúncia da busca de poder institucional pode reverter este quadro.

 

Liberdade e muita análise

Com essa chave podemos melhor compreender a defesa intransigente de Bollas do pluralismo teórico. Não se trata, insiste Phillips, de um ecletismo, ou seja, de uma reconciliação forçada de teorias que se opõem, mas um grande esforço para mobilizar uma visão inclusiva, onde várias perspectivas e pontos de vista estejam, com justiça, apresentados. Nenhuma compreensão teórica dá conta completamente do inconsciente. Uma visão transdisciplinar dá melhor conta da experiência pática[v] humana. Nenhuma compreensão dará conta de tudo, mas uma visão inclusiva alcança mais que uma visão autoritária e excludente. Para Bollas, é abraçando o pluralismo teórico, reconhecendo a complexidade dos jogos de linguagem e valorizando a livre associação e a escuta do analisando, que se poderá avançar.

Estamos pensando a vida de Christopher Bollas para pensar a formação do analista. Não como um modelo e um exemplo, mas como uma experiência que nos leva a pensar. Mas, como ele mesmo nos ensina, não há analista e experiência que seja definitiva. Sabemos que nenhum analista está pronto. A formação não termina. É muito importante ter isto em mente. Claro que pessoas diferentes estão em pontos diferentes. Mas ninguém chegou lá e ganhou o diploma de formado. A qualquer momento?- basta realmente praticar a psicanálise- um paciente qualquer vai mostrar ao analista que ele não está pronto. Um conjunto de conflitos e temas complexos, inesperados, vai aparecer. E o analista se revelará despreparado. Ele está a pé, incompleto, frágil. Não poderia ser diferente, porque é do inconsciente que tratamos. O inconsciente é inconsciente mesmo. Desconhecido, ele nos escapa. Em grande medida comanda o processo. Não sabemos completamente o que se dá em uma análise.

A tríade é fundamental. O conhecido tripé da formação é fundamental. A formação gira com ele, e quanto mais gira, melhor. Podemos dizer: análise, muita análise, mais análise ainda. Estudo, muito estudo, mais estudo ainda. Supervisão, muita supervisão, mais supervisão ainda. Mas tudo isto e algo mais não nos deixam prontos. Estamos humildemente incompletos. Nossa tarefa, além da tarefa de educar e fazer política - ensina Freud - é uma tarefa impossível. Quer dizer que vamos tropeçar, vamos errar. É impossível sempre fazer certo. Mas, como diz o Alcorão, mancar não é pecado.

 

Bollas, Brasil, América Latina

Temos muito que aprender com Bollas. Uma obra deste fôlego demora muitos anos para ser plenamente assimilada. Ele está vivo e continua produzindo. Há muito que trazer desta experiência para o Brasil e América Latina. Mas atenção. Nenhuma transposição automática pode ser feita. Ser leal a Bollas é traí-lo, levando em conta, radicalizando, não apenas a biografia e singularidade pessoal e institucional, mas também levando em conta e radicalizando as condições em que se implantou a psicanálise no Brasil e América Latina.

O Brasil é um país imensamente desigual socialmente, com uma economia grande, mas com PIB per capita apenas mediano. Estes dois fatores juntos implicam uma situação grave. Boa parte da população vive em condições modestas. Servimos frequentemente a esta classe média, que vive em condições modestas. Às vezes trabalhamos para a elite rica, que precisa aprender a servir ao país. Outras vezes servimos a parte da população que vive em condições de pobreza, que carece de quase tudo.

O país é um país desorganizado, profundamente desorganizado, além de injusto. As instituições falham o tempo todo. O Estado desampara frequentemente o cidadão. Nestas condições, uma psicanálise aqui aplicada não poderia facilmente demais desamparar os seus pacientes. Na França, onde o Estado ampara mais o cidadão, podemos mandar o paciente para casa, e pedir para ele lidar com sua falta. Sabemos que há muito sofrimento e falhas do Estado na experiência do primeiro mundo. Mas aqui, a coisa é pior. Frequentemente, o único amparo aqui é o amparo da família e dos amigos. O Estado não ampara como no primeiro mundo. O estado de bem-estar social, apesar de constitucional, não se implantou plenamente e nestes dias está sob forte ataque.

Sociedade injusta e desigual. Neste sentido, precisamos pensar as condições de nosso trabalho. Precisamos reconhecer a condição particularmente débil da rede de sustentação social de nossos pacientes. Sem negar a condição inescapável do desamparo humano, talvez precisemos ajudar a mobilizar modestos recursos de saúde pública e mental. Com nossa reflexão teórica e prática clínica, parece, estamos oferecendo à comunidade psicanalítica mundial uma contribuição. Estamos modestamente construindo uma psicanálise, com gosto latino-americano. Quando agimos bem, estamos construindo uma clínica que reconhece as condições duras e reais em que trabalhamos.

Creio que precisamos, sem vaidades e sem exageros, reconhecer que estamos em condições de contribuir com a psicanálise mundial. Sem preconceitos contra o que vem de fora e sem preconceitos com o que vem de dentro, podemos dizer que há uma psicanálise latino-americana em formação.

 

Conclusão: pensamento democrático

Quero encerrar voltando outra vez ao nosso autor, voltando a Bollas, fazendo uma referência a uma conferência que ele proferiu há poucos anos na Universidade de Berkeley nos EUA. O tema da conferência é a democracia. Sabemos que Winnicott escreveu sobre o tema. Para Winnicott, a democracia é mais que um regime político, trata-se de um modo de se relacionar com as pessoas. Sabemos que Winnicott lutou muito para que ninguém se submetesse a ninguém, para que ninguém se tornasse bonzinho e subserviente. Democracia é quando tratamos uns aos outros com igual valor. Quando as diferenças não se transformam em diferenças de valor, quando um não é melhor que outro. Democracia é quando as relações humanas se dão sem masoquismos ou sadismos.

Bollas avança um pouco mais... Para ele, democracia é um modo de pensar. Talvez aqui ele traia uma influência de Wilfred Bion. Bion trabalhou na Segunda Guerra Mundial como médico. Percebeu que um dos efeitos do horror da guerra é que o inimigo nos faz parar de pensar, de medo. Depois do término da guerra, sabemos que ele escreveu com profundidade sobre o que é o pensamento; estudou o pensamento mais ou menos saudável, mais ou menos elaborado, mais ou menos maduro. Paramos de pensar seriamente quando estamos com medo.

Bollas nos ensina que democracia é quando superamos o medo e podemos pensar de um modo que inclua aquele e aquilo que é diferente. Esta mensagem é de grande relevância em um ambiente polarizado, que não pode conviver com o contrário. Democracia é quando há espaço mental para lidar com aquilo que nos ameaça, sem pânico. Quando há uma superação da paranoia por um lado e do narcisismo do outro. De um modo que seja possível dialogar com aquele e aquilo que é percebido e sentido com uma real ameaça ao eu. Só assim a complexidade é mantida, o reducionismo é combatido e a soluções verdadeiras são construídas.

Penso que o espírito democrático- forma de se relacionar (Winnicott) e forma de pensar (Bollas)?- é que nos ajuda a manter o espaço para as mulheres, para negros, para a comunidade LGBT+, índios, pobres, marginalizados. Esta cultura democrática ajuda a criar intrapsiquicamente e socialmente um espaço amplo, inclusivo, também para homens e brancos. A situação do país é tal que precisamos desesperadamente combater o desespero. Há um efeito melancolizante em curso. Há falta de perspectiva de um modo tristemente patologizante. Podemos pensar e praticar a psicanálise como elitista. Mas há outro modo de ver e praticar. Um analista bem formado, uma análise bem conduzida, são contribuições radicais em um ambiente marcado por homens e mulheres sem serenidade. Vale a pena ser um bom analista, investir na formação. Vale a pena conduzir profundas análises. Trata-se de uma contribuição de transformação não apenas pessoal, mas com alcance social. O espírito realmente democrático de que nos fala Bollas poderá nos ajudar - esperamos - a encontrar um caminho para nossos pacientes, para nossas instituições psicanalíticas e para nossa nação, a quem servimos com paixão. Boa formação.


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Percurso é uma revista semestral de psicanálise, editada em São Paulo pelo Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae desde 1988.
 
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