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Resumo
O artigo discute a concepção de “inconsciente estruturado como uma linguagem”, de J. Lacan, dando sua fundamentação epistemológica e destacando o lugar vazio nessa concepção de estrutura. Fazendo uma analogia com o jogo do 15, explica a lógica do significante e distingue os registros simbólico, imaginário e real enfatizando a definição de real como impossível lógico.


Palavras-chave
Lacan; linguagem; significante; simbólico; imaginário; real.


Autor(es)
Adela Stoppel de Gueller Gueller
é psicanalista, mestre e doutora em psicologia clínica PUC-SP, pós-doutora em psicanálise pela Uerj, professora do curso de especialização em teoria psicanalítica da Coordenadoria Geral de Especialização, Aperfeiçoamento e Extensão (Cogeae) da PUC-SP, coordenadora do Departamento de Psicanálise com Crianças do Instituto Sedes Sapientiae.


Notas

1."Reificação: Transformação em coisa; coisificação: reificação do pensamento. [Filosofia] De modo geral, refere-se à sobreposição das coisas em detrimento das pessoas, sendo caracterizada pelo poder que elas exercem sobre os sujeitos. [Filosofia] Para o marxismo, processo inerente às sociedades capitalistas, definido pela sobreposição ou supervalorização da produção, em detrimento das relações humanas e sociais, podendo ocasionar a perda da subjetividade característica do ser humano, atribuindo-lhe uma natureza inanimada e automática, como coisas ou mercadorias", Dicio, [s.d].

2.S. Freud, "De la historia de una neurosis infantil", in Obras Completas.

3.S. Freud, "Tres ensayos de teoría sexual", in Obras Completas.

4.Em meados do século xx, um grupo de matemáticos formalistas idealizou a chamada matemática moderna, proposta que divulgou sob o pseudônimo coletivo de Nicolas Bourbaki.

5.No Seminário xiv, "A lógica do fantasma", Lacan (1966-1967) incorpora a noção matemática de estrutura, que se aplica a permutações de quatro elementos quaisquer.

6.L. C. Pereira Junior, Com a língua de fora: a obscenidade por trás de palavras insuspeitas e a história inocente de termos cabeludos, p. 24-26.

7.Solipsismo, do latim [ego] solus ipse ("só eu existo", em tradução livre), Solipsismo, [s.d.].

8.Assim, Lacan questiona tanto o método de Ester Bick quanto a teoria de Bowlby sobre o apego, que nesse momento imperavam como modelos de formação dos analistas na Sociedade Britânica de Psicanálise.

9.J. Lacan, "Conférences et entretiens dans des universités nord-américaines", Silicet, p. 34.

10.      J. Lacan, El seminario de Jacques Lacan, libro 4: la relación de objeto, p. 188.

11.      J. Lacan, El seminario de Jacques Lacan, libro 11: los cuatro conceptos fundamentales del psicoanálisis, p. 217.

12.      J. Lacan, El seminario de Jacques Lacan, libro 4: la relación de objeto, p. 192.

13.      J. Lacan, op. cit., p. 286.

14.      J. Lacan, "Conférences et entretiens dans des universités nord-américaines", Silicet, p. 32.

15.      A fórmula matemática para calcular essas possibilidades é (n2 - 1) +1, sendo n um número inteiro maior de 1.

16.      G. Le Gaufey, La incompletud de lo simbólico: de René Descartes a Jacques Lacan, p. 190.

17.      G. Le Gaufey, op. cit., p. 191.

18.      Para calcular essas possibilidades, aplicamos o fatorial do número. No primeiro caso, 4! = 4 x 3 x 2 x 1; no segundo, 5! = 5 x 4 x 3 x 2 x 1.

19.      Para calcular essas possibilidades, aplicamos o fatorial de n - 1, grafado (n - 1)!. Com 4 elementos (n = 4), temos (4 - 1)! = 3! = 3 x 2 x 1 = 6; com 5 (n = 5), temos (5 - 1)! = 4! = 4 x 3 x 2 x 1 = 24.

20.      J. Jeremy, Quando a ciência e a magia se combinam: a fraude gigantesca conhecida como Teoria da Evolução.

21.      O jogo do 15, Wikipedeia, [s.d.].



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Abstract
This paper regards J. Lacan’s conception of the “unconscious structured like a language”, locating its epistemological basis and highlighting the empty site in his conception of structure. Using the 15 puzzle as an analogy, the significant logic, the distinction between the symbolic, the imaginary and the real registers are explained, emphasizing the definition of real as logical impossible.


Keywords
Lacan; language; significant; symbolic; imaginary; real.

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 TEXTO

O jogo do 15 e a estrutura da linguagem: Lacan e o lugar vazio

The 15 puzzle and language structure: Lacan and the empty place
Adela Stoppel de Gueller Gueller

Lacan gostava de jogos de lógica e evidentemente tinha um espírito brincalhão. Inspirados nessa ludicidade, nos propomos a apresentar através de um joguinho, inventado em 1868 por Noyes Chapman e que foi furor nos anos 1950 no Brasil, alguns elementos fundamentais do edifício psicanalítico lacaniano. Trata-se do quebra-cabeça das 15 pastilhas, jogo do 15 ou racha-cuca. Ele nos servirá para compreender o que significa sustentar que "o inconsciente está estruturado como uma linguagem". Lacan, desse modo, quer diferenciar sua concepção de inconsciente da Outra cena, de Freud, e do mundo interno povoado de fantasias, de Melanie Klein. Para Lacan, o inconsciente deve ser pensado como uma estrutura que é idêntica à da linguagem. Tentaremos avançar analisando as consequências dessa postulação na psicanálise.

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Os problemas que Lacan encontrou no modelo de Freud

Para sustentar essa tese, desde o início de seus seminários, pelos anos 1952-53, Lacan começa a reconstruir as bases conceituais da psicanálise visando extraí-la daquelas de que partira Freud.

Ao recortar um novo campo?- o inconsciente?- e descrever uma nova realidade?- a realidade psíquica?-, Freud se havia apoiado na física clássica, numa biologia evolucionista, na química e na arqueologia. Para Lacan, esses modelos levavam a materializar o conceito de inconsciente como algo semelhante a uma máquina ou a um aparelho, o que implicava o problema da reificação[i], ou coisificação.

A realidade material estudada pela física e pela química usava os conceitos de energia, força e resistência, que não podiam ser aplicados à realidade psíquica. A biologia usava uma ideia de tempo linear que, aplicada à análise, levava a impasses sobre as origens e o fim. A arqueologia espacializava o tempo em camadas e, aplicada à análise, levava a pensar que, quanto mais profundos fossem os estratos, mais inconscientes e arcaicos seriam seus conteúdos. Disso resultava que a psicanálise fosse pensada como uma psicologia das profundezas da alma e que o psicanalista trabalhasse de modo semelhante a um arqueólogo: a partir de achados da clínica, a análise reconstruiria a cena original que havia ocasionado a neurose. Em Freud, o exemplo mais acabado desse modo de proceder é o famoso caso do Homem dos Lobos[ii]. Não por acaso, Lacan inicia seus seminários relendo esse caso e aponta as encruzilhadas insolúveis que Freud encontra ao tratar da questão das origens.

Lacan também questiona o modelo presente nos "Três ensaios"[iii], que, partindo do autoerotismo, deveria levar a superar as fases pregenitais da libido para aceder à genitalidade. Segundo ele, essa ideia de tempo evolutivo acabava sendo normatizadora, resultando em que desvios ou fixações fossem situados como perversões.

O modelo estrutural, vindo da linguística de Saussure, da antropologia de Levi-Strauss e da matemática?- principalmente a partir de Bourbaki[iv]?-, deu a Lacan outra ideia de tempo, diferente do da evolução[v]. Diacronia e sincronia, as duas dimensões do tempo da linguagem, devem ser pensadas simultaneamente. No eixo diacrônico, é possível acompanhar as mudanças que sofrem a grafia ou o significado de um termo ao longo do tempo. Mas elas devem ser analisadas em relação ao conjunto dos significantes presentes numa língua num dado momento, que estão situados no eixo sincrônico. Essas mudanças não implicam "anormalidade" ou desvio, mas transformação.

Tomemos como exemplo as mudanças que sofreu ao longo da história a palavra "puta". Inicialmente, era uma deusa romana dedicada à poda das árvores, e "putare" significava limpar o excesso para que a árvore pudesse frutificar melhor. Daí vieram "amputar", que é cortar fora, e "disputar", cortar ao meio. "Puta" estava associada, portanto, a um ato de raciocínio. Termos relacionados, que podemos situar no eixo sincrônico, são "computar", que significa ordenar, contar, e também, "reputação", o que pensam de nós. Mais tarde, o latim vulgar deu novos rumos a essa palavrinha introduzindo uma consoante gêmea. "Putta" passou a ser sinônimo de menina e feminino de "puttu", que significava infante. Depois, se aplicou a donzela, essa miniatura de mulher. Com o passar do tempo, "puta" e putta" fundiram seus sentidos para designar as mulheres sábias nos fazeres do prazer. E ainda hoje, em Portugal, podemos ouvir chamarem-se os meninos de "putinhos"[vi].

 

Da deusa romana até a denominação que ainda se dá aos meninos em território lusófono, uma série de mudanças se foi operando no eixo diacrônico. Algumas delas desapareceram e outras permanecem vivas na língua, embora se tenham perdido as conexões que lhes deram origem na história, mas ambas as dimensões estão simultaneamente presentes na língua oral.

 

Portanto, pensar estruturalmente eliminava a pergunta pela origem, já que a estrutura se apresenta desde o início de forma sincrônica, com todos os seus elementos, inclusive aqueles que faltam. Em nosso joguinho, o ponto de partida são 16 quadrados, inclusive o vazio. Os elementos não vão sendo incluídos aos poucos, mas todos de uma vez, e a estrutura está presente desde o início, em toda a sua complexidade.

Para Lacan, se a psicanálise se desamarrasse dos conceitos oriundos da física, da química e da arqueologia, ganharia potência e abrangência. Ao pensar o inconsciente com a lógica da linguagem, a temporalidade passaria a funcionar do mesmo modo que a significação, abandonando o modelo evolutivo. Assim, trata-se sempre de ressignificação, ou do que conhecemos em psicanálise como après-coup.

Por ser idêntico ao de estrutura, o modelo da linguagem também permitia sair do solipsismo[vii] a que conduzia o autoerotismo, já que a linguagem não pode ser pensada no isolamento de um único indivíduo. Além disso, como a linguagem só tem duas dimensões?- o eixo sincrônico e o eixo diacrônico?-, a psicanálise passaria a se ocupar de superfícies, e não de profundidades.

Assim, para Lacan, não se trata de situar no começo nem um tempo mítico, nem um passado perdido, nem se toma como ponto de partida a observação de bebês[viii]. Seu modelo se opõe à intuição e ao método positivista clássico, que se apoiava na observação. Para ele, a experiência empírica não é um ponto de partida, mas um ponto de chegada, e por isso a psicanálise não extrairia dela sua validação. Todo o esforço de Lacan consistia em pensar a teoria psicanalítica de um modo semelhante aos matemáticos, que fazem suas demonstrações apenas com papel e lápis. Daí todo o trabalho de Lacan com grafos, esquemas e matemas.

Trata-se, portanto, de um outro modo de situar a relação entre teoria e clínica que inverte a lógica empirista, que passa a ser associada ao senso comum. No mesmo espírito das meditações cartesianas, o objetivo é evitar os enganos do registro imaginário?- intuitivo e sensitivo. Mas, diferentemente de Descartes, Lacan propõe uma nova maneira de fazer uso da razão que permita contemplar os equívocos da língua: "Substituí a palavra ‘palavra' pela palavra ‘significante', e isso significa que ela se presta a equívocos, ou seja, sempre a várias significações possíveis"[ix].

Assim, colocar a linguagem como tema central da psicanálise implicava mudar de paradigma. Mas era necessário definir qual era a lógica da psicanálise e qual era a concepção de linguagem com que se pensaria o inconsciente. Ambos os temas se encontram como uma única questão, que seria definir a particularidade da lógica do significante. É para essa finalidade que faremos nossa analogia com o jogo do 15.

 

A estrutura do jogo

O quebra-cabeça é um conjunto de 15 quadrados dentro de uma moldura, que se podem mover em duas direções e trocar de lugar por deslizamento, porque falta a décima sexta peça, que permite o deslocamento das demais. Trata-se de uma estrutura que funciona de modo análogo a como Lacan concebe a estrutura da linguagem.

Saussure já havia definido os dois eixos da linguagem?- o eixo sincrônico e o eixo diacrônico. Lacan dá sua contribuição destacando o lugar vazio como um elemento-chave dessa estrutura. Sublinhe-se que esse lugar vazio é fundamental para que haja movimento, pois é graças a ele que as peças se podem deslocar. O jogo funciona graças ao lugar que corresponderia ao número 16, que não está. Como estamos acostumados a pensar intuitivamente seguindo o modelo empírico do positivismo, não é fácil dar essa reviravolta, que consiste em situar uma falta, isto é, um conceito negativo como ponto de partida para pensar. Mas Lacan afirma que, por sermos seres de linguagem, os humanos nos constituímos em torno dela. Dois exemplos que aparecem na obra dele e ilustram essa questão: O ser humano não está imerso na alternância do dia e da noite, o dia surge sobre a ausência possível do dia. Eis o lugar onde se aloca a noite. O dia e a noite estão aí como significantes, e não como alternância da experiência[x]. Ou, seguindo a mesma lógica, no seminário 11: "O grito não se perfila sobre a tela de fundo do silêncio, mas, ao contrário, o faz surgir como silêncio"[xi].

As 15 peças mais a que falta (a de número 16), consideramo-las o conjunto dos significantes que Lacan denomina A, primeira letra de Autre. Esse Outro, com maiúscula, representa a bateria dos significantes.

A peça 16, o significante que, por faltar no conjunto, possibilita o movimento e a significação, será o Falo simbólico. Que esse significante seja denominado Falo, em vez de ter qualquer outro nome, é um modo de introduzir na linguagem a importância decisiva da diferença como diferença sexual. Mas, ao situar essa diferença a partir da linguagem, saímos do modelo empírico. Ou seja, uma das consequências de situar a estrutura da linguagem como dado inicial é que, para nós, seres de linguagem, as diferenças não são dadas pela natureza anatômica de nosso corpo, mas constituídas a partir do simbólico. A primazia do simbólico faz da diferença anatômica um caso particular: "Se pretendem deduzir de determinada constituição dos órgãos genitais o fato de que o falo tenha um papel predominante em todo o simbolismo genital, nunca o conseguirão"[xii].

O Falo simbólico, ou significante da falta, representa em nosso joguinho o que permite pensar a diferença entre o que está e o que não está. Para Lacan, essa diferença não provém da diferença sexual anatômica, como em Freud, mas da linguagem. No simbólico, rege a diferença, a não identidade. "Se quisermos fazer um trabalho verdadeiramente analítico, verdadeiramente freudiano, verdadeiramente conforme aos principais exemplos desenvolvidos por Freud para nós, devemos nos dar conta de um fato que só se confirma com a distinção do significante e do significado?- nenhum dos elementos significantes da fobia tem um sentido unívoco, nenhum equivale a um significado único"[xiii].

Assim como o oleiro estrutura um vaso pensando no vazio que ele deverá conter ou um serralheiro estrutura um canhão em torno do vazio de sua alma, o Falo ou significante da falta é o n-1 em torno do qual a linguagem se estrutura. Assim, nossa alma é como a do canhão.

Cada um dos quadrados do jogo pode ser pensado como um significante, quer dizer, como algo que não tem um valor nem um significado em si, já que o significado e o valor de cada peça dependem de sua posição relativa. Essa ideia é central para pensar como funciona a estrutura. Se movemos uma peça, todas as outras mudam sua posição relativa no conjunto. 12#4 é diferente de 124#. Se pensarmos em letras em vez de números, MAR# é diferente de M#AR. Pode-se tratar de palavras, frases, gestos ou, como aqui, no racha-cuca, de letras, cifras ou figuras.

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O significado é o que se produz na combinação entre os diferentes elementos e muda se mudarmos a posição de qualquer um deles. Quer dizer que o significante determina os significados que se vão produzindo. Por isso, para Lacan, a primazia é do significante, e não do significado.

Freud tratava de descobrir o significado oculto dos sintomas produzidos pelo recalque, portanto, procurava a mobilidade do sintoma pela via do significado. Lacan diz que esses efeitos podem funcionar por sugestão. Ele pensa que o sintoma é resultado de uma colagem de significantes que se fixam num sentido e que, portanto, o tratamento deve devolver à linguagem sua mobilidade, quando ela está detida. Assim, a cura do sintoma se obtém como o acréscimo dessa operação, ou seja, pelo efeito que se produz na movimentação dos elementos significantes.

A identificação de uma ou mais peças com um significado fixo, denominamos signo e equiparamos ao sintoma. Lacan define o signo como algo que representa algo para alguém, enquanto o significante é aquilo que representa um sujeito para outro significante. Num tratamento, trata-se de transformar os signos em significantes, isto é, em separar o significante do significado (em nossa analogia, uma peça associada a um lugar), já que essa colagem impede o sujeito de jogar. A movimentação que se produz no deslocamento das peças, equiparamos ao desejo, e uma análise deve poder manter essa movimentação.

Em análise, contei o seguinte sonho: havia uma pessoa com umas marcas no corpo: feridas, tatuagens. As marcas do sangue seco ainda eram visíveis. Uma marca era na perna, outra no ombro. Uma das marcas tinha a forma de um tabuleiro de damas, a outra, a de um jogo da velha, tal como quando o rabiscamos à mão. Associo a velha e a dama (pensando na oposição por idade). E ouço de meu analista: "entre la vieja y la dama". Na transposição para outra língua, a velha se descolou do significado a que eu a tinha associado: a idade. E surgiu a mãe, já que "vieja" é uma forma muito comum de se referir à mãe em linguagem coloquial portenha. O trágico das feridas no corpo sumiu após essa interpretação, e as feridas tornaram-se simples tabuleiros de um duplo jogo que uma mulher precisa saber jogar: o da dama e o da mãe.

A operação analítica, que consiste em separar um conjunto de peças?- que formam uma figura, uma palavra ou uma sequência de números, impedindo o desejo de circular?-, podemos denominar interpretação. Por isso, podemos dizer que a interpretação tem função de corte. Se se desobstrui o deslizamento dos quadradinhos, podemos dizer que houve interpretação. Consequentemente, essa operação produz uma mudança de sentido e só pode ser deduzida a posteriori, isto é, quando há ressignificação. "A interpretação analítica não é feita para ser compreendida; é feita para produzir ondas [...]"[i].

Cabe apontar então que, quando duas peças se separam, outras se juntam formando novas figuras, produzindo novos significados. A ideia não é, portanto, eliminar a dimensão imaginária do significado, mas fazer dele algo que possa mudar, isto é, a experiência da análise deve mostrar que, pela própria estrutura da linguagem, os significados não são um apoio firme.

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No entanto, isso vale fundamentalmente no campo das neuroses. Em outras formações clínicas como a psicose infantil, a debilidade ou a psicossomática, os significantes ficam soldados entre si, de modo que duas ou mais peças são tratadas como um bloco. Para delinear essa particularidade, Lacan fala em holófrase, termo emprestado da linguística para descrever o modo como as crianças usam as primeiras palavras que pronunciam como mamãe, papa, au-au etc.

Na holófrase, uma palavra tem valor de frase e serve para exprimir várias coisas. É interessante notar que, em vez de falar em pacientes regredidos ou em fixações em etapas precoces do desenvolvimento, Lacan recorre novamente à linguística para pensar em outras modalidades de funcionamento psíquico, caracterizadas por uma limitação do movimento do desejo. Por um lado, trata-se de afirmar que esses pacientes estão na linguagem, já que não é possível pensar nada fora dela, e, por outro, de colocar como questão a possibilidade de jogar o jogo em transferência na clínica em configurações particulares que têm menos alternativas de movimentação. Embora seja necessário pensar manejos clínicos diferentes, o sentido é o mesmo: trata-se de pensar em como descolar esses significantes que andam em bloco, impedindo a movimentação. A ética da psicanálise continua sendo a do desejo.

Depois de trabalhar bastante com uma menina que mal falava e se movia muito torpemente, ela começou a brincar de casinha. Havia, no entanto, um elemento estranho na brincadeira: junto com os bonequinhos de pano, ela colocava uns blocos de madeira. Um dia, em que ela começou a chorar pedindo pela babá, eu peguei um desses blocos e comecei a fazer de conta que era um telefone com o qual falava com a babá. Mais tarde, me dei conta de que o bloco de madeira que tinha pego era um criado-mudo. Surpresa, a menina começou a rir e a pedir que repetisse a brincadeira. Assim, a intervenção consistiu em fazer um criado-mudo falar, arrancando o objeto do mutismo e dando-lhe valor significante.

À detenção do movimento, Lacan a denomina gozo, de modo que o desejo é a causa do movimento, e o gozo, a da paralisação. Para que o desejo circule, há que relançar uma e outra vez o movimento da cadeia significante, impedindo sua estagnação. Essa é, então, a função da operação analítica.

Assim, vemos que a estrutura do jogo comporta um conjunto de peças (os significantes), dois eixos de movimento e um lugar vazio. Isso quer dizer que podemos variar o número de elementos e, mantendo um quadrado vazio e os dois eixos de movimento, a estrutura permanece idêntica. Nesse sentido, ela é atemporal.

A versão mais conhecida do jogo é com 15+1 elementos, mas há versões com 8+1 elementos, com 24+1, com 35+1[i] etc. Quanto menor o número de elementos, mais simples é o jogo, já que diminui o número de arranjos possíveis.

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A estrutura mínima para que haja jogo são 3+1 elementos, e esse é também o número mínimo de significantes para pensar a estrutura da linguagem. Com essa quantidade, já existem os dois eixos de deslizamento (vertical e horizontal) e um lugar vazio.

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Até aqui, só situamos o Falo nesse lugar vazio, mas, como se trata de um lugar que tem uma função com que se pode operar, ele pode ser ocupado por outros conceitos, dependendo do que Lacan estiver pensando: o S1, o supereu, o pai, o traço unário, o nome ou o Falo simbólico.

Por exemplo, para pensar uma cadeia significante reduzida a sua mínima expressão, Lacan escreve S1 à S2, sendo S1 nosso número 16 e S2, o conjunto dos significantes. Mas, a partir de 1968, ele reescreve essa fórmula como S à A, em que A designa "outro significante". Assim, ele substituiu S1 por S e S2 por A.

Em nosso joguinho, a cadeia significante (S2) está representada pelos números de 1 a 15. O S1 se diferencia deles porque ocupa o lugar vazio e, assim, tem uma função de comando no conjunto da cadeia significante.

Toda a estrutura significante está presente desde a origem, completa, considerando inclusive o quadradinho que falta. Portanto, a linguagem não se constrói pela somatória dos significantes, e sua origem deve ser pensada sincronicamente. Então, embora S1 comande o jogo, não há primeiro um S1 e depois um S2.

As peças só se podem mover em duas direções, vertical e horizontal, tal como na linguagem. O eixo horizontal é o eixo diacrônico da linguagem: uma palavra depois da outra, uma letra depois da outra. O vertical é o da sincronia, que permite a substituição de uma palavra por outra. Lacan toma, então, de Freud os mecanismos do processo primário?- a condensação e o deslocamento?- e os equipara a duas figuras de linguagem, a metáfora (que se move no eixo vertical) e a metonímia (no horizontal). O fato de os dois eixos serem necessários à estrutura da linguagem faz com que não se possam pensar as substituições de modo linear. Se assim fosse, estaríamos pensando num modelo de uma única dimensão. Mas, como há dois eixos, estamos num modelo que comporta duas dimensões, ou seja, algo como uma folha de papel ou o nosso racha-cuca.

Se o inconsciente está estruturado como uma linguagem e a linguagem só tem 2D, logicamente, fica eliminada a ideia de profundidade da alma. Trata-se sempre de uma questão de superfícies, o que evidentemente não significa tratar o inconsciente de modo superficial. O discurso, então, deve ser lido a partir dos ditos e dos não ditos, e ambos aparecem na superfície da fala, inclusive os silêncios.

Se os elementos significantes se movessem só numa dimensão (linearmente), o número de permutações possíveis seria muito maior. Por exemplo, com 4 elementos, teríamos 24 possibilidades. Mas, como temos dois eixos, ou seja, duas dimensões, esse número diminui sensivelmente, já que as permutações tornam-se cíclicas ou circulares, do que resulta que, com 4 elementos, há apenas seis permutações possíveis.

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Assim, 1, 2, 3, # é igual a #, 1, 2, 3, ou a 2, 3, #, 1 ou a 3, #, 1, 2, mas diferente de 1, 3, 2, # ou de 1, 3, #, 2 ou de #, 3, 2, 1.

Vemos que os elementos significantes estão encadeados. Isso quer dizer que, a partir de uma certa posição tomada como inicial, na sequência, nem todas as permutações são possíveis. Podemos deduzir daí duas consequências importantes: a lei simbólica indica quais permutações se podem fazer e quais são impossíveis.

Se temos:

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Com um movimento só, não podemos chegar a:

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Porque a estrutura não admite movimento em diagonal: cada movimento permite que uma peça se desloque só um lugar, horizontal ou verticalmente.

Nesse encadeamento, alguns movimentos podem levar, após uma certa sequência, à mesma posição do início ou a sequências equivalentes como 123#, 23#1, 3#12 e #123. Nesses quatro casos, as peças se deslocaram, mas formaram a mesma sequência. Analogamente, podemos dizer que é isso que comparece na análise como repetição e que, portanto, a repetição não é a ocorrência do idêntico, mas uma repetição com um diferencial, já que se trata de uma mesma combinação de significantes, embora com os elementos em posições diferentes.

O que muda, então, ao longo do tempo e o que permanece como necessário e atemporal? Como em qualquer outro quebra-cabeça, as figuras propostas como modelo e o número de peças podem mudar, mas a estrutura do jogo permanece a mesma. O que não muda com o tempo é, então, a função estrutural e atemporal da assunção do sexo pelo ser falante, isto é, a castração, que Lacan escreve como S(). Por isso, a fórmula da castração é a mesma que a da estrutura da linguagem. Isso significa que, nessa fórmula, estão incluídas a estrutura da linguagem, com sua falta constitutiva, a articulação do inconsciente com o sexual e a afirmação de que a inserção do humano na linguagem comporta desde o início a castração: "É então tratando A como uma totalidade que se reencontra, sob múltiplos aspectos, a impossibilidade de ser completo, isso que S() escreve"[i] ou S() "enuncia a propriedade fundamental do A de ser, em tanto que tesouro, falto de um significante"[ii].

Aos modelos, às imagens, aos conteúdos que, sim, variam, assim como as configurações sintomáticas ou o conteúdo dos discursos de uma época, Lacan os denomina significado do Outro, que ele escreve s(A), de modo que vemos aparecer o significado como a variável temporal e a linguagem?- isto é, o conjunto dos significantes incluindo a falta?-, como a variável que é estruturalmente atemporal.

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A estrutura do jogo é o que Lacan denomina simbólico, e as figuras que se vão formando, criando ilusão de unidade e mudam com o tempo, representam o imaginário.

Seguindo nossa analogia, a busca fálica (-fi) consiste em procurar a formação da figura ou da sequência de números ou letras que sustenta o desejo; em nosso exemplo, a mocinha de óculos ou a formação das palavras mato, atar, cuca e amor. Elas funcionam como falo imaginário, porque criam a ilusão de que ali não falta nada. A peça que falta?- o Falo simbólico (), ou o significante da falta?- é a que permite que haja jogo, já que, se ela comparecesse, o movimento seria detido e o jogo, interrompido.

 

A circulação do lugar vazio

Voltemos à estrutura do jogo: há uma série de lugares fixos pelos quais os significantes se podem deslocar, ficando em posições diferentes. A posição do espaço vazio muda do mesmo modo que as peças. Essa diferença entre posições e lugares na estrutura é importante para pensar o Édipo de modo estrutural.

O que circula entre as peças é o falo simbólico. Por isso, para Freud, a estrutura edípica era ternária: mãe-pai-criança. E, para Lacan, é quaternária, por incluir o falo como quarto elemento, em torno do qual se organizam os outros três, de modo que, no drama edípico, os personagens mudam dependendo da posição que vão ocupando na estrutura. Aí reside o conceito de função. Então, não se trata de pensar como são a mãe, o pai ou o filho em termos de personalidade, mas de analisar em que lugar cada um está situado ou que efeitos se produzem se os diferentes personagens mudam de lugar, o que depende da posição que ocupem em relação ao falo, ou seja, ao lugar da falta:

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Já dissemos que a circulação pelos diferentes lugares na estrutura não é livre, não pode ser feita de qualquer modo. Pensando nessa figura, para que o filho possa, por exemplo, aceder ao lugar onde está o pai, são necessários ao menos 6 movimentos.

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Note-se que as peças vão fazendo um movimento circular e que, se continuarmos a movimentação, acabaremos voltando à posição original. É por essa razão que dizemos que a estrutura não muda no tempo. A possibilidade de mudança dentro dela reside na mudança de posição, na circulação.

Suponhamos, no entanto, que nasça um novo filho e que tenhamos que pensar em cinco lugares. O que acontece? Temos de pensar numa estrutura com mais um lugar.

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Quantos mais elementos tiver a estrutura, maior será o número de permutações possíveis. Com 4 elementos lineares, há 24 permutações possíveis; com 5, são 120[i]. No entanto, como as permutações são circulares ou cíclicas, porque estamos trabalhando em duas dimensões, com 4 elementos, temos 6 permutações possíveis e, com 5, temos 20.[ii] Isso mostra como se complexifica a estrutura quando há um lugar a mais e também por que a chegada de um irmão suscita tantas questões para pais e filhos.

O mesmo raciocínio pode ser aplicado a crianças que, embora não falem, estão desde o início inseridas na estrutura da linguagem. Então, o que muda com o tempo do desenvolvimento? A que nos referimos com a expressão aquisição da fala? Ao número de elementos da estrutura. Inicialmente, a estrutura tem poucos elementos, e a linguagem funciona de modo holofrásico, mas, desde o momento em que, ao ver um cachorro, a criança pode dizer "miau" ou brincar que um gato diz "au-au", ela já tem à disposição toda a potência do jogo dos significantes. Por isso, Lacan relê o fort-dá, jogo criado pelo netinho de Freud quando tinha 18 meses, como já comportando todos os elementos necessários para pensar a estrutura da linguagem.

 

A tríade de Freud e a de Lacan

Freud falou em inconsciente, pré-consciente e consciente e, mais tarde, em ego, id e superego. Isto é, em suas duas tópicas, usou divisões ternárias. Lacan as substituiu por três registros: o simbólico, o imaginário e o real. Já falamos aqui do imaginário e do simbólico, mas como definir o real? Vamos fazê-lo de duas formas.

real é o que não pode acontecer pelas próprias regras do jogo. Por exemplo, não é possível mexer as peças na diagonal. Se tentássemos ensinar o jogo a uma criança, provavelmente lhe proporíamos deslizar as peças, o que só pode ser feito em duas direções. A criança poderia perguntar: "e por que não posso mexer na diagonal?" E nós diríamos: "porque assim é o jogo: isso não dá". Podemos por aí definir o real como um tropeço, um empecilho. Esse modo de entender o real é fundamental para Lacan explicar como se constitui o objeto para a criança e como dele resulta o acesso à realidade. É a partir do encontro com o real que os pequenos reconhecem algo como existente, ou seja, como não eu. Trata-se então de reconhecer a existência de algo diferente do que a criança pensou ou imaginou. Digamos que não explicamos nada à criança e que lhe damos o joguinho para ela experimentar sozinha de que se trata. Ela fará diferentes tentativas de mover as peças e, do reiterado emperramento em certos movimentos que não são possíveis no jogo, deduzirá o real. É assim que encontramos o real na análise, isto é, do que é impossível que aconteça no jogo transferencial. É da repetição dos mesmos movimentos que emperram o jogo ou na insistência em bater na mesma tecla que podemos?- na análise?- deduzir o que insiste como real na transferência. Nada mais lacaniano, então, que o conhecido lema do maio de 68 francês: "Sejam realistas, peçam o impossível!"

Para poder falar da segunda definição de real, precisamos situar no jogo uma invenção lacaniana fundamental, o objeto a. Para isso, devemos voltar ao quadradinho vazio em que situamos o Falo simbólico e que escrevemos com o signo #.

Escrevemos o signo # no lugar vazio indicando que algo ali pode ser escrito, e que essa escrita pertence ao registro simbólico. O vazio não é #, mas um signo que o representa. Assim, # indica aquilo que Lacan denomina letra, já se pode escrever. Para Lacan, a letra está na borda entre o simbólico e o real, por isso ele usa a metáfora do litoral, brincando também com a quase homofonia que há entre literal e litoral. O real não pode ser dito, mas pode ser escrito e, assim, conta como um elemento fundamental na transmissão da psicanálise. Nesse sentido, a letra?- lembrando que em francês letre também significa carta?- tem uma função decisiva na circulação das mensagens, inclusive na escuta analítica.

Com a invenção do objeto a, Lacan tentou positivar esse vazio que funciona como causa do jogo, como causa do desejo. Trata-se de pensar na diferença entre os 15 quadradinhos e o quadrado que deve permanecer vazio, que corresponderia ao número 16, ou nosso #.

Do objeto a, em primeiro lugar, podemos dizer que ele não tem imagem: recorta-se como um quadrado vazio pela borda que formam os outros 15, ou seja, pelo que não é recoberto pelos outros 15 significantes do conjunto. Então, ele não tem a mesma natureza que os outros 15; por isso, Lacan diz que é como um objeto parcial e o refere às pulsões parciais, isto é, ele não é uma unidade, como os outros elementos. Como os objetos parciais?- seio, voz, olhar, fezes?-, o quadrado que corresponderia ao número 16 só existe como vazio, embora esse vazio seja essencial. Como vazio, ele também funciona como causa do desejo, porque, graças a ele, o desejo pode circular. Mas, se tentamos preenchê-lo?- com alimento, fezes, vozes impositivas, olhares onipresentes ou com um quadradinho a mais?-, o objeto a se transforma em gozo, porque, ao positivar-se, o movimento se detém e o desejo não desliza.

Embora exista como vazio, o número 16 tem algo semelhante aos outros 15 quadrados: é como uma sombra deles, mas, positivado, aparece como uma assombração. Nesse momento, surge algo da ordem do estranho.

Vamos agora à segunda definição de real, que encontramos na tentativa de finalizar o jogo. Segundo os matemáticos, há 21 trilhões de permutações possíveis entre as 15 peças; metade delas permite resolver o quebra-cabeça, e a outra metade, não. A essa metade em que é impossível formar a figura desejada, Lacan também denomina real.

A figura a seguir, conhecida como 15-14, foi criada por Sam Loyd em fins do século XIX[i] e mostra uma posição a partir da qual é impossível chegar à solução.

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Sam Loyd (1841-1911) foi matemático e também um conhecido charadista dos EUA. Por volta de 1890, ele lançou um desafio ("A Charada de Boss") em sua coluna mensal na revista estadunidense Scientific American Supplement. Ofereceu mil dólares a quem o resolvesse, vaticinando que, segundo suas próprias palavras, a charada "levaria o mundo inteiro à loucura"[i].

Loyd sabia que, a partir dessa posição inicial, não era possível resolver o problema, embora, à primeira vista, a posição dos quadradinhos não mostrasse nenhuma diferença substancial com outras de peças embaralhadas. Havia ali algo que era impossível transpor. A essa relação impossível entre o Sujeito e o objeto, Lacan denominou fantasma fundamental e a escreveu como $ ◊ a. Essa fórmula designa a relação particular de um sujeito irredutivelmente dividido por sua entrada no universo dos significantes com o objeto pequeno a que constitui a causa inconsciente de seu desejo.

Nesses termos, cada um de nós seria como um jogo embaralhado de tal modo que não haveria solução. Assim como o 15-14, essa relação impossível não pode ser franqueada, mas pode ser contornada, nomeada e escrita. Como ninguém sabe de que modo veio embaralhado seu jogo, a análise consistiria em encontrar/construir/descobrir o 15-14 de cada um, o que só é possível contornando todas as impossibilidades da relação do sujeito com o objeto a em todas as suas variantes, isto é, jogando até chegar a essa conclusão. Por isso Lacan pensa no fantasma fundamental em relação ao fim da análise.

Diferentemente de Sam Lyod, o analista desconhece a fórmula que impede o paciente de definir a impossibilidade da solução do jogo, embora o paciente suponha que ele deva saber. Na proposta de Lacan, jogando juntos, paciente e analista podem encontrar/construir/descobrir o 15-14. Quer dizer que, no fim do jogo, não encontraremos a resolução do quebra-cabeça, mas uma das tantas fórmulas em que o jogo não se pode resolver. É um modo de dizer que a relação entre sujeito e objeto nunca se encaixa completamente, mas que quem perde o jogo ganha pela lógica da castração. Não se trata, portanto, de encontrar uma rocha infranqueável como em Freud, mas de percorrer as variantes da impossibilidade da junção entre $ e o objeto a que a fórmula da fantasia escreve.

Esse modo de tratar a fantasia induz a afirmar que ela não é puramente imaginária, como no modelo kleiniano, mas que também é feita de linguagem e resulta de articular o simbólico com o real. Por isso, nenhum dos elementos significantes da fantasia tem um sentido ou um significado unívoco, e o significado de seus elementos varia segundo a posição e a articulação. A análise consiste numa travessia da fantasia porque nela se percorrem todas as variantes possíveis, o que significa que ela só pode ser deduzida da repetição na transferência.

Se pensarmos, então, que o 15-14 de cada um sempre esteve ali, embora as peças estivessem embaralhadas e desconhecêssemos sua fórmula, poderíamos chegar à conclusão de que haveria um determinismo absoluto do Outro. Que liberdade restaria então a cada um de nós, uma vez que estamos presos à linguagem e a suas determinações? Só na ambiguidade e no equívoco podemos encontrar esse pouco de liberdade de que, como falantes, precisamos para transitar. Trata-se de dar aos significantes sua potência de criação de sentido, de recriar situações e de poder transformá-las. É assim que podemos passar a vida a jogar. A liberdade de que dispomos, então, está nos giros, nas rotações, nos deslizamentos que produzem movimentos e diferentes efeitos de significação. A criação consiste, pois, na ressignificação, já que o significante nunca reproduz situações, mas as recria e transforma.


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Percurso é uma revista semestral de psicanálise, editada em São Paulo pelo Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae desde 1988.
 
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