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Resumo
É possível fazer psicanálise em instituição pública de saúde? Pode a análise operar num psiquismo gravemente comprometido num contexto de Unidade Básica? Este artigo tenta responder a essas e outras perguntas. Refere-se ao tratamento de um paciente portador de um psiquismo dilacerado que bateu em diversas portas institucionais, sem sucesso, e que, no tratamento psicanalítico, deixou a dependência de psicotrópicos e obteve a “cura” desejada. Este caso clínico foi apresentado no processo de admissão ao Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae.


Palavras-chave
psicanálise; instituição pública de saúde; transferência; sexualidade; vínculo.


Autor(es)
Vilma Florêncio da Silva
é psicóloga e psicanalista, membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, auxiliar de direção da UBS Lauzane Paulista.


Notas

1 S. André (1998), O que quer uma mulher?, p. 19.

2 S. André, op. cit. p. 23.

3 J. McDougall (1983), Em defesa de uma certa anormalidade: teoria e clínica psicanalítica, p. 9.

4 J. Laplanche (1980), Problemáticas I – A angústia, p. 251.

5 J. McDougall, op. cit., p. 177.

6 R. Zygouris (2002), O vínculo inédito, p. 18.

7 R. Zygouris, op. cit., p. 32.

8 R. Zygouris, op. cit., p. 62.



Referências bibliográficas

André S. (1998). O que quer uma mulher? Rio de Janeiro: Jorge Zahar.

Bokanowski T. (2000). Sándor Ferenczi. São Paulo: Via Lettera.

Ferraz F. C. (2000). Perversão. São Paulo: Casa do Psicólogo (Coleção Clínica Psicanalítica). Freud S. (1900/1980). A interpretação dos sonhos. In: Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, vol. iv.

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_____. (1918/1914/1980) História de uma neurose infantil. In: Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, vol. xvii.

_____.(1919/1980) “Uma criança é espancada”: uma contribuição ao estudo da origem das perversões sexuais. In: Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, vol. xvii.

_____. (1927/1980) Fetichismo. In: Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, vol. xxi.

_____. (1937/1980) Análise terminável e interminável. In: Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, vol. xxiii.

Heimann P. (1982). Notas sobre a teoria dos instintos de vida e de morte. In: Os progressos da psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar.

Laplanche J. (1987). Problemáticas I – A angústia. São Paulo: Martins Fontes.

McDougall J. (1983). Em defesa de uma certa anormalidade: teoria e clínica psicanalítica. Porto Alegre: Artes Médicas.

Uchitel M. (1997). Além dos limites da interpretação: indagações sobre a técnica psicanalítica. São Paulo: Casa do Psicólogo.

Zygouris R. (2002). O vínculo inédito. São Paulo: Escuta (Coleção Ensaios).





Abstract
Is it possible to practice psychoanalysis in a public health institution? Can psychoanalysis treat a heavy clinic case in an institutional context? This paper, presented as one of the requests to admission in the Department of Psychoanalysis of the Instituto Sedes Sapientiae, explores these questions. It deals with the treatment of a patient presenting a torn-up psyche; after unsuccessfully knocking at the gates of several institutions doors, he found in his analyisis a way to include himself in the world. The medicines he had taken for years became unnecessary, and he arrived to what may be called “psychical health”


Keywords
psychoanalysis; public health institutions; transference; sexuality; link.

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 TEXTO

O homem das feras

um processo analítico realizado numa instituição pública de saúde


The wild-beasts man
Vilma Florêncio da Silva

Este artigo pretende demonstrar como é possível fazer psicanálise em Saúde Pública. O texto se atém, primordialmente, ao caso clínico e suas vicissitudes, com começo, meio e fim. Nesta experiência, pude provar, sobretudo para mim, a importância da psicanálise como método de tratamento e transformação da vida de um sujeito.

Introdução

E. iniciou o tratamento depois que uma doença o acometera: um intenso mal-estar. Tinha ficado na cama, enfraquecido, não se alimentava porque sentia dores no estômago, emagrecendo muito. Começou a imaginar que tinha câncer e Aids e que, portanto, iria morrer. Queixa-se, nessa ocasião, de que sua mãe teria se recusado a cuidar dele, desacreditando da gravidade de suas queixas. Sentiu-se decepcionado com quem, até então, era a melhor mulher do mundo.

A morte do pai teria sido causada por alcoolismo, embora houvesse especulações em torno dos motivos da morte.

E. não foi ao velório, nem ao enterro, não viu o pai morto, não chorou. Sentia raiva do pai porque, durante toda a vida, teria feito sua mãe sofrer.

Algum tempo depois da morte do pai, um parente faleceu em decorrência de Aids. Poucos meses antes de morrer, fizeralhe uma visita, logo após a qual E. desenvolveu uma forte fantasia fóbica de ter sido contaminado pelo vírus hiv.

E. sofria pela ideia de estar com câncer também. Depois de inumeráveis consultas médicas, foi diagnosticada uma gastrite. Se, por um lado, E. ficou tranquilo com a certeza de ter uma doença curável, por outro, a mágoa em relação à mãe permanecia, bem como continuou atormentado pela ideia de ter câncer e Aids. Além do mais, descobriu uma espécie de descamação na pele de uma região do corpo, fortemente erotizada, que para ele confirmava a Aids. Notou que estava perdendo a acuidade visual e percebeu algumas “bolinhas” no tecido conjuntivo dos olhos, o que, para ele, confirmava o câncer.

E. passou a sofrer de hipocondria, angústia, medo e insônia. Consultou-se com vários médicos e foi encaminhado para tratamentos psiquiátricos e psicológicos. Tomou antipsicóticos e ansiolíticos e fez psicoterapias grupais em ambulatórios de saúde mental. Tudo isso se passou antes de ele iniciar o trabalho comigo numa Unidade Básica de Saúde.

Sintomas

Aparência de morador de rua, ele mesmo veio solicitar atendimento. Barba por fazer, olheiras, expressão triste. Já no primeiro encontro, usou sua metáfora: “é como se (câncer e Aids) fossem um tigre e um leão que vão me devorar a qualquer momento”.

Falou da sua agonia e de sua estranheza: toda vez que olhava para o espelho e via as suas bolinhas dos olhos e o seu órgão descamado, tinha ereção. Isso já vinha acontecendo havia meses e, para ele, era loucura. Ao mesmo tempo, gostava da super potência sexual que via aparecer.

O diagnóstico de câncer nunca se confirmou. E. chegou a fazer três testes de hiv, todos com resultado negativo. Quanto às bolinhas, os médicos diziam que aquilo não era nada e uma médica afirmou que eram glândulas lacrimais.

E. mostrava-se para mim. Trazia seu corpo, sua história, sua ansiedade, suas fantasias. Aos poucos, também, sua dúvida sobre se era homem ou mulher. Sentava-se à minha frente. Entre nós, havia uma mesa na qual ele se apoiava e ficava bem mais perto de mim. Eu o olhava, escutava-o e tentava entender o seu funcionamento psíquico, ao mesmo tempo que prestava atenção nos efeitos desse paciente sobre mim e no modo pelo qual estes se apresentavam. Por achar que tinha câncer e Aids, viver aterrorizado pela perseguição daquelas feras, por estar ficando cego, por pensar insistentemente se era homossexual ou não, seria E. um neurótico hipocondríaco? Um psicótico? Um narcisista com aspectos melancólicos? Um histérico? Um perverso fetichista? Um neurótico obsessivo?

Parecia sentir prazer em exibir para mim suas dores e delícias, além do prazer autoerótico escopofílico que o levava à excitação sexual. Também tinha um especial apreço em vestir-se com roupas íntimas femininas.

E. se apresentou a mim com seus enigmas, ansiedade, angústia e alguma inibição. Por vezes, eu sentia compaixão, por vezes, medo. Quem era E.?

O conflito

Ser homem ou não ser? Eis a questão. Mas existiam outras: ver ou não ver? Viver ou morrer? Câncer e Aids apareciam como ameaças de morte e, ao mesmo tempo, como possibilidade de ele viver muitas coisas que não vivera, já que “iria morrer logo”. Achava que estava ficando louco ao associar a morte com excitação sexual. Para mim, tais questões derivavam de outras, que apontavam para uma existência que não encontrava um lugar, sobretudo por acalentar a fantasia de ser homem e mulher.

Dizia viver toda a intensidade sexual com a esposa, porém, se perguntava: “como viver a experiência de ser mulher?” Perturbava-se. Era um desejo? Uma necessidade? Sem resposta nem saída, voltava às ideias ansiosas de ter as doenças, ao medo. Olhava o espelho e girava em círculos. O lugar que ocupava no mundo não dava legitimidade a quem pensava ser.

A vida parecia-lhe mais pesada, sem sentido. Seu corpo e sua alma tinham se tornado estranhos e começavam a falar coisas que não entendia. A partir da doença (uma gastrite, carregada de angústia) e decepcionado com a mãe, que não mais o olhava, passou a buscar olhares médicos. Chegou, por medo, ao espelho e não saiu mais dele, até começar a se perguntar o que significava tudo aquilo. Percebeu que atuava num círculo vicioso, repetição mortífera.

Em certa medida, cindiu-se. Precisava que o olhassem para que falassem dele, nele e para ele. Qualquer coisa valeria: o senhor não tem nada; isto são glândulas lacrimais; o senhor não tem Aids; na pele do genital não tem doença. Mas não havia palavras que o apaziguassem. Não confiava nos médicos e não confiava em si mesmo. Penso que a pergunta: “sou um doente?” encobria uma outra, latente: quem sou eu? Buscava espelhos, mas a imagem era distorcida. Existência angustiada, cujo espelho a mãe quebrara com a recusa do amor, segundo tempo do trauma, quando E. já se encontrava abalado com as mortes do pai e do primo.

O caminho que percorreu até chegar à análise deu-lhe algumas referências sobre si, mas todas fragmentadas, como se, ao procurar espelhos, não encontrasse mais que cacos. Despedaçado, solto, passível de ser tudo: homem, mulher, são, doente, morto-vivo, vítima do tigre e do leão, e de ser nada.

Faltava um vínculo. Algumas questões conflitivas eram de ordem identificatória e constitutiva: quem sou eu? Que história é a minha? Qual é o meu desejo? Eu escutava um Id pulsante e transbordante que vinha à tona através de seus traumas, em busca de representações e contornos. Um Ego cansado de fazer malabarismos inúteis e gambiarras afetivas insossas. E o Superego? Estaria orientado por um ideal de ego ou ainda referido a um ego ideal?

Processo analítico I – Método

Minha escuta esteve sensível com relação à temática da sexualidade e à situação traumática desencadeante dos sintomas. Algo da ordem do infantil se atualizava, ao que parece, nos termos da primeira tópica freudiana. Por meio de interpretação, toquei na relação transferencial e contratransferencial e, através de nomeações e construções, em elementos de ordem repetitiva e compulsiva, próprios da pulsão de morte (segunda tópica), que se manifestavam quase todo o tempo.

Estimulando-o a associar, possibilitava que sua história começasse a se descortinar. E. lembrara que havia experienciado, junto com o irmão do parente morto pela Aids, algumas “brincadeiras sexuais”. Tinha a impressão de que algo “muito grave” teria acontecido, mas não lembrava o que, apenas que na ocasião levou “uma surra violenta do pai”, que gritava: “você não vai ser boiola!”. Quando tentava lembrar-se da situação infantil, vinha à cabeça a imagem de “uma folha de papel em branco”.

O paciente, quando jovem, tornou-se fã de um ícone da música americana e passou a adorá-lo, imitá-lo, queria ser como o artista, cheio de mulheres à sua volta. Mas não conseguia conquistar uma garota. Por volta dos vinte e oito anos começou a queixar-se para a mãe de mal-estar, insônia, agitação, ansiedade e depressão. Ela o levou ao psiquiatra, que receitou remédios. Ele foi ficando bem e, depois de alguns anos, começou a sair com algumas mulheres e a namorar várias ao mesmo tempo. Já naquele tempo, pensava em realizar fantasias sexuais nas quais faria o papel da mulher e a mulher, o dele. As mulheres achavam que ele era maluco e se recusavam.

Casado, continuava a buscar aventuras, pela intenção de fazer o papel da mulher. Numa aventura destas com um travesti, em que levou dele uma mordida por se recusar a pagar o programa para um homem de “braço peludo”, imaginou que pudesse ter sido infectado pelo vírus hiv.

A esta experiência relatada dera um sentido e formara uma ideia que se tornara realidade psíquica conflitiva e ameaçadora, a qual ganhou força após a morte já citada de um familiar. Assim, quando sofria por ter Aids, era porque tinha mesmo.

Várias eram suas lembranças sobre situações de risco, de violência e de promiscuidade na sua família. A mãe, sempre considerada santa, pessoa maravilhosa, no decorrer da análise foi surgindo em suas recordações atravessada por ambivalência. Lembrava-se da mãe supostamente na cama com um parente, o qual, por sua vez, E. lembrara- se de tê-lo assediado sexualmente. Era muito pequeno ainda, filho único. Além disso, presenciava brigas entre os pais que se repetiam cada vez que seu pai, alcoolizado, sentia-se rejeitado sexualmente por sua mãe.

Por meio das recordações que afloravam, eu tentava inserir o paciente em sua própria história e incentivá-lo a se aproximar de seus sentimentos, desejos e fantasias. Assim, brincar com o primo significava descobrir a sexualidade, e ele gostava disso. Do pai alcoólatra, sentia medo, raiva, vontade de matá-lo e, cada vez mais, adorava a mãe e tinha pena dela. Era o pai ruim? Era a mãe boa? Durante o processo analítico, o paciente foi reconstruindo a figura de pai inicialmente destroçada, à medida que recuperava recordações de um pai amoroso, sensível, que o ensinou a nadar, com quem ele passeava na infância. Havia nele marcas positivas do pai que foi resgatando. Com relação à mãe, foi descobrindo uma figura ambivalente, de quem vinham duplas mensagens e uma pessoa negligente que, por vezes, não o protegeu do assédio, nem da exposição do menino E. à situação em que ela era amante desse parente. Tudo isso era lembrado com muita dor. Tentei seguir o caminho de suas fantasias inconscientes sobre as figuras parentais. Do pai, guardava um ódio intenso, considerava-o desprezível e fraco. À mãe, atribuía força e valor e dela tinha piedade. Também foi se dando conta de que sua mãe sempre foi um tanto invasiva e controladora. Lembrou-se de algumas situações que embasavam esse novo sentido que dava à mãe. Chegou a pensar que o pai se tornara alcoólatra por ter uma esposa desequilibrada. Começava a ficar abalado o ego ideal, pelo qual estivera alienado todos aqueles anos?

A partir da morte do pai – para ele um parricídio –, algo da ordem de uma reedição edípica foi se instalando no psiquismo do paciente. Gostaria que a mãe se voltasse para ele. Mas não, sentiu-se abandonado porque ela voltou-se para o outro filho, que bebia como o pai, ficando ele sozinho, decepcionado e perdido. Precisaria reconstruir um eu, as relações de objeto, e buscar um ideal. Em certa medida, isto a análise lhe propiciou.

Pensava muito na morte e tinha medo dela. Passou a não fumar, não beber, não tomar café. Na fantasia consciente, assim não envelheceria. Na inconsciente, a mãe o adoraria. O que pareciam barreiras para uma intensidade oral seriam antes pseudointerdições. Afinal, E. era obeso, ingeria comida compulsivamente e adquirira gastrite. Quanto à pulsionalidade anal, retinha seu dinheiro ao máximo, não gastava para nada. Talvez mais uma pseudointerdição, pois impostos e tributos entravam no rol das normas às quais não queria se render. Com relação à pulsionalidade fálica, algo o ameaçava em seu narcisismo: o genital estava se deteriorando.

Tinha dúvida sobre a sua identidade sexual. Era atraído pelas mulheres e não por homens, mas não conseguia ficar plenamente satisfeito fazendo apenas o papel masculino. O travesti era uma figura que o instigava, a mulher de mentirinha. Vivia um misto de curiosidade e admiração. Perguntava-se como uma pessoa tinha a coragem de ser homem e mulher também. Ser as duas coisas, não uma só (possuidor de um sexo) significava, para ele, ser alguém superior – como o perverso se sente superior ao neurótico.

O paciente se apresentava como alguém que, até certo ponto, tinha feito a sua escolha objetal: a mulher/mãe, mas a sua identidade sexual estava em parte identificada com o que o pai queria dele e em parte com o que via na mãe. O pai, durão, exigia que fosse homem, deixara o ensinamento marcado em seu corpo por meio da surra. E. foi objeto de descarga da intensidade agressiva paterna, o que pode ter tido um efeito paradoxal erótico para ele. A mãe parecia perversa no sentido de ser tudo, fazer tudo, aquela que não tem consciência moral, a que sabe de tudo. E, quanto a E.: será que houve aceitação da castração? Será que houve recalcamento de seu desejo erótico pela mãe e pelo pai?

Por que ele passou a sofrer com a ideia de ter câncer e Aids? Por que o câncer atacaria seus olhos? Por que as mudanças na pele de seu órgão genital eram, para ele, indicadoras da Aids?

Fora comprometendo, em sua dinâmica psíquica, alguns órgãos em detrimento de outros, provavelmente, pela fixação de excitações infantis, formando espécies de quistos psíquicos: mistura de prazer com culpa. O genital, além de bem valioso ameaçado pela castração, representava um objeto desejado por homens da família. Será que ele, de fato, renunciou ao desejo pela mãe? Já havia um canal aberto pela mãe, que o pai não fechava. A mãe não desejava o pai, mas um outro homem, o qual também abrira um canal erótico para o menino através da sedução.

Olhar o próprio corpo no espelho para ver as doenças, a excitação que esta ação provocava, a ponto de ele ter ereções, provavelmente aludia a uma experiência de gozo com a mãe, trocas de olhares na primeira infância. A vivência diante do espelho materno trazia o terror e, ao mesmo tempo, o gozo com a mãe que, só ao longo de anos, pôde ser visto como proibido. O sentimento de culpa era expiado por meio da condenação ao câncer em seus olhos e da cegueira que começava a aparecer. Impressionante a coincidente alusão a Édipo, que furou os próprios olhos.

Minha escuta seguia em defesa de uma certa anormalidade. E. não tinha um contorno suficiente para dar conta da sua intensidade pulsional recalcada. Aos poucos, no entanto, foi se apropriando de sua própria existência. Era como se, antes, ele pertencesse ao tigre e ao leão, condenado a fugir do horror da castração, que significava a finitude do ser, sem uma possibilidade de vir a ser.

Ao longo do processo analítico, teve que desconstruir a fantasia inconsciente de ser alguém que não envelheceria, não morreria, que driblaria o limite da morte, assim como driblara tantos outros limites pela vida afora. Nesta fantasia, identificava- se com a mãe interna, não castrada, representada pela figura do travesti, imagem esta que deslizou para outra, em sua juventude, na figura do cantor ídolo americano, o homem sensual, que rebolava feito mulher, que, para o paciente, “tinha um rosto tão lindo quanto o de uma mulher”. Só na análise passara a questionar este mito.

Vivia uma miséria psíquica, isolado do mundo. Ficava ouvindo as músicas de seu ídolo, prestava um tributo ao artista que, para ele, representava a figura híbrida. Às vezes ouvia músicas da década de cinquenta. Desmanchava-se em devaneios com figuras femininas de sua adolescência. Não vivia o presente, só um passado nostálgico, na ilusão de evitar morrer no futuro.

Tornou-se um adulto, mas manteve um conflito interno recalcado, que retornou numa sintomatologia impeditiva de uma vida normal. Dizia-se “torto”. Faltava-lhe ressignificar a homossexualidade, até para poder se posicionar, renunciar, ou não, a ela. O que fez, durante anos de sua vida, foi manter-se como objeto de amor do pai e à mercê dessa homossexualidade interditada de forma violenta e erótica ao mesmo tempo. O pai bate no corpo do menino, dizendo a ele para não se prestar como objeto para outro homem. Passa a carregar a dupla mensagem como um enigma: seu corpo só poderia arder nas mãos do pai – desejado e interditado por ele.

Processo analítico II – Técnica

Penso que vale considerar quatro fases nesta análise, cuja prática variava conforme o movimento do paciente. A primeira, fase do espelho, na qual o paciente se exibia para mim, a fim de que eu o olhasse e, literalmente, o marcasse numa existência. Na segunda, seguimos o trauma (e os seus tempos). A terceira levou à construção de sua história, por meio da interpretação da transferência e de elementos da análise, tais como sonhos, o próprio discurso, atuações, etc. E, por último, a fase da cura, no sentido econômico, que culminou na mudança de lugar subjetivo do paciente, ou, mais precisamente, no encontro de um lugar seu no mundo. O paciente não tinha condições psíquicas de enfrentar suas angústias e fez um arranjo perante a castração. Para ele, não foi pouca coisa.

Num primeiro momento, minha função foi a de recebê-lo e escutá-lo em sua necessidade de extravasar a intensidade pulsional por meio da fala, das atuações, da dinâmica corporal, sem me ater a interpretar. Ele exibia um corpo, ora estragado pelas supostas doenças, ora destilando um frescor, quando vinha, por exemplo, totalmente depilado, encenando o corpo da mulher – como se fosse gerar uma vida, ou como se reproduzisse sua identificação comigo, à medida que foi estabelecendo uma transferência positiva.

Ele tinha o desejo (vida pulsante que o assustava) de realizar-se sexualmente com um objeto de amor que tivesse as características das figuras edípicas e de ver seu desejo posicionado como um ser sexuado e castrado. A mulher com o genital masculino, o travesti, representaria a mãe fálica que o manteria fora da constatação da castração e dentro da esfera narcísica do ego ideal. Esta fantasia era mortífera porque supunha o ser atrofiado, o indivíduo não castrado, que não viria a se constituir porque não iria construir um ideal de ego.

Estaria esclarecida a metáfora do tigre e do leão: se correr (recusar a castração) o bicho pega, se ficar (negar a castração), o bicho come.

Penso que, nessa oscilação, operava a pulsão de vida (diante da castração, sem recusá-la, vivendo a angústia, e podendo vir a ser) e a pulsão de morte (risco de ser engolido pela mãe e desaparecer no gozo mortífero, negando a castração), ambas buscando ligações e representações, respectivamente. O paciente precisava encenar a sua metáfora e o acting out, no início da análise, reduzia sua ansiedade. Havia um indizível sexual, que aparecia como pulsão de morte, através da repetição no discurso. O olhar da analista, aceitando- o como ele era (o espelho), trouxe-lhe a possibilidade de instalar a transferência. Com o espaço analítico favorável, foi possível trabalhar, por meio da palavra, aquele Id transbordante.

Quanto àquela folha em branco, mencionada em associação com a brincadeira sexual com o menino, considerei que ela pedia um texto que representasse aquele momento traumático, do indizível sexual. Então eu disse a ele naquele momento, bem no começo da análise, que as brincadeiras sexuais eram comuns na infância, ou por curiosidade, ou por vontade de fazer descobertas, e por prazer. Ficara aliviado, e disse: “então eu sou um cara normal!”

A análise propiciou um desencadeamento de lembranças e a folha em branco foi resgatada enquanto representação. Algum tempo depois, E. imprimiu nela a ideia de que ele e o menino haviam trocado de lugar na brincadeira.

Durante a análise, ele ainda fazia uso do ansiolítico à noite; mesmo assim, era difícil dormir. Telefonava para um serviço de atendimento a pessoas angustiadas e ficava horas desabafando com o atendente. Ouvia emissoras de rádio com programação de aconselhamento. Enfim, mantinha uma busca ativa de meios para sanar seu sofrimento.

A transferência foi positiva na maior parte do tempo. Nunca faltou, nem se atrasou. A resistência aparecia quando se tornava sedutor tentando vasculhar a minha vida, desejando que eu saísse do meu lugar de analista, ou que eu revelasse minhas vontades estranhas. Do ponto de vista da contratransferência, minha experiência variava: sentia compaixão (quando ele vinha como um trapo humano, um morto vivo); medo (quando ele quase mostrou seu genital e quando exibiu o peito depilado); raiva (quando ele tentava me tirar do lugar de analista). Tudo isso é esperado numa relação analítica e, com este paciente, as intensidades eram dobradas. Porém, eu gostava de atendê-lo.

O paciente foi conseguindo romper a simbiose com a mãe. À medida que a mãe era desinvestida, surgia o investimento no pai, recordações nas quais era companheiro e amigo. O pai tinha agora um valor, descobria. Passou a sonhar com ele e com o velório em que estivera ausente, ressignificando sua morte. Mais para o final da análise, demonstraria ternura pelo pai e identificação com ele. Passou a usar barba, bigode, apresentava- se com uma aparência mais máscula, como se construísse uma imagem de gênero.

Dava-se bem com a mulher, apesar de sentir que ela não o compreendia. Tinha com ela uma vida sexual ativa e diária. A excitação viria, principalmente, da experiência com o espelho e com a constatação das doenças. Em relação às normas sociais, foi mudando e pagando os impostos do carro, as multas. Cuidava mais de si.

Aos poucos, a acuidade visual melhorou a ponto de dispensar as lentes corretivas. Foi perdendo peso, praticava caminhada e voltara a ver amigos, tinha ânimo de viver. Tudo se passava como se o indizível sexual, ao ser representado em palavras, diminuísse a ação da pulsão de morte que invadia o Ego. Mas faltava algo.

Faltava realizar o seu desejo. E qual era? Realizar-se num encontro onde ele trocasse de papel sexual. E com quem seria se não com o travesti? Ele não tinha desejo por homens e, ao pensar nas mulheres, ficava desolado: “mulher não tem pênis”.

No decorrer do processo analítico, o paciente procurava ouvir sexólogos e psicólogos para entender a homossexualidade, até que ouviu alguém dizer que todos nascemos bissexuais e que isto poderia ser explicado pela biologia. Concluiu: “o órgão masculino se desenvolve para fora e o órgão feminino se desenvolve para dentro”. Dessa maneira, foi revendo as teorias sexuais infantis, agora na fase adulta. Passou a se considerar bissexual, como seriam todos os outros. Mais um alívio.

Minha hipótese era a de que E. insistia em realizar o seu desejo inconsciente de obter aquele prazer que estava atrelado às situações traumáticas com o homem adulto e com o garoto. A excitação permaneceria agindo como pulsão não representada, portanto, como pulsão de morte. Quando era invadido pelo não representável à proporção do intolerável, ela se transformava em angústia (sinal de vida), o que dava a ele o movimento de busca.

A cura psicanalítica

Tomado por uma compulsão para encontrar alguém, E. começou a transbordar novamente, parecia que a análise estava começando do zero. Atuava. Era como se perdesse a consciência moral e, repentinamente, entrasse em uma suposta mania. Isto não aparecia nas sessões, mas em sua casa. Ele telefonava para o serviço de atendimento a angustiados, convidava a atendente para um encontro amoroso virtual, com troca-troca. Ao atender, por acaso, a um telefonema de uma pessoa ligada à filha, despejou sobre ela a sua fantasia. O efeito disso junto à família foi caótico, mas ele tinha uma explicação: era um paciente psiquiátrico, tomava remédio e fazia terapia.

A essa altura, E. não se preocupava mais nem com o tigre nem com o leão: “eles estão presos”, disse. A ameaça era, então, a de uma implosão psíquica, tanto na direção da loucura, quanto da perversão. Ou das duas?

O conflito desejo/defesa não se manifestava mais no corpo, mas no campo psíquico. Os sonhos eram recorrentes, pesadelos com o pai e com outras pessoas mortas da família. Associava os sonhos com a vontade daquelas pessoas de virem buscá-lo. Não havia um objeto fóbico. Era perseguido por si mesmo, pelo saber da morte.

Diante do imperativo de encontrar um lugar no mundo, o desejo atrelado à busca de uma identidade sexual fazia-o transbordar, assustava- o. Eu apontava para um movimento importante de transformação e mudança que se apresentava, situação em que era inevitável a angústia, até que aconteceu o inusitado.

Numa certa madrugada, lá estava na esquina o travesti que despertava as suas fantasias secretas. Desta vez, E. resolveu dizer para a esposa: “poxa, como um marmanjo desse tamanho tem coragem de se vestir assim e fazer papel de mulher?” Ao comentário despreconceituoso dela, encorajou- se a convidá-la para trocar de papel com ele e ouviu um sim!

A partir daí, E., de fato, mudou.

Descobriu em sua companheira o prazer tão desejado, apaziguou uma intensidade pulsional; estaria realizado, satisfeito e tranquilo. Contudo, algo ficou como um resto de culpa. Começou a temer que as filhas soubessem, que o pai morto estivesse vendo. Na tentativa de despatologizar, eu disse a ele que era adulto, fazia entre quatro paredes o que lhe aprouvesse. O paciente foi ficando mais neurótico, porém menos miserável. Aos poucos, organizava-se neste novo lugar, o do homem casado, pai de família. Mais ativo na vida, assumia seus próprios desejos, como tanto queria. Estava mais feliz.

Chegamos ao momento de falarmos sobre o fim da análise. Afinal já haviam se passado cinco anos e o enquadramento da instituição não nos permitiria seguir por mais tempo. Juntos, combinamos uma data para a finalização e encerramos. Mas o paciente telefonava para o meu consultório, continuando a análise por telefone. Deixava longos recados gravados, em horários em que eu jamais atenderia. Finalmente, pediu uma sessão por conta de alguns pesadelos. Marcamos um horário.

Chegou lá um E. diferente: mais tranquilo e cheio de histórias para contar. Ampliara o pequeno comércio que tinha com a esposa. As filhas estavam trabalhando e faziam faculdade na área do pai. Uma delas iria para o exterior estudar. E os pesadelos? Creio que tinham a ver com o medo/desejo de que o pai estivesse presente entre aquelas quatro paredes.

Um dia, telefonou desesperado. Tinha tomado um Diazepan na noite anterior, caído da cama e quebrado um dente. Não seria possível um implante, porque o dente já estava condenado. Poderia apenas colocar uma prótese. Estava triste e assustado. Disse-lhe: – O tempo não para, os dentes são vivos e um dia morrem. Ficou surpreso, aliviado e intrigado. Pediu outra sessão. Concordei, mas propus que marcássemos para, de fato, encerrarmos o trabalho. Aceitou, mas ficou aborrecido. Antes do dia da última sessão, deixou um recado na secretária eletrônica dizendo-se “decepcionado” comigo, pois achava que eu era sua amiga. E., designando-se como “ex-paciente”, disse que não mais telefonaria, despedindo- se com um “Adeus”. Estava furioso com o final da análise.

Meses depois, deixou uma mensagem desejando um Feliz Natal. Transcorrido mais tempo, deixou outra pedindo desculpas pelo que havia dito, e que eu esquecesse aquelas palavras. Acrescentou: “afinal, você acertou a minha vida, posso ser seu expaciente, mas você, pra mim, vai ser sempre uma grande amiga. Se hoje estou bem, devo a você”.

A despeito de suas conquistas, E. não comparecera à primeira sessão de encerramento, nem à segunda. Está claro que não queria terminar. Quanto ao Diazepan, deixou de usar, pois não precisava mais do medicamento.

Considerações teóricas

Na busca constante a médicos, E. efetuava uma homeostase, alívio das tensões e gratificação erótica para o destino manifesto de pulsões parciais escopofílicas e exibicionistas. A ansiedade era o mote que o mantinha suspenso, entre a impossibilidade do desejo reprimido e o risco constante, a agitação do impulso de morte dentro do eu. À medida que seu desejo pôde ser incluído em jogos sexuais, o caminho mortífero perdeu força. E. precisava falar e, quando não podia, falava através do corpo e das atuações. Minha pesquisa junto a ele procurou encontrar sua verdade e o modo de ele se relacionar com ela.

Retomei um texto de Serge André. Para o autor, o termo bissexualidade recobre a dualidade que está na oposição atividade/passividade, reforçando a ideia de que Freud não teria visado com a noção de bissexualidade a uma divisão dos sexos, uma oposição masculino-feminino. Referir- se-ia a uma polaridade, que assumiria o lugar da diferença entre os sexos. Nas palavras de Serge André, “a pulsão sexual do ser humano não é organizada sobre a base do casal macho-fêmea, mas sim em torno de polarizações fundamentalmente assexuadas, atividade/passividade e sujeito/objeto. A noção de pulsão sexual recebe desde então seu verdadeiro valor de enigma: do ponto de vista do inconsciente, a atração recíproca entre macho e fêmea é uma questão, não é um dado a priori” [1].

A atração pela figura híbrida do travesti transparecia como o enigma da sexualidade de E. Era como se sua libido estivesse à beira da realização fetichista daquele que não vê ali um órgão masculino nem a castração, adotando ambas as atitudes ao mesmo tempo. Nesse sentido, André afirma: “para o sujeito fetichista não é o sexo feminino que cria problema, mas a castração: e para se acomodar a ela, ele pode, enquanto sujeito, cindir-se, vindo assim a divisão castrado/ não castrado a se produzir no próprio interior do sujeito” [2].

O paciente tanto era atraído pelo travesti, quanto se identificava com ele e se travestia também, na clandestinidade e na solidão. Além desse lado perverso, o paciente trazia também o seu lado mais neurótico, em cuja relação de objeto a figura de alteridade era considerada referência da realidade externa. Pela sua história anterior, teria construído uma vida aparentemente normal. Inevitável lembrar Joyce McDougall e concordar com ela: “a análise é uma relação íntima entre dois indivíduos, reunidos para compreender melhor a problemática de um deles que desencadeia uma experiência inovadora em que, pela primeira vez na história da pessoa, algo pode ser colocado em palavras, pensado e sentido” [3].

Ao longo do processo analítico, percebi que o paciente foi equilibrando forças que podem ser concebidas segundo o modelo daquelas operantes nas instâncias. Com a teorização deste caso clínico, não pude deixar de pensar no campo do narcisismo. E. apresentava uma dinâmica psíquica imersa no ego ideal, ou seja, enroscada na ilusão de ser o objeto de amor da mãe, embora mobilizado para ir ao encontro do pai através do ideal do ego. Compartilho a opinião de J. Laplanche quando afirma que: “no campo psicanalítico, os problemas da realidade só estão presentes, portanto, refletidos numa problemática essencialmente sexual […] encontramo-nos com a sexualidade por toda parte: ao nível tanto do ego quanto do id. Libido dos dois lados mas segundo regimes de funcionamento diferentes. Do lado do ego, a pulsão de vida, a estruturação, síntese, ligação; do lado do id a pulsão de morte, a libido livre, o desligamento” [4].

Penso que a análise descortinou uma saída edípica neurótica para o paciente, na medida em que ele encontrou o prazer genital com um objeto de amor não incestuoso e heterossexual. Podemos pensar que E. estivesse fazendo de conta que havia aceitação da castração, mesmo porque insistiu em viver sexualmente também o papel de mulher. Porém, penso que o que está em jogo não é a escolha objetal, mas sim a modalidade de prazer sexual, que insiste na busca de gratificação. A esposa do analisando foi sendo ressignificada enquanto figura feminina e adquirindo o estatuto de companheira, cúmplice, amante.

Com relação ao arranjo que ele fez de sua sexualidade, e à sua dúvida sobre aquilo ser normal, vale perguntar: existiria uma sexualidade normal? Ainda Joyce McDougall nos lembra de que Freud afirmou, já em 1905, ser muito sutil a fronteira entre a sexualidade dita normal e uma sexualidade desviante. Tendo caracterizado neurose, em função de uma mesma problemática sexual, como o positivo, e perversão como seu negativo, ele teria acrescentado: “Nos casos mais favoráveis, graças a algumas restrições afetivas e outras modificações, pode ocorrer aquilo que poderíamos chamar de uma vida sexual normal”. E a autora conclui: “Fica claro, pois, que Freud considera a vida sexual regida pelo acaso e uma vida sexual bem sucedida como um luxo” [5].

Para terminar minhas considerações teóricas acerca do método clínico e suas técnicas, trago as colocações a seguir de Radmila Zygouris, que considera a análise um vínculo inédito. Para ela, “diz respeito à transferência aquilo que decorre da interpretação, seja verbalizada ou não. O vínculo não decorre da interpretação. Ele se vive, ele é o embasamento efetivo da singularidade de dois corpos em presença” [6].

O que ofereci a este paciente durante alguns poucos anos na instituição, além de uma sessão semanal de cinquenta minutos, e de um enquadre em que ficávamos frente a frente? Penso que o vínculo foi o ponto principal da análise. As interpretações e a neurose de transferência ocorreram, sem dúvida, e foram utilizadas e trabalhadas, respectivamente, quando o conflito aparecia mais na angústia (psiquismo) do que nas manifestações sintomáticas do corpo ou nas atuações. Sobre o vínculo, a autora citada nos diz também: “Se o essencial reside frequentemente no vínculo e o vínculo não se interpreta, em que medida se trata ainda de análise? Respondo: sim, trata-se de análise, já que esse vínculo deve sua existência ao fato de ser vivido no interior da experiência analítica, e é exclusivamente por meio desse paradoxo que existe. O enquadre da análise garante que o analista nunca abusará do vínculo, não é um vínculo mundano, eis por que digo que Freud inventou um ‘vínculo inédito’” [7].

E a autora continua, citando Balint: “O analista deve ser como água para o nadador, a terra para aquele que caminha, um suporte, uma matéria, um vínculo à toda prova e um vínculo inédito, nunca visto, jamais vivido. Para que ‘Isso pense’ e que o homem comum possa fazer a extraordinária experiência do pensamento-raio (insight), usualmente reservado para artistas e criadores” [8].

Sem poder afirmar que se manteria a toda prova, constato que, mesmo com a asserção sobre o fim da análise, o vínculo permaneceu. Faltava dar ao paciente a possibilidade de me matar para poder terminar a análise, continuar a autoanálise e prosseguir como um homem independente, sem aqueles sintomas e inibições. Creio que a análise eletroeletrônica telefônica integrou e manteve o vínculo inédito internalizado.

Cada homem em sua complexidade psíquica é uma obra única, toda análise uma odisseia. Gostei de percorrer, junto ao paciente, essa odisseia. É claro que não pude abarcar com palavras, naquele tempo e hoje, o todo dessa experiência analítica. Porém, com certeza, foi uma experiência que ainda pulsa em mim, como algo vivo e propulsor, para que eu continue a aprender em meu ofício de analisar.

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Percurso é uma revista semestral de psicanálise, editada em São Paulo pelo Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae desde 1988.
 
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