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Resumo
Realização?Ana Claudia Patitucci, Bela M. Sister, ­Célia Klouri, Cristina Parada Franch, Danielle Melanie Breyton, Deborah Joan Cardoso e Silvio Hotimsky


Autor(es)
Ana Claudia Patitucci

Bela M. Sister
é psicanalista, integrante do grupo de Entrevistas da revista Percurso, coautora de Isaías Melsohn: a psicanálise e a vida (Escuta, 1996).

Cristina Parada Franch Franch

Danielle Melanie Breyton
é psicanalista, membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, integrante do grupo O feminino no imaginário cultural contemporâneo, co-organizadora do livro Figuras clínicas do feminino no mal-estar contemporâneo (Escuta).

Deborah Joan de Cardoso

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 ENTREVISTA

Bando, banido, abandonado, bandido - Miriam Debieux Rosa

Bunch, banished, abandoned, bandit - Miriam Debieux Rosa
Ana Claudia Patitucci
Bela M. Sister
Cristina Parada Franch Franch
Danielle Melanie Breyton
Deborah Joan de Cardoso

Uma psicanalista implicada. Assim é Miriam Debieux Rosa. Professora-doutora no Departamento de Psicologia Clínica da USP, onde coordena o Laboratório Psicanálise e Sociedade e o Projeto Migração e Cultura, foi, também, até 2017, professora titular na pós-graduação de Psicologia Social da PUC SP, onde participou da coordenação do Núcleo de Estudos e Pesquisa Psicanálise e Política. Miriam tem se dedicado há muitos anos ao trabalho com a população vulnerável, submetida às mais diversas formas de violência e exclusão, em nossa sociedade. Considera que esse trabalho só foi possível graças à sua inserção na universidade e acredita que o diálogo entre a psicanálise e os diferentes campos do conhecimento não só é possível como, inclusive, pode modificar o discurso social.

Foi já no início de sua clínica em consultório privado, atendendo crianças e adolescentes, que ela deparou com as questões dos não ditos familiares e as repetições inconscientes, assim como com a necessidade de ampliar os limites do enquadre analítico "tradicional". Foi o que lhe forneceu experiência para enfrentar, mais tarde, os desafios da "clínica psicanalítica político-social", exercida em situações de conflitos políticos e culturais.

Ao atender, direta ou indiretamente, menores em conflito com a lei, imigrantes, refugiados etc., Miriam procura criar estratégias de intervenção, individual ou em grupo, em instituições que deem conta da especificidade da dimensão sociopolítica do sofrimento, sem perder de vista os eixos básicos que norteiam o ato analítico.

Aponta para a importância de o analista vencer seus preconceitos e romper com o pacto de silêncio do grupo social a que pertence, onde, em geral, ocupa um lugar privilegiado para, então, se manter atento quanto à possibilidade de captura na malha ideológica social, que naturaliza a situação de carência e que pode provocar uma resistência em sua escuta?- uma "resistência de classe".

Mas Miriam não se limita à clínica e à pesquisa. Procura recursos teóricos e metodológicos para elaborar e aperfeiçoar sua experiência, o que se pode acompanhar nos livros co-organizados por ela, nos inúmeros artigos que publicou e nos livros Histórias que não se contam: psicanálise com crianças e adolescentes (Casa do Psicólogo, 2010) e A clínica psicanalítica em face da dimensão sociopolítica do sofrimento (Escuta/Fapesp, 2016). Livro este que lhe rendeu o 1o lugar do prêmio Jabuti, em 2017, na categoria "Psicologia, Psicanálise e Comportamento".

Suas reflexões, apoiadas em concepções lacanianas, refletem o compromisso em articular a face sociopolítica do sofrimento com a estrutura fantasmática do sujeito. Nelas, Miriam convoca a posição ética do analista para que considere, além do desamparo estrutural, o desamparo social e discursivo que desarticula a subjetividade e pode impedir a construção de um sintoma. Questiona, ademais, o posicionamento do analista na cena política diante da desigualdade e violência social.

Miriam retoma a radicalidade original da psicanálise freudiana e contribui, assim, para o desenvolvimento de uma clínica que aposta na posição desejante do sujeito e na possibilidade de resistência aos processos de alienação ao discurso do Outro e ao discurso ideológico e social, de modo a favorecer um avanço em direção à mudança social.

 

percurso Gostaríamos que você nos contasse sobre seu percurso na psicanálise e como foi o seu direcionamento para o trabalho com pessoas e grupos em situações de vulnerabilidade e exclusão psíquica e social.

miriam Como todo mundo, comecei a trabalhar com clínica, no consultório, atendendo pessoas de classe média, classe alta. Sempre amei trabalhar com criança e adolescente, então, minha clínica seguiu nessa direção. Esse tipo de atendimento questiona, necessariamente, muitos dos enquadres colocados de forma mais fixa e contínua como na clínica com adultos. A própria criança alarga bastante esses limites, a criança que não desgruda da mãe, daí entra a mãe na sessão, o irmão... então aparece a escola, a fono... Surgem dúvidas como: quando atender a criança, quando atender a família, quando entram outras pessoas e qual é o momento de terminar a análise. Você vai esperar a criança crescer, virar adolescente, virar adulto maduro para, então, finalizar a análise? Certamente não é por aí. Em meu trabalho com crianças sempre tive a clareza de que deveria ter uma abordagem mais pontual, que não deveria se alongar eternamente. Com os adolescentes, mais ainda, eles mesmos dão os parâmetros: "Não, eu só venho aqui essa vez". E eu costumo dizer: "Tá bom. Você vem essa vez. Mas se quiser marcar a próxima, você vem na próxima também". Muitos não dão continuidade, não acham que precisam estar ali, é sempre o outro que precisa, o pai, o irmão... E, alguns, quando topam vir, propõem enquadres muito peculiares.

Essa questão dos enquadres já se colocava para mim desde o começo. Eu trato disso no meu livro Histórias que não se contam?- O não dito e a psicanálise, onde relato um caso que atendi em um estágio na Santa Casa, quando ainda estava na faculdade. Fui receber uma mãe que não tinha onde deixar seu filho enquanto conversávamos. Então, coloquei uns brinquedos na sala e ela conta que o filho era adotado, que a mãe dele tinha ficado louca e morrido internada em um hospital psiquiátrico. Como já estavam com o menino, resolveram adotá-lo. Eu pergunto: "E como ele reage quando você fala sobre isso?". Ela diz: "Ele não sabe". Me espanto: "Não? Mas ele está aqui do lado!". Ela: "Ah, não! Ele não escuta, não presta atenção, é muito distraído". Que era justamente o sintoma que ela trazia. Essa situação clínica se tornou emblemática porque me fez uma questão sobre a transmissão que acabou perpassando toda a minha trajetória. Tentar entender como se transmitem as normas, os valores, os desejos... enfim, o sentido da vida. Como entender o não elaborado dos pais que se repete no filho? Isso ficou como uma incógnita para mim. Era um fato clínico que eu não conseguia dar conta teoricamente e acabou sendo tema do meu doutorado. Naquela época, eram poucos os analistas que trabalhavam com crianças, e, às vezes, de uma forma com a qual eu não me identificava. Havia muito pouco recurso para entender a repetição entre gerações. Quem trabalhava com isso eram os teóricos de família, mas na psicanálise... Em Freud, havia a ideia de transferência, ou de que aquilo que não é elaborado se repete, mas no sujeito singular. Foi então que fui estudar Lacan na Biblioteca Freudiana, onde fiquei por alguns anos. A ideia do inconsciente como linguagem, do significante que se articula na relação com o outro, foi me dando recursos para pensar que a recuperação da história dos pais traz uma questão inconsciente que nem eles sabem que estão vivendo. E, ao fazer circular os significantes, aquilo que estava localizado como um sintoma dos pais na criança vai podendo se desmanchar. O efeito clínico é muito interessante.

 

percurso No livro Histórias que não se contam..., você diz que os não ditos, assim como os mal-entendidos, são constitutivos do sujeito, mas que em algumas situações eles podem se transformar em malditos e carregar um tipo de maldição que gera sofrimentos psíquicos patológicos. É a esse tipo de sofrimento que você está se referindo quando fala da transmissão entre as gerações? Você poderia nos falar um pouco mais sobre como isso se dá nas histórias familiares? E como é esse trabalho, quando as famílias estão desfeitas, como no caso de refugiados?

miriam Essa é uma questão importantíssima. Na verdade, mesmo nas famílias ditas tradicionais, do ponto de vista objetivo, vemos que as fantasias não são tão estruturadas assim, elas andam por todos os lugares e os acontecimentos difíceis e conflituosos estão sempre presentes. Por exemplo, em um dos casos que atendi, quando nasce o filho do segundo casamento de uma viúva, por determinadas razões, essa criança evoca seu primeiro marido. O nome da criança vem dele e não do pai. Em outro caso, o conflito com a irmã faz com que uma mãe não aceite a própria filha por trazer algumas marcas dessa irmã. Não reconhecendo a irmã, não consegue reconhecer a própria filha. Esses são elementos que aparecem quando você traz a história da família, e que já estavam lá presentes.

 

percurso Nesses casos, os elementos podem ser resgatados no discurso da família, do pai, da mãe... Mas e quando não se tem mais a família? Qual seria o "destino" da criança?

miriam Aí de fato tem um passo além, mas estou dizendo isso porque é comum se considerar que existe uma diferença radical entre as famílias que vivem em situações extremamente adversas, do ponto de vista objetivo, e aquelas ditas estruturadas. Mas, as ordens discursivas e fantasias que as atravessam as levam para lugares que as próprias famílias não imaginavam. Por isso acabei trabalhando com essas questões, com a suspensão do significante, os não ditos, que marcam a história da criança e que redundam em dois tipos de sintoma. O sintoma referente às dificuldades de aprendizagem, ao não querer saber; e o sintoma de atuação, de repetir em ato aquilo que não estava dito na história familiar. O começo da minha clínica foi com adolescentes que atuavam batendo no professor, fugindo da escola, confrontando as leis e as ordens..., e que, quando são jovens de classe média-alta, não nomeamos esses comportamentos de atos delinquenciais mas de adolescentes mais agressivos e irrequietos. Passei então a trabalhar com essa hipótese de que a atuação do adolescente que infringe a lei é uma repetição de algo não dito. Nesse momento, eu já estava dando aula na USP.

 

percurso Quando você começou a dar aula na USP?

miriam Em 1996, quando terminei o doutorado. Até então eu trabalhava na PUC, no mestrado, e antes disso na graduação.

 

percurso E dava aula do quê?

miriam Primeiro dei aula de Rorschach e foi nesse tema que fiz meu mestrado, que chamei de "Parece uma mancha de tinta", onde eu já discutia o que é a realidade. Por muitos anos trabalhei no Núcleo de Diagnóstico, onde discutíamos a intervenção diagnóstica. Essa sempre foi uma questão para mim. Depois, dei aula de Psicanálise de Adolescentes e em seguida trabalhei nos núcleos do quinto ano. No Núcleo de Crises, junto com a Felícia Knobloch e com a Isabel Kahn e Lurdinha [Maria de Lourdes] Trassi no Núcleo de Psicanálise e Educação. Fui para a pós-gradução em Psicologia Social na PUC quando entrei na USP. Foi ali, na USP, que veio o convite da antiga Febem para eu atender os adolescentes que estavam internados por infrações, souberam que estava trabalhando com essa população e me propuseram. Comecei a trabalhar na época em que estavam acontecendo aquelas rebeliões violentas. Os meninos que eu atendia eram de uma unidade que chamava "Seguro", um nome irônico, porque, na verdade, eles eram ameaçados pelos outros adolescentes. Eram considerados os mais perigosos, mas eram os que estavam em maior risco. Eram esses meninos que vinham para atendimento.

 

percurso Os alunos começaram a atender?

miriam Não, naquela época pensei que eu não tinha nenhuma experiência nesse tipo de atendimento e não daria supervisão de algo que nunca tinha feito. Eu nem sabia se daria para atender porque eram adolescentes que vinham obrigados e cercados de educadores que, na verdade, eram guardas.

 

percurso O atendimento era individual?

miriam Esse era individual, na clínica da USP. Criava um reboliço porque chegavam, até a porta, quatro ou cinco jovens cercados e algemados. Mesmo eu tendo um acordo para que não viessem assim, isso não era cumprido. Aí, todos olhavam, ficavam com medo. Eu tinha um certo enfrentamento com os agentes porque não permitia que eles entrassem na clínica, mas, às vezes, eles entravam e virava um auê... um espetáculo. Era bem complicado! Eu tinha muitas dúvidas... como um adolescente chega para atendimento nessa circunstância, obrigado pelo juiz e algemado? Mas, depois, comecei a pensar que a maioria dos adolescentes que vem para o consultório também vem obrigada pelos pais, pela escola... A queixa é do outro, não é dele. Claro, existe uma diferença se disso depende a sua liberdade, ou não, e se você está cercado de guardas ou da sua família. Mas, muitas crianças e adolescentes não querem entrar na sala ou não querem ser atendidos. E também é muito relativa a ideia de que há uma demanda anterior no caso do adulto, porque o adulto tem uma queixa, mas a demanda é algo a ser construído na relação transferencial. Até aí, tudo bem. Mas até que ponto essa vigilância e o modo identitário pelo qual os meninos eram vistos, como meninos perigosos ou sem recursos, seja por uma pobreza psíquica ou porque seriam perversos por natureza, impediria que uma relação transferencial se criasse? Principalmente nessa época em que as rebeliões eram muitos divulgadas, eles eram vistos, e até hoje são, como presidiários. Como pessoas que, uma vez tendo entrado no mundo do crime, não poderiam sair.

 

percurso E como foi esse trabalho?

miriam Foi surpreendente o que aconteceu! Um dos meninos que tinha uma panca de bandido, com ar de quem estava muito seguro na situação, vira para mim e fala: "Eu sou o menino da Febem, você tem medo de mim?". Daí eu falo: "Bom, eu não te conheço, me conta quem você é, daí vou ver". Achei muito interessante, porque ele, de cara, colocou o problema que é: como a madame dos Jardins vai conversar com o menino da Febem. E entre a madame dos Jardins e o menino da Febem não tem análise possível. É preciso construir outra coisa, um laço transferencial do meu lado e do dele. Outro menino, também, quando pedi para me contar um pouco da sua história, ele respondeu: "Qual história você quer? A história lá da pasta? De todas as vezes que eu fui para a Febem?". Aí falei: "Bom, pode me contar o que você quiser. Mas tenta me contar a sua história. A que você acha que é sua". E daí vinha um branco, porque ele não conseguia contar nada. Então, comecei a montar estratégias clínicas: pedir um desenho, dar figuras para ele olhar e a partir daí contar alguma coisa, lembrar de algo. Eles não tinham, muitas vezes, uma narrativa pronta, certa historinha montada de quem você é, pois suas vidas foram muito marcadas por situações difíceis. Esse menino, por exemplo, morou na rua muito tempo e, depois, teve várias internações na Febem. Ele não conseguia alinhavar uma história e uma versão de si mesmo. O que comecei a ver em termos de estratégia é que era necessário dar elementos para a construção dessa narrativa de si, que pressupõe uma organização narcísica, uma organização do eu, não muito presente ali. E aí também entra a questão do diagnóstico. Ele não tinha uma desorganização psicótica, mas também não tinha uma certa organização egoica, narcísica, que desse para ele um lugar de fala. Nesse sentido, o ato aparecia como uma ‘mostração' de quem ele era ou daquilo que ele vivia. Aí começamos a pensar que as estratégias da clínica habitual, em que o sujeito fica mais recolhido e entende o que o outro fala, não funcionava nessas situações. Então, eu perguntava o que ele lembrava do que tinha acontecido, quando ele contava alguma história, apesar de a associação ser livre, perguntava o que aquilo fazia ele pensar ou sentir. Enfim, não era diretivo, mas era uma presença mais ativa e participativa. O empréstimo de um certo imaginário para ele poder, a partir dali, contar sua história. E foram surgindo várias questões para tematizar: mas isso é, então, psicanálise? Ou a psicanálise é só um jeito específico de trabalhar e o paciente que não se adequa a esse jeito não tem possibilidades de ser beneficiado por uma análise?

 

percurso Você tinha algum grupo de discussão?

miriam Nessa época, não tinha, era eu comigo mesma. A Isabel Kahn trabalhava também com essas questões, a Silvia Derdyk trabalhava com abrigos, mas eram poucas pessoas que trabalhavam com essa população. Foi uma clínica que mudou a minha perspectiva tanto da psicanálise, como do meu compromisso com a vida, com a cidade, com as pessoas.

 

percurso Você observou efeitos dessas intervenções nos meninos? Foram duradouros?

miriam Sim, uma das dúvidas que eu tinha era que via efeitos muito rápidos que me deixavam extremamente surpresa. Eram poucas as vezes em que eu me encontrava com os meninos, e eles logo entravam nessa reconstrução e eram visíveis os efeitos no modo de eles se colocarem. Mas também me perguntava se isso seria duradouro e suficiente. Mas eu diria que não. As mudanças não podiam ser duradouras, porque se ele volta para dentro de uma instituição extremamente violenta, para o mesmo lugar que vai responder a ele do mesmo jeito, isso me levou a pensar que a questão não era o menino, ou não só o menino. Existe um discurso, um modo de funcionamento social que dá a ele um lugar do qual não tem outra saída a não ser responder a este lugar, ou deste lugar, onde é colocado. Então, a clínica só se refere a retirar o sujeito desse campo ou ela pode ir a esses lugares onde estão os meninos e incidir sobre essas famílias? Foi da questão dos não ditos da família que eu comecei a discutir os não ditos sociais ou os ditos e discursos sociais que têm uma perspectiva tão fechada em relação a quem são alguns sujeitos, que toda resposta que eles dão vai ser interpretada à luz desse lugar. "Ele está fingindo que é legal porque quer conseguir alguma coisa, ele está manipulando...", líamos isso nos relatórios. Toda tentativa de sair dessa posição era interpretada à luz de uma visão prévia e não daquilo que o menino estava dizendo. Essa escuta não era só a falta de uma escuta clínica para ele, era falta de abrir realmente uma perspectiva de vida que incluísse escola, trabalho, que incluísse um futuro, uma mudança de posição. A Piera Aulagnier me ajudou muito nesta questão, foi seu livro A violência da interpretação que me salvou na época. Ela dizia exatamente aquilo que essa clínica me apontava: o adolescente precisa de um reinvestimento, assim como o bebê que precisa de um investimento para se pôr no mundo. Nesse momento, formou-se um grupo, via Psicologia Social da PUC, para debater essas questões, o Núcleo de Pesquisa Psicanálise e Sociedade. Eu estava na graduação e o Raul Pacheco tinha acabado de entrar na pós-graduação em Psicologia Social. Fizemos um núcleo com essa dupla orientação, do qual participaram, entre outros, Paulo Endo, Taeco Toma Carignato, que trabalhava com imigração japonesa, Sandra Alencar, que trabalha e fez uma tese belíssima sobre as duas mortes, sobre as mães cujos filhos foram mortos pela polícia.

 

percurso Todos trabalhando com algum tipo de exclusão.

miriam Sim, o imigrante traz uma questão muito parecida com a do adolescente. No sentido de que ele também sai de uma posição simbólica em que está mais ou menos estabelecido e entra em um país do qual não conhece o modo de funcionamento e não sabe como será visto. Desconhece a maneira como vai se enlaçar. Isto está bem descrito por Freud, em "Psicologia das massas": quando se entra em um grupo novo, tudo o que se elaborou vai sendo reorganizado, inclusive o próprio narcisismo. Ele trata também desta questão em "Luto e melancolia". Então, passamos a trabalhar esses textos sociais do Freud que, na época, acreditem, eram considerados textos menores. Começamos a pensar em uma psicanálise que não ficasse só no sujeito ou no sujeito-família, mas que incluísse também o contexto em que a família está inserida, que produz algo e faz um enodamento com quem esse sujeito é. Enreda o sujeito de uma certa maneira que, dependendo desse lugar, ele tem mais mobilidade ou não. Isso marca uma diferença. Essa discussão foi avançando para a reflexão sobre se a psicanálise teria recursos teóricos e metodológicos para pensar clinicamente essas situações e mesmo intervenções que dessem conta dessa questão.

 

percurso Vocês começaram o Núcleo de Pesquisa Psicanálise e Sociedade na PUC e depois fundaram o Laboratório na USP? Que trabalhos desenvolveram ali?

miriam Começamos a fazer grupos de estudos, chamando pessoas interessadas. E do Núcleo de Pesquisa Psicanálise e Sociedade na PUC, foi fundado o Laboratório de Psicanálise e Sociedade, na USP. Os dois grupos trabalharam juntos um certo tempo, depois, cada um foi para o seu canto. A Taeco, por exemplo, veio fazer um pós-doutorado na USP com Raul Pacheco e fundou o Grupo Psicanálise e Imigração. As atividades eram nos abrigos onde os imigrantes estavam. Na época, no ano 2000, a estrutura para imigrantes era tão precária que só tinha um abrigo mais estruturado, a Casa do Migrante. A imigração ainda era muito invisível, havia muitos bolivianos que trabalhavam em oficinas de costura. A Casa do Migrante é um abrigo fundado e gerenciado pelos padres Scalabrinianos, um grupo católico que trabalha pensando o homem como o centro do mundo. Era um antigo convento em que, na época das ditaduras latino-americanas, os padres abrigavam e escondiam algumas pessoas. Depois, virou um abrigo para imigrantes e também para migrantes. O trabalho com os imigrantes nos recolocou a questão sobre o que seria uma psicanálise em que não há uma demanda prévia de atendimento. Os imigrantes queriam documento, casa, comida, casamento, trabalho e não podíamos oferecer nada disso, eram demandas muito objetivas. Muitos nem sabiam o que era análise, terapia, psicólogo, não fazia parte da cultura deles. Então, começamos a construir estratégias levando em consideração o sujeito que estava em uma situação absolutamente nova. Abalado pelo motivo que o fez sair do seu país e desprovido das ferramentas de leitura do campo social em que estava entrando. Entendíamos que o atendimento em saúde mental era um direito como todos os outros. E necessário, porque víamos como o sujeito se submetia a qualquer coisa, justamente, por estar muito devastado e desorganizado. Era frequente que não conseguisse aproveitar as oportunidades que apareciam, o que gerava muitas críticas aos imigrantes: "Ofereci para ele ir lá, na entrevista de trabalho, e ele não foi". Só que não tinha ido porque tinha vários impedimentos, inibições. Enfim, quando se está em um meio assistencial, não se dá ao sujeito o direito de estar angustiado, deprimido, de relutar. Percebemos que a escuta psicanalítica poderia dar um lugar para esse sujeito bancar as oportunidades que apareciam.

 

percurso E quem atendia? Quais dispositivos vocês usaram?

miriam A Taeco começou, e logo se formou um grupo com Sandra Berta e com Marcio Gagliato, que depois foi fazer parte de organizações internacionais, no Timor, na Faixa de Gaza e na África. Como a Taeco trabalhou com a comunidade japonesa, ela já conhecia as pessoas que trabalhavam com imigrantes e, por isso, abriu muitas portas. O Márcio também ajudou bastante porque tinha relações estabelecidas com os padres. A aproximação inicial não é nada fácil.

 

percurso No trabalho com os refugiados, você menciona três tempos de elaboração do luto, das perdas. O tempo de partir, o tempo de esquecer e o tempo da narrativa. Como vocês lidaram com esses tempos, especificamente com o de esquecer?

miriam Fomos fazendo alterações. No começo, supúnhamos que havia, ali, um luto a ser elaborado. Depois, começamos a ver que, na verdade, o momento de chegada era o momento em que as intensidades do vivido estavam muito presentes e percebemos que o tempo do luto viria depois. Na hora da chegada, eles têm muitas premências objetivas, de sobrevivência. Eu também observava isso nos meninos da Febem. Tinham que estar atentos o tempo todo, porque estavam em um lugar perigoso. Não se dorme tranquilo quando se está em um lugar como esse. Então, começamos a trabalhar construindo narrativas do que havia acontecido, das dificuldades... E são histórias terríveis, muito fortes.

 

percurso Esse trabalho era em grupo?

miriam Às vezes em grupo, fizemos uso de vários dispositivos. No começo, por exemplo, propúnhamos grupos de recém-chegados. Perguntávamos quais as primeiras coisas que tinham visto em São Paulo... O que tinha chamado atenção, em que eram diferentes do que conheciam... Pedíamos que contassem o que lembravam da terra de onde tinham vindo. Depois, começamos a ver que lembrar do passado mais complicava do que ajudava naquele momento e passamos a centrar mais na chegada. Tinham partido, mas chegar era se apropriar de que estavam em um outro espaço, com outras pessoas e começar a estabelecer novas relações. Senão, não conseguiriam...

 

percurso Com esperança, perspectivas...

miriam Exatamente. Começar a ter perspectivas aqui. Percebemos o quanto estavam consumidos pela culpa e pela vergonha. Na hora em que conseguem um pouso, começam a pensar: "Pô, eu fugi, mas não levei minha mulher..., deixei o outro filho, só peguei o que estava do meu lado...". Na hora em que começam a deparar com as consequências do que fizeram e do que poderiam ter feito, percebem que perderam muitas coisas e ficam assoberbados pela culpa e pela vergonha. Então, pensamos que era ali que tínhamos que trabalhar nesses casos. Casos que chamamos de traumáticos.

 

percurso É mais um trabalho de construção do que de rememoração.

miriam Exatamente. Por isso falamos do momento de esquecer.

 

percurso Como faziam com a língua?

miriam Fomos montando alguns esquemas. Em geral, no grupo de terapeutas sempre tem alguém que fala inglês, o que não adianta muito, porque a maioria dos imigrantes fala espanhol, francês ou outras línguas e poucos sabem inglês. Também descobrimos que nesse momento esse aspecto da língua não é tão importante. Por exemplo, um grupo criou uma oficina de português, que não era uma aula de português, era mais brincar com a língua. O que eles queriam saber? Queriam saber como se ofereceriam para um emprego ou como paquerar uma menina. Percebemos que era muito mais a troca das palavras, o dia a dia e o encontro com o outro, com o outro brasileiro. Eles perguntavam: "Mas como é que se paquera aqui?". Porque é muito diferente, por incrível que pareça.

 

percurso É muito bom poder aprender isso (risos).

miriam A maioria dos imigrantes era de homens jovens, sozinhos, havia poucas mulheres. Hoje já chegam muitas famílias.

 

percurso Seguindo na linha de como funcionava, os alunos, em algum momento, participaram desse trabalho? Tinham supervisão?

miriam Nessa altura, já tínhamos um grupo com estagiários que eram desde psicólogos formados até alunos da graduação. Tentamos montar um dispositivo de atendimento na clínica da USP e da PUC. Percebemos que eles não iam. Em primeiro lugar, os territórios da cidade em que circulam com segurança são aqueles mais conhecidos, ao redor de onde moram. Eles não têm documento, não têm dinheiro para condução, têm uma aparência diferente, a polícia... Eles não se arriscam, esse é um ponto. O segundo é a desconfiança. A questão transferencial é complicada. Pensamos em fazer grupos com pessoas do mesmo país, mas as pessoas do mesmo país são justamente as de quem mais desconfiam, porque não sabem a que grupo o outro pertencia. Muitas vezes fugiram de grandes guerras. Então, concluímos que deveríamos parar com essa ingenuidade. Fomos aprendendo conforme as coisas iam acontecendo. Atender em uma sala, mesmo dentro da Missão Paz, não funcionava. Inventamos um dispositivo que, depois, o Pedro Seincman nomeou de "Clínica Migrante". Não é a clínica do migrante, é a clínica migrante, quem migra somos nós. Os estrangeiros somos nós, que ficamos lá passeando. Atendemos no pátio e nos corredores, porque não existe demanda. Eles não vão buscar, mesmo que estejam sofrendo, não entendem a solução do seu sofrimento desta forma. Só atendemos em uma sala quando se estabelece uma relação. A estratégia é ficar no pátio onde eles estão, no horário entre a chegada do trabalho e o jantar, e ir se enturmando. Chegamos no grupo em que estão conversando e entramos na conversa, seja de futebol, seja de trabalho... e a ideia é começar a estar junto. Utilizamos muito o conceito da polissemia da palavra. Quando você quer trabalho, comida ou casa, isso não é só a coisa concreta mas o nome de muitas coisas. Às vezes, se criam conversas no grupo que nos permitem fazer algumas perguntas. Em geral, vários vão saindo até que fica um que continua a conversa. Ou você sai desse lugar, e, depois, um te procura para falar em particular.

 

percurso O que é a Missão Paz?

miriam Missão Paz é a grande instituição que congrega várias outras, entre elas a A Casa do Migrante, que é o nome do abrigo. A Missão Paz tem advogados e desenvolve muitos trabalhos. As duas ficam no Glicério.

 

percurso Nesse trabalho com a população vulnerável, dos refugiados e dos menores infratores, você fala que um dos grandes entraves é a resistência do analista. Quais são as resistências? E como vocês lidam com elas?

miriam Essa também foi uma descoberta que começou com meu trabalho. Porque, quando o menino da Febem fala para mim: "Eu sou o menino da Febem", eu me dou conta de que também faço parte do grupo que tem medo dos meninos da Febem. Comecei a perceber que o mais importante era estar disponível para conversar e não olhar para ele como um pobre coitado, porque eles odeiam ser considerados marginais, vítimas ou meninos carentes. Se os olhamos desse jeito, aí é que se mostram agressivos e nos provocam. Os adolescentes reconhecem isso muito rapidamente, ser considerado carente é uma ofensa a todo o processo de tentativa de constituição de si mesmo. Acho que foi muito bom que os alunos não tenham entrado naquela época, porque precisava ter cancha clínica para ir entendendo e acompanhando as hesitações, minhas mesmo, nesse trabalho. O que eu fazia com aquilo, como respondia, porque eram situações inéditas. Eu percebia em mim mesma a dificuldade de abandonar certos aspectos do enquadre que mais nos protegem do que propiciam a possibilidade de escuta do outro. Conforme você vai abrindo mão desse terreno conhecido, você fica muito mais exposta àquilo que vem de improviso. Uma das resistências é essa. Como você vai lidar com situações tão graves? Por incrível que pareça, eu odeio violência e fui trabalhar com esses meninos... Eu me perguntava como ia lidar com uma situação em que alguém tivesse cometido alguma violência mais grave. Daí percebi que não interessava que a pessoa contasse a situação em si, interessava que eu pudesse escutar a trajetória dela até chegar à situação, escutar o contexto. Lembro um adolescente que tinha sido acusado de ter estuprado uma garota. Pensei que isso eu não aguentaria. Depois, decidi ver o que acontecia e se achasse que não era por aí, eu interromperia. Achava que tinha que respeitar até onde eu podia. O psicanalista tem um limite do que pode escutar e do que não pode. Porque, senão, vira uma outra coisa. É escuta quando o que aparece ali pode ser configurado dentro de um certo campo fantasmático comum. E para receber esse garoto precisava ser assim. Quando ele entrou, estava totalmente abatido, desvitalizado. Uma pessoa completamente diferente da que eu tinha imaginado.

 

percurso Vocês costumavam ler o prontuário antes para saber sobre a história deles?

miriam Em geral, não. Mas no caso desse menino, eles tinham me avisado. Justamente porque ele estava correndo muito perigo dentro da instituição e foi feita uma preparação especial para a vinda dele. Estando aberta para essa escuta, ele começa a me contar de como desde pequeno tinha preocupação com a família, que ele estava lá mais para arranjar dinheiro para casa. Eu pergunto: "Você trabalhava no quê?". "A gente ia no lixão". Ele conta que desde os oito anos ia com o pai no lixão e era muito legal nos dias em que conseguiam pegar mais coisas e enchiam a geladeira de comida do lixão... E aí, você começa a montar uma outra cena... Ele conta um episódio em que, ele e o pai, estavam felizes porque tinham encontrado coisas boas e o dono do lixão, que era um bandidão, aparece e quer pegar as coisas que eles tinham conseguido... ele fica com muito medo de o pai ser morto. Enfim... esse tipo de cenário que ele vai trazendo e que você vai se dando conta da dimensão do que falta. Esse adolescente nunca tinha tido uma relação sexual e teve lá uma situação em que se encontrou com uma menina, ele tinha quatorze anos, era muito grande e forçou a menina a transar com ele. Nada justifica o que ele fez, de modo algum. Mas você vai montando uma cena de tamanha pobreza e degradação que uma história dessas desmonta a figura do estuprador, pois ele não fica restrito a essa condição, não fica definido por isso.

 

percurso É difícil escutar uma história dessas e não colocá-lo no lugar de vítima, não?

miriam Sim, cria outra história, mais abrangente. Ele não é só um estuprador, mas temos que tomar cuidado, pois ele é responsável por aquilo que fez. Esse é um ponto bastante delicado. Não se tratava de uma desresponsabilização, mas era muito mais importante desfazer essa ideia do estuprador que estava na minha cabeça e escutar a história dele, de onde ele veio, qual seu percurso, o que aconteceu. Fora que puseram o menino em uma cela com dez homens, durante uma semana. Ele saiu hospitalizado de lá, tendo que ser todo reconstruído. É uma história de uma violência em cima da outra, são perspectivas bem difíceis.

 

percurso Voltando para a resistência do analista ou para a dificuldade que é para o analista deparar com essas histórias de violência. Como trabalhar isso e dar condições de escuta para o aluno ou para quem estiver atendendo?

miriam Acredito que é através da condução do caso, como eu vinha falando. Ficou claro, para mim, que só é possível atender quando a situação encontra sentido para quem está escutando. Tem um limite muito tênue entre a curiosidade, ver aquilo como se estivesse vendo um filme, e a escuta analítica. Então, se você não dá conta, para. Muda o assunto, interrompe e vamos conversar sobre o que aconteceu. Porque a ideia não é que a história do outro supere os limites de cada um, mas sim, que você consiga contê-la. Uma das coisas que eu notava é que, muitas vezes, a resistência não era tanto pela violência, mas perceber esse desmonte. Perceber que o outro sofre como nós. Uma das coisas mais difíceis é a realização de que essas pessoas que estão nessas situações de muita desigualdade e miséria sonham, têm perspectivas, sofrem. Nós aprendemos que elas estão acostumadas a sofrer e que se cansam menos. É uma ideologia de classe média que pensa o outro como alguém que suporta mais as mazelas da vida, o sofrimento de passar fome ou morar mal, como uma coisa que se torna natural.

 

percurso Porque essas mazelas são também a existência desse sujeito. Como se ele só precisasse de comida e não de outras coisas.

miriam Exatamente. Não é com o psicólogo ou psicanalista, é com a assistente social. Então, não escutar o quanto o sujeito que está lá é, sim, profundamente afetado por essa situação de vida é uma resistência, que eu chamo de resistência de classe. Porque abala politicamente, me abalou politicamente, eu tomei posições políticas a partir desses atendimentos.

 

percurso Você faz uma afirmação forte em seu livro A clínica psicanalítica em face da dimensão sociopolítica do sofrimento: que o analista usufrui de uma vida e de uma sociedade da qual outro está completamente excluído.

miriam Sim, e isso se vê, no dia a dia, com a nossa empregada doméstica, com o lavador do carro, é o tempo todo, criamos quase que dois mundos paralelos. Não conseguimos nos colocar no lugar do outro. A criança de rua não é igual à criança que se perde na praia. Porque você não pega, põe no carro e leva... Não. Você fecha o vidro. Isso é uma loucura da nossa sociedade.

 

percurso Que tipo de posição política você se viu assumindo com essa experiência?

miriam Eu me vi muito mais voltada para os movimentos sociais para entender esses processos de segregação. Essa produção da diferença, da questão identitária... e aí a psicanálise foi ajudando junto com outros autores. Fui ler sociologia para pensar como se produz a imagem do bandido e o processo que ocorre justamente para não se perceber a produção social dessa figura. Agamben, que é um filósofo, faz uma articulação entre as ideias de abandonado, banido e bandido. São palavras com a mesma raiz que articulam essas questões. E bando também. Ele vai dizer que não existe, propriamente, uma formação de grupo quando não há a construção de um sujeito singular. Existe bando e daí a noção de exílio, exílio do laço social. Que não acontece só com o exilado. Esses meninos estão exilados do laço social. Nesse sentido, comecei a ler outros textos que ajudaram a pensar essa produção e o desmonte necessário desse discurso, que só as leituras sobre a clínica individual não dão conta.

 

percurso E o que você encontrou nessas leituras?

miriam A questão do luto se colocou de forma importante. Fui aprendendo muito com os trabalhos que foram sendo produzidos a partir dessa clínica. Naquele momento, a Sandra Alencar estava trabalhando com mulheres que tinham perdido filhos assassinados e considerados, a partir daí, bandidos, sem nenhuma comprovação. E a Sandra Berta, que trabalhava com exilados, o mestrado dela foi sobre o luto com pessoas que vieram exiladas da Argentina. Foi muito interessante, porque em ambos os trabalhos aparece certa condição do luto que tem a ver com a questão do grupo, com a importância da dimensão pública como pré-condição da elaboração singular do luto. Começamos a observar o quanto, com as pessoas desaparecidas ou com o não reconhecimento do valor da pessoa morta, o processo de luto ficava impossibilitado. Freud vai dizer que o primeiro momento do luto é a exacerbação do valor do perdido. Então, se justamente a polícia fala que a pessoa morta era um bandido, sem nenhum valor, como fica para uma mãe que perde seu filho nessa situação? O filho não tem valor? Ou, esse desapareceu, não morreu, como no caso dos desaparecidos na Argentina. O processo de luto fica em suspenso. Podemos falar mais de uma melancolia que vem por aí, porque o luto supõe o valor do perdido.

 

percurso É a isso que você se refere quando fala do desamparo discursivo, além do desamparo social e estrutural?

miriam Exatamente. Essa compreensão do desamparo discursivo foi muito importante. O movimento das Mães da Praça de Maio, na Argentina, foi fortíssimo porque elas atestavam com o próprio corpo que os meninos tinham desaparecido. Colocavam fralda, foto. Enfim, foi todo um investimento, não no particular, e sim no público. Fazia parte da vida de toda a sociedade aquilo ter acontecido, não era só um fato pessoal, era um fato que tinha acontecido e abalado o simbólico. Voltando aqui para o Brasil, podemos acreditar que vivemos em um país democrático, que todos têm escola, justiça, direito à residência... Não é verdade, não é? Uma parcela enorme da sociedade não tem nada disso. Quando as mães são acusadas de não levarem os filhos para a escola, precisamos nos perguntar se tinham dinheiro para o passe, sapato para vestir, vaga na escola... Esse é o desamparo discursivo. Existe um discurso muito diferente da realidade que aquele sujeito está vivendo. Essa questão das pré-condições para a elaboração do luto também nos remeteu à importância do grupo, pois encontrar um outro com quem compartilhar o que está se passando é fundamental. Não ficar sofrendo sozinho em casa, ter autorização para sofrer e o reconhecimento público desse sofrimento. Daí fizemos vários tipos de experiência com trabalhos em grupo.

 

percurso Ainda em seu livro, A clínica psicanalítica..., você conta sobre intervenções que foram feitas com os meninos infratores. Em algumas, os atendimentos foram feitos em grupo e a circulação da palavra acontecia entre pares, numa relação horizontal. Em outras, como na Justiça Restaurativa, estavam presentes vários adultos implicados com a situação infracional ocupando verticalmente diferentes lugares discursivos, afetivos e sociais. Dois exemplos ilustram essas abordagens. Como você vê, numa e noutra abordagem, a possibilidade do reposicionamento do adolescente em seu processo identificatório e no pacto social?

miriam Naquele texto nós estávamos justamente procurando comparar duas experiências diferentes. Uma, em que o grupo era de adolescentes que cumpriam a pena em liberdade e tinham que comparecer, uma vez por semana, para dizer que estavam se comportando direitinho. Então, propusemos, em vez disso, fazer um grupo com eles. Era um grupo em que, às vezes, conversávamos, mas também saíamos pela cidade em uma perua e íamos visitar parques e exposições. Enfim, criavam-se situações para viver a cidade por um outro prisma, e como não sabiam muito conversar, oportunidades para as conversas surgirem. Uma coisa que funcionou muito bem foi o gravador. Eles ficavam encantados ao ouvir a própria voz. Depois fomos para a fotografia. A voz, a imagem viravam instrumentos para nos aproximarmos da constituição do eu, da pulsão, do se reconhecer, reconhecer o outro, ser reconhecido e pelo quê. Para começar a circular a palavra, partindo desses elementos mais primários, e assim ir constituindo um corpo do qual pudessem falar e viver.

 

percurso E como foi a experiência com o processo da Justiça Restaurativa?

miriam Foi interessante. Esse tipo de experiência aconteceu em vários estados, principalmente no Rio Grande do Sul e em Minas Gerais, em que existiram grupos grandes mas por um período curto. Aqui no estado de São Paulo a experiência foi feita em duas cidades, São Paulo e São Caetano, também por pouco tempo. O interessante é que nessa situação o grupo está inserido dentro de um contexto, no próprio cerne da justiça. O menino não é só escutado, mas é, digamos assim, oficialmente escutado. Geralmente não é isso que acontece, ele só obedece, só cumpre ordens do que deve dizer ou fazer. No sistema da Justiça Restaurativa, ele encontra um outro modelo, em que escolhe o modo pelo qual quer ser julgado, se o tradicional ou este.

 

percurso É o menino que escolhe?

miriam Ele tem a opção.

 

percurso Isso depende do crime, da infração?

miriam Não, para qualquer crime. A Justiça Restaurativa foi implantada em vários países, ela pode ser para adultos, adolescentes e para qualquer crime.

 

percurso Essa experiência em São Paulo foi recente?

miriam Não. Foi um projeto piloto realizado seis, sete anos atrás, que não continuou por causa da violência policial. Porque quando o menino é baleado e morto durante o processo, a equipe se desestrutura e todo mundo sai. Não aguentam ficar. É bem complicado aqui no Brasil. As experiências que foram adiante aconteceram em cidades menores e menos violentas. A relatada no livro foi em São Caetano e foi muito mais interessante porque, apesar da diferença de classe social entre a pessoa que foi assaltada e a família do assaltante, estavam todos dentro de uma mesma comunidade, onde também funcionava a Justiça Restaurativa nas escolas. Foi uma experiência muito interessante porque era um grupo diversificado e o jogo identificatório era inusitado. Em São Paulo é tudo menos coeso.

 

percurso Como foi a participação de vocês?

miriam Esse foi um trabalho que desenvolvi junto com a Cristina Vicentin. Nós não participávamos diretamente, coordenávamos a parte de pesquisa, os atores eram o judiciário e uma equipe que trabalhava com mediação. Nós formamos um grupo que acompanhava os problemas que estávamos vendo no decorrer da experiência.

 

percurso Era como uma supervisão?

miriam Uma supervisão in loco, porque uma parte da equipe ia junto.

 

percurso Os mediadores eram de que área?

miriam Eram psicólogas, do grupo de mediadoras especializadas em Justiça Restaurativa, que aprenderam a fazer o "Círculo". Elas utilizavam esse método em que um objeto circula e quando está na sua mão, você fala, e quando passa o objeto para o outro, você escuta o que o outro diz.

 

percurso Esse trabalho também foi proposto para as escolas?

miriam Em São Caetano, sim. A ideia era que as escolas se capacitassem para lidar com as situações de conflitos, porque lá em São Caetano as brigas nas escolas iam para boletim de ocorrência. Houve um aumento enorme de boletins de ocorrência, porque em vez de a escola, o diretor, a coordenação resolverem, internamente, a briga dos meninos, os pais faziam bo na delegacia. Uma judicialização total. O juiz daquela vara já tinha chamado essa equipe para trabalhar nas escolas visando que essas situações de brigas entre meninos, dilapidação do patrimônio público, estragar os banheiros, jogar coisa pela janela se resolvessem no âmbito escolar, sem que fossem parar na delegacia. Isso preparou o campo para a Justiça Restaurativa nas situações em que havia um crime propriamente dito. Foi um segundo passo, também por iniciativa desse juiz. Aqui em São Paulo não teve nada disso, a experiência foi um tanto frustrante. Durou apenas dois anos. Todas as experiências anteriores foram em situações socialmente mais organizadas, dentro de uma comunidade, porque a teoria é justamente a de que um crime afeta toda a comunidade, a polícia, a professora... E quando a Justiça Restaurativa tem início o menino pode chamar quem quiser para participar do grupo, um familiar, um amigo, um vizinho. Ele entra com os apoios afetivos escolhidos por ele.

 

percurso Você aponta para uma judicialização dos conflitos em nossa sociedade atual. Como você vê o desdobramento dessa cultura jurídica em termos psicossociais?

miriam Eu vejo como um extremo empobrecimento porque o conflito na linguagem jurídica é muito circunscrito, tem o ofensor e o ofendido, quem tem razão e quem tem que pagar. Não inclui o conjunto de circunstâncias envolvidas ali. O conflito, na psicanálise, está muito distante desse modo de pensar, pois leva em conta tanto as circunstâncias do sujeito, da fantasia, dos desejos, do gozo, como o contexto histórico maior e o articula com a história específica daquele menino. Para trabalhar com questões sociais, não podemos ser afetados pela dimensão jurídica do conflito. Não que ela não seja válida, não estou dizendo isso. A instituição jurídica é necessária para organizar a sociedade em determinadas questões sociais. Mas acredito que o psicanalista, quando está envolvido com as questões sociais mais amplas, pode contribuir trazendo a leitura peculiar do seu campo sobre o conflito social.

 

percurso E como se dá a parceria de psicanalistas com os operadores do judiciário?

miriam Muitos grupos têm feito essa parceria. Em nossa experiência buscávamos levar um pouco da leitura da psicanálise, do que é o conflito, do que é um adolescente, do que é fantasia, porque as profissionais que trabalhavam com a metodologia da Justiça Restaurativa não eram psicanalistas. Acredito que a psicanálise tem uma contribuição a dar na leitura dos acontecimentos, sem se arvorar a resolver todas as situações porque não tem pernas para isso. Ela pode se articular sim com o campo jurídico, com o campo da assistência social. Nesse momento estamos com um grupo que chamamos Amarrações, justamente para trabalhar com essas questões mais graves relativas à adolescência. Esse tipo de trabalho tem que ser realizado em conjunto com as outras instituições. Com os imigrantes, os atendimentos só podiam acontecer dentro dos abrigos, porque a transferência deles é com o abrigo.

 

percurso E as instituições recebem bem o trabalho de vocês?

miriam É um trabalho! Temos uma longa história nas instituições. Hoje, está bem melhor, mas ainda é muito frequente pensar a psicoterapia como único modelo de atendimento. Há uma corrente importante que defende a não patologização dos processos imigratórios, com a qual concordo plenamente. Não é patológico imigrar e também não é natural que as pessoas sejam consideradas, a priori, traumatizadas. Essa corrente tem razão de não invadir já propondo uma psicoterapia. Tanto é que fazemos escutas pontuais, como as consultas terapêuticas propostas por Françoise Dolto, as experiências da Maud Manonni, que nos dão um certo suporte para esse tipo de atendimento. São intervenções, que podem ser pontuais ou podem durar um, dois meses. Mas não contamos com isso. Como saber o resultado? É uma aposta, não dá para saber.

 

percurso A pauta feminista aparece de alguma forma nesses grupos? Entre os adolescentes? Pensando também na questão da violência e da exclusão? Você tem pensado sobre esse movimento?

miriam As mulheres... bom, essa é uma pauta que tem mobilizado a todos, principalmente as pessoas da minha geração, porque era algo de que não se falava e que a juventude tem trazido, constatando coisas que nós naturalizávamos. É um movimento extremamente interessante, que nos leva a escutar questões a que estávamos pouco atentos na clínica. Pensando nesses espaços institucionais em que trabalhamos, podemos nos perguntar, por exemplo, quem é a mulher bem aceita na instituição? Lembro uma situação específica de uma moça que não tinha nada, tinha perdido tudo. Ela conseguiu um trabalho e com o dinheiro foi fazer as unhas, se pentear em um cabeleireiro. Isso gerou um escândalo na instituição, porque a mulher bem vista é aquela que renuncia à sexualidade. O que uma mulher está querendo quando vai ao cabeleireiro? Teve um estranhamento. Como ela podia priorizar coisas tão supérfluas, como a vaidade, quando tem tantas outras necessidades? Como vai gastar dinheiro com essas frivolidades? A gente discutia que a sexualidade não é uma coisa supérflua, se sentir bem na própria pele é também uma necessidade. Por isso a leitura psicanalítica é tão importante em um campo coletivo e para os outros profissionais. É fundamental que uma pessoa em condições adversas possa restaurar sua condição narcísica e se enlaçar amorosamente com o outro; tão importante quanto a luta pelo trabalho.

 

percurso Em uma situação como essa, a resistência, a impossibilidade de entender aquele investimento como um investimento legítimo, vinha de onde?

miriam Vinha principalmente dos profissionais. Entre as frequentadoras da instituição não cheguei a observar isso. Mesmo em condições difíceis, elas mantêm a vida sexual, vão ao motel.... Mas não se quer saber sobre a sexualidade. Então, entendo que a psicanálise pode trazer essa leitura, mostrando como a presença da sexualidade e a recuperação de um certo lugar narcísico são fundamentais para qualquer sujeito reconstituir a vida de uma forma mais ampla.

 

percurso Parece aquela história do Freud, em "O chiste e sua relação com o inconsciente", em que o mendigo ganha um dinheiro e vai comer salmão e perguntam a ele: "Mas como você foi comer salmão?". E ele responde: "Bom, mas se eu não como salmão quando não tenho dinheiro, também não vou comer quando tenho?".

miriam Pois é, é a lógica de que o outro tem que ficar só como um ser de necessidade.

 

percurso Seguindo na pauta sobre as mulheres, se considerarmos que essa é uma questão em que o sofrimento também vem dos modos de relação da cultura, você acredita que haveria algum tipo de intervenção que pudesse dar maior visibilidade a esse tema?

miriam Acho que está havendo. A questão da mulher nas instituições vem ganhando certa importância. Ainda acontece de elas serem usadas como boi de piranha no caso das drogas. Como funciona: avisa-se a polícia que determinada mulher está carregando drogas para que ela seja pega e para que os outros, que levam uma quantidade maior, se livrem. Fazem um acordo. Algumas nem sabem que estão sendo usadas, outras sim, mas estão em uma situação desesperada e é a condição para elas chegarem. As mulheres são vítimas, nessa situação, porque a repercussão em relação a uma mulher que é presa é menor. Existem muitas mulheres presidiárias imigrantes, mas a invisibilidade é muito maior do que em relação aos homens. E também tem a questão das violências na periferia, nas comunidades, onde a violência contra a mulher é enorme. Essa tem ganhado maior evidência. Às vezes, existem alguns excessos, toda e qualquer ação é lida em determinada chave, tudo se torna uma forma de relação de poder. Porque, por outro lado, a mulher também pode se defender em muitas situações. Marta Cerrutti trabalhou muito bem esse tema no texto "Bate-se em uma mulher", que trata a questão das mulheres que apanham. Ela diz que, muitas vezes, para proteger a mulher, acaba-se por colocá-la em um lugar de vítima. Então, como fazer valer o respeito pelo modo de ser da mulher, sem deixá-la só nessa posição de vítima em que toda e qualquer manifestação dos homens pode ser enquadrada como uma violência? Existem alguns ajustes necessários a serem feitos, mas o ganho de trazer essas questões é muito importante. Estou em uma Comissão da Violência Sexual, na USP, em que começamos a recolher depoimentos de dentro da própria universidade, e como aparecem casos! Quando chegamos mais perto ficamos espantados porque a violência fica muito silenciada. Tem uma cultura que precisa ser mudada e que vem mudando, a cada geração se estabelecem patamares bem diferentes dos anteriores.

 

percurso Qual a importância do assentimento subjetivo na criação de um pacto coletivo na fundação da civilização? No que ele difere das normas de uma sociedade?

miriam Essa questão é bem delicada, especialmente em relação ao que consideramos como assentimento subjetivo. Já deparei com várias situações em que as análises levavam o sujeito a pensar como assentimento subjetivo algo de que ele mesmo não era responsável. Por exemplo, em uma situação de tortura, serem feitas observações como: "você quis brigar contra o governo, então, se foi preso e torturado, tem que assentir que isso é mera consequência daquilo que fez, pois sabia do risco que estava correndo". Essas afirmações precisam ser confrontadas. Eu discordo dessa posição porque você não pode assentir com o gozo do outro, com o gozo do torturador. Você está em uma luta política e isso não autoriza ninguém a te torturar e te matar. Tem-se que tomar cuidado, o assentimento subjetivo não acontece em relação às leis de certa organização social. Porque desta forma a psicanálise se prestaria à manutenção de uma ordem social. Assentimento subjetivo é em relação às leis da cultura às quais você assente, independentemente de uma organização social específica. Eu posso discordar da minha organização social e não assentir com certas práticas do meu próprio grupo. Nesse sentido, não se confunde a lei social com a lei da cultura, com o Grande Outro que diz das imensas possibilidades de organização de cada sociedade.

 

percurso Quando fala de organização social, você está se referindo às leis jurídicas?

miriam Às leis jurídicas, às regras sociais.

 

percurso Ao pacto social?

miriam A questão é... pacto com quem e de quem? Quando uma sociedade perde uma guerra, estabelecem-se tratados sociais em que existem os que ganham e outros que perdem. Quem faz o tratado o faz em benefício de certos grupos, em detrimento de outros. Como diz Freud, o recalcado tende a retornar. Ele estuda bem isso em "Moisés e o monoteísmo". O mal-estar é justamente esse, você não consegue organizar uma sociedade atendendo a tudo e a todos, até porque os conflitos e as demandas vão se transformando com o tempo. Assim, mesmo com um pacto social, se torna necessário abrir a escuta e fazer uma leitura do mal-estar que vem a partir dos movimentos e dos eventos desorganizadores daquele campo social. Eles precisam ser escutados como manifestações do que precisa de mudança. O fato de se ter estabelecido, em certo momento, um pacto social dentro de determinadas considerações e configurações não quer dizer que ele seja válido eternamente. Não nos autoriza a pensar em uma sociedade do bem-estar, que é aquela que não escuta o mal-estar e elimina aqueles que são porta-vozes dele, tendendo à violência. A psicanálise faz sua contribuição ao apresentar a ideia da inexistência de uma sociedade harmônica, que esta é um mito. Os pactos, mesmo que precários, são importantes para que se possa viver em comum, mas a sociedade precisa considerar seus conflitos e estar em constante transformação. E, nesse sentido, existe o risco de usarmos indevidamente a ideia de assentimento subjetivo. Pode virar uma submissão a um certo modo de funcionar, e a psicanálise corre o risco de se tornar conservadora.

 

percurso Seu trabalho clínico foi desenvolvido em consultório e na universidade. Como você entende a relação da psicanálise com universidade?

miriam Toda essa experiência clínica de que falamos foi via universidade, que é uma das coisas que a universidade pode trazer. Com o tempo, vi que esse tipo de trabalho que eu queria realizar era difícil de ser feito de outro jeito. A universidade autoriza determinados discursos. No percurso do Lacan, quando ele saiu das instituições psicanalíticas, em que só se conversava entre analistas, e foi lecionar na universidade, na cadeira do Althusser, ele começou a constituir um diálogo da psicanálise com a filosofia, antropologia, política, sociologia, enfim, com as mais variadas áreas do conhecimento. Com isso, a teoria psicanalítica dá um salto para pensar as questões presentes no seu tempo. Um psicanalista precisa estar antenado com essas questões. Ele apontava que a psicanálise tinha sido transformada em um tipo de psicologia do ego e confrontou essa transformação. Eu defendo que precisamos fazer alianças entre grupos não só de psicanalistas, que têm ações em diferentes campos para distender e transformar certos discursos. Do contrário, ficamos fora dos grandes debates. Conversar com as ciências é fundamental, abre caminho para falarmos da criança hiperativa, do autismo, do estrangeiro. Não se chega a lugar nenhum se só ficamos discutindo no pequeno grupo.

 

percurso A sociedade brasileira mantém e renova a prática de um jornalismo policial, voltado à cobertura da violência. Como você vê os programas de jornalismo policial que se tornaram uma marca em nossa cultura de massa? Podemos dizer que existe uma manipulação político-ideológica da violência?

miriam Acredito que eles são como ventríloquos do poder. São pessoas que estão incitando a violência e o ódio. Esse tipo de programa retira toda a complexidade da trama histórica e social que produz determinada situação de violência. Um ato de violência não ocorre sozinho mas dentro de uma estrutura que permite que esse ato ocorra. Esse tipo de programa vai dizer o oposto disso, diz que o sujeito é um criminoso, um psicopata que deve ser isolado da sociedade pois é o responsável por todos os males que ocorrem. Nesse sentido, é quase antipolítico, é político à medida que leva o sujeito a agregar uma certa ordem, mas não é político no sentido de resgatar um pensamento complexo sobre as dinâmicas que movem uma sociedade a funcionar de determinado jeito. Vivemos uma polarização que não discute a nossa organização social, e sim, cria adversários que se deve desprezar e eliminar. Essa fomentação da violência só pode levar ao pior. O filósofo Alain Badiou diz que temos que diferenciar política de polícia porque há um modo de fazer política que é policialesca. Não podemos aceitar que se retire o embate político e a discussão dos grandes problemas. Precisamos de construções de propostas coletivas, de pactos sociais renovados. Isso só se alcança com muita conversa e diálogo.


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Percurso é uma revista semestral de psicanálise, editada em São Paulo pelo Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae desde 1988.
 
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