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Autor(es)
Ana Cecília M. Weintreub Weintreub

Ilana Safro Berenstein
é psicóloga e psicanalista, membro da Rede de Atendimento Psicanalítico e aspirante a membro no Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae.

Mayra de Castro Laurino Laurino
é socióloga e psicanalista, aspirante a membro no Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae e integrante da Equipe Nós de Acompanhamento Terapêutico.


Notas
As entrevistas publicadas nesta seção costumam ser formuladas, realizadas e editadas pelo grupo de entrevistas. Desta vez, no entanto, um novo formato nos foi apresentado. Três jovens analistas, duas delas aspirantes a membro do Departamento de Psicanálise, nos procuraram com o desejo de ver publicada, nesta revista, a entrevista que haviam realizado com o psicanalista Fabio Landa.

Ana Cecília M. Weintreub, Ilana S. Berenstein e Mayra C. Laurino nos propunham a edição de um farto material, fruto de conversas que foram realizadas com Fabio Landa, sobre temas que lhes interessavam, e que precisava encontrar um recorte.

A oportunidade de abrir esse espaço para que aspirantes a membro pudessem trabalhar com seus autores de referência nos pareceu interessante. Este material foi, portanto, editado por elas, com o nosso acompanhamento, resultando em uma boa parceria de trabalho. (Grupo de Entrevistas).

1. J. Derrida. Fors, les mots anglés de Nicolas Abraham et Maria Torok. Préface. In N. Abraham; M. Torok. Cryptonymie, le verbier de l´Homme aux Loups. Ed. Aubier-Flammarion, 1976. 


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 ENTREVISTA

Garrafa ao mar

A bottle thrown into the sea
Ana Cecília M. Weintreub Weintreub
Ilana Safro Berenstein
Mayra de Castro Laurino Laurino

Já faz um tempo que os enigmas da transmissão psíquica nos capturaram. A partir deles, às voltas com as questões da transgeracionalidade e do trauma, chegamos à obra de Nicolas Abraham, Maria Torok e Sándor Ferenczi, e, posteriormente, a psicanalistas que têm esses autores como referência. Dentre eles, estava Fabio Landa, autor de Ensaio sobre a criação teórica em psicanálise: de Ferenczi a Nicolas Abraham e Maria Torok (1999), livro inspirado em sua tese de doutorado na Université Paris vii, publicado em francês e português. 

 

Seguindo com nossos estudos, nos inteiramos de um curso que Fabio daria em São Paulo. Depois de três módulos de aulas, ao longo de um ano, nosso desejo de aprofundar alguns dos assuntos por ele abordados resultou no convite para uma entrevista que foi feita em várias etapas, no decorrer de 2017. Na edição do material coletado, contamos com a colaboração de uma colega de Fabio, Cibele Moreira Giacone, a quem, o entrevistado e nós, agradecemos pela leitura atenta e pela ajuda em afinar algumas falas.

 

Propusemos ao grupo responsável pela seção de entrevistas a edição e publicação do material que havíamos recolhido. Seus integrantes dialogaram, generosamente, conosco e nos proporcionaram a abertura deste espaço. "Foi mais ingenuidade que ousadia", dissemos ao Grupo de Entrevistas, ao descobrir que a situação era inédita. "Toda ousadia contém um tanto de ingenuidade", nos responderam com sua experiência.

 

Nosso entrevistado é médico e psicanalista e vive em trânsito entre São Paulo e Paris, atendendo e supervisionando nas duas cidades. É pós-doutor pela École des Hautes Études en Sciences Sociales, pela Université de Paris iv (Paris-Sorbonne).

 

Além de seu livro, Fabio tem diversos artigos publicados em revistas e coletâneas especializadas, e traduziu para o português livros de Jacques Derrida, Emmanuel Lévinas, Jean-Pierre Faye, Michel de M'Uzan, entre outros. Atualmente é membro fundador e supervisor na Association de Psychanalyse et Anthropologie Recherche Transmission Échange (aparté) e, também, membro da comissão editorial da revista Le Coq-Héron.

 

Nossa conversa percorreu temas diversos, como a formação do analista, a relação entre ideologia e psicanálise, o lugar da teoria na clínica e o conceito de anassemia, um recurso interessante para pensar a possibilidade de abertura à alteridade na comunicação.

 

A fala serena e acolhedora de Fabio Landa condiz com seu caminho consistente e autoral, de quem pode ser seguro para admitir a fragilidade. Parte da riqueza de nosso diálogo está retratada nas páginas a seguir que compartilhamos com o leitor, esperando que desperte seu interesse pelos temas abordados.

 

percurso Gostaríamos que o senhor nos contasse sobre seu percurso, como chegou à psicanálise e quais foram os autores que mais o influenciaram.

fabio landa Algumas passagens foram muito complicadas no meu percurso e cada uma delas me custou muito esforço. A primeira foi a passagem da medicina para a psiquiatria. Foi relativamente chocante verificar que o que havia aprendido na medicina não funcionava em psiquiatria, como, por exemplo, os diagnósticos e síndromes psiquiátricas, a maneira como os psiquiatras pensavam. Não existia uma ponte, mas sim uma passagem, que se deu à custa de uma separação, pois ser psiquiatra quase equivalia a deixar de ser médico. Tive uma paixão fulgurante pela clínica, que me acompanhou desde o curso de medicina. Eu gostava muito de fazer plantão e tirar longas histórias dos pacientes. Na psiquiatria, essa fascinação se multiplicou na medida em que ouvia as pessoas. Além disso, tive a sorte de conhecer José Ângelo Gaiarsa, um homem extremamente polêmico, que teve grande importância na minha vida. Com ele, eu podia falar da minha curiosidade e amor pela clínica. Sua contribuição nem sempre foi devidamente reconhecida, mas estou convencido de que Gaiarsa representou uma grande virada na psicologia em São Paulo e, eventualmente, no Brasil.

 

percurso Na psicologia, não na psicanálise, certo?

landa  Sim. Ele leu muito a obra de Freud e a de grandes autores do campo psicanalítico, dentre os quais Reich, mas não gostava da psicanálise. Eu ainda não tinha concluído a faculdade de medicina e o Gaiarsa começou a me encaminhar pacientes. Às vezes, ele fazia encaminhamentos com uma consigna do tipo "faz o que achar que deve, porque se você não fizer nada, não acontece nada, então qualquer coisa é lucro". Esse tipo de consigna era, ao mesmo tempo, pesada e generosa. Foi daí que aprendi a tirar das tripas o que falava, e falo, com as pessoas. Gaiarsa teve, para mim, um papel importantíssimo na separação entre psiquiatria e medicina e, depois, no que se poderia chamar de psicoterapia. Aí se deu mais uma passagem dolorosa na minha trajetória, quando comecei a ficar seriamente interessado pela psicanálise e mergulhei em Freud. Foi um enfrentamento que eu não pude evitar. Depois, reencontrei Gaiarsa várias vezes, sempre de maneira amistosa. Houve um longo percurso que fiz solitariamente. Algumas pessoas trabalhavam comigo, porém não eram referências para mim e esse caminho muito solitário me levou a outro momento de ruptura, quando decidi sair do país.

Algum tempo antes da minha saída do Brasil, vivi uma experiência marcante quanto à relação entre ideologia marxista e psicanálise. Tive um contato muito extenso, numa situação peculiar, em que via psicanalistas, aos quais respeitava e admirava, mas quando se tratava de fazer alguma composição, digamos assim, entre o achado psicanalítico e as convicções ideológicas, a ideologia predominava, marcando o comportamento e o modo de pensar das pessoas. Isso terminou por desencadear um estado de alarme em mim quanto à necessidade de separar ideologia e psicanálise.

Quando cheguei à França, tive a experiência que talvez mais preze: a de ser um estrangeiro, de viver num mundo e numa língua estrangeiros, sem conhecer os detalhes do lugar. Foi duro, inclusive pelas reverberações da minha infância. Venho de uma família de imigrantes e isso me deu uma conexão com a minha própria família que antes não existia. Eu tinha um pressentimento disso, porque em casa a língua familiar não era o português. O sentimento de ser estrangeiro e a vivência de fragilidade foram muito marcantes. Depois de vários anos na França, quando deparei com uma frase em que Lévinas afirma que o órfão, a viúva e o estrangeiro são os elos mais frágeis da cadeia social, e que deles vem o "não matarás", eu estava pronto para compreender a fragilidade, a estranheza, a dependência e o evoluir de acordo com a capacidade linguística de escutar que, para Lévinas, é mais decisivo que a capacidade de falar. Então a clínica me pegou em um contrapé fulminante. Adulto, chorei poucas vezes. Uma delas foi quando me descobri sendo analista de uma pessoa francesa. Por sorte, a pessoa estava deitada, porque eu chorava como uma criança que ganhou um brinquedo.

 

percurso Como o senhor se inseriu, além da clínica, nesse novo ambiente da psicanálise na França?

landa  Na França, vivi dois grandes encontros, o maior deles com Derrida. Durante o primeiro ano em que frequentei seu seminário eu não entendia absolutamente uma palavra daquilo que ele falava, e experimentei a mesma estranheza do imigrante. Já nos últimos anos, ser capaz de antecipar o que ele ia dizer me dava um grande prazer. Acho que frequentei o seminário dele por uns dez, onze anos. Através desse encontro com Derrida, passei a entender alguma coisa do Nicolas Abraham. O outro grande encontro foi com Fédida. Durante os três ou quatro primeiros anos na França, o seminário dele foi algo muito interessante para mim. Entre Fédida e Derrida havia um elo importante, pois ambos trabalhavam muito com Husserl. Os mestres de Nicolas Abraham eram Freud, Ferenczi e Husserl e, assim, eu estava mais ou menos preparado para ler Abraham. Ele foi capaz de articular o ensinamento de Husserl com o trabalho analítico. Com isso, não quero dizer que Husserl fosse sua referência filosófica, mas, assim como Freud e Ferenczi, era uma fonte, um esteio do seu trabalho. Nicolas Abraham e Derrida mantiveram relações de amizade e foi Fédida quem me sugeriu fazer uma tese sobre o Abraham.

 

percurso A relação entre a teoria e a clínica é amplamente abordada em seu livro Ensaio sobre a criação teórica em psicanálise?- De Ferenczi a Nicolas Abraham e Maria Torok. O senhor se preocupa com o fazer psicanalítico apontando que, com o desenvolvimento da psicanálise, a ampla oferta teórica ganhou um caráter mais obturador do que transformador, o que poderia se assemelhar à superespecialização médica. Afirma ser importante que o analista possa se deixar abalar em suas referências teóricas pelas falas de seus analisandos, questionando-se profundamente sobre o que se faz ali na sessão. Como o senhor articulou essa tensão durante o seu percurso?

landa  A clínica sempre é primordial e isso faz com que a psicanálise tenha um lugar à parte nas ciências humanas. Freud renovou permanentemente a metapsicologia para manter-se fiel à observação clínica e jamais pode ser confundido com um filósofo. Ele é efetivamente o pai fundador da psicanálise como um território particular, por garantir a primazia da clínica. Isso é um bálsamo para mim, porque não tenho que me esforçar para estar na clínica. E, se existe uma teoria em psicanálise, ela é a teoria da clínica. Quer dizer, não se trata de uma filiação teórica, mas de uma reflexão teórica sobre a clínica e sobre a observação de cada um. Um dos meus grandes aprendizados com Fédida diz respeito à questão que envolve o diagnóstico ou o processo. Psicanalista faz diagnóstico? Se quiser, sim, mas é uma perda de tempo. O que o analista faz é encontrar um lugar no processo analítico de alguém, sabendo que essa participação fatalmente terá fim. Esse foi um aprendizado que me apaziguou muito. Em retrospectiva, a passagem da medicina para a psiquiatria e da psiquiatria para a psicanálise trazia a pergunta "diagnóstico ou processo?". O diagnóstico é parte do campo da psiquiatria, da medicina, da psicologia. Esses discursos, sim, fazem diagnóstico. O psicanalista faz outra coisa. Freud dizia que temos de aprender com os pacientes mais graves, com os poetas, com os povos primitivos, para saber de nós. Não tenho nenhuma dificuldade em acompanhar tal modo de pensar, porém quando se discutem filigranas da histeria, da neurose obsessiva etc., realmente começo a perder o interesse. É claro que vocês vão encontrar analistas que pensam exatamente o contrário, e os argumentos serão absolutamente válidos, mas não são os meus.

 

percurso A crítica é sobre o perigo de se colocar a teoria na frente do processo clínico?

landa  Sim, esse é o meu sentimento. A questão da cripta, por exemplo, que se encontra no texto Fora[1], de Derrida. É um texto longo e difícil, que levei muito tempo para compreender. Para mim, é o maior texto de psicanálise do Derrida. Não posso pensar a cripta como o lugar das palavras angulosas rompidas e, ao mesmo tempo, como um diagnóstico. Inclusive existem algumas produções do tipo "a cripta em Heidegger", "a cripta em Freud", que leio e não me dizem nada. Nessa questão, sou absolutamente fiel ao que aprendi com Nicolas Abraham e ao que penso, isto é, que só podemos entender o autor no interior do autor. Aquilo que entendo do autor é o seu texto. O discurso, este sim, posso colocar no divã. É também o discurso do paciente que vai para o divã; não posso dizer "o meu paciente é isso", mas, sim, que ele está dizendo isso, como ele pode dizer qualquer outra coisa. Ele está dizendo isso, nessa hora, para você. Só. Para além disso, é obrigatoriamente um salto triplo mortal no escuro.

 

percurso Anassemia é outro conceito desenvolvido sobretudo por Abraham, que é retomado em seu livro. Em que sentido ele é especialmente importante para o senhor?

landa  Qual é a mensagem de um ser humano para outro ser humano? Abraham diz que é uma mensagem de X, que não sabe quem é, para Y, que também não tem a mínima ideia de quem seja, e que articula X com Y. Só quando a mensagem chega ao seu destinatário é que ela revela o emissor e o receptor. Quando alguém está no divã, não posso dizer que aquela pessoa é isso. Ela está me dizendo isso, mas não vou ter acesso a quem ela é. Talvez, um dia, ela vá ter um pouco de acesso a si mesma, mas eu não. Acontece de o paciente enviar uma mensagem ao analista, sem saber que a está enviando, e quando ela chega, o analista a devolve como uma mensagem humana. É o trabalho, digamos assim, da origem: uma criança se mexe no berço e a mãe responde dando um beijo?- o gesto puramente neurológico se transforma em mensagem humana. Isso é anassemia: o momento em que a mensagem bruta se transforma em mensagem humana.

A preocupação clínica é definitivamente importante para mim. Eu queria saber o que faz o analista e para que serve a psicanálise. Essa busca me era capital e não optativa, daí o encontro com Ferenczi. Estou convencido de que cada analista, algum dia, passa pelo encontro com um texto que faz uma abertura heurística, que traz novos horizontes, novas perspectivas. O texto Confusão de línguas entre os adultos e a criança, de Ferenczi, me proporcionou exatamente isso, foi absolutamente luminoso. Na primeira vez que o li achei meio boboca, mas algo me dizia que não era bem assim. A noção de confusão de línguas entre o adulto e a criança e o subtítulo do artigo, A linguagem da ternura e a linguagem da paixão, me parecem absolutamente geniais. Ferenczi introduz a noção de dois registros de linguagem que podem estabelecer diálogo, mas, em princípio, não conseguem dialogar, porque um dos registros invade o outro, de modo que o registro invadido fica completamente submerso e submetido. No caso, a linguagem da paixão, que é a linguagem do adulto, recobre e submete de tal maneira o registro da ternura, que o próprio adulto se esquece da linguagem da ternura, e essa é uma das grandes dificuldades desse texto. Isto é, a criança é submetida pelo registro da paixão quando adulta não sabe mais falar a linguagem da ternura. Ferenczi não é simples de ler, é daqueles autores que aparentemente dizem tudo de maneira clara, têm um texto simpático, que flui como água e que achamos que entendemos, mas não entendemos nada. O universo ferencziano é, na minha leitura, criado nesse artigo.

A confusão de línguas cria uma cena magistral, que é a cena ferencziana por excelência: uma criança vai falar com o adulto, na sua linguagem parca e tosca, na tentativa de testemunhar alguma coisa de si mesmo, e o adulto, com certo desdém ou despreocupação, manda ela passear. Nesse momento, é quase como se pudéssemos pensar numa queda existencial, no mais puro sentido fenomenológico ou shakespeariano: a criança cai da linguagem. Porque se a criança, numa tentativa de testemunhar por si mesma, não é recebida, ela fica aquém da linguagem, numa queda infinita. Essa é a queda da linguagem. Tal cena abre um imenso campo. Em francês, é o campo da "bouteille a la mer". Imaginem uma garrafa ao mar e um náufrago que faz uma aposta absolutamente maluca: ele escreve um recado e o coloca dentro de uma garrafa que é jogada ao mar. Ele espera que a garrafa chegue até uma praia, onde um passante vai se interessar por ela, vai tentar decifrar o que está dentro e buscar o náufrago. Ou seja, é uma aposta louca. No entanto, é a aposta que uma criança faz quando fala "mãe, o pai (o tio ou alguém) fez isso comigo". Se a mãe responde "não, meu filho, imagina se seu pai (ou seu tio) fez isso... você está imaginando coisas, vai brincar, menino". Nesse momento, é como se o náufrago visse a sua garrafa afundar no mar. Isso é a queda da linguagem. Essa garrafa é uma imagem literalmente poética. Paul Celan, grande poeta do século xx, diz que o fundamento último do poema é que ele aporte numa terra-coração. Essa é a garrafa ao mar no campo da psicanálise. Serge Viderman escreveu um texto lindíssimo justamente chamado A garrafa ao mar. Então, a cena ferencziana é a de alguém que lança uma garrafa esperando que aporte na terra-coração e é nessa cena que Nicolas Abraham busca o conceito de anassemia.

 

percurso Qual a influência da clínica e da teoria ferenczianas em seu trabalho?

landa  Como disse Kafka, os únicos livros que valem a leitura são aqueles que passam pelo seu cérebro como se fossem um machado. O texto de Ferenczi me deu a convicção de encontrar algo vital. Na época em que trabalhava esse texto, eu estava querendo saber não só o que faz o analista, mas como o faz. Como disse Blanchot, existem poucas palavras mais difíceis que a palavra ‘nós', até porque ela tem uma existência efêmera. Muito raramente somos capazes de falar ‘nós'. Na maioria das vezes é quando há o encontro entre leitor e autor, encontro que se dá na ausência, por meio do texto. Experimentei isso lendo aquele texto. Nele, Ferenczi não diz o que o analista faz, mas qual preparação ele deve ter. O analista pode ser tudo, menos um ator. Ele fala com as tripas.

Ferenczi faz referência à chegada de uma pessoa que sofreu algum trauma, e é recebida com certa frieza ou com certa distância profissional. A pessoa ferida vem com a grande esperança de tocar alguém e ser tocada, mas quando depara com a hipocrisia, sente-a com todos os seus poros. Hipocrisia profissional não é uma expressão minha, mas uma formulação estrita de Ferenczi. Acrescento algo que ele não diz, mas é o que penso e estou clinicamente convencido disso. Não é que a pessoa chega e reencontra as condições do trauma, é ainda pior, porque quando ela chega, a chamazinha da esperança ainda está no ar e é apagada. A pessoa sai pior do que entrou; agora ela está no breu. E a esperança que se apaga pode ser mortal. Claro, podem discordar da minha posição, mas considero a responsabilidade do analista imensa, porque ele não é alguém que orienta, e se não recebe genuinamente a garrafa lançada ao mar, fingir é a pior das atitudes. Ou ele fala com as tripas ou está no campo da hipocrisia profissional. Então, se, um dia, o analista não se sente preparado para fazer uma sessão, ele que não ouse fazê-la. Se não se sente preparado para receber alguém, ele que não ouse receber aquela pessoa, porque burocracia não existe na profissão psicanalítica. A profissão do analista, tal como a entendo, é o encontro de duas pessoas nuas. O encontro tem que ser genuíno, porque, na base do faz de conta, não funciona. Isso quem diz é Ferenczi.

Já Nicolas Abraham fala em conversão: o analista se converte. Conversão é uma palavra usualmente associada à religião, mas não se trata disso. Para ele, a conversão é mental: toda a hipocrisia socialmente aceita não é aceitável no analista. Sua responsabilidade é absolutamente lévinassiana, quer dizer, a responsabilidade pelo outro é infinita. Sem nunca terem se conhecido, Lévinas e Ferenczi estão no mesmo campo.

Dizemos que a formação do analista é constituída de três pilares?- análise pessoal, supervisão e grupo de estudos. Mas para fazer o quê? Para que o analista se converta em um analista e o território analítico seja aquilo que promete ser. Por exemplo, quando o analista erra?- e quem não erra??-, admitir o erro para o paciente, no entender de Ferenczi, é importante porque aumenta a confiança. Freud disse cabalmente sobre a busca da verdade. Para Ferenczi, a palavra-chave não é a verdade, mas a confiança. Para chegar a encontrar a verdade, segundo ele, é preciso reestabelecer a confiança. Isso parece uma diferença entre Freud e Ferenczi, mas só na aparência. Porque se Freud nos diz o que faz o analista, Ferenczi fala como faz o analista e como o analista se faz. Ele sabe que é preciso fazer um rearranjo de si mesmo para praticar essa profissão. Mesmo no sentido freudiano de o paciente se tratar e se curar por transferência, para que isso aconteça, é necessário responder de maneira não hipócrita, nos termos do Ferenczi.

Para ele, a psicanálise se baseia no tato. Tato é outra palavra tão imprecisa quanto a palavra ternura. O analista pode dizer tudo, contanto que o diga com tato. Pode-se pensar que tato é sinônimo de boa educação, mas também podemos pensar algo muito mais complexo, que o tatear é como se fosse uma minhoca passeando pela terra e, na medida em que tateia, está em contato. Tato, contato, tatear, tocar... entram nesse campo, no qual não posso tocar de qualquer jeito, não posso falar de qualquer jeito, não posso escutar de qualquer jeito. Como no caso dos grandes artistas, parece que o trabalho surgiu espontaneamente, mas, para o texto parecer espontâneo, o escritor passou horas, dias, meses, trabalhando. Vale o mesmo para o analista. Ferenczi dizia que sua grande obra era ter feito psicanálise a duas pessoas. Não sou o mesmo analista com A e com B, aquilo que vivo e aprendo com A jamais vou poder transplantar para B e vice-versa. Essa frase "psicanálise a duas pessoas" tem um complicador, porque a psicanálise evita usar o termo pessoa, fala em sujeito, objeto etc.

Num salto para Nicolas Abraham, lembro que ele e Torok diziam que em uma análise acontece um entrelaçamento entre duas psiques, um tecido entre elas e isso é psicanálise a duas pessoas. Desse entrelaçamento nasce uma língua psicanalítica. Que língua é essa? Certamente não é a do Vocabulário da psicanálise. Um exemplo do cotidiano: quando a mãe chega para a criança e pergunta "você quer fazer pipi?", a criança responde com "babararara", imitando a voz, a entonação da mãe. A língua analítica é o equivalente da língua materna. Isso porque desse entrelaçamento de duas psiques é que vão nascer as palavras que nomeiam as experiências vividas. Essa nomeação é a chave da introjeção de pulsões. Só é possível introjetar pulsão quando encontramos o termo que nomeia a experiência vivida.

 

percurso O senhor poderia falar um pouco mais sobre como entende a introjeção?

landa  Não adianta, por exemplo, dizer para uma criança abusada algo como "meu filho, você foi abusado". Isso não quer dizer nada. Agora, no decurso de uma análise, no entrelaçamento entre duas psiques?- como dizem Abraham e Torok?-, ou na psicanálise entre duas pessoas, essa língua nascente vem para começar a nomear determinadas experiências e, assim, realizar a introjeção de pulsões. Esta se distingue completamente da incorporação de objeto, porque é mediada. A introjeção se faz no tempo, pela nomeação, enquanto a incorporação é estritamente o inverso, ocorre de imediato, sem temporalização e sem nomeação.

Essa questão é muito importante no campo em que estão Ferenczi e Nicolas Abraham. Este último, por exemplo, escreveu dois ou três textos praticamente ilegíveis. Um deles é a respeito de tempo e ritmo e também sobre a grande beleza da língua analítica, pois se trata de o analista e o analisando encontrarem a musicalidade para falar de determinados eventos e, assim, permitir a introjeção de pulsões. Psicanálise e poesia são o mesmo: a poesia descreve e cria; a psicanálise, nos termos que estamos considerando, faz exatamente isso. Nessas condições, a psicanálise aponta, descreve e cria algo que não existia antes. Por exemplo, a capacidade de relatar o que antes eram meros eventos que flutuavam em mim sem nome; e, com a nomeação, meu ego cresce e eu posso fazer aquilo que, nesse campo, é primordial: a introjeção de pulsões.

Isso é muito interessante porque aproxima as experiências sensíveis do campo da poesia com o campo da psicanálise. Poesia não é só um relato, é como se estivesse completamente impregnada da musicalidade e do ritmo pelo qual faço desfilar os versos, e é isso que também pode ocorrer numa análise. Em determinado momento do entrelaçamento entre duas psiques ocorre um puro ato de criatividade. Cria-se uma linguagem que tem a capacidade de funcionar introjetivamente. Se quiser impedir qualquer possibilidade de introjeção, basta berrar e a capacidade de introjeção estará banida. Encontre a musicalidade para falar com alguém e estará no campo da introjeção. Essa noção de entrelaçamento tem como uma arborescência na obra de Abraham e Torok. Nessa concepção, a psicanálise deixa de ser uma arqueologia, uma pesquisa do passado, uma explicação do que já foi, e, tampouco, uma arte de bem viver. Ela é um momento de gênese de uma experiência: da experiência analítica. Como dizia Nietzsche, se a vida fosse séria haveria pelo menos duas, uma para o rascunho e outra para passar a limpo. Balint traduziu isso como a análise sendo a segunda chance.

Esse entrelaçamento tem muitas repercussões. Por exemplo, dizem que a floresta amazônica é uma construção. Não conheço muito a respeito, mas parece que a terra tem dois ou três metros de profundidade e a floresta amazônica repousa sobre o entrelaçamento das raízes e das árvores entre si. Então, onde a floresta está apoiada? Onde termina uma árvore? Onde termina sua raiz? É um engano achar que a terra será produtiva se a floresta amazônica for destruída. Aquele entrelaçamento é uma construção de um tempo, daqueles indivíduos, das condições que propiciaram isso, quer dizer, poderíamos pensar que o solo verdadeiro da floresta amazônica é o entrelaçamento. E, metaforicamente, poderíamos supor que numa análise acontece o mesmo entre duas psiques. Qual a verdade última da vida de uma pessoa? Jamais saberemos. Mas sabemos que do entrelaçamento entre duas psiques nasce uma civilização, que se apoia sobre um solo que, muitas vezes, é pequeno. Vocês podem ver pessoas de origens muito humildes, pauperizadas, muito problemáticas e pensar que nada vai nascer dali... mas nasce. Porque numa análise, mesmo a partir de poucos elementos, se inicia um entrelaçamento e, desta maneira, cria-se um novo solo que permite construir uma civilização.

A formação do analista se torna um problema maior quando se pensa nesse entrelaçamento de psiques. Como podemos colocar duas pessoas em condições tais para que isso venha a acontecer? É uma questão maior para a qual não se tem solução.

 

percurso Como é para o senhor a formação do analista?

landa  Sem dúvida, a formação do analista tem três pilares: a análise, a supervisão e o curso dos seus estudos. Só precisamos saber o que quer dizer "análise do analista", "supervisão do analista" e "grupo de estudo do analista".

Vocês sabem muito bem que na história da psicanálise existiu a grande questão da análise didática, até que consideraram que este não era um bom termo. Não existe algo como análise "didática": ou é análise ou não é.

E o que quer dizer supervisão do analista? O jovem analista vai consultar um analista mais experiente, com quem vai discutir o quê? Com muita facilidade, o analista mais experiente escuta e não diz nada, ou diz uma ou duas considerações a respeito do paciente. O analista vai fazer grupo de estudos, o que pode ser muito útil, mas também pode ser o lugar e a ocasião para ele buscar munição que torne suas resistências mais ferozes. Sabemos muito bem que não somos donos da nossa economia psíquica. Podemos nos apoderar mais ou menos da nossa própria economia, mas, enquanto isso não acontece, os grandes gigantes da alma vão se apoderar dela e dirigi-la. Mais decisivo do que o artigo que estou lendo é como estou lendo. Tanto na análise, quanto na supervisão e no grupo de estudos o problema todo é a atitude. Quer dizer, como posso ajudar um analista jovem a ter uma atitude que lhe dê mais condições de estar numa situação extremamente útil, mas muito perigosa, que é estar só na frente de um paciente, nu como um verme? Como posso sustentar, apoiar, ajudar, discutir o que esse analista pode fazer, em uma situação extremamente rica, que está na origem de algo? Porque se não o ajudo, passamos a depender da natureza e a natureza pode muito pouco.

O paciente não está lá para ajudar, ele está lá para se queixar de suas mazelas e, muitas vezes, para se queixar do analista. Na maior parte das vezes, o paciente está lá para ganhar do analista, não para se curar. Como proteger (sublinho a palavra?- tudo o que é precioso é frágil e precisa de proteção) uma situação potencialmente rica, se muito rapidamente ela pode degenerar de maneira desagradável? A situação em que existe a possibilidade de um entrelaçamento de duas psiques traz a possibilidade de uma nova origem, de uma criação, mas essa não é espontânea. Espontâneas são as atitudes antianalíticas do paciente, que, diga-se, ele tem todo direito de desenvolver, até que elas cedam, assim como as atitudes antianalíticas do analista, porque também ele tem todo direito de se defender de situações que muitas vezes o ultrapassam. O analista tem em si alguns recursos, que podem ou não se manifestar em uma situação crítica. E uma situação de análise sempre é crítica. O analista que dá orientações está perdendo tempo, o seu e o do analisando. Nesse campo que estou assinalando, a formação do analista é uma grande questão. Estar só e nu é condição para o começo do que Ferenczi dizia ser análise a duas pessoas, para o que Nicolas Abraham dizia ser o entrelaçamento de duas psiques, que está na origem da língua analítica.

Aquilo com que me protejo da minha nudez é, do ponto de vista do entrelaçamento das psiques, um obstáculo; essa proteção, do ponto de vista pessoal, interno, equivale a um corte entre mim e meus recursos. Apenas na situação em que estou solicitado na minha fragilidade é que vou mobilizar recursos insuspeitos. Quanto tempo vai se passar até analista e analisando começarem a falar, se o analista estiver protegido em uma condição de força? Ele precisa estar remetido à condição de fragilidade para poder falar com as vísceras.

Hoje em dia, não se pode pensar a psicanálise sem fazer algumas referências filosóficas. Falar de psicanálise sem falar de Heidegger, por exemplo, é impossível. Lacan e os lacanianos estão referidos a Heidegger. Claro que isso cria uma polêmica importante entre os analistas lacanianos e os demais analistas, digamos assim, que não estão referidos a ele. Não sei se interessa a vocês chegarmos a essa conversa, mas, de qualquer maneira, eu estou referido a Lévinas. Talvez ele seja o único filósofo que, mesmo tendo ficado fascinado por Heidegger, num determinado momento percebeu que esse não era um bom caminho.

 

percurso Poderia falar um pouco mais sobre a presença da ideologia na psicanálise?

landa  Nos anos 1960 e 1970, era completamente inútil mostrar a presença de Heidegger e dos neo-heideggerianos na psicanálise. Existem textos estupendos, como o do historiador Victor Farias, que, ainda nos anos 1960, aponta as relações de Heidegger e o nazismo. Ele agora é um homem de 80, quase 90 anos, professor da Universidade do Chile, e acabou de lançar um livro?- Heidegger e sua herança?- onde mostra a relação entre o fascismo atual e as formas mais violentas de manifestação heideggeriana, que ele chama de islamofascismo. Há pouco tempo, esteve no Brasil Eric Faye, um escritor francês, que publicou um livro sobre a presença heideggeriana na atualidade. Mas, é completamente inútil escrever e apresentar uma massa impressionante de documentos quando se trata de ideologia, porque não há diálogo possível nessa esfera, apenas uma relação de forças brutas, de intensidades.

Derrida, por exemplo, escreveu duas mil páginas sobre Heidegger. Num determinado momento, Heidegger diz, aproximadamente, que talvez nos campos de concentração não tenha morrido ninguém propriamente. É estranho dizer isso, não? A justificativa heideggeriana é magnífica: só alguns são picados pela angústia de morte, aqueles que não são picados pela angústia de morte sequer morrem. Essa frase foi um grande problema para um diretor do Instituto Heidegger, porque ele teve acesso aos cadernos secretos de Heidegger e tomou a decisão de publicá-los. Publicados os cadernos, ele perdeu o posto de diretor.

A pesquisa feita revela e apresenta uma massa de informações e documentos que dá o que pensar e, no entanto, o efeito foi praticamente nulo. Heidegger continua sendo ensinado na universidade como se fosse a quintessência da filosofia, ainda se continua discutindo que ele não era nazista, que o seu nazismo foi apenas um epifenômeno e, no entanto, seu pensamento está na base do genocídio. O genocídio nazista não se fez sem a presença de Heidegger, o que não nos impede de ler sua obra. E, como já disse, existem grandes correntes psicanalíticas que se declaram heiddegerianas. Insisto nisso porque o campo da psicanálise percorrido pelas ideologias dá uma impressão de força, de pujança, e se contrapõe ao campo da fragilidade, por exemplo, de Ferenzci, de Nicolas Abraham. Quando li A Casca e o Núcleo, passei meses pensando na frase "salvar a análise do homem dos lobos, salvar a análise, nos salvar". Essa ideia de salvamento, de perigo iminente, de fragilidade, se contrapõe a esse outro campo percorrido pela ideologia. A análise está permanentemente em perigo porque ela aponta para a condição da existência. Análise não é pujança ideológica, berreiro, tagarelice, mas fragilidade que nos obriga a salvar. Nicolas Abraham se declara discípulo de Freud, de Ferenczi e de Husserl. Quando ele diz Husserl, isso já é uma advertência, pois vocês sabem que Husserl foi professor de Heidegger e foi Heidegger quem assinou a nota de expulsão de Husserl da universidade. O nazismo entrou no campo da linguagem, no campo da filosofia, não há mais o que demonstrar, e, no entanto, é inútil falar a esse respeito.

Hoje nós estamos lidando com um tempo plenamente genocidário. A Bósnia, por exemplo, é um episódio; o que os yazidis e as mulheres yazidis viveram nas mãos do Estado Islâmico é algo com que temos que nos preocupar. Assim como algumas guerras na África, em que os homens são violados sistematicamente por seus inimigos de tal maneira que eles não podem voltar, nem seguir adiante, nem cometer suicídio. Eles nada podem. São como fantasmas errantes por um continente no qual não podem chegar a lugar algum. A violação é um sistema, não se dá ao acaso. Isso é um projeto político em andamento que se contrapõe completamente ao campo da fragilidade. Quando falamos em fragilidade, imediatamente há um apelo a ternura, que, nos termos ferenczianos, é a linguagem que antecede todas as outras. Ele dizia que amamos da maneira como fomos amados, porque, antes de mais nada, somos objetos passivos do amor do outro. O primeiro tempo do amor é passivo. O que vemos hoje é a invasão desenfreada do campo infantil da ternura pela paixão adulta. É um tempo difícil, mas é um bom tempo para se pensar a psicanálise.

 

percurso E há outros efeitos do advento dessa lógica das paixões?

landa  A destruição de toda ternura. A ternura fala baixinho. Hoje em dia escutamos berros: eu tenho direitos, eu tenho mais direitos que você... daí em diante o céu é o limite. O campo da ternura está muito fragilizado. Se pensamos que o nazismo terminou, que a linguagem da força, do berro e do calar o outro está terminada, estamos muito enganados. A palavra genocídio está banalizada porque é aplicada a lugares e situações em que ele não existe. Acontece a velha história: o mágico faz uma porção de mandracarias com a mão direita e ninguém vê que ele já tinha um coelho na mão esquerda. É isso que está acontecendo. O genocídio está acontecendo lá, onde ninguém presta atenção.

No campo ferenzciano, da fragilidade enquanto condição da palavra psicanalítica, o que importa é a nomeação. Há uma linguagem que nasce na clínica analítica, uma linguagem entre dois, criadora de uma civilização. Só a experiência com o outro permite a apropriação do que pertence a nós mesmos. Eu, no contato com o outro, na experiência com o outro, me torno capaz de me apropriar das minhas emoções. Essa nomeação, que é condição da apropriação, também é condição para a introjeção das pulsões. Berros não são condição de nomeação, mas de incorporação de palavras.

No campo pulsional, na medida em que posso nomear as pulsões, posso me apropriar delas, porque são fruto de uma experiência. O protomodelo disso é uma cena bíblica: Deus manda Adão dar nome para as bestas da floresta. Adão vê uma criatura e diz "você é o leão". Que mudança isso traz, se o leão continua sendo a mesma criatura? É Adão quem mudou, ele não é mais o mesmo, porque ele se apropriou da experiência que teve com o leão. Agora, ele é radicalmente outro em relação ao momento em que encontrou o leão pela primeira vez. Isso se faz em relativo silêncio.

Quando prevalece uma espécie de ternura, essa apropriação da experiência pela nomeação é possível. Podemos dar mais um passo nesse campo, em que preciso salvar, inclusive, a capacidade de falar, que é oposto àquele marcado por alguma ideologia apaixonada. No campo da fragilidade, a psicanálise é a vitória do adquirido sobre o inato. Na clínica psicanalítica isso quer dizer que o paciente chega de um jeito e ganha um grama ou um centímetro. Ganha de quem? De ninguém. Ganha dele para ele mesmo. O inato é dado, o adquirido é o que permite crescer.

 

percurso E quando não é possível nomear? É disso que trata a cripta?

landa  Se pensarmos em grandes traumas, nas mulheres violentadas, por exemplo, trata-se, aqui, de uma hiper-realidade. Hiper porque é, de longe, a vitória do outro sobre uma pessoa; é hiper-realidade porque determina a sequência de uma vida. É um evento histórico com data, hora e personagens claramente configurados. Não há nada de imaginativo. Por exemplo, uma mulher grávida em decorrência de violação coletiva vê sua concepção como marca da agressão e sofre uma fratura de tudo aquilo que possa dizer porque, num determinado momento, nada do que pôde dizer teve qualquer efeito sobre o que o outro fez com ela. Isso é quase uma fratura da própria capacidade de falar. Tal fratura encerra a hiper-realidade. Na introdução de Le verbier de l'homme aux loups, Derrida fala de palavras angulosas numa superfície áspera e fraturante, o que é uma maneira magnífica de dizer que ocorreu um rompimento na pessoa e essa ruptura não é cirúrgica; rompe-se algo e nessa ruptura algo penetra e permanece encriptado, como uma realidade dentro da realidade. Uma hiper-realidade da qual não se pode falar. Circundada por uma espécie de realidade conhecida, a pessoa faz gestos, atos do cotidiano e, naquilo que foi encriptado, tem algo que deve ser mantido em segredo, que a pessoa porta em si e não pode saber. Quer dizer, ela não pode se lembrar do dia em que foi violada. Os negacionistas, para exemplificar, argumentam que a mulher que foi violada está confusa e não sabe dizer nem como era o violador: uma hora ela diz que foi um branco, depois diz que foi um negro... Não, a mulher não está confusa, ela não pode se lembrar. A cripta corresponde a um enclave, a algo enfurnado na pessoa. É uma realidade em segredo, um segredo que a pessoa porta sem saber e sem poder saber. Como dizia Nicolas Abraham, entramos numa igreja e encontramos mosaicos. De repente, suspeitamos que um daqueles mosaicos pode abrir o caminho das tumbas dos santos enterrados ali. Isso é a definição da cripta. Quer dizer, a pessoa não sabe que está portando isso, ela tem uma suspeita, mas não sabe.

 

percurso E isso é diferente do recalque?

landa  Completamente. Não tem a ver com o retorno da pulsão reprimida. Trata-se de uma fratura, na qual algo entrou e ficou encriptado: um corpo estranho instaurado na pessoa, apesar dela. Nada a ver com repressão. Nicolas Abraham pergunta como se abre uma cripta. Primeiro, temos que descobrir a cripta. Essa é uma descoberta clínica. O que tem dentro da cripta? Por que é uma cripta? Ele diz algo estupendo: a cripta é a vergonha do outro instalada em mim. Pensar que é a própria vergonha que faz uma cripta é um engano. Abraham é taxativo: não existe cripta construída com uma única pedra que seja da própria vergonha. Gostamos de pensar que participamos de todos os momentos da nossa vida, e isso não é verdade, há momentos em que o outro tem preponderância, e esse é o caso da cripta. Uma cripta se abre por um julgamento, no qual a vergonha do outro será identificada. O outro é quem teve um comportamento vergonhoso. Quando pensamos nos relatos das pessoas que estiveram em campos de concentração, ou, agora, nos relatos das mulheres yasidis, ou nos tutsis, vemos que nas criptas está uma história da Humanidade que busca julgamento. Ainda Lévinas: os demagogos de todas as cores sempre, em um determinado momento, tiram seu joker?- "a história há de me julgar". Mas o homem responsável é aquele que julga a própria história. Agora, como vamos abrir isso? E como vamos julgar? Muitas vezes, o julgamento está entre os piores possíveis. Por exemplo, um pai que viola uma filha, um xerife que prende um inocente, ou seja, o portador da lei é o violador da lei.

 

percurso Gostaríamos de encerrar essa entrevista com alguma consideração sobre os destinos da clínica psicanalítica.

landa  Lévinas não era muito simpático à psicanálise, coloca de uma maneira muito interessante a questão sobre a parte que dou para o outro. Para ele, aquilo que dou para o outro é a minha nudez, a parte mais frágil de mim, aquela que menos conheço. Ele fala do rosto como a parte mais frágil do outro, que é dada a mim. É no rosto do outro que posso reconhecer a lei que diz: "Você não me matará". Não se trata do "não matarás" enquanto lei geral. Trata-se de "você não me matará". Quer dizer, o "não matarás" só tem sentido a partir da fragilidade, e não a partir de uma ordem. É na nudez, na fragilidade que digo: "estou vivo, posso morrer". Primeiro: a nudez permite estar em contato com aquilo que é a emergência dos próprios recursos, que desconheço e só vou saber na clínica. Segundo: se tem algum sentido falar em ética psicanalítica, esta advém da exposição da nudez, das fragilidades.

Esse assunto é determinante para pensar, inclusive, os destinos da psicanálise e, sobretudo, da clínica. Pensando de maneira muito crítica, se a clínica continuar se desenvolvendo surda a algumas coisas, não serão os inimigos da psicanálise que irão destruí-la, até porque os inimigos da psicanálise são enfrentáveis. O grande problema, como dizia Fédida, é que o pior inimigo da psicanálise está entre os psicanalistas. Hoje em dia, a psicanálise não é um campo puro, ela é percorrida pelas mais diferentes ideologias, as mais diferentes modas. As instituições, que aparentemente protegem a psicanálise, protegem mais os psicanalistas, porque nos sentimos bem entre os que nos são próximos. Isso é mais um espírito gregário que propriamente a defesa da psicanálise. A psicanálise, como todo discurso, é extremamente frágil. Já assistimos a isso: um dia somos alguma coisa, no outro, somos pouco menos que nada; uma criança vai bem hoje e, no dia seguinte, ela cai das palavras e é pouco mais que nada. Também nós, analistas, estamos num determinado nível de linguagem que pode ser fraturado e, assim, cairmos. Nesse caso, teríamos sorte se caíssemos sobre nosso próprio corpo, mas pode ser que a queda seja sem fim, como disse Shakespeare.


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Percurso é uma revista semestral de psicanálise, editada em São Paulo pelo Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae desde 1988.
 
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