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Resumo
Ao contrário do que muitos pensam, a política atravessa a psicanálise, assim como todas as ações do sujeito. A política institucional e a política de formação determinaram importantes fraturas nas sociedades e grupos psicanalíticos; a política científica, por sua vez, promoveu diferenças de escolas e lutas ferrenhas pelo poder desde a época de Freud. As diferentes circunstâncias políticas da sociedade determinaram destinos históricos para a psicanálise. Hoje, a regulamentação é um tema eminentemente político e põe em risco o futuro da psicanálise. O projeto de regular o exercício da profissão é resultado de interesses econômicos de corporações e de disputas por dinheiro e poder.


Palavras-chave
política; regulamentação da psicanálise; psicoterapia e psicanálise; formação do psicanalista.


Autor(es)
Ana Maria Sigal Rosenberg
é psicanalista, membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, professora do Curso de Psicanálise e autora e organizadora de "O Lugar dos Pais na Psicanálise de Crianças", São Paulo, Escuta, 1994.


Notas

1 Agradeço a Cristina Ribeiro Barczinski o carinho e a paciência com que revisou este texto.

2 Hélio Pellegrino escreveu o artigo antológico “Pacto edípico e pacto social”, publicado na revista Folhetim da Folha de São Paulo em 11 de setembro de 1983.

3 Fernando Ulloa, psicanalista, ex-membro da Associação Psicanalítica Argentina, foi fundador do grupo dissidente Documento.

4 S. Freud, “Consejos al médico sobre el tratamiento psicoanalítico” (1912), p. 117.

5 S. Freud, “A proposito de un caso de neurosis obsesiva” (1909), p. 157.

6 S. Freud, “Porque la guerra”, Cartas a A. Einstein (1932), p. 195.

7 E. Roudinesco; M. Plon, Dicionário de psicanálise, p. 420.

8 P. Gay, Freud, uma vida para nosso tempo, p. 555.

9 Desde 1924, Reich se interessa pelas obras de Marx e Engels, pois pretende comprovar a origem social das doenças nervosas. Transforma-se num veemente militante comunista e Freud interdita a publicação da sua obra “Análise do Caráter” pelo International Psychoanalitischer Verlag, em razão do engajamento político do autor.

10 H. B. Vianna, Não conte a ninguém.

11 Para maiores detalhes, o leitor pode consultar o site .

12 Muitas respostas a estas questões poderão ser encontradas no artigo de minha autoria, “Entre ensinar psicanálise e formar psicanalistas”, publicado no livro Ofício do psicanalista: formação versus regulamentação, S. Alberti [et al.]. O conjunto de artigos deste livro, publicado pelo movimento Articulação das Entidades Psicanalíticas, esclarece várias dúvidas, possibilitando um maior aprofundamento do tema.

13 G. G. Reynoso, Questionamos a psicanálise e as instituições, p. 47.

14 S. Freud, A questão da análise leiga.

15 O projeto do ato médico tramita no Congresso Nacional desde 2002; foi aprovado no Senado em 2006 e na Câmara dos Deputados no final de 2009. Agora retornou ao Senado, onde tramita em caráter definitivo. Se aprovado, o projeto tornará privativo dos médicos toda a chamada atividade terapêutica, exercida hoje por outras categorias. Isso deixa claro o interesse corporativo da classe médica, por tratar-se da implantação de uma reserva de mercado.

16 Ver (Sinpesp)

17 O movimento Articulação das Entidades Psicanalíticas foi criado em 2000 no Rio de Janeiro com o objetivo de combater a regulamentação da psicanálise.

18 S. Freud, “A questão da análise leiga”.

19 A. M. Sigal, “A ordem que desordena”, p. 347.

20 Talvez aqui fosse interessante lembrar o termo “professar” e sua relação antípoda com a psicanálise: ser convicto, adepto ou seguidor de algo; executar as funções inerentes a uma profissão – Houaiss, p. 2305.

21 S. Alberti [et al.] Ofício do psicanalista: regulamentação versus formação, 4ª parte : Psicanálise na Universidade.

22 Termo empregado por Lacan em 1967 para designar um processo de travessia que consiste em o analisado (passante) expor a analistas (passadores), que prestarão contas disso a um júri dito de credenciamento, aqueles dentre os elementos de sua história que sua análise o levou a considerar como suscetíveis de dar conta de seu desejo de ser analista (consultar o verbete passe do Dicionário de psicanálise de E. Roudinesco e M. Plon, p. 575).

23 M. I. de Góes e colaboradores, “A regulamentação, a psicanálise e as psicoterapias”, p. 90.

24 “Pós-escrito de ‘A psicanálise leiga’(Sigmund Freud, 1927)”, tradução de Eduardo Vidal, in S. Alberti [et al.], op. cit., p. 167.

25 A. M. Sigal, “Entre ensinar psicanálise e formar psicanalistas” in Escritos metapsicológicos e clínicos.



Referências bibliográficas

Alberti S. [et al.] (2009). Ofício do psicanalista: formação versus regulamentação. São Paulo: Casa do Psicólogo.

Besserman Vianna H. (1994). Não conte a ninguém. Rio de Janeiro: Imago.

Freud S. (1909/1988). A proposito de un caso de neurosis obsesiva. In: Obras completas. Buenos Aires: Amorrortu, vol. x.

_____. (1912/1988). Consejos al médico sobre el tratamiento psicanalítico. In: Obras completas. Buenos Aires: Amorrortu, vol. x.

_____. (1926/1980). A questão da análise leiga . In: Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, vol. xx.

_____. (1932/1988) “Porque la guerra”, Cartas a A.Einstein. In: Obras completas. Buenos Aires: Amorrortu, vol. xx.

Gay P. (1988). Freud, uma vida para nosso tempo. São Paulo: Companhia das Letras.

Reynoso G.G. (1973). Questionamos a psicanálise e as instituições. Petrópolis: Vozes. Roudinesco E.; Plon M. (1998). Dicionário de psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.

Sigal A. M. (2009). Escritos metapsicológicos e clínicos. São Paulo: Casa do Psicólogo.





Abstract
In opposition to a widely-shared opinion, the author believes that politics is an essential part of psychoanalysis. A proof of this is that divergence over institutional and training policies have led to breakups in many psychoanalytical groups and societies and to bitter struggles about theoretical issues that ultimately serve as weapons in the quest for power. Beyond these aspects, which could be deemed internal to our area, politics in a broader sense also affect the position of psychoanalysis and their practitioners in the wider society. In Brazil, today, the future of psychoanalysis is currently at stake risk due to regulatory measures currently being under discussion in Congress. The project to regulate exercise of the profession is not only intrinsically political: it is also an expression of corporate economic interests and of financial concerns.


Keywords
politics; regulation of psychoanalysis; psychotherapy and psychoanalysis; training of psychoanalysts.

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 TEXTO

Psicanálise, política e regulamentação

seus efeitos na clínica e na formação [1]


Psychoanalysis, politics and regulation
Ana Maria Sigal Rosenberg


O sentido da política é a liberdade.
[Hannah Arendt]

Entendo que, antes de entrar especificamente no tema da regulamentação e suas consequências na clínica e na formação, é necessário abordar a importância da temática política no pensamento psicanalítico.

Para muitos, e durante muitos anos, a psicanálise era alheia à política. Quanto maior o afastamento, maior a garantia de uma aparente pureza do pensamento psicanalítico. Dizia-se que o analista deveria ser apolítico e que, se por alguma razão não o era, deveria manter-se em silêncio. O psicanalista, para ser neutro, não poderia e nem deveria manifestar suas ideias, sendo aconselhado a não participar de movimentos, manifestações ou expressões públicas ou populares. O fato de ter assumido publicamente posições políticas comprometidas custou a Hélio Pellegrino sua expulsão da Sociedade Psicanalítica do Rio de Janeiro em 1980 [2].

Vale a pena recordar fatos marcantes da história da psicanálise, pois parece que o tempo apaga a história e a memória, e muitos jovens desconhecem as vicissitudes vividas por analistas cujas carreiras foram truncadas pela forma pela qual a política atravessou as sociedades de psicanálise e as escolas de formação.

Sem dúvida, pedir a um sujeito que se exima de sua posição ideológica significa esperar que ele se apresente à sociedade como alguém que está além do bem e do mal, já que a condição natural do homem é a de ser social e político, cujas ações nesse sentido se assentam em uma ideologia. O homem é um ser de linguagem, em quem inconsciente e ideologia encontram-se materialmente ligados na ordem significante da língua. Não há coincidência entre a legalidade do inconsciente e a ideologia, mas isso não significa que a ideologia deva ser pensada sem referência ao registro do inconsciente e, por sua vez, a política do desejo não exime o sujeito de suas responsabilidades históricas. É possível trabalhar a rede que articula ideologia e desejo a partir da dialética entre o discurso althusseriano e o discurso freudiano.

Nossas ações são políticas e motivadas por decisões ideológicas, mas, lembrando Fernando Ulloa [3], a ética do desejo deve ser balanceada com a ética do compromisso. Tudo o que fazemos na vida tem consequências e somos responsáveis por nossos atos. A omissão, em qualquer aspecto da vida, significa deixar que os outros escolham por nós; lembremos que tanto atitudes quanto omissões fazem parte de nossa ação política perante a vida. Entendemos a ideologia como um efeito superestrutural de conhecimento – desconhecimento, produto polimorfo de estruturas inconscientes e de classe. Entendemos a política como representada pelos diversos movimentos de luta para conquistar o poder e governar. A psicanálise é perpassada por elementos científicos, ideológicos e políticos. Política, história, formação e transmissão se enredam permanentemente, produzindo efeitos na teoria e na clínica.

Houve uma época em que se pretendia atribuir ao psicanalista uma imagem mítica, que apenas emergia na penumbra do consultório, afastada da realidade e do contato com o paciente. Reivindicava-se uma posição dita freudiana, mas Freud sempre deixou explícito um grande projeto político-institucional: disseminar as instituições psicanalíticas pelo mundo. Com esse intuito, criou, em 1912, o chamado comitê secreto ou comitê dos anéis, do qual faziam parte Ernest Jones, Otto Rank, Karl Abraham, Hans Sach, Max Ettington e Sandor Ferenczi, homens compromissados com o fundador; este grupo tinha a missão de manter a lealdade e a pureza da doutrina. A reunião das quartas-feiras, na qual se encontravam os notáveis daquela época, e que depois daria origem à Sociedade de Psicanálise, era um caldeirão de rixas, ciúmes e disputas pelo poder. Dessa forma, criava-se um movimento que controlava a transmissão em nome de resguardar o saber, dando origem a um tipo de sociedade secreta que retorna frequentemente do reprimido nas diferentes congregações psicanalíticas.

Algumas novas correntes caem na tentação de mitificar e refundar sociedades secretas, transformando seus fundadores em figuras sacralizadas. Assim se fundam os “ismos” que determinam correntes políticas dentro das instituições.

O apolitismo confunde-se com uma compreensão equivocada da ideia de neutralidade e abstinência, partindo de uma radicalização que distorce o texto “Conselhos ao médico”. Nesse texto, Freud adverte o jovem profissional contra a tentação de pôr em jogo a própria individualidade, pois isso significaria seduzir o paciente, ao mostrar-se como modelo idealizado que “promova o desejo de elevar-se sobre os limites da sua personalidade estreita” [4]. Na verdade, abstinência significa abster-se de desejar pelo outro.

Na história da psicanálise, nos defrontamos com atitudes bem diversas: Freud atendia em sua casa; o homem dos ratos cruzou mais de uma vez com a filha de seu analista, o que acabou servindo como um excelente material de interpretação [5]. Analisava seus próprios discípulos, com os quais a posteriori mantinha encontros científicos e discussões técnicas. O caso do Pequeno Hans mostra que não é o setting o que determina a forma em que se conduz uma cura, já que Max Graf, pai do menino e discípulo de Freud, foi quem ocupou o lugar de analista. Se a psicanálise tem uma marca, é a singularidade de trabalhar em transferência a neurose clínica, abordando o inconsciente.

Com a ampliação do campo clínico e as pesquisas para o tratamento da psicose, a psicanálise sai dos consultórios e penetra nas instituições de saúde, o que incomoda aqueles que defendem a ortodoxia do método. Isto cria disputas internas de grande porte, provocando, por exemplo, na Argentina, em 1959, o afastamento de Pichon- Rivière da Sociedade de Psicanálise, que ele mesmo havia fundado e presidido.

As políticas atravessaram e continuam atravessando das mais diversas formas a psicanálise; podemos falar de políticas científicas, políticas institucionais e políticas de formação. Também a clínica e a política são solidárias, porque se faz indispensável nas análises uma investigação sobre os modos de exercício do poder na contemporaneidade, para entender a subjetividade de quem nos consulta e o papel desses elementos na produção de patologia. Não adotamos somente uma teoria a partir da qual escutamos, mas trabalhamos a partir de uma posição clínica-éticapolítica. O momento histórico-político que vive uma sociedade marca um número considerável de ideias e produções psicanalíticas.

O histórico-político atravessando o seio das instituições e da produção teórica

Qual poderia ter sido o destino da psicanálise, se as duas guerras não tivessem imprimido suas marcas na produção da época? A Primeira Guerra Mundial impregna o pensamento freudiano da necessidade de explicar certos atos dos quais a teoria até então não dava conta. Na correspondência com Einstein [6] entre as duas guerras, Freud atribui a presença inevitável desses conflitos a Tânatos, ao afirmar: “[…] partindo de nossa mitologia, da teoria dos instintos, encontramos facilmente uma fórmula que contenha meios indiretos para combater a guerra. Se a disposição à guerra é produto do instinto de destruição, mais fácil seria apelar para o antagonista desse instinto: Eros”. Na verdade, Freud tenta uma explicação baseada na questão do instinto, fazendo da psicanálise uma Weltanschauung, já que Tânatos não é suficiente para explicar as causas da guerra.

A condição de judeu, em Freud, determinou em grande parte esses destinos, e a numerosa adesão de estudiosos judeus e praticantes à psicanálise aumentou a suspeita de que essa produção teórica fosse contrariar o pensamento ariano. Para o nacional-socialismo, era uma prática que não se afinava com as condições que aquele governo impunha à sua produção científica, artística e estética, além do fato de que em sua maioria eram judeus. Esta crença ajudou a banir a psicanálise do território austríaco e vienense – seu berço de criação.

A preocupação de Freud em relação ao fato de que a psicanálise pudesse ser vista como uma teoria e clínica judaicas o marcou desde os primeiros tempos. Tentou, em nome da psicanálise, fazer certas alianças com personagens que, por serem de origem alemã “pura”, pudessem ser socialmente aceitos e ter mais acesso aos estamentos do poder. Este foi o caso de Jung – a quem Freud se refere como “camarada ariano” – cuja presença era considerada pelo pai da psicanálise como absolutamente indispensável para que a mesma não caísse vítima do antissemitismo. Jung presidiu até 1913 a International Psychoanalytical Association. O único não judeu da primeira geração freudiana, depois da partida de Jung, era Ernest Jones. Elisabeth Roudinesco [7] nos diz que quase todos os psicanalistas judeus que não emigraram pereceram nos campos de concentração de extermínio nazista. As quatro irmãs de Freud morreram nessas circunstâncias. O antissemitismo não era na Alemanha nazista uma questão eminentemente religiosa, e sim uma questão política e ideológica ligada ao poder e à economia.

A questão judaica atravessa toda a história da psicanálise. Freud era hostil às práticas religiosas e rejeitava os ritos e as tradições no seio de sua própria família; no entanto, nunca renegou sua identidade judaica e sempre se confrontou com o antissemitismo. Seu conflito com as origens culmina na escrita de Moisés e o monoteísmo, publicado em 1939, um livro do exílio, no qual Freud não só se pergunta por que o judeu teria atraído sobre si um ódio tão eterno, quanto investiga sua própria relação com a judeidade.

O êxodo judaico na Segunda Guerra teve uma grande importância para a difusão da psicanálise pelo mundo. A migração para Londres de Freud e de muitos psicanalistas renomados, perseguidos pelo nazismo, favoreceu a criação nesta cidade de um centro mundial da produção psicanalítica, centro este que determinou os destinos da psicanálise durante longos anos. Melanie Klein já tinha emigrado para lá em 1926 e começara uma produção que, embora conflitante com a obra freudiana, atraiu muitos adeptos entre os psicanalistas. Abraham, Anna Freud e Bion, durante muitos anos, marcaram o rumo da história da psicanálise. Peter Gay [8] nos diz que, “inclusive antes de sua migração a Londres, Freud se deprimia mais pelos destinos de sua doutrina, que pelos riscos de sua vida pessoal”.

Tempo depois, com a reconstrução do continente europeu, floresce na França a psicanálise, e para lá se desloca o epicentro da produção psicanalítica, marcando caminhos que até hoje conduzem aos centros de poder científico. Muitos psicanalistas emigraram para os Estados Unidos e América do Sul, abrindo novas fronteiras à disciplina nascida em Viena.

Não podemos deixar de mencionar os grandes conflitos que o marxismo coloca para a psicanálise e suas instituições. Desde Wilhem Reich [9], o maior dissidente da segunda geração, até os movimentos que culminaram na cisão da Sociedade Argentina com a criação dos grupos Plataforma e Documento, vemos o desejo de muitos membros de integrar à psicanálise os aspectos ideológicos do marxismo.

Marie Langer, uma das líderes dissidentes do grupo que rompe com a apa (Sociedade Psicanalítica Argentina) em 1971, declara que os conceitos psicanalíticos não têm uma relação fixa e imutável, mas que interagem dialeticamente no curso de seu desenvolvimento histórico; dessa forma, a teoria tem possibilitado um maior rigor na investigação e melhor resultado na ampliação das possibilidades terapêuticas da clínica psicanalítica, e estas tiveram igual influência na reconsideração, ampliação e retificação da teoria.

Jose Bleger, destacado psicanalista argentino, era um marxista militante que se dedicou a trabalhar as relações entre psicanálise e materialismo dialético. Viveu a contradição entre sair da Sociedade ou nela permanecer, lutando por suas ideias dissidentes. Optando por ficar, sofreu intensamente com esta decisão.

O grupo Plataforma surge no congresso organizado pela Sociedade Psicanalítica Internacional em Roma em 1969, fazendo um congresso paralelo. O tema do congresso oficial era “Protesto e Revolução”, tema que demonstrava a necessidade do pensamento oficial de acompanhar a história. Lembremos que acabavam de surgir os movimentos de maio de 1968. Esses grupos, por sua vez, questionavam as estruturas verticalizadas das sociedades de formação, bem como a psicanálise didática, atribuindo-lhe um caráter perturbador frente à análise pessoal. Estavam também em discussão o papel social da psicanálise e dos psicanalistas, as estruturas hierárquicas que favorecem relações regressivas entre seus membros e a dificuldade dos psicanalistas de discutirem seu próprio papel na sociedade contemporânea.

Temos histórias mais atuais, como as ocorridas na América Latina na época das ditaduras militares em vários países, período que abrange da queda de Allende no Chile até o governo militar na Argentina, ditadura na qual se preserva a Doutrina da Segurança Nacional, que privilegiava a segurança do Estado em detrimento do bem-estar dos cidadãos. Nessa época, os psicanalistas sofreram duros embates e perseguições que acabaram levando numerosos profissionais ao exílio, produzindo novos movimentos migratórios. Estes por sua vez permitiram novas produções que renovaram tanto a criação científica como a prática clínica. O espírito libertário da psicanálise, seu questionamento sobre o desejo e a verdade, suas raízes democráticas, que convidam ao homem a se libertar da opressão e ir em busca de seu desejo, despertaram mais uma vez suspeitas nos regimes ditatoriais.

Naqueles anos sombrios, muitos psicanalistas se engajaram no sofrimento das vítimas da repressão, desenvolvendo novos métodos de atendimento que não se submetiam à ortodoxia do consultório. A partir dos efeitos das mudanças sociopolíticas, foram necessárias novas formas de entender a subjetividade dos pacientes em tratamento, o que levou à reelaboração de critérios teóricos e técnicos para a conceitualização e manejo da situação analítica. A tortura, o trauma e o exílio ganharam um amplo espaço na produção teórica. Foram perdendo destaque dentro da psicanálise as teorias mais instintivistas e ganhando maior importância as teorias que incluíam a alteridade como elemento fundante da subjetividade. Esse movimento, em termos teóricos, vai de Melanie Klein a Lacan.

Os fenômenos socioeconômicos do mundo produziram e produzem na Europa um grande deslocamento migratório, pondo em relevo o sofrimento psíquico decorrente do desenraizamento dos imigrantes vindos dos países árabes e da África. Frente ao surgimento de dificuldades de inserção e de graves patologias, um grande número de analistas retomaram as teorias dos conflitos identitários, passando a estudar novas formas de abordagem das patologias contemporâneas.

Há também uma imigração de analistas que, vindos da Índia e de países árabes, vão completar sua formação em Londres e Paris, trazendo os reflexos de suas culturas para o pensamento psicanalítico. Vemos assim como os movimentos políticos regionais e históricos vão produzindo efeitos no campo da criação teórica e na atuação clínica.

No Brasil, tristes histórias políticas mostram encruzilhadas trágicas da psicanálise e suas instituições, como é o caso de Helena Besserman Viana [10], perseguida implacavelmente pela Sociedade à qual pertencia por querer desvendar a verdade sobre membros que colaboraram com a tortura. Não era conveniente na época fazer oposição ao regime, denunciando membros coniventes com a ditadura militar, pois que isso poderia trazer problemas, tanto para a instituição, quanto para os membros que dela formavam parte. Era mais operativo, como defesa, recusar a realidade, assim como a criança desmente a castração: vejo, mas não acredito no que minha visão me mostra. Este era o lema: não há mortos nem desaparecidos, não há tortura, não é disto que nós, psicanalistas, devemos nos ocupar.

No prólogo ao livro de Besserman Viana, Ricardo Horacio Etchegoyen, presidente da Associação Psicanalítica Argentina em 1993, faz referência ao entrecruzamento da política das sociedades psicanalíticas e da política da ditadura. A Dra. Besserman denuncia Amílcar Lobo, um candidato da sprj, como membro da equipe de tortura do 1º Batalhão do Exército durante a época mais feroz da ditadura (de 1974 a 1979, no governo de Garrastazu Médici), assim como denuncia seu analista didático, Leão Cabernite, na época presidente da Sociedade Psicanalítica do Rio de Janeiro. Este último, para supostamente proteger a psicanálise, defende Lobo contra todas as evidências. Amílcar Lobo, enquanto analista, utilizava seu saber a favor da violência, presenciando as sessões de tortura e regulando os processos que podiam manter a vítima com vida. Leão Cabernite, seu analista didata, sabia sem dúvida sobre os horrores cometidos, mas, em nome de um falso sigilo terapêutico, foi conivente com essa situação. Cabe dizer que o analista de Cabernite tinha sido analisado por Werner Kemper, que chegou ao Rio de Janeiro em 1948, como membro aderente da Sociedade Britânica, depois de ter sido diretor da clínica do Instituto Goering de Berlim, comprometido com o regime nazista [11] – temos aqui uma evidência de como opera a repetição.

Desta vez, a história fez justiça a Helena Vianna que, ainda em vida, pôde assistir à retratação de seu nome, enquanto seus dois perseguidores coniventes com a ditadura militar eram denunciados e expulsos da sprj.

Para lembrar outro ato político que desmascara a relação entre posição política e atuação no campo psicanalítico e sua implicação institucional, temos que recordar a expulsão – também da sprj – de dois destacados psicanalistas, Hélio Pellegrino e Eduardo Mascarenhas, que foram banidos da instituição por aderir publicamente a posições políticas. Regina Chnaiderman, psicanalista compromissada com sua época, de espírito democrático e engajamento político, também sofreu perseguições por assumir uma ideologia, sendo psicanalista. Fundadora, junto a outros psicanalistas, primeiramente do Curso de Psicanálise do Sedes e, em seguida, do Departamento de Psicanálise, inaugurou um novo espaço de formação fora dos moldes oficiais. O Instituto Sedes Sapientiae desempenhou igualmente um papel fundamental contra a repressão política, liderado por Madre Cristina, que, engajada politicamente contra a ditadura militar, acolheu perseguidos e monitorou a saúde de presos políticos. Além disso, recebeu numerosos analistas que tiveram que sair da Argentina, vítimas da perseguição do Estado por defenderem publicamente a democracia e por terem uma notória participação social, levando a psicanálise às instituições públicas de saúde mental. Este fato nos leva mais uma vez a pensar que a psicanálise é sempre vista como uma ameaça nos Estados em que são suspensos os direitos constitucionais e as liberdades, e onde se implanta a intolerância.

Podemos inferir dos fatos expostos anteriormente que é impossível desvincular a política e a ideologia dos avatares de um pensamento, assim como vemos os efeitos deste laço nas instituições, na clínica e no seu corpo teórico. As instituições psicanalíticas devem evitar a reprodução de sistemas verticalizados de atribuição do poder, pois as estruturas fechadas empobrecem a transmissão, já que dentro delas os mestres ou didatas se erigem no lugar da lei, e distribuem títulos e cargos decidindo quem é ou não analista. Para manter a ética da psicanálise na transmissão e na formação, é necessário lutarmos e estarmos atentos a essas deformações.

Temos que pensar de que modo a psicanálise pode satisfazer às necessidades do campo social em sua inserção clínica e o que significa atender a população dentro das exigências de seu método, sem se submeter a uma lei de Estado que a regulamente. A intervenção do Estado se opõe à essência e ética da psicanálise, uma vez que a lei que regula o processo de formação psicanalítica é interna ao próprio saber e não encontra equivalência na lei jurídica [12].

Os dilemas que enfrentamos como analistas estão determinados pela relação que estabelecemos com nosso desejo inconsciente, estando imersos numa realidade e num contexto social – e isso é impossível de se regulamentar.

É necessário estarmos vigilantes e lutar contra a tentação de sobrepor o poder à criatividade, a normopatia à liberdade.

Desejo lembrar antigas palavras – mas que não perderam a atualidade – ditas por Gilou Garcia Reynoso no livro Questionamos [13]: “Parto do paradoxo: como profissional, como intelectual, como indivíduo, como psicanalista, desenvolvo minha atividade aparentemente sem nenhuma perturbação, num mundo em que, por outro lado, tudo está perturbado. Então que classe de liberdade é a minha? É liberdade ou isolamento?”.

Políticas de formação e regulamentação

O início desta questão remonta a 1926, ano em que Freud escreve A questão da análise leiga [14]. Theodor Reik, membro não médico da Sociedade Psicanalítica de Viena, foi acusado de violação de uma lei austríaca que tornava ilegal o tratamento de pacientes por quem não fosse médico. Esse episódio provoca a intervenção de Freud a favor de Reik; ele discute o caso com um alto funcionário do governo, sem convencê-lo, o que o leva a escrever e publicar o artigo. Nesse artigo, Freud mostra que a pergunta “quem deve praticar a psicanálise?” foi respondida, pelo governo, com uma “medida legal”. Freud considera esta medida uma simplificação, pois não oferece uma reflexão sobre quais seriam realmente as condições necessárias e intrínsecas à psicanálise para praticar este ofício: o Estado responde com uma norma jurídica a algo que diz respeito à legalidade interna a um saber.

Introduz-se, assim, a questão: quem exerce a psicanálise e quais são suas condições de formação e habilitação? Sem dúvida, do ponto de vista de sua vertente de formação, essa reflexão implica conceitos teóricos, mas, no momento em que o Estado quer assumir esta função, a questão se transforma em um tema eminentemente político, que dependerá da sanção de uma lei, tramitada na Câmara dos Deputados e no Senado, onde os diferentes blocos políticos e partidários têm seus interesses representados. Há também interesses econômicos em jogo, relacionados a quem é autorizado a exercer a psicanálise. Os planos de saúde têm participação nisso, conselhos médicos e de psicologia – o ato médico [15] é um exemplo disto – estão medindo forças nos bastidores. Numerosas propostas de regulamentar a psicanálise vêm sendo feitas desde 1975, mas a tentativa mais agressiva aconteceu em 2000, com o projeto de lei de Eber Silva do pdt de Rio de Janeiro, representando um grupo religioso evangélico. Essa lei propõe uma regulamentação para o exercício da clínica psicanalítica e cria normas para a formação. A spob – Sociedade Psicanalítica Ortodoxa Brasileira – oferece formação em psicanálise presencial e por internet e lança no mercado um número absurdo de 1600 analistas por semestre. Hoje o sindicato de psicanalistas [16] também oferece formação sem as mínimas condições do rigor necessário.

Pensamos que, a partir de uma instituição ou de um corpo teórico, não se pode julgar quem ou como se forma um analista, porque cada escola tem suas normas e toma suas decisões, baseadas também em conceitos teóricos. Quando o grupo Articulação trabalhou no Congresso Nacional para suspender o projeto de lei apresentado pelos evangélicos, os deputados não compreendiam por que não regulamentar. Foi feito junto a eles um trabalho de esclarecimento, explicando que o movimento Articulação [17] se opunha a todo tipo de regulamentação, porque, ao elaborar regras ou normas que dizem o que é ou como se forma um psicanalista, está se abrindo, ao mesmo tempo, a possibilidade de distorção dessas regras. Isso permite àqueles que querem ludibriar a população que se passem por legítimos formadores, distorcendo o tripé no qual se baseia a formação: análise pessoal, supervisão e estudo teórico. As escolas que se reconhecem como formadoras de psicanalistas não têm condições de agir com objetividade e nem respondem a uma unidade, pois cada uma estabelece seus parâmetros. A psicanálise tem suas bases na subjetividade e na singularidade.

Assim a spob, com o propósito de se legitimar, criou um verdadeiro regimento (teoricamente respeitando o tripé) no qual a análise pessoal se baseia em poucas sessões, que podem ser feitas de modo virtual. Em relação à teoria, outra perna do tripé, poderíamos nos perguntar quais seriam os autores obrigatórios, quantos semestres seriam necessários, o que se consideraria o mínimo desejável, o que se deveria estudar. Desde a época de Freud, sabemos da importância da formação intelectual e cultural do psicanalista, já que a escuta depende de fatores que não são objetivos e nem têm regras fixas para serem transmitidos. Como avaliar, então, o que é fundamental numa formação? Os textos incluídos na formação teórica da spob, por exemplo, tinham conteúdo religioso e, entre outros disparates, misturavam o diabo e o supereu.

Frente à impossibilidade de definir a partir de dentro o que é ser um psicanalista e o que é a psicanálise, preferimos seguir a indicação freudiana de 1926 [18], a partir da qual o verdadeiro desenvolvimento que a psicanálise traz em si não pode ser justificado por leis ou regulamentos. E é dessa forma que a psicanálise vem existindo há mais de 100 anos. A regulamentação pode estimular apenas aqueles que querem o reconhecimento social enquanto analistas, em lugar de abrir caminhos para aqueles que estão em busca de um saber. Cria-se deste modo uma situação paradoxal, na qual uma norma serve para perverter uma ordem [19].

A questão da formação tem se convertido em um dos parâmetros mais conflitantes na história da psicanálise. Motivo principal de muitas cisões, essa discussão responde a questões de poder que se disfarçam em questões teóricas. Em alguns casos, as diferenças teóricas respondem a verdadeiras diferenças quanto ao pilar conceitual dos enunciados fundamentais; em outros casos, as discordâncias remetem mais ao que define a psicanálise e ao que está fora de seu campo. Nessa disputa, há um sentido de apropriação de algo que, para ser possuído, precisa de rituais e regras instituindo hierarquias que autorizem o psicanalista, que lhe concedam o direito a se denominar enquanto tal. O essencial desses movimentos pode ser percorrido através das cisões e da formação de novas escolas que se instituem como feudos e que, para sua sobrevivência, dependem de ferozes ataques a tudo o que não é espelho.

Assim temos visto, ao longo da história da psicanálise, diferentes grupos tentando se instituir como os verdadeiros detentores da formação reconhecida. Depois de muitos anos de cisões e do surgimento de diversos grupos, a ipa não pode mais se atribuir o lugar hegemônico.

Como é impossível dizer ou ter a palavra final que denote uma verdade sobre quem é um psicanalista ou sobre o que é a psicanálise, toda tentativa de regulamentá-la vai contra seus verdadeiros princípios.

Difícil dizer quem é mais psicanalista, se um freudiano, um lacaniano, um kleiniano ou um bioniano. Alguns pontos são comuns a todos: trabalhar com o inconsciente, a transferência, considerando a sexualidade infantil como estruturante na formação subjetiva. Isso parece ser um solo comum, mas o que cada um entende por estes conceitos é muito variável e, na maioria das vezes, não há acordos. O que podemos dizer é que aqueles que se atribuem com maior certeza a posse da verdade desse saber são justamente os que estão mais longe de possuí-lo.

Estar a favor da não regulamentação da profissão, ou seja, tentar que esta não se converta numa profissão é o que mantém viva a psicanálise em sua essência [20]. Como sabemos, não existe uma faculdade que outorgue o título de psicanalista, porque a essência da formação – baseada no tripé estudo teórico, supervisão e análise pessoal – não pode ser controlada pela universidade [21].

Pensamos que nenhuma instituição pode controlar esses parâmetros, mas oferecer um espaço de excelência e rigor no qual circulem os conhecimentos teóricos, e exigir que o analista em formação esteja em análise, porém sem nenhum tipo de controle institucionalizado, sem listas de analistas reconhecidos em função didática, nem exigência de que o analista pertença à instituição na qual o candidato percorre sua formação. A escolha do analista é estritamente transferencial e deve ser feita respeitando a total autonomia do analisante. O valor da instituição consiste em oferecer conhecimentos e espaços de apresentação clínica e supervisões para discutir e trabalhar, de forma individual ou grupal, a escuta analítica; providenciar ao analista a circulação e confrontação de um conhecimento onde a falta esteja presente, a fim de criar permanentemente o questionamento e o desejo de desdobrar e multiplicar seu saber.

Embora a regulamentação seja uma função do Estado, cada instituição tenta criar algumas diretrizes para seu funcionamento. O primeiro grupo das quartas-feiras reunido em torno de Freud em 1902, depois a fundação da Sociedade Psicanalítica de Viena em 1908 e, finalmente, a Associação Psicanalítica Internacional em 1910 foram as instituições pioneiras, constituídas com o propósito de salvaguardar os princípios básicos da formação. Como todas as instituições, não escaparam de se converter ao longo do tempo em aparelhos burocráticos que, em nome da defensa do espírito e da negação do espúrio, regularam e regulamentaram a formação, criando normas e regras com padrões rígidos e hierarquizados que acabaram engessando a circulação dos aspirantes a membros.

As novas instituições que rompem com a ipa – International Psychoanalytical Association – criam, por sua vez, novos espaços que gradativamente passam a reproduzir os defeitos das sociedades originárias.

A primeira cisão francesa, em 1953, desenvolveu- se em torno da criação de um novo instituto e da questão da psicanálise leiga, que está intimamente ligada ao ato médico. Depois da guerra, Sacha Nacht, membro da spp (Sociedade Psicanalítica de Paris), declarou-se inimigo da análise leiga, defendendo a posição de que a psicanálise só fosse exercida por médicos. A ele se opunham os universitários liberais encabeçados por Daniel Lagache, que defendia os alunos do instituto revoltados com o autoritarismo de Nacht. Isso provocou em 1953 uma cisão e Lagache separou-se da sociedade oficial, fundando a sfp (Sociedade Francesa de Psicanálise) acompanhado por Lacan, Dolto, Favez, Leclaire, Laplanche e muitos outros. Em 1963 ocorreu a segunda cisão, chamada por Lacan de excomunhão. A dissolução da sfp, em 1964, fez com que muitos de seus membros se reunissem na apf (Associação Psicanalítica da França), reconhecida pela ipa. Nesta sociedade, destituiu-se a análise didática de seu lugar formador e imprescindível para devir membro, concentrando-se o poder nas supervisões obrigatórias a serem feitas com membros qualificados pela instituição. Numa visita de Jean Laplanche ao Departamento de Psicanálise do Sedes, no ano de 1993, tivemos a oportunidade de discutir com ele esta opção, diferente da que tínhamos adotado para nossa instituição. Entendíamos que na apf tinha-se deslocado o lugar da análise didática para a supervisão avalizada e controlada pela instituição. E, desse modo, mantinha- se o controle sobre a clínica praticada pelo candidato. Portanto, o poder era exercido pelos supervisores – aqueles que concentrassem o maior número de discípulos teriam mais prestígio e encarnariam o poder dos mestres.

Nesse mesmo ano, Lacan funda a efp (École Freudienne de Paris). Àquela altura, já estavam completamente fundidas as razões relativas à política científica e aquelas voltadas à política institucional. Lacan, na verdade, faz um retorno a Freud e nessa releitura cria um corpo teórico que fará escola, mudando conceitos básicos da teoria e da técnica. Questiona o número de sessões necessárias para a análise didática e muda o ritual de duração obrigatória da sessão de 50 minutos, imposto pelos padrões oficiais, para sessões curtas ou marcadas pelo tempo lógico. Isso acabou motivando sua expulsão. Na sua nova escola instituiu o passe [22] como modalidade imposta para o devir analista. Entendemos que, nessa proposta de Lacan, não só não se resolvem os problemas de poder, como ainda se corre o risco de exercer uma maior concentração dele. Por sua vez, a Sociedade Britânica de Psicanálise nunca sofreu uma cisão porque seus membros fizeram um grande esforço no sentido da convivência. As controvérsias acirradas pela discussão entre Anna Freud e Melanie Klein, que sustentavam doutrinas diferentes, mantiveram-se fechadas dentro daquela sociedade para evitar o que teria sido insuportável: a expulsão de Anna Freud. Foi o surgimento de uma terceira tendência, da qual fariam parte Donald Winnicott e Marion Milner, que obrigou os adversários a criar um pacto de coexistência.

Como se pode ver neste breve relato, a regulamentação sempre foi uma questão interna em diversas instituições. A política perpassa as instituições e nela se destacam as correntes de pensadores originais e os líderes que formam escola.

A tentativa de regulamentação da psicanálise, no Brasil, quase um século depois do episódio com Reik, convoca os psicanalistas a exporem seus argumentos contra essa medida. O apoio em um aparato legal que regule a prática da psicanálise a desvia da legitimidade que lhe é intrínseca.

No que se refere aos problemas da regulamentação e seus efeitos na clínica, é fundamental denunciar que já se tentou regulamentar a psicanálise através da regulamentação das psicoterapias. Isso aconteceu na França, quando começou a se discutir a Lei sobre a Saúde Mental, e se repete no nosso país, quando a Abrap (Associação Brasileira de Psicoterapias) se propõe a regulamentar as psicoterapias, incluindo a psicanálise entre elas, como se não houvesse uma diferença fundamental entre elas. Não se trata de manter a psicanálise como o “ouro puro”, como dizia Freud, mas de conservar o que é mais original em seu espírito. Como diz Maria Idália de Góes, na psicanálise “Freud tomou posições, muito singulares, de ir abrindo mão de uma maestria sobre o paciente. Isso resultou no abandono da utilização da hipnose e da sugestão na condução do tratamento, o que teve como consequência a possibilidade de dar lugar ao sujeito e à sua responsabilidade” [23]. A psicanálise trabalha na singularidade, e o saber está do lado do inconsciente; o psicanalista trabalha no sentido de possibilitar que um saber se constitua.

Nas psicoterapias, o terapeuta ocupa um lugar de saber em relação ao paciente, a direção do tratamento se orienta na direção de superar um conflito, entendido enquanto desordem e não como fala; pressupõe-se um saber referido ao modo de funcionamento do sujeito: o que dele se espera, o que deve ser corrigido e o trajeto para alcançar o bem-estar. O sintoma aparece como distúrbio, como disfunção que deve ser apagada e não como emergente do conflito.

Na regulamentação das psicoterapias, são englobadas todas as modalidades de trabalho que, de posse de um saber articulado sobre o outro, ofereçam uma clínica que promete saúde.

Pensamos que não é possível criar uma superabordagem na qual se apagam todas as diferenças entre as mais variadas correntes, desprezando as especificidades científicas, éticas e históricas de cada corrente. As psicoterapias não constituem um campo único, cujo objeto possa ser formalizado, e não será por meio deste tipo de organização que se poderá zelar pela seriedade e eficácia dos métodos terapêuticos. Queremos que a psicanálise se mantenha fora desta superestrutura que se outorga o poder de regimentar o exercício da profissão.

Pensando sobre as instituições

É sempre complexo determinar um processo que, dentro de um espírito democrático, conserve a possibilidade de manter o essencial daquilo que se pode pedir ao membro de uma associação de psicanalistas para que venha a fazer parte dela e exercer sua função. Mas entendemos que os processos coletivos e abertos a todos os membros da instituição impedem a instauração de poderes abusivos ou a concentração de poder na mão de poucos indivíduos. Seria ilusório pensar que podemos escapar totalmente das dificuldades que uma institucionalização propõe, mas temos que batalhar por aqueles processos que tenham como projeto desalienar o sujeito, respeitando sua singularidade e admitindo as diferenças. As normas que promovem traços identitários indiferenciados negam a liberdade e a possibilidade do sujeito de ser; toda tentativa de seleção que tem suas bases apoiadas em critérios pretensamente objetivos e científicos falha em seu princípio, porque acaba promovendo a expulsão dos espíritos mais irrequietos e originais. Anna Freud frequentemente se queixava da mudança dos tempos e se perguntava onde estariam os pensadores pioneiros, criativos e dissidentes. Ela dizia que a normopatia acabou com o espírito disruptivo da psicanálise e com isto a psicanálise freou seu progresso.

As instituições precisam estar vigilantes frente aos pensamentos coagulados e estratificantes; quanto mais se democratizem os espaços em assembleias e apresentações públicas, quanto menos hierarquias existam entre os membros, menor risco de o poder se concentrar na mão de poucos.

Os rituais de passagem devem ser transparentes e públicos, a fim de evitar o caráter de sociedade secreta, e as análises precisam estar desvinculadas de qualquer tipo de controle da sociedade formativa.

Por entender que a formação de um psicanalista deve manter viva a proposta freudiana de que a psicanálise é leiga [24], a formação não pode estar atrelada a nenhum Conselho Regional ou Federal, seja este de psicologia ou medicina.

O essencial da formação passa pela análise pessoal, e, consequentemente, não há formação clínica vinculada à universidade [25]. Esta tem um papel fundamental na possibilidade de entrecruzar a psicanálise com as diversas disciplinas que a enriquecem, no entanto um doutorado ou mestrado em psicanálise nada nos dizem das qualidades clínicas de quem os possui.

As modalidades de transmissão, reconhecimento, os programas e as formas de circulação dos membros dentro do espaço institucional, as prioridades dos temas de pesquisa, o compromisso com os problemas que a sociedade atual coloca a nosso saber, assim como as publicações, estarão sem dúvida determinados pela política científica, pela política de formação e pelos princípios ético-políticos da instituição que escolhemos para desenvolver nossa formação contínua.

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Percurso é uma revista semestral de psicanálise, editada em São Paulo pelo Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae desde 1988.
 
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