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47
Ficções em Psicanálise
ano XXIII - Dezembro 2011
182 páginas
capa: Malu Pessoa
  
 

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 EDITORIAL

Editorial

Letter from the editors

O que é uma leitura? Qual sua natureza, quais seus efeitos? Se não há escrita originária, isto é, se não há escrita que não seja sobre outro texto, como distingui-la da leitura desse outro texto? E, se escrever é ler, então como distinguir ler de escrever? Não seria ler, sempre uma espécie de re-escritura sobre o texto lido? E o leitor, seria ele a cada vez uma re-encarnação compulsória do visionário personagem de Borges "Pierre Menard, autor do Quixote", que buscava em vão recuperar a necessidade de cada sentença do clássico de Cervantes? A verdade possui uma estrutura de ficção. O abismo aberto por esta afirmação de Lacan, seja naquilo que tem de provocativa, seja de iluminadora, parece estar presente em diversos registros da experiência analítica, tal como o demonstram os artigos desse número.

No artigo "Trauma e perversão", acompanhamos o relato de um paciente cuja organização perversa se construiu como uma proteção contra a psicose. Apenas no terreno da transferência - não por acaso, também chamada por Freud de neurose artística e de neurose artificial - é que lhe foi possível instalar um terceiro espaço no qual ele não se sente mais indispensável à sua mãe, de cujo domínio absoluto buscou escapar através da invenção singular de seus sintomas.

Se, no seio da patologia, a distância da ficção que inicialmente protege o sujeito acaba por separá-lo de sua verdade, no trabalho analítico podemos ter a sorte de observar o inverso. O espaço de ficção, distinto em natureza da brutalidade traumática e de sua ausência de sentido, assim como da ficção primeira, na construção psicanalítica resultante do trabalho em conjunto entre analista e analisando permite ao sujeito a experiência de uma verdade sobre si. Uma mesma duplicidade de tal funcionamento da ficção é encontrável no artigo "O dispositivo grupal como realidade fantasiada". Na situação de grupo, a ilusão pode se prestar tanto à organização de um sentido prévio, inquestionável, quanto se mostrar capaz de suportar uma abertura ao diferente, ao seu outro e portanto à função paterna. De modo análogo, a ficção possui uma função norteadora junto ao grupo de psicanalistas, como se lê no artigo "Sobre o grupo psicanalítico e a difusão da psicanálise - contribuições de uma experiência de rede", no qual os autores trazem a espessura ético-política da formação enquanto tal.

No artigo "Por uma metapsicologia dos restos diurnos", reencontramos a ficção no próprio âmago da função onírica. Em seu trabalho, o autor demonstra como é precisamente a dimensão aferente do sonho que é a criadora e organizadora do inconsciente. Os restos diurnos que sofrem períodos de latência são aqueles que podem ser elaborados pelo sonho. Assim, recalcados, tais restos adquirem paradoxalmente a condição de representação e de inscrição psíquica, elevando desse modo o trabalho de ficção a uma função estruturante nas relações do psiquismo com suas exterioridades.

No artigo "O problema do diagnóstico na clínica psicanalítica com crianças", a dimensão da ficção se mostra insubstituível desta vez na clínica psicanalítica, na medida em que, na figura do diagnóstico, ela permite orientar a escuta. O texto mostra ainda que a diagnóstica de inspiração lacaniana não se limita à decisão entre as estruturas clínicas e que a topologia é modelo eficaz quanto à psicanálise com crianças, oferecendo-nos um belo exemplo de como à teoria cabe sempre ser re-escrita a partir de impasses da clínica.

Três artigos fazem da ficção seu próprio objeto de reflexão. Em "Psicanálise, constituição subjetiva e biografia: a recordação infantil de Leonardo da Vinci", o autor procura mostrar que a psicanálise contribuiu para a compreensão biográfica de Leonardo da Vinci ao dispor de um modo singular de conceber a constituição subjetiva, permitindo assim que o personagem Leonardo da Vinci irrompesse como um sujeito que, embora tributário de uma forma histórica de socialização, não se limitou a ser um espelho dela.

Em "Literatura e psicanálise: a poética de Raduan Nassar", podemos ler como a psicanálise pode se deixar fertilizar pela literatura. Ao analisar o estilo do escritor, o autor demonstra como os processos narrativos solicitam uma ressignificação do passado homóloga àquela que ocorre ao longo de um processo analítico.

Já o artigo "Os artistas, os lugares e as obras possíveis, ou onde a subjetividade ainda encontra lugar de existir" explora o destino que o conceito de ausência de obra de Michel Foucault teve em outros campos da existência e da subjetividade na contemporaneidade. Em sua análise do trabalho de Nazareth Pacheco, a autora relê o corpo e o feminino enquanto possibilidade de fazer obra, ou subjetivação.
 

E last but not least, a ficção ressurge no centro da obra do grande psicanalista Conrad Stein, texto apresentado na homenagem que lhe foi feita em Paris dias 30 de setembro e primeiro de outubro passados. Podemos seguir o caminho e a história do contato de Stein com o público brasileiro, caminho marcado pelo afeto, e por uma radical postura analítica, baseada na indissociabilidade da análise pessoal da clínica do analista: em seu pensamento a ficção novamente encontra uma função de abertura e enriquecimento, como por exemplo na figura essencial da Criança Imaginária, livro de Stein recentemente reeditado na França.


Em resumo, a presença da ficção nos pontos cardeais da clínica e da teoria psicanalítica do sujeito nos parece plenamente recuperada por essa seleção de trabalhos. O que foi dito de forma simples e sem rodeios por Shakespeare, nome igualmente essencial à Psicanálise: we are such stuff as dreams are made of...

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Essa é também a ocasião de lamentar a morte de mais um dos grandes daquela que pode ser considerada uma geração ímpar da psicanálise francesa: Pierre Fédida, Conrad Stein, Joyce McDougall, e, agora, André Green. Sem dúvida, com sua curiosidade e sensibilidade clínica, inteligência e imensa erudição, André Green soube articular o melhor da psicanálise inglesa e francesa em sua rica obra. Seus trabalhos sobre a estrutura borderline, sobre o narcisismo e a alucinação negativa fazem parte das obras que mantêm vivo o pensamento em Psicanálise. Obrigado, André Green!


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Percurso é uma revista semestral de psicanálise, editada em São Paulo pelo Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae desde 1988.
 
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