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Resumo
O artigo parte de uma reflexão sobre o sentimento de nostalgia?– esta estranha sensação de incômodo e desconforto diante de términos, perdas e separações presentes na vida. Encontra no “complexo do semelhante” (Freud, 1895) respaldo para propor como hipótese que a expressão “complexo melancólico” (Freud, 1917) tenha status de conceito estrutural, indo mais além do caráter psicopatológico dado por Freud. Sustenta a ideia de ser este complexo constitutivo do anímico, em um período anterior à constituição do desejo.


Palavras-chave
nostalgia; complexo melancólico; anseio; Begierde; Freud.


Autor(es)
Ignácio Alves Paim Filho Paim Filho
é psicanalista, Membro Pleno do Centro de Estudos Psicanalíticos de Porto Alegre (cepdepa). Membro Titular da sbpdepa, Coordenador do grupo de estudos “Revisitando a Metapsicologia Freudiana”, no cepdepa.

Ana Cláudia S. Meira Meira
são psicanalistas, Membros Efetivos do cepdepa.

Gustavo Gazzana Flores  Flores
são psicanalistas, Membros Efetivos do cepdepa.

Laura Sacchet Jaskulski Jaskulski
são psicanalistas, Membros Efetivos do cepdepa.

Camila Terra da Rosa Rosa


Notas

1. Melancholische Komplex: die Begierde der Seele. Trabalho realizado pelo Grupo de Estudos "Revisitando a Metapsicologia Freudiana", do cepdepa.

2. G. Bataille, O erotismo, p. 16.

3. S. Freud (1926), "Inibição, sintoma e angústia", in P. C. Souza (Trad.), Sigmund Freud, p. 80.

4. S. Freud (1926), op. cit.

5. Entendemos que tal proposição é polêmica; entretanto, encontramos em Freud alguns elementos para sustentar tal hipótese. Em 1924, no texto O Problema Econômico do Masoquismo, ele afirma "a libido encontra nos seres vivos a pulsão de morte que neles vigora" (p. 191, grifo nosso); e no texto O Mal Estar na Cultura, de 1930, ele destaca que a pulsão de morte é a pulsão por excelência.

6.S. Freud (1915), "Pulsões e destinos da pulsão", in L. A. Hanns (Trad.). Escritos sobre a psicologia do inconsciente (Obras psicológicas de Sigmund Freud, 1).

7. S. Freud (1915), op. cit.

8. Quando falamos de representâncias, nos remetemos a todas as formas de inscrição psíquica, desde indicadores ou signos de percepção?- impressões e traços?- a representações (Carta 52. Freud, 1896).

9. S. Freud (1915), op. cit., p. 149.

10. J. Laplanche; J.-B Pontalis. Vocabulário da psicanálise.

11. I. Paim Filho, Metapsicologia: um olhar à luz da pulsão de morte.

12. S. Freud (1923), "O eu e o id", in P. C. Souza (Trad.), Sigmund Freud. (Obras Completas, 16), p. 36.

13. S. Freud (1919), "O inquietante", in P. C. Souza (Trad.), Sigmund Freud. (Obras Completas, 14).

14. L. A. Garcia-Roza, Artigos de metapsicologia, 1914-1917: narcisismo, pulsão, recalque, inconsciente.

15. L. A. Garcia-Roza, op. cit.

16. S. Freud (1917), "Luto e melancolia", in P. C. Souza (Trad.), Sigmund Freud. (Obras Completas, 12), p. 186.

17. S. Freud, (1895/1950)."Projeto para uma psicologia científica".

18. S. Freud (1895/1950), op. cit., p. 380.

19. S. Freud (1895/1950), op. cit.

20. "a" representa a essência do objeto; "b" representa os atributos do objeto (Freud, 1895/1950).

21. S. Freud (1920), Além do princípio de prazer, in L. A. Hanns (Trad.). Escritos sobre a psicologia do inconsciente. (Obras psicológicas de Sigmund Freud, 3).

22. Esta proposição apoia-se na sutil, porém fundamental, diferenciação feita pelo próprio Freud em seus textos originais em alemão: Begierde (anseio) refere-se à busca por um objeto ainda não representado, tal como descrito em 1895, no texto "Projeto para uma Psicologia Científica". Ao utilizar o termo Sehnsuchs (desejo), em 1926, no texto "Inibição, sintoma e angústia", a busca passa a ser por um objeto específico, logo, já representado. Portanto, estamos utilizando, no presente trabalho, o Begierde de 1895.

23. S. Freud (1895/1950), op. cit.

24. S. Freud (1926), "Inibição, sintoma e angústia". In: P. C. Souza (Trad.), Sigmund Freud. (Obras Completas, 17).

25. S. Freud (1926), op. cit., p. 78.

26. S. Freud (1895/1950), op. cit.

27. L. A. Garcia-Roza, op. cit., p. 152.

28. I. Paim Filho, op. cit.

29. S. Freud S. (1919), "O inquietante", in P. C. Souza (Trad.), Sigmund Freud. (Obras Completas, 14), p. 365.

30. S. Freud (1895/1950), op. cit., p. 376.

31. S. Freud (1920), "Além do princípio de prazer", in L. A. Hanns (Trad.). Escritos sobre a psicologia do inconsciente. (Obras psicológicas de Sigmund Freud, 3), p. 165.

32. S. Freud (1895/1950), op. cit.

33. S. Freud (1895/1950), op. cit., p. 337.

34. S. Freud (1895/1950), op. cit.

35. S. Freud (1895/1950), op. cit.

36. S. Freud (1896), Carta 52, in J. M. Masson (Ed.). A correspondência completa de Sigmund Freud para Wilhelm Fliess.

37. S. Freud (1895/1950), op. cit.

38. S. Freud (1916), "Transitoriedade", in P. C. Souza (Trad.), Sigmund Freud. (Obras Completas, 12).

39. G. Bataille, op. cit.



Referências bibliográficas

Bataille G. (1980). O erotismo. Lisboa: Moraes.

Freud S. (1896/1986). Carta 52. In Masson J. M. (Ed.). A correspondência completa de Sigmund Freud para Wilhelm Fliess. Rio de Janeiro: Imago.

____. (1895/1950). Projeto para uma psicologia científica. In Obras completas de Sigmund Freud: edição standard brasileira. Rio de Janeiro: Imago. (Obras completas, 1).

____. (1915/2004). Pulsões e destinos da pulsão. In Hanns L. A. (Trad.). Escritos sobre a psicologia do inconsciente. Rio de Janeiro: Imago. (Obras psicológicas de Sigmund Freud, 1).

____. (1916/2011). Transitoriedade. In Souza P. C. (Trad.), Sigmund Freud. São Paulo: Companhia das Letras. (Obras Completas, 12).

____. (1917/2011). Luto e melancolia. In Souza P. C. (Trad.), Sigmund Freud. São Paulo: Companhia das Letras. (Obras Completas, 12).

____. (1919/2010). O inquietante. In Souza P. C. (Trad.), Sigmund Freud. São Paulo: Companhia das Letras. (Obras Completas, 14).

____. (1920/2004). Além do princípio de prazer. In Hanns L. A. (Trad.). Escritos sobre a psicologia do inconsciente. Rio de Janeiro: Imago. (Obras psicológicas de Sigmund Freud, 3).

____. (1923/2011). O eu e o id. In Souza P. C. (Trad.), Sigmund Freud. São Paulo: Companhia das Letras. (Obras Completas, 16).

____. (1924/2011). O princípio econômico do masoquismo. In Souza P. C. (Trad.), Sigmund Freud. São Paulo: Companhia das Letras. (Obras Completas, 16).

____. (1926/2014). Inibição, sintoma e angústia. In Souza P. C. (Trad.), Sigmund Freud. São Paulo: Companhia das Letras. (Obras Completas, 17).

____. (1927/2014). O futuro de uma ilusão. In Souza P. C.  (Trad.), Sigmund Freud. São Paulo: Companhia das Letras. (Obras Completas, 17).

Garcia-Roza L. A. (2008). Artigos de metapsicologia, 1914-1917: narcisismo, pulsão, recalque, inconsciente. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.

Hanns L. (1996). Dicionário comentado do alemão de Freud. Rio de Janeiro: Imago.

Laplanche J.; Pontalis J.-B. (1996). Vocabulário da psicanálise. São Paulo: Martins Fontes.

Paim Filho I. (2014). Metapsicologia: um olhar à luz da pulsão de morte. Porto Alegre: Movimento.





Abstract
The article investigates the feeling of nostalgia, this strange feeling of annoyance and discomfort about endings, losses and separations present in the daily lives. Finding out in “complex similar” (Freud, 1895) support to promote the expression “melancholic complex” (Freud, 1917), the concept of status. It supports the idea that this constitutive complex of animistic, in a period prior to the desire constitution.


Keywords
nostalgia; melancholic complex; wish; Begierde; Freud.

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 TEXTO

Complexo melancólico: o anseio da alma

Melancholy complex: the longing of the soul
Ignácio Alves Paim Filho Paim Filho
Ana Cláudia S. Meira Meira
Gustavo Gazzana Flores  Flores
Laura Sacchet Jaskulski Jaskulski
Camila Terra da Rosa Rosa

Na base, há a passagem do contínuo para o descontínuo e do descontínuo para o contínuo. Somos seres descontínuos, indivíduos que isoladamente morrem numa aventura ininteligível, mas que têm a nostalgia da continuidade perdida. Suportamos mal a situação que nos amarra à individualidade que somos. E, ao mesmo tempo que conhecemos o angustioso desejo de duração dessa precariedade, temos a obsessão duma continuidade primacial que ao ser geralmente nos uma[1].

 

Introdução

Uma continuidade perdida... a que se refere Bataille em sua citação? O que é este sentimento de nostalgia de que ele nos fala, este angustioso desejo de duração que ele menciona? Manifestações de tal estado chegam a nossas salas de análise, mas também fora delas, em mostras cotidianas de todos nós. Um certo estado melancólico que, por vezes, parece ser de nascença remete-nos a uma sensação permanente de algo que falta, um inquietante misto de saudade, de vazio, uma nostalgia, um isso que parece ser da ordem do difícil-de-explicar.

Pensamos nos frequentes comentários sobre uma estranha sensação, um incômodo, um desconforto, cada vez que deparamos com o final do domingo, com um final de festa, com o término de um curso, com o fim do ano, com o passar do tempo, com o "no meu tempo, ..."?- anúncios da transitoriedade. Em cada uma destas ocasiões, parecemos reviver uma perda antiga, ainda que?- se nos perguntarem?- não saibamos definir bem do que. Será que, junto com ela, temos um estado emocional que se avizinha à melancolia? Seria algo melancólico? Seria isso algo mesmo de nascença? Este estado tão pesado, tão difícil e, ao mesmo tempo, tão comum, não seria algo que nos remete ao desamparo de um começo que proclama desde o início a possibilidade de nossa morte? Se sim, como compreendemos isso metapsicologicamente?

Já nascemos sob a égide da perda; perdemos desde o momento em que ingressamos neste mundo. Viemos à luz, mas perdemos um idealizado estado de fusão, quando habitantes do útero materno. Ganhamos existência, mas perdemos a sensação mítica de completude; temos que respirar e sentir fome. Ganhamos dentes e a capacidade de sentar, mas perdemos o seio, este objeto que iludia a realidade da separação do corpo da mãe. Ganhamos autonomia, mas perdemos as fezes que se separam de nosso corpo. E assim por diante...

Contudo, não satisfeitos, não acomodados, não conformados com isso, engendraremos formas de negar tantas e tão precoces perdas. Uma ilusão que busca driblar esta dura passagem de um estado para outro está na frase do próprio Freud: "Há bem mais continuidade entre vida intrauterina e primeira infância do que nos faz crer a notável ruptura do ato do nascimento"[1]. Compreendemos o que ele quer dizer; porém, pensar em uma continuidade pode ser mais uma das tantas artimanhas do psiquismo para tolerar o intolerável: nunca mais teremos aquilo?- algo inespecífico por natureza?- que para sempre buscamos. E esta é a dor.

Por mais que, após o nascimento, a mãe continue satisfazendo as demandas do bebê através de seu corpo e por outros meios, a satisfação será sempre temporária. O desamparo psíquico da criança?- que, segundo Freud[2], é um símile natural de seu desamparo biológico?- provoca angústia e tanto pesar: somos seres descontínuos.

De todas estas perdas que nos são impostas, a separação do corpo da mãe, o desmame, as fezes e a diferença anatômica?- denúncias da castração?- nos levam a ter que transformá-las e elaborá-las. Mas e nós, elaboramos?

Talvez seja nosso desígnio estarmos, para sempre, implicados com o desligamento, por estas inúmeras vivências da realidade que nos impõem a difícil constatação: o objeto não está lá sempre que necessitamos ou desejamos. Não seria, então, possível dizer que estas perdas imprimem uma marca e uma dor desde nossa origem, e que esse estado melancólico estaria, pois, na essência do psiquismo?

 

Do encontro ao desencontro, da ligação ao desligamento: objeto versus pulsão

Entendemos que o bebê nasce pura pulsão de morte[3]. Assim, tendo a pulsão uma fonte endógena e uma força constante, situando-se ela no limite entre o somático e o psíquico[4], cabe pensarmos: quais as consequências que ela impõe ao aparato psíquico?

Em um primeiro momento, o corpo do bebê?- agora separado das entranhas da mãe?- é invadido por uma tensão sem qualidade; é drang. Na medida em que este corpo vai sendo tocado, manuseado e cuidado, encontra algo da ordem da continência, e a tensão diminui, mesmo que, em seguida, vá voltar. Neste período, não há diferenciação entre o interno e o externo; então, a pequena criança é passivamente investida pelos objetos primordiais e tem seu corpo pulsional por eles inscrito, marcado, erogenizado, significado e ganhando vida anímica.

No alvorecer da alma, o que existe é um Eu-realidade originária (Real Ich)[5], em estado potencial, que é criado pelas marcas psíquicas e, ao mesmo tempo, as alberga. Ele é anterior à existência de um Eu como uma unidade organizada, funcionando sob as leis que regem o princípio de prazer e do desprazer. É uma organização incipiente que começará a dar ordem ao caos pulsional e que se manifesta por um anseio. Será a partir destas marcas inscritas que, em um processo cada vez mais complexo, o aparato psíquico irá se constituindo, na medida em que houver os encontros da pulsão de morte do infans com os objetos primários. Assim, este psiquismo terá condições de criar representâncias[6] que irão dando conta de um sujeito pulsional, estabelecendo conexões e possibilitando expansões.

Antes de 1920, temos, na concepção freudiana, um bebê que ele mesmo, ativamente, iria estruturando-se sob a égide do binômio atividade versus passividade. Até aí, para Freud, o objeto seria secundário, tal como explicitado no texto "Pulsões e Seus Destinos": "[...] aquilo em que, ou por meio de que, a pulsão pode alcançar sua meta. Ele [o objeto] é o elemento mais variável na pulsão e não está originariamente vinculado a ela, sendo-lhe apenas acrescentado em razão de sua aptidão para propiciar a satisfação"[7].

Embora o objeto da pulsão sexual seja o que há de mais variável, isto não significa que qualquer objeto possa satisfazer a pulsão, pois o objeto pulsional é marcado por características singulares[8]. Inclusive, a posterior busca por um objeto que dê conta da satisfação total da pulsão tem origem nesta singularidade do objeto, que traz consigo a eterna promessa ilusória de uma continuidade absoluta. Sublinhamos que esta busca pela fusão?- que sabemos impossível?- está fadada a se manter em um jogo interminável com o não encontro, este que é elementar para uma verdadeira vida psíquica marcada pela alteridade.

Entretanto, com a concepção da pulsão de morte em 1920, fica solidificado o que Freud começou a trabalhar em 1914 e seguiu em 1917: a força do objeto. A dualidade agora passa a se dar no binômio passividade versus atividade?- porém, em uma ordem invertida à apresentada anteriormente?- que remete à força constitutiva dos objetos primários. A partir daí, temos um bebê à mercê de suas próprias pulsões e das demandas inconscientes do outro sobre este bebê. Tais objetos ganham, então, um lugar de preponderância, já que são eles que inauguram o aparato psíquico do pequeno ser: em seus trâmites entre a ação específica e a nova ação psíquica, conjuntamente com a terceira ação, o recalque originário[9].

Com o desenvolvimento do infans, o objeto sexual primitivo precisará ou deverá ser abandonado, ao que se segue uma alteração do Eu, descrita como a instalação do objeto dentro do Eu (introjeção/identificação), tal como ocorre na melancolia. Temos aqui a gênese do processo identificatório: tens que ser assim como eu, e tens que não ter assim como eu. Chama-nos a atenção que Freud use a melancolia como referência para pensar o constitutivo. Nesse sentido, mobilizados por nossa premissa nesse trabalho, levantamos a hipótese de que o fator determinante entre a melancolia como patologia e uma possível melancolia estrutural seja uma questão de intensidade. Todavia, Freud adverte-nos: "ainda não conhecemos as circunstâncias exatas dessa substituição"[10].

É nessas circunstâncias exatas (ou talvez não tão exatas), da natureza desta vivência de ligação e desligamento, de encontro e desencontro, e os rastros que tal dinâmica deixa, que examinaremos como convivemos com a perda inaugural, como nos desligamos ou não nos desligamos de nosso primeiro objeto, sem pensar na melancolia enquanto patologia; pensamos, antes, nesta como um fenômeno constitutivo do desenvolvimento.

Voltemos, então, a um tempo remoto e primordial, em que há um aparato ainda precariamente constituído, para nos perguntarmos: o que fica ali inscrito? De que ordem é isso que nos apresenta como as estranhas sensações[11] que descrevemos no início de nosso texto?

A pulsão de morte busca descarga. Entretanto, ao ser capturada pela pulsão sexual oriunda do objeto, cria-se um enlace; deste enlace, vão surgindo marcas psíquicas inespecíficas em sua especificidade. Diante dessa vivência dialética, entendemos que o bebê fica em um estado de anseio por algo da ordem do incognoscível, do inapreensível, da coisa-em-si, coisa esta que avaliamos estar relacionada com o que Garcia-Roza[12] nomeará como o objeto absoluto da falta.

Temos por escopo que todo amparo remete à sensação do desamparo de nossas origens. Assim, partimos da noção de que, paradoxalmente, o objeto possibilita tanto a experiência de satisfação como a experiência de dor. Logo, o encontro e o reencontro com o objeto serão sempre insatisfatórios, sempre faltantes. Por isso, além de ser o meio de a pulsão sexual atingir sua meta, o objeto é, ao mesmo tempo, o denunciante de um vazio, que remete sempre a um mais além...

Nesse sentido, diferenciamos o pensamento metafísico do pensamento metapsicológico freudiano. O primeiro pressupõe a existência da coisa-em-si?- nunca conhecida em toda sua extensão?- porém, a compreende como plena: o objeto absoluto. O segundo referenda a existência da coisa-em-si, nunca conhecida em sua totalidade; porém, concebe que essa é sempre incompleta. Daí a expressão de Garcia-Roza[13]: o objeto absoluto da falta. Se assim o for, nossa melancolia originária clama por ser escutada.

 

O complexo melancólico

O complexo melancólico se comporta como uma ferida aberta; de todos os lados atrai energias de investimento e esvazia o Eu até o completo empobrecimento...[14]

Se pensarmos na melancolia enquanto patologia, parece claro que, no conflito melancólico, a pulsão sexual é quase que sobrepujada pela pulsão de morte. Um forte grau de defusão pulsional remete à intensidade do sadismo que está presente no Supereu e que agrava de forma severa o conflito entre Eu e Supereu, pelo qual uma parte do Eu se oferece como objeto de investimento para essa perda que ele próprio sofreu. Assim, parece-nos que o Eu do melancólico nasceu perdido, incompleto e incompleto, já que a integração que era para ter se dado não ocorreu. Mas não será assim com todos nós?

O texto "Luto e Melancolia" deixa ao leitor uma série de possibilidades em aberto para pensar e ampliar acerca de muitos conceitos ali pontuados. Em mais uma das tantas leituras possíveis, levantamos a ideia de que a melancolia?- enquanto psicopatologia?- é somente um dos caminhos do que, em 1917, Freud denominou de complexo melancólico, para o qual arriscamo-nos a propor um status metapsicológico, diferenciando da patologia. Neste sentido, compreendemos que tem um grau menor, em gradações diferentes. Um quantuum segue sangrando, com uma outra intensidade.

Para dar sustentabilidade à ideia de um complexo melancólico que é constitutivo de todo sujeito humano, percorremos um caminho pelos outros três complexos mais claramente expostos na obra freudiana, que são o de castração, o Édipo e o do semelhante. Com a intenção de reivindicar uma importância similar para o complexo melancólico aos demais, será mais especificamente na trilha do complexo do semelhante que apoiaremos nossos passos seguintes.

Freud[15] explica que é relacionando-se com seus semelhantes que o ser humano aprende a conhecer e a compreender o outro. É a partir das necessidades da vida (fome, respiração e sexualidade) que surge o ímpeto para a necessidade de discriminar a realidade da alucinação, a realidade externa da realidade psíquica.

É nas diferenças que nos constituímos, então, será a partir delas, que surgirá o propósito de conhecer essa imagem, esse outro semelhante, e descobrir se há alguma via de acesso entre ele e a imagem mnêmica do objeto desejado. Diante disso, inferimos que o psiquismo é movido pela busca da identidade (a+b). O bebê apreende o outro via identidade de pensamento quando a catexia do desejado não coincide totalmente com a imagem percebida. Quando o investimento da expectativa do encontro com a imagem mnêmica e, ao lado dela, uma percepção externa que não corresponde a ela inteiramente, mas apenas em parte (a+c e não a+b), haverá uma inibição ativa do Eu que evita a descarga, para evitar o desprazer decorrente deste não encontro. "Quando as duas catexias não coincidem, surge o ímpeto para a atividade de pensamento, que voltará a ser interrompida pela coincidência entre ambas"[16].

O complexo do semelhante divide-se em duas partes: uma incompreensível, a coisa, parte imutável, o jamais conhecido e sempre buscado, essencialmente o que se pretende; e outra cambiante, que pode ser compreendida por meio da atividade de memória, rastreada através de informações do próprio corpo. Esta é a maneira de compreender o semelhante, fazendo passar seus atributos pelo próprio corpo, colocando-se em seu lugar. É o valor imitativo identificatório de toda percepção[17]. O que nunca será conhecido e nem passível de ser assimilado pelo sujeito é a essência dos objetos primordiais (a+b[18]). Não esqueçamos: somos eternos estrangeiros para nós mesmos. Somos habitados pelo que já foi conhecido e recalcado e pelo que nunca foi e nem será. Será por isso que o complexo melancólico alicerça os fundamentos de nossa alma?

Já mais adiante no desenvolvimento do bebê, o complexo de Édipo contém desejos infantis intoleráveis e inconciliáveis com a realidade; ele está por isso fadado à frustração, e causa sensações dolorosas na criança pequena. Seu desejo pelo progenitor do sexo oposto sofre uma profunda decepção, uma ferida narcísica, compreendida pela criança como perda do amor. Esse fracasso das investidas infantis?- marca da castração?- deixa como rastro, nesse momento, um sentimento de inferioridade. Não podendo mais desejar tão apaixonadamente como na primeira infância, ela transforma o desejo não correspondido em uma promessa futura como forma de gratificar-se a si mesma. Substitui essa frustração por uma promessa tão irreal quanto a imagem de uma criança plenamente feliz, que ficou como recordação da infância[19].

Não será a este período?- o da criança plenamente feliz?- que o complexo do semelhante e o complexo melancólico dizem respeito? Quando não conseguimos encontrar a equivalência entre o objeto desejado e o encontrado...? Pensando nisso, questionamos se poderia haver uma fundamentação de base mais primitiva, sobre a qual estariam assentadas as diferentes configurações psíquicas, que podem ser balizadoras para nossa postulação do complexo melancólico mais além da patologia.

Buscando dar algum sentido a tantas especulações metapsicológicas, propomos a seguinte correspondência: o complexo de castração está para o Édipo, assim como o complexo do semelhante está para o complexo melancólico. Na castração e no Édipo, o que está em jogo é o desejo; no semelhante e no que destacamos como o complexo melancólico, que é o foco de nossa atenção, vemos que não se trata de desejo, mas de um anseio [Begierde] que nos leva a um período anterior, mais aquém[20].

O complexo melancólico tem íntima relação com a dor, mas não a dor como contraponto do prazer-desprazer. Tal como Freud[21] apresenta no "Projeto para uma Psicologia Científica", esta dor seria uma dor constitutiva; aqui, é a dor pela dor, de uma quantidade que invade o psiquismo e que este, para manter em equilíbrio a economia psíquica, fará uma efração dos excessos. Encontramos ressonância desse pensar em 1915, quando Freud nos diz que as pulsões agridem o aparato psíquico. É a dor pós-1920?- a dor das origens?-, isso que nunca vamos encontrar: um alento, um conforto permanente. É "disso" que Freud nos fala em 1927, quando postula a necessidade do homem de inventar Deus: a maior representação, na cultura, do objeto absoluto. Portanto, o futuro de uma ilusão é, de fato, uma ilusão sem futuro.

Freud[22] defende que a imagem mnêmica da pessoa ansiada é intensamente investida, a princípio de forma alucinatória. Isto, no entanto, não produz resultado; logo, é como se o anseio se transformasse em angústia. Tal angústia seria uma expressão de perplexidade, como se o bebê, ainda pouco desenvolvido, não pudesse fazer nada melhor com esse investimento de anseio. A angústia aparece, então, como reação à falta de algo. Freud avalia: "o medo da castração tem por conteúdo a separação de um objeto bastante estimado, e que a angústia mais primordial (o ‘medo primevo' do nascimento) origina-se na separação da mãe"[23].

A angústia é a mais pura intensidade e denuncia a falta; o anseio significa a busca por algo. Aceitamos a perda dos objetos primários; aceitamos a entrada do terceiro na relação dual e, na dissolução do complexo de Édipo, aceitamos uma troca dos pais por escolhas exogâmicas... Aceitamos? Não. Seguimos sempre ansiando pelo encontro com o objeto primordial, pela sensação de plenitude que esse encontro nos traria, em fantasia, e sofrendo pela impossibilidade de tal feito.

Então, não estaria no complexo do semelhante o cerne para compreendermos o vazio, a sensação de busca do objeto perdido, a permanente busca da coisa, da sensação de completude que, um dia, imaginamos que tivemos e foi perdida?

Essa eterna busca seria de Das Ding[24], o objeto perdido, o vazio originário, em torno do qual se organiza o universo das inscrições psíquicas? Garcia-Roza alerta que Das Ding é aquilo que nunca tivemos, mas cujo reencontro será para sempre buscado. "Tal como na coisa heideggeriana, ele é um vazio?- um vazio de determinações?- e, tal como na coisa kantiana, ele é o que se encontra para além da representação, podendo apenas ser pensado"[25].

Assim, podemos pensar o complexo melancólico como esta busca?- sempre fracassada e dolorosamente vivida?- por um objeto perdido e de existência parcial, marcas de um possível objeto, marcas que apontam para uma presença carregada da ausência, já que não fora constituído. Busca eterna de uma alma com memória, porém sem lembranças[26]. Nostalgia e anseio. Anseio e nostalgia. Eis aqui nossos emissários, desse território do inconsciente que nunca foi consciente.

Etimologicamente, encontramos em vários dicionários da língua portuguesa a palavra nostalgia, que é formada pelos termos gregos nostós (que significa regresso à casa) e álgos (que significa dor). É um sentimento produzido, por ex., em pessoas que se encontram longe de sua terra natal e sentem falta de sua pátria, de seu lar e de coisas que lhe são familiares, de um momento vivido no passado.

Este regresso à casa aparece no texto "O Inquietante", quando Freud fala de um lugar unheimlich, que é "a entrada do antigo lar [Heimat] da criatura humana, do local que cada um de nós habitou uma vez, em primeiro lugar"[27], os órgãos genitais femininos. Quando retoma o dito popular Amor é nostalgia do lar, ele indica que, sempre que, em sonho, um lugar nos parece familiar, como se já estivéssemos ali antes, podemos interpretar o lugar como sendo os genitais da mãe ou o seu corpo.

Sendo assim, compreendemos que a nostalgia é um resquício deste anseio que nos habita. Ao dissecar a palavra nostalgia, remetemo-nos ao encontro da dor, e pensamos que é a dor da perda de um momento mítico que não pode ser descrito, apenas sentido. Esta dor se dá pela percepção da necessidade de criar esta situação mítica.

 

Desejo e anseio: divagações etimológicas

Neste percurso para definir as características do complexo melancólico, encontramos diferentes termos. Por isso, foi preciso um refinamento na busca do sentido das palavras usadas nas diversas traduções da obra freudiana.

Para a expressão "desejo", encontramos nas traduções para o português três palavras: Wunsch, Lust e Begierde. Haveria, então, mais de um tipo de desejo? O que anuncia, em termos de constituição psíquica, o fato de haver três termos em alemão referindo-se ao desejo? Seria possível falar em diferentes níveis de representância psíquica?

Em alemão, o termo Wunsch tem um uso específico: dirige-se ao que é almejado, mais distante e idealizado. Vincula-se a determinadas palavras do campo representacional e se diferencia de Lust?- que é usado para o desejo mais imediato, mais próximo da vontade e do prazer?-, e ambos diferenciam-se de Begierde.

No "Projeto", Freud utiliza a palavra Begierde (anseio) para falar de um estado psíquico que antecede o estado de desejo. Begierde exprime uma necessidade imperativa, uma sofreguidão, uma força impelente, fissura, alta necessidade, mais ligada ao drang. "Esse estado tem um protótipo na experiência de satisfação, que é tão importante para todo o curso de desenvolvimento e suas repetições: estados de anseio (Begierdezustanden) que evoluem para estados de desejo (Wunschzustand) e estados de expectativa"[28].

O anseio remete-nos a um estado em que o objeto ainda não tem representação; seria um estado visceral que implica uma tensão no Eu-realidade originária. Esta tensão seria vivida como um vazio esmagador; há uma intensidade que ainda não tem nome. O estado de Begierde é intermediário entre a necessidade (Bedurfnis) e o desejo (Wunsch). Linguisticamente, a Begierde é uma necessidade centrada intensamente sobre os rastros do objeto agente da ação específica.

Ainda não há uma representação do objeto que possa dar conta dessa falta inicial do ser humano. Existe uma necessidade de incorporar ou, como Freud menciona em Além do Princípio do Prazer, "agregar a substância orgânica em unidades cada vez maiores"[29]. Sente-se falta de algo que ainda não é, que, com o tempo e as repetições da satisfação, poderá vir a ser, mas nunca dará conta do vazio inicial. Esse vazio (Dingvorstellung) existirá como um vazio com um sentido quando houver representâncias psíquicas que lhe forem dando contorno. Esse contorno trabalhará na direção de ganhar significação e ressignificações.

Seria possível falar em diferentes tempos na constituição de uma representação psíquica? Um primeiro tempo, em que a apreensão do objeto é a tarefa fundante e fundamental? E um outro tempo em que a tarefa seria a de representá-lo? Seria possível falar em objeto do anseio e objeto do desejo?

Somos agora desafiados, a partir destas informações, a configurar metapsicologicamente o que estamos chamando aqui de níveis de representância psíquica.

Ao definir o conceito de vivência de satisfação, Freud[30] oferece subsídios metapsicológicos para explicar as consequências, no psiquismo, da chamada primeira mamada ou mamada mítica. Ele afirma que, quando a mãe executa a ação específica no mundo externo para o desamparado, este fica em posição de executar no interior de seu corpo a atividade necessária para remover o estímulo endógeno, por meio de dispositivos reflexos. Este evento constitui a experiência de satisfação, e tem as consequências mais radicais no desenvolvimento das funções do sujeito.

A mamada mítica inaugura o psiquismo. Na linguagem do "Projeto",como resultado da experiência de satisfação, há uma facilitação entre duas imagens mnêmicas e os neurônios nucleares que ficam catexizados em estado de urgência (Drang). Junto com a descarga de satisfação, não resta dúvida de que a Qn se esvai também das imagens mnêmicas. Ora, com o reaparecimento do estado de urgência (Drang) ou de desejo (Wunschzustandes), a catexia também passa para as duas lembranças, reativando-as. É provável que a imagem mnêmica do objeto será a primeira a ser afetada pela ativação do desejo[31].

O bebê mítico, então, estaria para sempre destinado a reativar estas imagens, fadado, portanto, a fazer trabalhar psiquicamente os muitos reencontros e desencontros com o objeto e com seu desamparo.

Antes de prosseguirmos, cabe um questionamento: o que seria este estado de urgência? No texto original em alemão, Freud[32] utiliza para a expressão estado de urgência o termo drang, tão conhecido por nós como uma característica mais específica da pulsão, significando força ou pressão que busca descarga e eliminar ao máximo a sensação de desprazer.

Ainda no "Projeto", Freud[33] menciona um processo de acumulação de quantidades no interior do aparato psíquico provindo dos estímulos endógenos (Qn) de excitação e denomina este tipo de processo por Soma. Ao serem somadas, as quantidades pequenas de estímulos resultarão na drang necessária, isto é, cumprirão a função de pressão necessária para desencadear, inicialmente, o processo de busca de descarga.

Nesse psiquismo incipiente, há um rudimento de representância, que somente ganha corpo representacional a partir das múltiplas repetições da experiência de satisfação. Portanto, o bebê terá que receber e perceber o seio muitas vezes (complexo do semelhante), até que ele se faça uma representação-coisa, representação essa que é o elemento fundamental do desejo.

De posse dessa contextualização, acreditamos termos condições de responder à pergunta feita anteriormente. Partindo do princípio de que existe um trilhamento desde a reativação da imagem mnêmica do objeto até a representação do objeto, referendamos a ideia de diferentes níveis de representância. Evocamos a Carta 52, para assinalar o processo que se dá entre inscrições, transcrições e retranscrições[34]. Entendemos que é neste processo que as marcas psíquicas vão ganhando graus diferentes de complexidade: impressões (que remetem a marcas incipientes, quantidade em detrimento da qualidade) e traços (conjuntos de marcas que insinuam, delineando uma espécie de sombra do objeto). Essas inscrições psíquicas seguem vigentes no inconsciente não recalcado. No inconsciente recalcado, temos as representações-coisa (conjunto de traços e atributos que remetem a uma concepção da coisa, predomínio da percepção visual). Por fim, no pré-consciente/consciente, temos as representações-palavra (resto de lembranças da percepção da acústica) e as representações de objeto (produto em encontro da representação-coisa e da representação-palavra, implicada na capacidade simbólica).

 

Revisitando nossa proposição

O desamparo alude a uma ausência, mas acima de tudo, à presença de um objeto que deixou seus rastros, que deixou atrás de si uma trilha, uma facilitação que pode, então, ser repetidamente percorrida. Ao se confrontar com o desamparo, com sua demanda pulsional, ao psíquico é feita uma exigência de trabalho[35], pela qual as representações vão se constituindo.

Quando o objeto não se apresenta para o bebê que necessita dele, o investimento na representação de objeto não é suficiente para suprir sua necessidade, por exemplo, a fome. A satisfação alucinatória do desejo dá conta de início, mas não é por si só capaz de eliminar totalmente o estado de tensão. O choro expressa, pois, uma desesperada necessidade de evocar a experiência de satisfação e, com ela, reencontrar o objeto. O choro, forma de comunicação possível, é a saída encontrada e carrega em si a mensagem do desamparo primordial.

E o que é feito deste desamparo primordial, que esteve lá para todos nós? Revisitamos as origens do pensamento freudiano, que remetem à origem da psicanálise e às origens do aparato psíquico. Nestes, reencontramo-nos com a proposição do Begierde (anseio). Balizados por este esboço de conceito, fomos em busca de construir uma ideia que pudesse referendar a existência de um complexo melancólico inerente a todo ser humano, a todos nós. Assim, o complexo melancólico pretende dar uma forma metapsicológica para falar do desamparo.

Relembramos que a expressão complexo melancólico, a encontramos no texto freudiano de 1917, justamente quando ele trabalha sobre o luto e a melancolia. Contudo, pretendemos, aqui, nos distanciar tanto da melancolia enquanto patologia, como do luto enquanto processo normal.

Propomos que a saudade está para o luto, assim como o sentimento de nostalgia está para o complexo melancólico. No luto, como na saudade, o sujeito sabe o que perdeu; sabe do que sente falta. A falta de uma pessoa que se foi evoca saudades; esta pessoa, porém, segue como lembrança em nós. O sentimento de nostalgia remete a algo que nem sabemos definir bem o que seja. Ao sentir um cheiro, ou ouvir uma música, somos transportados para um momento de vida, que não conseguimos sequer saber do que se trata. As características evocadas pela nostalgia remetem a traços mnêmicos alojados no inconsciente não recalcado, onde não tiveram um trilhamento para constituírem uma representação. Podemos pensar que a falha que constitui um sujeito melancólico deu-se entre o estado de anseio e a representação de objeto. Fica como dor, dor no peito, dor na alma.

No decorrer deste escrito, deparamos com a nossa dificuldade de discriminar o que poderíamos chamar amplamente objeto de desejo de objeto de anseio. Vimo-nos, muitas vezes, capturados talvez por uma trilha excessivamente facilitada, em prol do objeto de desejo e em detrimento do objeto de anseio. Diante dessa constatação, reafirmamos: o objeto do anseio é o Ding, em torno do qual se estruturará o universo das representâncias. É essa essência que será para sempre inapreensível. Não se trata da falta, mas sim de ausência, ausência que será vivida, sentida e nunca elaborada.

Com a ideia de dar uma visão metapsicológica, chegamos à seguinte constatação: este complexo está ligado a marcas muito precoces (Dingvorstellung) que não ganham representância suficiente para alcançar o grau de representação-coisa (Sachvorstellung). Tais marcas são acionadas por sensações e impressões relacionadas à parcialidade do Eu em construção. Neste nível, falamos de uma memória sem conteúdo representacional e de uma memória com conteúdo representacional. À primeira, não temos acesso direto; somente notícias que transcendem as manifestações clássicas do retorno do recalcado. São conteúdos que ficam soltos, que nunca serão lembrados e somente se farão presentes sob a forma de sensações (como no Homem dos Lobos). A segunda poderá ser acessada, pois ficou registrada como uma memória com potencialidade de ser lembrança, estando no inconsciente recalcado.

As perdas passivamente sofridas, desde o momento em que ingressamos no mundo, deixam uma marca e uma dor desde este princípio. Pertencendo a um tempo em que ainda não havia a menor possibilidade de imprimir psiquicamente o que sobra como sensação, seguimos com esta sensação difusa de algo que não sabemos explicar, e que talvez nunca vá, de fato, poder ser posto em palavras. Ao longo da vida, na tentativa de ligar o que resta desligado, fazemos referência às transitoriedades[36], mas a sensação não passa. Esse estado melancólico está na essência de nossas origens.

Retomando as ideias de Bataille[37] que abriram este artigo, diríamos que, na base, na passagem que se dá, no nascimento, de um estado contínuo, nas entranhas da mãe, para este espaço descontínuo, que é o mundo, temos notícia de nossa própria descontinuidade e, mais do que isso, da impossibilidade de vir a recuperar a continuidade perdida, para sempre perdida, mas para sempre buscada. Neste estranho paradoxo entre aceitar e não aceitar as perdas, a castração e a morte, vamos neste jogo entre viver para não morrer, fazendo desta nostalgia tanto o que noticia a recusa de uma renúncia total, como o motor para que sigamos buscando.

Há uma dor pelo reconhecimento de que nosso início foi, ao mesmo tempo, um final. Dito de outra forma, nascer e termos iniciada nossa vida põe fim a um estado de suposta perfeição e completude, este estado idealizado por cuja perda somos tomados domingo a domingo, dezembro a dezembro, quando os outros se foram, quando o salão vai ficando vazio e aí somos só nós. Nós e nossa companhia. Ou nós e nossa solidão.

Do contínuo ao descontínuo, há a passagem. É na passagem que nos achamos, nos desencontros da vida, naquilo que resta de vazio, de constituinte da alma. Se é a partir do outro que o Eu se constitui, o Eu é sempre faltante, sempre do anseio. Na nostalgia, encontramos aquilo da essência do objeto absoluto faltante que nos constrói, uma essência do inapreensível. O anseio da alma bebe na fonte da inesgotável transitoriedade da vida.


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Percurso é uma revista semestral de psicanálise, editada em São Paulo pelo Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae desde 1988.
 
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