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Resumo
Resenha de Marie Christine Laznik, A hora e a vez do bebê, org. Erika Parlato-Oliveira, 1.ed., São Paulo, Instituto Langage, 2013, 239 p.


Autor(es)
Ana Marli Schor Schor

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 LEITURA

O encontro necessário [A hora e a vez do bebê]

The necessary encounter
Ana Marli Schor Schor

A hora e a vez do bebê se compõe de vários textos sobre a questão do autismo infantil publicados por M.C. Laznik entre 2006 e 2013. Neste livro se evidencia sua clara preocupação com a detecção precoce de sinais que falam a favor do possível desenvolvimento dessa condição ainda em bebês desde muito cedo. Nessa reflexão, a autora se utiliza de filmagens familiares realizadas por pais como material de observação da interação mãe-bebê, num dos casos um bebê de um mês e meio de vida.

 

Embora movimentos estereotipados, assim como automutilações, eventualmente ocorram durante o segundo ano de vida, nos primeiros meses é o não olhar do bebê na direção da mãe que sinaliza uma hipótese sobre o autismo, diz Laznik, psicanalista de formação lacaniana.

 

Em "Godente ma non troppo...", 2006, p. 16, primeiro texto dessa compilação, intitulado originalmente como "L'enfant entre désir et jouissance", Laznik parte da questão do "[...] lugar do gozo na constituição do sujeito, desde os primeiros momentos de sua vida, em seu laço com o que vai construir um Outro para ele". Segundo essa concepção, o bebê passaria por três etapas importantes no movimento de se constituir como fonte do gozo materno, e a autora ilustra esse processo através da observação atenta de um bebê de cinco meses com sua mamãe: inicialmente, o bebê está com seus punhos na boca, sua mãe sorridente leva sua mão para seu pezinho, então faz cócegas na barriga do bebê que ri alegremente. Ela continua conversando amorosamente, enquanto aproxima o pezinho do bebê de sua boca beijando-o várias vezes e ele mostra toda sua satisfação! Em seguida, esse bebê oferece seu pezinho para sua mãe beijá-lo enquanto ela fala (em manhês), "Que gostoso! Que gostoso!"

 

Cabe aqui uma nota sobre o que vem a ser essa prosódia, o "manhês", e para isso a autora se vale de estudos de linguística que o definem como: "O dialeto de todas as mães do mundo, quando elas falam com seus bebês, no qual a voz é mais aguda e a entonação exagerada" (Dupoux e Mehler). A essas características, se acrescentam o afeto e prazer maternos na constituição de uma comunicação com seu bebê.

 

Num novo movimento, o bebê coloca a mão na boca da sua mamãe e ela diz "A gente comeria um bebê assim! Hum! Hum!". Então vemos um bebê sorridente, radiante mesmo, oferecendo ativamente seu pé para sua mãe beijá-lo. Agora ele se constitui como fonte do seu prazer!

 

Essa mãe consegue sair desse jogo erótico (antes que toda essa excitação queime, diz Laznik, numa referência a Lacan) e se volta para seu bebê numa nova posição, dizendo com entusiasmo: "Parabéns! Como ele é forte!", "Como segura bem os seus pés!" Ele está mesmo orgulhoso por ter percebido que é fonte do prazer de sua mamãe. Ela, por sua vez, realizou a passagem da cena oral-erótica para uma dimensão narcísica fálica em que admira seu filho. Aqui sua mãe pôde impulsioná-lo a se exibir para o prazer dela. "Godente ma non troppo". O gozo não deve ser demais!

 

É exatamente aí que falha o autista: ele não alcança essa posição ativa. Ele não dirige o olhar para sua mamãe nem pode se colocar como aquele que busca por seu olhar e nem se oferecer como fonte de prazer. Não foi objeto de um investimento libidinal narcísico, que lhe daria a apreensão de poder se constituir como agente - causa da satisfação materna.

 

Diferentemente da tendência de certa psicanálise, Laznik, através de um olhar para pesquisas mais modernas, considera que essa falta de contato se daria mais em função de um excesso de sensibilidade que esses bebês trariam ao nascer do que a um déficit de empatia. Também não atribui à mãe a responsabilidade por essa falta, embora não descarte, é claro, sua constituição psíquica, sua história, seus fantasmas, etc. como componentes dessa interação. Afirma que é porque esses bebês possivelmente futuros autistas, em função de sua hipersensibilidade para perceber pequenas alterações afetivas em suas mães como ansiedade, preocupações etc., vivenciadas como extremamente intensas, não teriam outra possibilidade de defesa senão cortar o contato. Essa retirada é o recurso possível diante de uma experiência vivida como invasão intolerável e sem mediação dos afetos, à medida que não há o reconhecimento de que se trata de alguma coisa que se dá no outro (semelhante).

 

Ao longo dos textos, Laznik mostra de modo vivo e linguagem clara todo seu esforço no sentido de não perder o contato quando em interação com esses bebês, assim como apresenta para essas mães modos de estimulação dos seus pequenos por meio do brincar, de lhes dar voz, através do uso da prosódia que faz a mãe conversar com seu bebê.

 

Na busca de uma compreensão maior do autismo precoce, a autora toma em consideração fatores diversos, como, por exemplo, uma específica sensibilidade genética desses bebês (genoma: aquilo que recebemos dos nossos pais) associada ao modo particular como esses genes vão se manifestar no comportamento. Essa tradução no comportamento não depende só do gene, ela está ligada ao sistema neural, ao orgânico e ao meio ambiente, levando em conta os fatores familiares. Em sua abordagem, propõe o caminho de volta, considerando que o meio ambiente por sua vez vá exercer sua influência no organismo (por meio inclusive da experiência terapêutica) e, consequentemente, no gene.

 

Através da generosa descrição do que ocorre naquelas filmagens, "vemos" um vivo trabalho de prevenção, assim como de apoio a essas mães que sofrem ao experimentar a recusa por contato dos seus bebês, paralelamente à busca da sua participação ativa no processo terapêutico conjunto. Laznik se vale das reflexões de Françoise Dolto (pediatra e psicanalista francesa pioneira na abertura do campo psicanalítico ao trabalho com os chamados "inadaptados precoces"), que considera o bebê desde o início como uma pessoa. Pessoa que se comunica através de olhares, gestos, choro, e para a qual tudo é linguagem. Isto é: uma interação ocorre desde o princípio entre mãe/ cuidador(a) e o bebê.

 

Laznik baseia seu trabalho de intervenção precoce e prevenção com essas crianças inicialmente fechadas ou com risco de se fechar em seu próprio mundo, considerando que, como já constatado, haveria uma maior plasticidade cerebral no primeiro ano de vida, momento que ofereceria uma chance maior para se obter resposta a um trabalho de estimulação no sentido de despertar o interesse desses bebês para o contato humano.

 

Bebês com risco de autismo não estariam fazendo uso de uma parte do cérebro encarregada de interpretar a voz humana, o rosto humano. A ciência médica nos ensina que, quando um órgão não é usado, ele deixa de exercer sua função e se atrofia (Primeira Lei de Lamarck). Aqui há uma ausência total de estimulação enviada para essa zona cerebral, daí ser necessário um trabalho de reanimação para que esse bebê venha a se instalar na comunicação.

 

Ao longo dos textos do livro, Laznik, em sua determinação e seriedade como pesquisadora e analista, retoma casos apresentados anteriormente sob novos ângulos de reflexão, abrindo assim novos e importantes caminhos para a compreensão do autismo.

 

Em "Devaneios neurocientíficos de uma psicanalista" (2013), dá a ver, de modo mais explícito, sua abertura às novas abordagens, utilizando mesmo recursos das neurociências. Aqui se vale de autores como Adam Smith, homônimo do filósofo e teórico da ciência econômica do séc. xviii, trazendo sua reflexão sobre o desequilíbrio da empatia no autismo, contribuição bastante importante no pensamento de nossa autora sobre o tema.

 

O Adam Smith dos dias atuais traz a hipótese da existência de duas modalidades independentes e muito diferentes de empatia: uma seria de origem cognitiva e permitiria que se fizesse uma ideia eventualmente traduzível em linguagem acerca do que se passa no outro, nosso semelhante, e de predizer o que ele vai fazer. Os sujeitos dotados de bom nível de empatia cognitiva podem representar o estado psíquico de seus semelhantes.

 

Já a empatia emocional seria percebida de forma puramente qualitativa e, quando não se apresenta junto à cognitiva, modulando seus efeitos incendiários por assim dizer, o bebê experimentaria uma invasão pelos afetos que não é capaz de julgar serem provenientes do outro. É como se o excesso de empatia emocional, sem a contrapartida da empatia cognitiva, fosse mais incapacitante do que a total ausência de empatia. Pode-se pensar, por exemplo, que no caso dos perversos e borderlines se encontraria uma grande parcela de empatia cognitiva separada de toda empatia emocional.

 

Na visão de A. Smith, a presença da empatia emocional concomitante à cognitiva constituiria o arranjo desejável no qual é possível representar o estado emocional do outro, e a ele responder, de maneira adequada.

 

Embora mães psicóticas ou deprimidas, incapazes de produzir uma paraexcitação para seus pequenos bebês, possam levá-los a se fechar à sua face e à sua voz e assim conduzir a graves transtornos, não se encontrou correlação entre tais patologias maternas e o aparecimento do autismo nas suas crianças.

 

Laznik, em outro momento, se vale da linguística, mas de modo distinto do que dizia Jakobson, para quem o balbucio do bebê era constituído de sons sem significado e o qual considerava que só com a aquisição da linguagem haveria um diálogo com sentido. Nossa autora, por sua vez, recorre a estudos mais recentes nos quais se revela que a mãe se dirige ao seu bebê dialogicamente, atribuindo-lhe turnos de fala, ou seja, um espaço temporal durante o qual o bebê pode se manifestar. Faz referência a Silvia Ferreira (psicolinguista), autora que afirma que, desde o início, a mãe coloca seu pequeno na categoria de interlocutor e considera os sinais produzidos por ele como atos de fala, aos quais ela vai dar uma tradução, falando em seu lugar.

 

No último dos textos do livro, "Empatia emocional e autismo" (2013), Laznik retoma, mais em detalhe, os conceitos de empatia cognitiva e empatia emocional. Considera mais uma vez que bebês futuros autistas seriam portadores de fatores de hiperdiscriminação visual e acústica. Apresenta então uma situação na qual a terapeuta, que até então brincava com um bebê, se dirige à mãe num tom de voz de conversa mais grave - conversa entre adultos - não percebido no momento por ela, e imediatamente observa o bebê se fechar ao contato desviando seu olhar. Avalia que esse bebê deva ter captado sua preocupação com o perigo de uma evolução autística, que a ocupou pouco antes de se dirigir à mãe. Bebês comuns, nesses casos, vão buscar novamente o adulto que brincava com eles e escapou. Através do seu balbucio, "Oh! Oh!" conseguem fazer com que os adultos interrompam a conversação, o que felizmente ocorreu no caso apresentado.

 

Numa nova referência a Françoise Dolto, Laz­nik nos conta como essa psicanalista, muitas vezes, colocava palavras onde só havia experiência bruta. É isso que certas mães são capazes de fazer.

 

Há ainda uma grande ênfase na qualidade da interação mãe-bebê para a construção de uma empatia emocional primária capaz de gerar nele a vontade de se comunicar. É fundamental que haja verdade no desejo materno de contato com seu bebê, desejo de despertá-lo, por assim dizer, manifestando enfaticamente sua surpresa e satisfação genuína no encontro.

 

O conceito de "Falar Verdadeiro" para Dolto consiste em não mentir para a criança, à medida que ela sempre tem a intuição de sua história. Se a verdade lhe é dita, essa verdade a constrói. Também tem a intuição da verdade do afeto e envolvimento de suas mães nessas conversas tão particulares, lembra Laznik.

 

Nessa amostra do seu percurso como psicanalista e pensadora, Laznik revela com enorme vivacidade esse encontro ou a busca por esse encontro, seja alimentando esses bebês com significados e afetos, seja oferecendo apoio para essas mães, ao acolher sua dor, seu sentimento de desamparo e não confirmação por parte dos seus bebês.

 

É muito estimulante poder testemunhar como uma psicanalista se movimenta em busca de subsídios em outros saberes - seja na linguística, na medicina e nas neurociências - com a preocupação e o interesse de uma maior compreensão e possibilidade de ajuda efetiva a quem disso depende para seu ingresso no mundo das relações humanas. M.C. Laznik, sem preconceitos, reúne uma sólida formação no campo psicanalítico, que se revela ao longo de todos os textos apresentados, com outros recursos fora da psicanálise no sentido estrito, com a mente aberta e toda sua sensibilidade de maneira exemplar.


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Percurso é uma revista semestral de psicanálise, editada em São Paulo pelo Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae desde 1988.
 
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