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TÍTULO DE ARTIGO


 

AUTOR


ÍNDICE TEMÁTICO 
62
História, criatividade e resistência
ano XXXI - Junho 2019
165 páginas
capa: Tunga. Lezart (detalhe)
  
 

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Resumo
A partir da comemora��o dos 30 anos da Revista Percurso, a hist�ria do movimento psicanal�tico e do Departamento de Psican�lise � retomada tendo como foco a produ��o escrita. Em meio a uma hist�ria de luta, a exist�ncia da revista Percurso � vida e resist�ncia.


Palavras-chave
rebeldia; terror; pol�tica; milit�ncia; marxismo; ditadura; tortura; subjetividade; �tica.


Autor(es)
Miriam Chnaiderman Chnaiderman
é psicanalista, membro do Departamento de Psicanálise, doutora em artes, documentarista.


Notas

1.R. Mezan, "Figura e fundo, notas sobre o mundo psicanalítico", Percurso n. 20, p. 7-8.

2.M. Fuks, "Reich e a relação entre política e psicanálise", p. 1.

3.M. Fuks, op. cit, p. 2.

4.M. Langer; A. Bauleo (orgs.), Questionamos a Psicanálise e suas Instituições.

5.História do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, maio de 2006.

6.R. Mezan, op. cit., p. 10.

7.M. Chnaiderman, "Existe uma psicanálise brasileira?", Percurso n. 20.

8.R. Major, "Ouverture" in Géopsychanalyse, les souterrains de l'institution, Rencontre Franco-latino-américaine, Confrontation, p. 9.

9.J. Derrida, "Géopsychanalyse and the rest of the world, les souterrains de l'institutions", in Rencontre franco-latino Américain, Paris, Confrontation, fev. 1981.

10.      P. Pelbart, "Negros, judeus, palestinos: do monopólio do sofrimento". Percurso n. 60, p. 54.

11.      M. Chnaiderman, op. cit.

12.      M. Chnaiderman, op. cit., p. 21.

13.      R. Mezan, op. cit., p. 16.

14.      H. Besserman Vianna, Não conte a ninguém.

15.      J. Derrida, Estados-da-alma da psicanálise, o impossível para além da soberana crueldade, p. 19.

16.      J. Derrida, op. cit., p. 46.

17.      N. Zaltzman, L'esprit du mal.

18.      N. Zaltzman, "Homo Sacer: l'hommetuable", in La résistance de l'humain, p. 6.

19.      N. Zaltzman, op. cit., p. 7.

20.      M'de M'Uzan; J.B. Pontalis, "Écrire, Psychanaliser, Écrire, échange de vues", Écrire la Psychanalyse, Nouvelle Revue de Psychanalyse, n. 16, p. 5.

21.      P. Pelbart, op. cit., p. 55.

22.      A. Green, "Transcription d'origine inconnue", Écrire la Psychanalyse, Nouvelle Revue de Psychanalyse, n. 16, p. 31.



Referências bibliográficas
Besserman Vianna H. (1994). Não conte a ninguém. Rio de Janeiro: Imago.

Chnaiderman M. (1998). Existe uma psicanálise brasileira?, Percurso n. 20.

Derrida J. (1981). Géopsychanalyse and the rest of the world, les souterrains de l'institutions. In Rencontre franco-latino Américain, Paris, Confrontation.

____. (2001). Estados-da-alma da psicanálise, o impossível para além da soberana crueldade. São Paulo: Escuta.

Fuks M. (2016). Reich e a relação entre política e psicanálise. Apresentado no evento do Departamento, Entretantos 2, no prelo.

Green A. (1977). Transcription d'origine inconnue, Ecrire la Psychanalyse, Nouvelle Revue de Psychanalyse, n. 16. Paris: Gallimard.

Major R. (1981). Ouverture. In Géopsychanalyse, les souterrains de l'institution, Rencontre Franco-latino-américaine. Paris, Confrontation, p. 9.

Mezan R. (1998). Figura e fundo, notas sobre o mundo psicanalítico, Percurso, n. 20.

M'Uzan M.; Pontalis J.-B. (1977). Écrire, Psychanaliser, Écrire, échange de vues, Ecrire la Psychanalyse, Nouvelle Revue de Psychanalyse, n. 16, Paris: Gallimard.

Pelbart P. (2018). Negros, judeus palestinos: do monopólio do sofrimento. Percurso n. 60.

Zaltzman N. (2007). L'esprit du mal. Paris: Éditions de L'olivier.

____. (1999). Homo Sacer: l'hommetuable. In N. Zaltzman (org.), La résistance de l'humain.





Abstract
Starting from the celebration for the 30th anniversary of Revista Percurso, it is resumed the history of the psychoanalytic movement and of the Department of Psychoanalysis by focusing on the written production. Amidst a combative history, the existence of the magazine means life and resistance.


Keywords
rebellion; terror; politics; militancy; Marxism; dictatorship; torture; subjectivity; ethics.

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 TEXTO

Revista Percurso: a escrita como resistencia

Percurso Journal of Psychoanalysis: writing as resistance
Miriam Chnaiderman Chnaiderman

Para começar

Este texto foi escrito para ser lido por ocasião do evento que comemorou os 30 anos da Revista Percurso, no dia 30 de março de 2019. Um lindo e alegre encontro festivo que no intervalo foi regado a champanhe e comes e bebes, ainda com linda música. Uma das mesas desse evento era composta por mim e Fernando Urribarri, com a coordenação de Maria do Carmo Vidigal Meyer. Mania Dweik havia aberto os trabalhos com importante fala.

Eu começava minha fala afirmando o quanto era significativa a data escolhida para a celebração, véspera do dia 31 de março, "que sempre nos trará dolorosas lembranças". Naquele momento de comemoração dos 30 anos da Percurso, resolvi iniciar minha fala resgatando o terror vivido, o medo, o pânico e as injunções disso tudo na prática psicanalítica. O que, a meu ver, acentua o lugar de vida que vem tendo a escrita em psicanálise.

Cito aqui o texto que li:

[...] comemorar 30 anos da revista Percurso é também comemorar nosso ato de resistência enquanto psicanalistas ligados ao Departamento de Psicanálise e ao Instituto Sedes Sapientiae. A psicanálise enquanto prática voltada para a alteridade só pode ser rebelde. E a Percurso evidencia essa nossa rebeldia. Rebeldia no pensamento, rebeldia na luta para sobreviver em meio a tantos percalços políticos e econômicos. Refletir sobre esses 30 anos de Percurso é refletir sobre a escrita, o papel da escrita na psicanálise. Sabemos que a psicanálise está sujeita às injunções histórico-sociais, não é uma essência pairando nem no céu nem no inferno. Dentro dessa concepção, a escrita tem um papel político enquanto criadora de uma rede que ampara e comunica nossa pertinência e pensamento em uma tomada de posição que corre mundos.

Com as últimas eleições, mobilizamo-nos, nós do Departamento e toda comunidade do Sedes, para criar uma rede de apoio para aqueles que se sentiam desamparados e angustiados diante do que estava por acontecer. E que continua acontecendo. Criaram-se as rodas de conversa, que continuam a acontecer. Tenho pensado muito na Percurso e na escrita como uma das nossas redes de amparo na missão que temos, hoje, de manter a possibilidade do pensamento, indo contra qualquer polarização cega.

 

Um pouco da nossa história

Em 1975, Madre Cristina chamou Roberto Azevedo, que chamou minha mãe, Regina Schnaiderman, e assim nasceu o Curso de Psicoterapia de Base Analítica, hoje Curso de Psicanálise. Em 1976 inicia-se a primeira turma. Naquele momento, vários psicanalistas da Sociedade Brasileira de Psicanálise dispuseram-se a participar daquela iniciativa. Logo grande parte deles sairia sob pressão da diretoria, que temia perder a hegemonia no cenário paulista e brasileiro. Permaneceram Isaías Melsohn, Fábio Herrmann e Roberto Azevedo.

Assim se refere Renato Mezan a esse momento no seu texto "Figura e fundo: notas sobre o campo psicanalítico no Brasil"[i]:

Transportemo-nos por um momento aos anos de 1977 ou 1978: qual o panorama que nos seria dado observar? Wilfred Bion realizava sua terceira e última visita a São Paulo. No Sedes, davam-se os primeiros passos para a consolidação de um curso de formação "alternativa" à oferecida pela instituição oficial: pilotavam-no Regina Schnai­derman e alguns psicanalistas da ipa, que viam nesta iniciativa méritos diversos (contrariamente à direção da Sociedade, que tudo fez para sufocar no nascedouro esta perigosa inovação), e um grupo de analistas argentinos que a barbárie institucional instalada em seu país obrigara a se refugiar no Brasil.

Em 1970, efervescia na Argentina o grupo Plataforma, sob a liderança de Marie Langer. Em texto que apresentou no Entretantos 2 e que ainda não foi publicado, Mário Fuks relata o enorme interesse por Reich e o desejo de pensar a relação entre psicanálise e marxismo.

Cito Mário Fuks, em texto por ele enviado:

A instituição psicanalítica "oficial" é questionada, e se produzem movimentos de inovação, ruptura e criação de novos projetos coletivos, entre os quais a cisão da Associação Psicanalítica Argentina, em 1973, a criação do Centro de Docência e Investigação em Buenos Aires e a criação do Curso de Psicanálise em 1976 e, posteriormente, em 1985, do Departamento de Psicanálise, ambos no Instituto Sedes Sapientiae de São Paulo, como espaços psicanalíticos autônomos e politizados[ii].

A seguir M. Fuks nos fala de Marie Langer que, em um ensaio de 1973, conta o quanto em Viena nos anos 1930 foi atraída pela Psicanálise e pelo Marxismo. Naquele momento M. Langer via a juventude "dedicada com interesse a esses grandes temas"[iii]. Entre os psicanalistas austríacos e alemães que se dedicavam a esse grande tema, Marie Langer dá especial destaque a W. Reich, nos conta M. Fuks. Seu ensaio dedica-se a mostrar a importância de W. Reich.

Em 1976 chegam os argentinos, vindos também de uma cruenta ditadura, conforme nos conta Renato Mezan. Os nossos sonhos se uniram e o grupo que havia vivido questões tão próximas às que colocávamos passou a fazer parte de nossa luta e do Sedes. A Carta de Princípios do Sedes explicitava o sonho de uma sociedade mais justa e a defesa dos direitos humanos. A figura lutadora de Madre Cristina opunha-se a qualquer totalitarismo e sempre acolhia os perseguidos por uma política que matava e torturava.

Todos nós admirávamos o Grupo Plataforma e o grupo Documento. Já tínhamos lido o Questionamos[iv] e sonhávamos unir psicanálise, marxismo e a militância política.

Desde então viemos repensando essa mistura entre militância política e psicanálise. Escrever passou a ser - ou talvez sempre tenha sido - uma forma de militância.

Os avatares de curso estão contados em vários escritos, inclusive o livro publicado pelo Departamento de Psicanálise que conta a sua história[v].

A inquietude nos caracteriza. Buscando a formação engajada e inserida no mundo fomos encontrando formas de ler Freud. Cisões e separações ocorreram mas fomos coerentes na nossa proposta: ler Freud.

Renato Mezan, no ensaio acima citado, mostra como com a abertura política, a partir de 1981, as Sociedades filiadas à ipa também passaram por profundas transformações. Renato relaciona tudo isso também às "revelações do caso Amílcar Lobo, que produzem um terremoto no Rio...". Cito Renato:

Na Sociedade paulista, uma nova diretoria propõe um programa de modernização intelectual e de democratização política, que encontra forte oposição da ala conservadora; aos poucos, porém, ele vai sendo implementado e começa a produzir ecos em outras sociedades. De modo geral, ao fim dos anos 80 a própria ipa introduz mudanças em seus estatutos e se torna menos xenófoba em relação aos non-Englishspeakers...[vi]

 

O movimento psicanalítico mundial, momento 1

Em ensaio que publiquei na revista Percurso, "Existe uma psicanálise brasileira?"[vii], eu tomava alguns eventos para pensar nossa história. É um ensaio onde procurava pensar a questão da existência ou não de um pensamento próprio e não colonizado. Para refletir sobre isso tudo eu me debruçava sobre dois momentos parisienses quando psicanalistas dispunham-se a pensar sobre os "colonizados", sobre a América Latina e, mais especificamente, sobre o Brasil. Começava pelo relato do encontro de 1981, um Encontro franco-latino-americano organizado pelo grupo Confrontation. Esse encontro acontecia sob o impacto do caso Amílcar Lobo, psicanalista carioca que participara das sessões de tortura. O que nos marcava, naquele momento, eram as terríveis ditaduras cruentas. Éramos olhados como heróis sobreviventes. A fala de abertura de René Major colocava a urgência de refletir sobre "a relação e a não relação de uma escuta analítica e de uma escuta política, as relações de um Estado freudiano com o poder de Estado...". Terminava sua fala afirmando: "Hoje, a causa da América Latina se designa também como a causa psicanalítica"[viii].

René Major dedicou um número dos cadernos Confrontation à América Latina.

Os brasileiros presentes: Fábio Herrmann, Wilson Chebabi, Célio Garcia, Isaías Melsohn. Jurandir Freire Costa, Heitor de Macedo e eu assistíamos. Latino-americanos presentes: Armando Bauleo, Jaima Szpilka, Carlos Plá, Marcelo Vignar.

A conferência de abertura foi de Jacques Derrida. Denominou sua fala "Geopsicanálise"[ix]. No texto que J. Derrida leu, está posta a necessidade de nomear a América Latina de modo "diferente do que a fez a International Psychoanalytical Association". Propõe então uma "geopsi­canálise", configurando o que é a terra hoje para a psicanálise. Indaga-se: a psicanálise é universal?

O inconsciente não teria ancoragem em terra alguma? Então, haveria uma terra da psicanálise que não seria geográfica?

Nesse seu importante ensaio, Derrida faz a análise de como os comitês da direção da ipa se pronunciaram em relação às denúncias de violação dos direitos humanos. Conclui que um dos resultados desta postura seria uma dissociação absoluta entre a esfera do psicanalítico e a do cidadão ou do sujeito moral em sua vida pública ou privada.

Derrida afirma a necessidade de uma nova ética: não apenas uma ética da psicanálise, que para ele não existe, mas de um outro discurso ético sobre a ética em geral, de um outro discurso político sobre o político em geral, um discurso que leve em conta o que se interpreta como a verdade da psicanálise - e que difere conforme os lugares da psicanálise hoje sobre a Terra.

Há uma geografia da psicanálise. É preciso não deixar que se apaguem os traços do mapa. Não há simples interioridade do meio psicanalítico.

Penso que hoje repensaríamos essa fala de Derrida. Tomaria o pensamento de Peter Pelbart na Percurso como norteador de um pensamento contemporâneo em relação a uma geografia da psicanálise:

Então o que é um sujeito, nesse contexto, senão aquele que se forma no entrelugares, nas fronteiras da itinerância? Daí os vários estudos mostrando que, nos trânsitos e fluxos de população contemporâneos, nos deslocamentos de massa a que assistimos com a derrocada dos Estados-nação, criam-se novas comunidades sensíveis, novos sentidos de mundo, novas terras imaginadas[x].

Trata-se agora de territórios sensíveis e afetivos.

 

O movimento psicanalítico mundial, momento 2

Continuando com meu ensaio "Existe uma psicanálise brasileira?"[xi], relato que em 1989 a Association Freudienne realizou em Paris o encontro franco-latino-americano que tinha como tema "Os efeitos da Psicanálise - adaptação, mudança ou pior ainda". Conto como o ponto de partida era o "Manifesto Antropófago" de Oswald de Andrade, citado várias vezes no "Argumento", espécie de introdução à discussão proposta.

No ensaio cito o primeiro parágrafo do folheto do encontro: "Não seria preciso tentar pensar um vínculo social e amoroso suficientemente original, capaz de prescindir de uma tal civilização?" (a civilização "erótica capenga", a civilização do mal-estar incompatível com a "faculdade de amar e de trabalhar")[xii].

O que vou apontando em meu texto é como mesmo entre psicanalistas continua presente a visão edênica, de um paraíso perdido. Ainda que o Eden fosse o terror, a utopia resgatada a partir da violência do Estado.

É alto o risco que corremos quando tomamos uma história sangrenta como identidade nacional - só nos resta então a melancolia e a petrificação da história. Perigo que se atualiza no atual momento brasileiro.

Naquele momento os europeus queriam desvendar as formas de sobrevivência sob condições de violência policial, repressão e tortura.

O que hoje me impressiona, retomando esse meu trabalho, é como os psicanalistas franceses se esqueceram da Argélia e de que foi lá que os brasileiros aprenderam como torturar. A negação de uma história que é francesa também me impressionou hoje. No momento em que aconteceu o encontro eu só me horrorizei com o lugar de verdade que os franceses assumiam em relação ao Brasil e que se expressava em um pensamento teórico bem complexo sobre a impossibilidade de sairmos do lugar de colonizados, que teria a ver com nossa marca de origem.

 

A fundação do Departamento, a escrita e o movimento psicanalítico

Até a década de 1980, poucos analistas brasileiros escreviam. Esse é um dado fundamental para pensarmos o papel da Percurso. Vínhamos sendo formados lendo Freud, Lacan e os franceses, trazidos por Regina, minha mãe. Líamos Green, Conrad Stein, Rosolatto, Grannoff, e depois, Fédida.

No ensaio acima citado, Renato Mezan fala em um "panorama ágrafo" que se modifica na década de 1980, com o retorno de vários analistas formados na Inglaterra e na França. Renato fala do pioneirismo de Fábio Herrmann, que lança em 1979 o primeiro volume de Andaimes do Real. Para Renato Mezan, os anos 1980 presenciam o surgimento "dos analistas que escrevem"[xiii].

Em 1985, é fundado o Departamento de Psicanálise. Nove anos depois de o curso ter nascido. Em sua última ida ao Sedes, Regina, minha mãe, participou da fundação do Departamento, um antigo sonho seu. É também 1985 a data da primeira edição do Freud Pensador da Cultura de Renato Mezan. Seu livro A trama dos conceitos havia sido publicado em 1982.

Em 1987 é fundada a Editora Escuta, e em 1988 é lançado o primeiro número da Percurso, que muito homenageia Regina Schnaiderman.

Os anos 90 do século xx foram marcados pelas publicações que refletiam psicanaliticamente sobre o Brasil.

Assim, nós da Percurso fizemos marca mantendo vivo um pensamento psicanalítico que se diferenciava dessa linhagem e continuava, na escrita, marcando um lugar de pensamento dentro do movimento psicanalítico. Antenados sempre com o que acontecia, mas sem nos perder de nossos princípios.

 

A história continua

Em 1994, Helena Besserman Vianna publica Não conte a ninguém[xiv], logo traduzido para o francês e lançado em Paris.

Em 1995 acontece o Congresso "O século da Psicanálise", organizado por Emílio Rodrigué. Efervescente, vibrante, reafirmamos nossa existência enquanto linha de trabalho que tem como norte a leitura de Freud e a reflexão sobre nossa inserção no mundo.

Em 2000 acontecem os Estados Gerais da Psicanálise. Também é Derrida que abre o encontro dos Estados Gerais da Psicanálise. Sua fala é publicada pela editora Escuta, 2001 - Estados-da-alma da psicanálise, o impossível para além da soberana crueldade. Derrida parte da afirmação de que

são muitas as coisas a propósito das quais [...] a psicanálise como tal, em seus discursos estatutários e autorizados, mesmo na quase totalidade de suas produções, ainda pouco disse ou quase nada teve a dizer de original"[xv].

E cobra da psicanálise um engajamento nas transformações do mundo contemporâneo, uma vez que seu funcionamento é sem álibi.

Assim, Derrida se detém nas novas formas da crueldade:

Haverá, quanto ao político, ao geopolítico, ao jurídico, à ética, consequências, ao menos lições a tirar da hipótese de uma irredutível pulsão de morte que parece inseparável disso que se chama, obscuramente, crueldade, em suas formas arcaicas e modernas[xvi].

Nathalie Zaltzman parece responder a esse chamado de Derrida. Seu livro L'esprit du mal de 2007[xvii] é dedicado a pensar exatamente sobre a crueldade e sobre como a civilização vem lidando com o terrorífico.

Já em 1999, Nathalie Zaltzman formulara de maneira incisiva a relação entre a história e a subjetividade. Depois de referir-se ao que Freud em Moisés e o Monoteísmo nomeou como a verdade histórica, afirma: "Essa realidade mais íntima, inscrita na subjetividade do inconsciente, é também a verdade histórica comum a mais impessoal, pois circula pela humanidade em geral. É a realidade humana"[xviii]. Afirma: "A realidade que interessa à psicanálise é o que acontece a cada indivíduo através de sua pertinência à realidade humana e o que, se modificando por sua tomada de consciência em cada um, participa na evolução da realidade comum"[xix].

É bom lembrar como Nathalie Zaltzman pensa a intersecção entre o mais profundo de todos nós e a humanidade.

A escrita faz essa ponte: nasce do mais íntimo mas é patrimônio de humanidade. Toda escritura contém o rastro da história da humanidade, da origem de linguagem. Escritura no sentido de Derrida - arquiescritura que carrega a possibilidade da linguagem.

 

Para concluir

O que significa, para nós, a existência de uma revista como a Percurso? Uma revista para o mundo, a nossa entrada no mundo...

Pontalis, em entrevista a Michel de M'Uzan (1977), nos mostra como a questão "Écrire en psychanalyse" nos diz respeito não só de fora, mas de dentro. Mostra como, nas origens, há um enorme encaixe entre psicanálise e literatura. Estudos sobre a histeria de Freud, afirma Pontalis, se lê como um romance. O projeto, segundo Pontalis, "jorra no papel como um poema na febre criadora, um pouco louca..., a correspondência com Fliess, sob a forma de cartas trocadas, os relatos de sonhos da Traumdeutung no que eles supõem de escritura, a tragédia de Édipo antes de ser complexo, Hamlet, a Gradiva, a identificação com Goethe - Poesia e Verdade - e com Moisés, as Tábuas de Lei..."[xx].

Com a Percurso tivemos de nos pensar em nossa história, em nossos princípios. Afirmarmo-nos como um pensamento psicanalítico em uma necessária abertura para o múltiplo. Não como um chavão vazio, onde tudo caberia, pois temos um eixo que é libertário, que é abertura para a alteridade. Vivemos, a cada número, o paradoxo da abertura e da fidelidade a nosso pensamento. Cito mais uma vez Peter Pelbart: "... talvez o desafio seja abandonar a dialética do Mesmo e do Outro, da Identidade e da Alteridade e resgatar a lógica da Multiplicidade"[xxi]. Peter fala em construir derivas inusitadas.

Ter uma escrita/escritura introduz entre nós algo radical e novo. A escritura ganha contornos de rebeldia.

Quis resgatar esses momentos de origem, esses contextos pelos quais vamos circulando. Quis reafirmar a importância da escrita nos momentos onde tudo em volta parece desabar. Primo Levi afirma isso. Zaltzmann nos fala de uma pulsão sobrevivente, aquela que tem a ver com a identificação com a espécie humana. Dar lugar à escrita e ao pensamento no momento que vivemos é transformador. Mais do que nunca nosso papel como analistas é o de mostrar que há outras cenas, lutar pelo espaço do sonho, espaço que existe quer queiram ou não. Green, ao reconhecer sua dívida com Derrida na reflexão sobre a escritura, afirma:

O ponto no qual eu me separaria dele é que não posso compreender o conceito de texto sem articulá-lo com a vida. Minha curta descrição da escritura mostra como a constituição do texto apoia-se na vida psíquica. A vida do texto se nutre e se recorta do texto da vida[xxii].

Assim, nesses anos de Percurso, temos lutado para que a vida triunfe sobre o mortífero. É esse nosso engajamento: que possamos lutar contra o medo e pela alegria.


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Percurso é uma revista semestral de psicanálise, editada em São Paulo pelo Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae desde 1988.
 
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