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Resumo
O presente trabalho parte da consideração de que, na contemporaneidade, houve uma quebra de paradigma no que tange à relação do humano com a tecnologia. Isso vem afetando especialmente crianças e adolescentes; com relação à primeira infância, identificam-se prejuízos no desenvolvimento, já pensados pela teoria psicanalítica. No entanto, os jogos eletrônicos de hoje, em especial os de “mundo aberto”, apresentam um grande espaço para a fantasia e a criação. De que modo estes jogos dialogam com o brincar da psicanálise?


Palavras-chave
brincar; jogos eletrônicos; tecnologia; infância e adolescência.


Autor(es)
Bruno Espósito
é psicanalista, aspirante a membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, especialista em Saúde Mental e Saúde Coletiva (Unicamp), psicólogo do Centro de Referência da Infância e da Adolescência (cria-Unifesp).


Notas

1.Y. Harari, Homo Deus.

2.J. C. Volnovich, El niño del "siglo del niño".

3.A. Jerusalinsky, "Homo Web: o fascínio da lógica eletrônica".

4.J. Jerusalinsky, "Que rede nos sustenta no balanço da web??- O sujeito na era das relações virtuais".

5.J. Jerusalinsky, op. cit.

6.B. Brazelton, Momentos decisivos do desenvolvimento infantil.

7.A. Gueller, "Droga de celular! Reflexões psicanalíticas sobre o uso de eletrônicos".

8.S. Freud, "Proyecto de psicología".

9.J. Jerusalinsky, "As crianças entre os laços familiares e as janelas virtuais".

10.    P. Sibilia, Redes ou paredes: a escola em tempos de dispersão.

11.    C. Calligaris, A adolescência.

12.    J. C. Volnovich, op. cit.

13.    P. Ariès, História social da criança e da família.

14.    A. Green, "Brincar e reflexão na obra de Donald Winnicott", apud L. Pires, O jogo analítico: questões técnicas na clínica com crianças, p. 109.

15.    T. Marks-Tarlow; M. Solomon; D. Siegel, Play and creativity in psychotherapy.

16.    S. Freud, "O escritor e a fantasia".

17.    S. Freud, op. cit., p. 327.

18.    S. Freud, "Além do princípio do prazer".

19.    L. Pires, O jogo analítico: questões técnicas na clínica com crianças.

20.    M. Klein, Amor, culpa e reparação, p. 163.

21.    Eis uma passagem que pode exemplificar esta observação: "Richard então falou longamente sobre uma ‘tragédia' ocorrida no dia anterior: enquanto brincava na areia perdera sua pá e não a encontrara mais. M. K. interpretou seu medo de perder o pênis (a pá) como consequência de seus desejos com relação a ela e à mãe". Cf. M. Klein, Narrativa da análise de uma criança, p. 37.

22.    G. Rodrigué, "El cajón de juguetes del niño y el ‘cajón' de fantasías del adulto".

23.    F. Dolto, A imagem inconsciente do corpo.

24.    A. Sigal, Escritos metapsicológicos e clínicos.

25.    W. Benjamin, Reflexões sobre a criança, o brinquedo e a educação, p. 92.

26.    Na clínica, observamos correntemente esta problemática em adolescentes sem limite, que por vezes se automutilam e tentam suicídio. Eles fazem pedidos concretos aos pais que são tomados ao pé da letra, como celulares, roupas, piercings, e estes pais desdobram-se para satisfazê-los materialmente, quando na realidade não se trata desse tipo de busca que o adolescente vislumbra. Cf. B. Esposito; L. Lima; A. Balaban; N. Rufino; R. Cassorla, "Suicídios".

27.    D. W. Winnicott, O brincar e a realidade.

28.    H. Telles, Antropologia e game studies: o giro cultural na abordagem sobre os jogos eletrônicos.

29.    W. Benjamin, op. cit.

30.    W. Benjamin, op. cit., p. 101.

31.    S. Freud, "Dostoiévski e o parricídio".

32.    D. W. Winnicott, op. cit.

33.    D. W. Winnicott, op. cit., p. 95.

34.    Segundo Rodrigué, a posição do analista com crianças é de uma "atenção lúdica" em vez da atenção flutuante. Cf. E. Rodrigué, "La interpretación lúdica: una actitud hacia el juego".

35.    A. Sigal, op. cit., p. 245.

36.    J. Baudrillard, Simulacros e simulação.

37.    R. Goldenberg, "Reflexões de um geek".

38.    C. Mendes, Jogos eletrônicos: diversão, poder e subjetivação, p. 11.

39.    J. C. Volnovich, op. cit.

40.    J. C. Volnovich, op. cit.



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Volnovich J. (1999). El niño del "siglo del niño". Buenos Aires: Lumen.

Winnicott D. (1975). O brincar e a realidade. Rio de Janeiro: Imago.





Abstract
This work considers the principle that in contemporary times there has been a break of paradigm due to relation between humans and technology. This has been affecting especially children and teenagers; in early childhood, there are development damages being identified, already thought by the psychoanalytical theory. However, the eletronic games from nowadays, especially those which are “open world”, shows a huge space for phantasy and creation. In what way this kind of games dialogues with playing from a psychoanalytical perspective?


Keywords
Keywords?playing; electronic games; technology; childhood and adolescence.

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 TEXTO

Considerações sobre o brincar na era da tecnologia e dos jogos eletrônicos

Considerations on playing in the age of technology and electronic games
Bruno Espósito

Introdução

Em nada surpreende afirmar que a relação entre o humano e os dispositivos tecnológicos vem transformando-se radicalmente nos últimos anos. Basta lembrar que, há duas ou três décadas, quando computadores e videogames começaram a se tornar acessíveis à população em geral, o impacto subjetivo deles era bastante limitado. Havia uma clara distinção entre sujeito e objeto e demarcação de tempo e espaço, os computadores serviam fundamentalmente para dar eficiência ao adulto trabalhador, substituindo a máquina de escrever e as tabelas escritas à mão, enquanto o videogame atendia a um momento de prazer sem maiores pretensões, como uma versão caseira dos fliperamas.

O cenário se transformou com o advento da internet, da inteligência artificial e da compactação desses aparatos tecnológicos. Pense no lugar que os smartphones podem ocupar em cada vida hoje: como veículo privilegiado de comunicação, mediador de relações amorosas em potencial, monitor permanente das funções vitais, professor de francês e armazenador praticamente infinito de memórias... Isto apenas para mencionar uma parcela dessa interação, que tende a aumentar progressivamente em função dos aplicativos (apps) que são sistematicamente criados e logo se estabelecem como imprescindíveis.

Dessa maneira, constitui-se uma experiência de mundo na qual deixamos de nos relacionar com a tecnologia para nos imbricarmos a ela. A demarcação sujeito-objeto se perde, por exemplo à medida que nossa memória humana, psíquica e neurológica se confunde com as memórias em nosso celular, ao alcance das mãos. Para Harari[i], nós humanos estaríamos nos convertendo em ciborgues?- tal como a ficção científica previu?- através da progressiva fusão do corpo orgânico com o tecnológico. Se o smartphone é hoje uma extensão do corpo, a tendência é que amanhã as tecnologias análogas como os microchips penetrem e habitem definitivamente o corpo, alterando a experiência de si de modo absoluto.

Este novo modo de subjetivação vem suscitando entusiasmos, críticas e reflexões em diferentes campos do conhecimento, mas no que concerne à infância e à juventude, ganha especial atenção. O uso que as crianças e os adolescentes fazem da tecnologia demanda posicionamentos por parte de pais, cuidadores, educadores, profissionais da saúde e, cada vez mais, aos psicanalistas que se veem frente às queixas e pedidos de orientação por parte das famílias ou mesmo das escolas dos pequenos pacientes.

Tem sido comum perceber os adultos envolvidos nesses cuidados bastante inseguros diante de suas ambivalências, que resumidamente giram em torno dos aspectos saudáveis ou patológicos que o uso tecnológico pode acarretar e dos efeitos que liberar ou cercear o uso produziriam. Vale ressaltar que a própria posição do adulto é enviesada, pois a desvantagem de conhecimento e desenvoltura deste sobre esses novos objetos é inegável frente a essa nova geração que nasce já imersa neles[ii]; os pais e profissionais podem invejar os mais novos, supondo-os capazes de um manejo genial dos aparatos tecnológicos[iii], ou podem tentar cerceá-los de seu uso sendo que eles próprios se veem capturados por essas mesmas tecnologias. Recentemente, um pequeno paciente foi um analisador muito hábil dessa dinâmica, quando queixou-se: "minha mãe que devia ficar de castigo! Ela quer tirar meu tablet, mas fica o dia inteiro mexendo no celular!", fato, aliás, que já havia me chamado muito a atenção nas entrevistas iniciais com a família.

 

Pesquisando a infância e juventude da era cibernética

Pouco a pouco, tem sido possível acompanhar os primeiros desdobramentos destas novas modalidades tecnológicas sobre o desenvolvimento infantil, seja através da clínica psicanalítica, de outros campos do conhecimento ou mesmo da observação da vida cotidiana desta geração. Os primeiros efeitos incidem já nos pais diante de seus bebês e crianças pequenas: a tecnologia tornou-se um outro tão grandioso para os próprios pais, que os faz perguntar em primeiro lugar ao Google a respeito de qualquer manifestação inusual ou desconhecida do filho. Como aponta Jerusalinsky[iv], essa ferramenta da internet autocompleta as perguntas que vão sendo digitadas, de modo a sugerir uma significação desencarnada da relação já de antemão, como "meu filho tem... hiperatividade"; em geral, aliás, essas significações autocompletadas referem-se a patologias.

Frequentemente destituídos do tempo necessário para aprender com a experiência na relação com o próprio filho ou de colocar em trabalho as próprias experiências infantis para afinal repeti-las ou transformá-las, estes pais recorrem a respostas que emergem muito rapidamente pela internet, em geral respaldadas pela ciência e medicina. Com isso, anulam a interrogação[v] inerente e necessária a uma relação de pais e filhos?- tempo de suspensão que permite o estabelecimento de novos sentidos e que dá a própria legitimidade dos lugares paterno e materno, através da experiência. Brazelton, pediatra de enorme bagagem clínica, não cansa de dizer que o bebê nos ensina muito logo nas primeiras semanas sobre suas necessidades, diferentes tipos de mal-estares e sobre aquilo de que necessita para se sentir acolhido[vi]. Para isso, é necessário sustentar algumas interrogações e estar disponível para uma experiência encarnada.

Em uma cultura altamente narcísica que se veicula pelo Facebook (livro dos rostos) e Instagram (gramática dos instantes), busca-se na imagem dos filhos a versão mais bem produzida de si próprio. Vislumbrando a fotografia perfeita, esta cultura, através dos familiares, supõe que a vida do bebê ou criança deva ser o mais satisfatória, prazerosa e tão próxima da perfeição quanto o possível. Para tanto, evitam a qualquer custo deixar sua cria diante da insatisfação, da frustração e do tédio. O próprio avanço tecnológico corrobora esse ideal, à medida que tem diminuído drasticamente o intervalo entre a busca e o resultado, a demanda e sua realização. Através da tecnologia, estaríamos regredindo em vez de amadurecer[vii], esperando mais e mais dela, especialmente no que diz respeito ao estreitamento do tempo de tédio rumo à satisfação.

Considerando, com Freud[viii], que a origem do psiquismo se dá justamente na latência entre a necessidade e a satisfação, através da alucinação do seio, e que todo o desenvolvimento infantil é atravessado pela aceitação da impossibilidade de se realizar tudo que se deseja, o ideal de satisfação integral e o protagonismo da tecnologia hoje em crianças muito pequenas pode cobrar um preço alto em termos da maturidade necessária para lidar com as frustrações inerentes à vida. Daí porque muitos especialistas hoje se preocupam com a exposição precoce a celulares e tablets, por exemplo, nos momentos da alimentação, do preparo para dormir, ou simplesmente de tédio.

Ainda no que concerne à primeira infância, reside a problemática dos joguinhos e aplicativos denominados como "educativos". Com esse pretexto, os pais autorizam sua utilização em larga escala, o que acaba por substituir muitos momentos de interação subjetiva. Repare como a repetitividade dos sons e as vozes de comando de características robóticas são irritantes para quem está ao redor, e mesmo assim os cuidadores demonstram bastante dificuldade em dizer "não" ou "basta!". A influência desses apps tem levado à clínica crianças muito pequenas com suspeita de autismo[ix], por conta de certos movimentos estereotipados e falas repetitivas com uma tonalidade peculiar?- dissociada do contexto, robótica, importada diretamente dos personagens desses jogos. São casos que tendem a evoluir rapidamente, visto que não se trata de autismos de fato, através de intervenções no sentido de um convite à interação humana e de ajustes na rotina (função paterna). Em todo caso, são situações que ilustram bem o preço de se supor prescindível o outro humano nos primórdios da constituição psíquica do infans, substituindo-o em vários momentos pelos aparatos tecnológicos.

No que diz respeito às crianças mais velhas e adolescentes, além dos jogos eletrônicos dos quais falaremos um pouco adiante, destaca-se também um tipo de relação apaixonada e muito complexa com o YouTube. Ao contrário da primeira infância, onde os aspectos negativos da tecnologia se fazem mais claros, aqui o terreno é incerto. Por um lado, estas crianças e jovens são capazes de passar horas na posição de espectador, influenciados também pelo dispositivo de "reprodução automática" que conecta um vídeo ao próximo condizente com o interesse daquele a que assiste, através de um cálculo realizado por algoritmos. A entrada sucessiva de estímulos conceituais, visuais e sonoros sem que haja uma via de participação ativa e descarga motora pode provocar situações bizarras como a que observei recentemente: em um restaurante, um pré-adolescente assistia a vídeos de seu interesse no YouTube, autorizado pela família que aproveitava o fato de os menores não estarem demandando-os para conversar entre os adultos. Embora não houvesse qualquer conotação sexual ou inadequada nos vídeos, com o passar do tempo o menino gargalhava sozinho e, enfim, esfregava seu órgão sexual vigorosamente sobre sua bermuda, em uma clara tentativa de livrar-se da excitação que tamanha estimulação sensorial havia lhe provocado.

Por outro lado, o alcance exploratório que o YouTube tem proporcionado a esses sujeitos é absolutamente digno de nota, permitindo-lhes um desenvolvimento cognitivo que passa ao largo da escola?- suas pesquisas se dão por uma via mais próxima do desejo e não do caráter disciplinatório de que o espaço escolar é herdeiro, de modo que essas novas modalidades de aquisição do conhecimento vão tensionando com a escola, que se vê em um momento de crise[x]. Vejo na clínica crianças e adolescentes de diferentes modos de organização psíquica pesquisando aparentes futilidades mas também assuntos relacionados a geografia, história, biologia, física, entre outras disciplinas; de alguma maneira, se veem forçados também a aprimorar o inglês, para acompanhar o conteúdo produzido na principal língua da internet.

Muitos desses jovens não só assistem, mas também criam vídeos que circulam pela rede. É inegável que isso os auxilia, por exemplo, a trabalhar habilidades de comunicação e aprimorar o uso das ferramentas audiovisuais. Mais do que isso, quando criam seus próprios conteúdos esses meninos e meninas podem ser sujeitos: põem seus desejos a trabalhar e sentem-se realizando algo que alcança um certo pertencimento social. Lembrando que o mal-estar na adolescência reside em grande parte no não reconhecimento e deslegitimação que sofrem, por não serem mais crianças nem tampouco adultos, habitando um limbo desconfortável que os impede tanto de serem tutelados como de serem protagonistas[xi].

Vale destacar que, se a tecnologia na primeira infância pode criar subjetividades pseudoautísticas, a experiência clínica vem mostrando que ela pode, em contrapartida, auxiliar crianças mais velhas e adolescentes com características autísticas e psicóticas a se organizar psiquicamente e na relação. Na prática institucional e do consultório, temos observado pacientes que, seja de forma espontânea ou apoiada na relação transferencial, vão utilizando seus próprios vídeos ou recursos de variados aplicativos para dar significação à sua experiência subjetiva e mediar sua relação com o mundo. Um adolescente que atendo, autista quando criança e que evoluiu para um funcionamento psicótico e com dificuldades na comunicação verbal, começou a fazer videoclipes com músicas de rock pesado ao fundo, nos quais performava uma catarse raivosa que estava inibida em seu cotidiano; com o tempo, seus vídeos foram se sofisticando: começou a entrecortar falas provocativas (bullyings) que sofria na escola com possíveis respostas que ele imaginava. Hoje, seus vídeos são muito variados e falam de histórias de humor, superação e motivação, e sua capacidade de interação social, para além da tecnologia, aumentou muito.

 

O brincar e o jogar

Tendo situado, mesmo que brevemente, alguns aspectos importantes da infância e adolescência ciborgue[xii], considero necessário situar minimamente nossa compreensão acerca do brincar pois, como veremos, certas concepções podem nos dar pistas de como compreender os efeitos subjetivos de diferentes tipos de jogos eletrônicos nos quais estas crianças e jovens estão imersos.

Embora a infância no mundo ocidental sequer fosse considerada na sua particularidade até, pelo menos, a idade moderna[xiii], o brincar se impõe como uma experiência humana universal, sendo um recurso amplamente utilizado pelos menores, mesmo que os adultos não lhes imponham a necessidade de brincar nem lhes ofertem brinquedos para tanto. Segundo Green, "não há cultura sem o brincar, não há período da história do qual o brincar esteja ausente"[xiv].

A brincadeira, em formas rudimentares, se faz presente em boa parte dos mamíferos; a psicologia evolucionista supõe que ela atende às necessidades cerebrais de se adaptar?- através da flexibilidade que o brincar proporciona?- a mudanças ambientais que invariavelmente se apresentam ao longo da vida[xv]. Porém, é nos humanos que o brincar se enriquece e se complexifica de maneira decisiva, especialmente pela capacidade imaginativa que ele ganha.

Em "O escritor e a fantasia"[xvi], Freud postula que o período da infância é o berço da criatividade. Afirma: "toda criança, ao brincar, se comporta como um criador literário, pois constrói para si um mundo próprio, ou, mais exatamente, arranja as coisas de seu mundo numa ordem nova"[xvii]. A capacidade interna do adulto de fantasiar (imprescindível para a saúde psíquica) seria um desdobramento do brincar infantil, sem a necessidade da materialidade dos brinquedos e sem nunca perder a capacidade de discriminar a realidade imaginativa da realidade externa, compartilhada, capacidade que a própria criança tampouco perde.

Freud, dessa maneira, detectava a importância do brincar como um recurso psíquico que é base para transformar os percalços e frustrações inerentes à vida em algo mais palatável, dentro de uma representação criativa, lúdica, bem humorada. O jogo do Fort-Da[xviii], trazido à tona por Freud a partir da observação de seu neto muito pequeno, representa talvez uma brincadeira inaugural na qual o infans, diante de um afastamento físico para com sua mãe com o qual não estava ainda acostumado, substitui-a por um objeto (carretel), arremessando e trazendo-a de volta de acordo com seu desejo, portanto transformando uma vivência passiva (abandono materno temporário) em ativa (por ele controlada em seu jogo). Por fim, Freud, em sua experiência de análise indireta com Hans, começa a discutir algo da técnica analítica com crianças, à medida que constata que o menino expressava-se muito melhor através da brincadeira do que pela palavra[xix]. Desse modo, fazia frente ao pai de Hans, que tendia a racionalizar e manter no verbal as ansiedades do filho, sem vislumbrar os aspectos terapêuticos da brincadeira.

Foi Melanie Klein a primeira responsável pelo desenvolvimento de uma técnica analítica de crianças propriamente dita, na qual o brincar desempenhava papel fundamental. A adaptação da técnica de adultos levaria em conta a necessidade de encontrar "recursos técnicos adaptados à mente da criança"[xx], sem subverter os princípios básicos de uma psicanálise. Para Klein, a brincadeira, na criança, representa uma valiosa via de acesso ao inconsciente, por isso estabeleceu seu paralelo tanto com a associação livre quanto com o sonho nos adultos.

Klein alertava para que o analista se utilizasse das palavras e gestos do próprio paciente e que não tomasse o simbolismo da brincadeira de forma definitiva, limitando seu sentido, mas pensando-a a partir das associações que com ela se estabelecem, tal como se trabalha um sonho em análise. No entanto, muitas passagens clínicas em seus textos mostram, ao contrário, traduções um tanto diretas das brincadeiras (e dos brinquedos em mãos) de seus pequenos pacientes, fundamentalmente para o sexual-edípico[xxi]; interpretações, aliás, que costumavam ser imediatamente rebatidas pelos pacientes.

Voltando, todo o setting analítico de crianças tem a contribuição decisiva e proveitosa de Melanie Klein. Com ela, podemos por exemplo pensar desde a não estruturação dos brinquedos em análise, para favorecer a projeção dos pacientes, até os paralelos possíveis entre a caixa lúdica e o mundo interno da criança[xxii], bem como toda a possibilidade de manejar o material não verbal que se sobressai na análise infantil.

Em seu trabalho clínico com crianças, Françoise Dolto pensa o setting também a partir de elementos não estruturados. Para ela, papéis, cores variadas e massinhas de modelar oferecem ao pequeno paciente um ótimo meio expressivo para o conteúdo fantasmático do inconsciente. Ao menos em "A imagem inconsciente do corpo"[xxiii], Dolto faz uma consideração técnica sobre o lugar do analista que chama a atenção: ele não deveria brincar com a criança, de modo a não misturar seus próprios fantasmas com os dela.

Dolto fala da importância de estar minimamente informado daquilo que se passa com a criança, através de seus familiares, da atualidade e da história desse paciente, além de escutar cuidadosamente o relato da criança sobre suas próprias produções, trabalho que dá vida aos diferentes conteúdos expressos, subsidiando a compreensão das fantasias inconscientes. Nesse sentido, novamente, se privilegia um entendimento através das associações, das articulações que cada significante faz com o próximo, e não a busca de um valor simbólico em si, seja em um desenho ou um brinquedo[xxiv].

Aqui vale, aliás, uma consideração sobre o brinquedo propriamente dito, tanto em análise quanto na vida cotidiana. Walter Benjamin, um pensador renomado que soube manter um olhar vívido para o infantil, pareceu uma vez profetizar uma realidade que atinge seu ápice nos dias de hoje. Disse ele, em 1928, que "uma emancipação do brinquedo põe-se a caminho: quanto mais a industrialização avança, tanto mais decididamente o brinquedo se subtrai ao controle da família, tornando-se cada vez mais estranho não só às crianças, mas também aos pais"[xxv]. Os brinquedos vêm, cada vez mais, como um produto já acabado?- sem a maleabilidade que possibilitaria à criança localizá-lo em sua própria realidade?- e visam ser o mais perfeito possível, o mais próximo do real?- portanto distantes do que a fantasia do brincante poderia projetar neles. Da mesma maneira, quase não se transmitem mais brinquedos "de pais para filhos", que poderiam fazer um elo geracional entre o infantil de um e de outro. Por mais perfeitos e desenvolvidos que eles se pareçam hoje em dia, paradoxalmente, os brinquedos quebram e perdem seu sentido muito facilmente, favorecendo uma lógica efêmera e des-historicizada.

Fazer de conta, através do brincar, é um recurso e uma necessidade psíquica que se dá naturalmente na infância, no entanto o mundo adulto, subsidiado pela industrialização e o mercado voltado à infância dos dias de hoje, insiste no contrário. Se uma criança não tem brinquedo algum, ela o criará com o material que dispuser ao seu alcance e obterá grande satisfação com ele, mas busca-se?- e cada vez mais?- dar a ela o brinquedo acabado, com um sentido já dado. O consumismo de hoje tenta bloquear o deslizamento de significantes, torna tudo mais literal: "eu quero o Batman!" só se resolveria com um adulto presenteando essa criança com o Batman, e não eventualmente com um outro objeto qualquer que pode ser imaginado como Batman por ela[xxvi]. Em outras palavras, os adultos dão a ênfase no que o brinquedo concreto vai produzir no mundo interno do infans, e não nas capacidades dele próprio de construir realidades imaginadas e obter prazer nisso.

Após uma breve digressão, é imprescindível mencionar D. W. Winnicott por suas contribuições gigantescas acerca do brincar, contribuições estas que extrapolam o setting da análise infantil. Mais do que perseguir algum sentido estrito da brincadeira, Winnicott se dedica a pensar sua função na economia psíquica de cada um e no próprio desenvolvimento emocional. Brincar é fundamental e cabe ao ambiente garantir as condições para que ele aconteça; sua importância se dá tanto pelos aspectos autocurativos que desempenha, sendo uma terapia em si mesmo, como um recurso qualitativo para a relação e a comunicação[xxvii].

O brinquedo e o brincar, para Winnicott, habitam uma área intermediária na qual se vivencia todo o prazer e tensão de pôr em objeto uma realidade interna e ao mesmo tempo suportar sua permeabilidade ao outro, que se aproxima, mexe no brinquedo e participa da brincadeira com sua própria subjetividade. Esse vai e vem, próprio da zona de transicionalidade, vai pouco a pouco possibilitando que a criança saia de um mundo fusional e narcísico, e possa habitar a realidade compartilhada, ou o mundo tal como ele é. Nessa linha, o "brincar junto" em análise é parte integrante e legitimada do processo, de modo que Winnicott não faz objeção à participação do analista na cena lúdica de seu paciente, no momento adequado.

Antes de passar adiante, considero importante estabelecer uma certa distinção entre brincar e jogar, e nesse aspecto pode-se dizer que a língua portuguesa tem uma certa vantagem ao dispor dessas duas palavras diferentes. No caso, por exemplo, do espanhol (jugar), do inglês (to play) e do próprio alemão (spielen), trata-se de uma palavra só e os teóricos buscam nelas um duplo sentido, para que possam desmembrar as experiências da brincadeira e do jogo. No grego, nossa raiz cultural-linguística, estão presentes as duas ideias discriminadas, de paideia (brincadeira livre, descompromissada) e ludus (objetivos e regras precisas)[xxviii].

Valho-me novamente de Benjamin, que, já influenciado pelos textos de Freud, estabelece a diferença da seguinte maneira: enquanto a brincadeira tem uma função imaginativa, criativa, é da ordem do "como se", o jogo tem um caráter de hábito, de repetição, é da ordem do "fazer de novo"[xxix]. O brincar tende a ser mais autêntico, emana do próprio ser, enquanto o jogar tende a ser mais imitativo e pode ser o objeto de uma compulsão, na qual o sujeito reinicia o jogo sempre "só mais uma vez", com a ideia de que "nessa última vez vai dar tudo certo": "toda a perfeição talvez se aplainasse, se uma segunda chance nos restasse", Benjamin parafraseia Goethe[xxx].

É difícil imaginar contraindicações para um brincar criativo, na infância, exceto se ele se dissociasse completamente da realidade compartilhada; o jogo, no entanto, pode se prestar à compulsão à repetição de tal forma que, pensando ser um sujeito de escolha, o jogador na realidade está submetido a um mandato de gozo, de aspecto masturbatório. Em "Dostoiévski e o parricídio"[xxxi], Freud examina a relação do célebre escritor com o jogo, que repetia um padrão de jogar insaciavelmente, perder tudo e em seguida ser lançado numa intensa vivência de culpabilidade, que só então o tornava produtivo no seu trabalho.

A submissão, segundo Winnicott, é a base doentia para a vida[xxxii], ao passo que "é através da percepção criativa, mais do que qualquer outra coisa, que o indivíduo sente que a vida é digna de ser vivida"[xxxiii]. No limite, eis o contraste que pode acontecer entre o brincar, na sua dimensão criativa do faz de conta, e o jogar, quando recai em um padrão compulsivo. No setting analítico, aliás, enquanto o brincar é reconhecido como recurso principal de escuta[xxxiv] e intervenção, os jogos de regras são vistos muitas vezes com ressalvas, pois podem transformar a sessão "em um espaço pedagógico e resistencial"[xxxv].

 

Os jogos eletrônicos de hoje

Dentro do avanço inquestionável do uso da tecnologia no mundo contemporâneo, especialmente entre crianças e adolescentes, cabe destacar o papel que ocupam hoje os jogos eletrônicos, seja pela via dos videogames ou dos próprios computadores. Os jogos se desenvolveram largamente em termos gráficos, alcançando um patamar de hiper-realidade[xxxvi], em termos de interconectividade, graças à rapidez da internet hoje, e quanto à complexidade do conteúdo propriamente dito.

É digno de nota que, cada vez mais, o sujeito é envolvido pelo jogo?- literalmente, aliás. A aparelhagem de som e de jogabilidade vai ganhando espaço no "setting do jogo", recobrindo o corpo desses jovens (ciborgues!) que, capturados nessa dinâmica, deixam de estar em outros lugares para estar ali, provocando queixas paradoxais nos familiares. Por um lado, indignam-se que os filhos não comparecem à mesa de jantar e aparentam estar "adictos", por outro, parece-lhes espantoso e admirável que quando adolescentes não se alcoolizam ou fumam, não se envolvem em confusões e acidentes. Alguns apresentam dificuldades escolares e em relacionar-se amorosamente; outros, nem um pouco, pondo assim em xeque alguns possíveis questionamentos das famílias e até parâmetros de análise?- afinal de contas, o sujeito de certo modo estaria sendo capaz de amar e trabalhar.

A clínica psicanalítica da infância e da adolescência é hoje absolutamente atravessada pelos jogos eletrônicos, podendo emergir como queixa dos pais, como tema preponderante no discurso do paciente ou até na concretude do fenômeno, na medida em que muitos trazem seus celulares para a sessão e procuram nos mostrar gameplays, que são cenas de jogos filmados e divulgados no YouTube; isso quando esses pacientes não se propõem literalmente a jogar dentro do setting, situação cada vez mais comum que convoca um analista a um posicionamento?- barrar, filtrar, acolher??-, manejo que certamente precisa ser pensado caso a caso.

Definitivamente, os games vêm mudando a relação dos jovens entre si, perante os pais e a própria forma de experienciar o mundo.

Em uma revisão de literatura, verifico que os psicanalistas vêm se aproximando ainda timidamente da problemática dos jogos eletrônicos, se tomarmos em consideração o quanto isso ocupa a vida dessas crianças e adolescentes. Alguns, a meu ver, precipitam-se ao afirmar que se trata tão somente de uma alienação da realidade, como se o jogo servisse de um subterfúgio a encarar a vida de fato; quanto a isso, vale pensar como Goldenberg[xxxvii], que os analistas podem ser tão conservadores quanto qualquer um, haja vista a rejeição que havia às análises via Skype ou FaceTime; hoje, diversos analistas as incorporaram como uma modalidade possível de atendimento.

Pesquisadores ligados à educação, comunicação, filosofia e antropologia têm se dedicado mais ao tema, algumas vezes, em contraposição, apresentando um otimismo que parece descabido, como pode-se verificar na seguinte afirmação: "com as máquinas de base silícica, temos a alternativa de tornar o humano, deficiente, em vários aspectos, mais eficiente e mais feliz [...] os jogos eletrônicos fazem parte desse universo silícico e de suas ficções"[xxxviii]. O debate certamente pode ganhar vigor com algumas especificidades que o olhar psicanalítico traz: uma certa concepção do funcionamento do inconsciente, dos processos de desenvolvimento emocional, dos lugares que podem ocupar a sexualidade, a agressividade e a morte no psiquismo, e sobretudo uma leitura instrumentalizada das diferentes formas de brincar do sujeito.

O ponto que cabe discutir aqui, possivelmente, é que há jogos e jogos, além, é claro, de certos limites básicos que os familiares devem se autorizar a pôr em prática?- como discutimos, sustentar limites e frustrar são dificuldades marcadas na contemporaneidade.

Com efeito, no cenário atual, alguns jogos são puro ludus: muito estritos em termos de regras e objetivos, não permitem ao jovem nada além de responder com o máximo de êxito e eficiência dentro de uma proposta dada. Não parecem acrescentar em termos de suporte para o brincar, no sentido de um arranjamento da fantasmática inconsciente, tal como um brinquedo não estruturado auxilia a fazer. Funcionam meramente como uma prática de repetição e aperfeiçoamento, e se usados pontualmente divertem e distensionam; em contraposição, se não há ponto de basta, incrementam a ansiedade, em uma dinâmica de compulsão. À guisa de ilustração, são versões altamente evoluídas de jogos conhecidos por nós adultos, como o Tetris ou o PacMan.

Alguns outros jogos são também prioritariamente ludus, mas com ênfase absoluta no jogo coletivo, denominado multiplayer. Às vezes são desconhecidos que se juntam para jogar aleatoriamente, mas em geral são amigos de escola, vizinhos, que passam a se relacionar muito através do próprio jogo. Psiquicamente, parecem cumprir uma função quiçá semelhante com a de um esporte coletivo (com o prejuízo do corpo que se mantém praticamente inerte), pois exigem trabalho em equipe, comunicação e conhecimento do adversário. São jogos altamente aditivos, como o Fortnite, sensação atual entre crianças e adolescentes. Pertencem a um campo novo, denominado de e-Sports (esportes eletrônicos), que movimentam campeonatos nacionais e internacionais, patrocínios, prestígio e bastante dinheiro?- um lugar bastante idealizado que esses jogadores tentam alcançar, da mesma maneira como, nessa geração, é recorrente o desejo de se tornar um YouTuber consagrado.

A inteligência artificial, nos últimos anos, permitiu a ascensão de uma nova classe de jogos eletrônicos, denominados de mundo aberto. Trata-se de uma proposta sem objetivo determinado, ou com um objetivo bastante vago, como explorar ou sobreviver. Não há qualquer roteiro de como fazer para alcançar isso, o jogador não se vê amarrado a nenhuma regra ou técnica estrita. O personagem que se escolhe para jogar praticamente não vem carregado de atributos: está para ser vestido, armado ou adereçado como bem se quiser ou puder. Os mapas sobre os quais se transita nesses games são praticamente infinitos?- quando o jogador se aproxima da borda automaticamente o terreno se amplia de uma forma complexa, pelo trabalho de algoritmos.

Os jogos de mundo aberto podem ser situados na era dos dinossauros, em civilizações pré-colombianas ou em um sistema interplanetário colonizado por seres humanos e extraterrestres. Mas, à medida que os jogadores vão construindo seus percursos livremente, a realidade compartilhada do jogo, em certa medida, vai se transformando. Não são os jovens que se adequam ao jogo, e sim o contrário.

Até recentemente, o jogo Minecraft foi uma febre absoluta entre crianças e adolescentes. Sua produção, em termos gráficos, era absolutamente tosca, o que não incomodava em absoluto seus apreciadores?- poderíamos dizer, quiçá, que justamente essa característica tornava Minecraft mais instigante, como uma espécie de resistência de um onirismo, da abertura ao absurdo, frente ao hiper-realismo desta geração de jogos que replicam a realidade mundana de modo excessivamente perfeito. Fato é que as possibilidades criativas do jogo eram tamanhas que, certamente, superaram qualquer expectativa de seus criadores, com mundos fantásticos criados pelos jogadores.

Ao escutar crianças e jovens envolvidos nessas tecnologias, pergunto-me se em alguma medida os jogos de mundo aberto não estariam representando, dentro do universo dos games, algo equivalente ao que o brincar representa na vida subjetiva e em análise: um espaço para ativamente fazer suas fantasias inconscientes trabalharem, criando "novos mundos" interessantes de serem imaginados e experimentados. Vida, morte, sexualidade, relações de poder e dominação, alianças e traições, o conhecido e o estranho... Até certo ponto, estes temas tão cruciais na fantasmática inconsciente podem ser moldados com grande flexibilidade nessa categoria específica de jogos.

Pesando na balança, não seria este um caminho interessante que essa geração busca, através desses "mundos abertos", para fazer frente aos jogos e brinquedos tão imaleáveis que a indústria tenta empurrar incessantemente, como modalidades de diversão que "se exibem" em um espetáculo visual ultrassofisticado e que tentam manter o jovem na posição de espectador e dependente? Essas crianças e adolescentes não estariam buscando algum meio de atividade e protagonismo, de espaços para o fantasiar criativo, frente ao endurecimento e submetimento que parte importante da indústria tecnológica produz? Em suma, seriam os jogos de mundo aberto da ordem da paideia, propiciando um certo campo livre à expressão de afetos variados, sem censurá-los de antemão?

Se considerarmos, pelo menos em parte, essas questões afirmativamente, isso absolutamente não significa incentivar ou "prescrever" certos tipos de jogos, de maneira ingênua e irrefletida; mas trata-se sim de abrir uma dimensão de escuta do que há de novo e do que há do mesmo nesse contexto relativo aos jogos, tecnologias, infância e adolescência. Parece necessário examinar, no caso a caso, o que há do brincar, enquanto atividade necessária e fundamental à vida psíquica saudável e criativa, e o que há de estereotipia, imitação, alienação ou mesmo compulsão.

Gostaria de concluir com Juan Carlos Volnovich, psicanalista argentino de ricas produções, que se preocupou em refletir sobre o impacto da cibernética na subjetividade infantojuvenil e em suas respectivas análises, na época em que a rede ainda começava a dar indícios da força em que movimentaria o mundo. Em um primeiro texto, de 1996[xxxix], Volnovich alertava sobre os riscos que o excesso de estímulo e informação capturável pela internet poderia ter sobre as crianças, um estrago possivelmente do mesmo tamanho daquele que a psicanálise, quase cem anos antes, já havia constatado que segredos e mentiras produziam. A curiosidade, que se baliza pelo ponto que se está da sexualidade infantil, seria violada pelo acesso democrático à internet, de modo que a criança?- por ser vista na rede como um ciborgue, sem corpo nem história?- fica exposta a um espetáculo violento não mediado.

Em um segundo e um terceiro texto sobre o tema[xl], pouco tempo depois, embora também alerte para riscos que a internet promove (exposição, adição, protoautismos, etc.), Volnovich pondera que o infans tem seus recursos para buscar o que atende a sua curiosidade específica na rede, descartando o que é impertinente por lhe ser incompreensível; desse modo, poderíamos dizer, ele não só é objeto da tecnologia mas também sujeito que busca nela avançar em certas explorações condizentes com as fantasias que o habitam naquele momento. Por fim, o autor propõe que, nesse campo de exploração (e de ser explorado) na internet, inscreve-se um texto até certo ponto diferente dos anteriores no inconsciente da criança, um texto mais ciborgue, oriundo dessa imbricação entre crianças, redes e máquinas?- não sem corpo e sem história, mas um outro corpo e outra história. Cabe a nós, na posição de analistas, saber ler portanto o que há de novo nessa subjetividade e o que pode perdurar, por exemplo, acrescento eu, do brincar e dos demais "universais" que constituem a subjetividade humana e acabam se recolocando, de uma forma ou de outra, nos diversos momentos históricos.


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Percurso é uma revista semestral de psicanálise, editada em São Paulo pelo Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae desde 1988.
 
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