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ÍNDICE TEMÁTICO 
59
A Psicanálise em nosso tempo
ano XXX - Dezembro 2017
180 páginas
capa: Silvana LaCreta Ravena
  
 

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Resumo
O presente artigo se propõe a traçar algumas reflexões sobre os clássicos em Psicanálise, resgatando para tanto as 14 características de um clássico segundo o escritor italiano Italo Calvino. Nesse trajeto veremos aspectos da história do movimento psicanalítico, o embate entre tradição e vanguarda e a postura de abertura que é necessária para o fazer e o pensar em Psicanálise, evitando transformá-la em dogma.


Palavras-chave
Psicanálise; Clássico; História da Psicanálise; Italo Calvino.


Autor(es)
Izabel de Madureira Marques Marques
é doutora em Psicologia Clínica pela puc-sp (pesquisadora bolsista cnpq); mestre em Psicologia Clínica pela mesma faculdade e graduada em Psicologia pela usp-sp. Autora de O fim e o começo: uma leitura psicanalítica do encontro intergeracional entre adolescentes e idosos (Escuta, 2016), além de artigos e capítulos de livros.


Notas

[1] I. Calvino, Por que ler os clássicos, p. 16.

 

[2] J. Lacan. "Ato de Fundação - 21 de junho de 1964", p. 205

 

[3] Disponível em:

 

[4] "the simplest way of learning psycho-analysis was to believe that all he wrote was true and then, after understanding it, one could criticise it in any way one wished" (E. Jones, Free associations: memories of a psycho-analyst, p. 204).

 

[5] I. Calvino, op. cit., p. 9.

 

[6] I. Calvino, op. cit., p. 10.

 

[7] I. Calvino, op. cit., p. 10-1.

 

[8] R. Mezan, Interfaces da Psicanálise, p. 347.

 

[9] I. Calvino, op. cit., p. 11.

 

[10] E. Jones, "Prefácio". In: Klein, M. (et al) Os progressos da psicanálise, p. 7-8.

 

[11] I. Calvino, op. cit., p. 12.

 

[12] I. Calvino, op. cit., p. 12.

 

[13] I. Calvino, op. cit., p. 13.

 

[14] I. Calvino, op. cit., p. 13.

 

[15] I. Calvino, op. cit., p. 14.

 

[16] I. Calvino, op. cit., p. 15.

 

[17] I. Calvino, op. cit., p. 14-5.

 

[18] S. Freud, "Charcot (1893)", p. 22-3.

 

[19] S. Freud, op. cit., p. 23.

 

[20] I. Calvino, op. cit., p. 16.

 

[21] Publicada em 2002, a crítica ácida de Flávio Ferraz nos parece mais atual do que nunca: "os destinos tomados pelas sociedades psicanalíticas em sua função específica de guardiãs de ortodoxias são bem conhecidos. O livre pensar pode ser inibido em nome da unidade institucional [...]" (F. Ferraz, Normopatia: sobreadaptação e pseudonormalidade, p. 131-2).



Referências bibliográficas

Calvino I. (1993). Por que ler os clássicos. São Paulo: Companhia das Letras.

Ferraz F. C. (2002). Normopatia: sobreadaptação e pseudonormalidade. São Paulo: Casa do Psicólogo.

Freud S. (1893). Charcot In Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, v. iii.

Jones E. (1982). Prefácio. In M. Klein, M. et al. Os progressos da psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar.

____. (1959). Free associations: memories of a psycho-analyst. London: The Hogarth Press.

Lacan J. Ato de Fundação - 21 de junho de 1964. Os textos de referência de Jacques Lacan. Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano. Disponível em: . Acesso em: 13 fev. 2017.

Mezan R. (2002). Interfaces da Psicanálise. São Paulo: Companhia das Letras.





Abstract
This paper proposes some reflections on the classics in Psychoanalysis, taking the 14 aspects of a classic work according to the italian writer Italo Calvino. On this path we will consider some points of the Psychoanalytical movement history, the clash between tradition and vanguard and the opening approach that is necessary to the Psychoanalytical practice and thought, to avoid turning it into dogma.


Keywords
Psychoanalysis; Classical; Psychoanalysis History; Italo Calvino.

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 TEXTO

Por que estudar os clássicos em Psicanálise?

Why study the classics in Psychoanalysis
Izabel de Madureira Marques Marques

Tentando responder à pergunta "Por que ler os clássicos?", Italo Calvino, depois de enveredar por muitos caminhos e destrinchar o que afinal é um clássico, finalmente conclui, simplesmente, que "a única razão que se pode apresentar é que ler os clássicos é melhor do que não ler os clássicos"[1].

Em Psicanálise a ideia do que é um clássico nos leva necessariamente a Freud. Mas como caminhar para além dos clássicos? Isto é, como ir além de Freud? Será que Freud já disse tudo o que poderia ser dito? Novos clássicos estão sendo criados?

O presente artigo se propõe a traçar algumas reflexões sobre os clássicos em Psicanálise, resgatando para tanto aspectos da história do movimento psicanalítico, o embate entre tradição e vanguarda e a postura de abertura que é necessária para o fazer e o pensar em Psicanálise, evitando transformá-la em dogma. Para tanto, seguiremos os passos de Italo Calvino ao analisar os clássicos da literatura e convidaremos Freud e Ernest Jones para nos acompanhar nesse trajeto.

Sabemos que o próprio Lacan, embora tenha criado uma escola em torno de si - com linguajar, estilo e método clínico próprios -, se dizia mais freudiano do que lacaniano, e o "retorno a Freud" é significativo em sua obra. No Ato de Fundação da Escola Freudiana de Paris (efp), de 1964, afirmou estar voltado para "um trabalho - que, no campo aberto por Freud, restaure a relha cortante de sua verdade; que reconduza a práxis original que ele instituiu sob o nome de Psicanálise ao dever que lhe compete em nosso mundo"[2].

Em nossos dias, a Sociedade Brasileira de Psicanálise assim anunciava um curso breve sobre André Green: "Qual a novidade em psicanálise? Freud! Assim responde André Green. Rigoroso leitor da obra freudiana, Green nos apresenta novos elementos para uma clínica contemporânea"[3].

Retornar a Freud depois de dar uma volta por outros caminhos é, afinal, o que o próprio pai da Psicanálise recomendava. Conta-se que certa vez Freud disse que "o jeito mais simples de aprender psicanálise era acreditar que tudo que ele escreveu era verdade e, depois de tê-lo entendido, a pessoa poderia criticá-lo como quisesse"[4].

Na verdade, é preciso lembrar que o próprio Freud seguiu sua própria recomendação, uma vez que modificou sua teoria da sedução e teve o rigor necessário e a lealdade inabalável à verdade quando, diante de novas descobertas, reelaborou suas concepções e criticou seu próprio pensamento - depois, é claro, de acreditá-lo como verdade.

Retornar aos primórdios da Psicanálise - ou, em outras palavras, estudar a História da Psicanálise, procurando compreender como as diferentes escolas foram se formando, se fortalecendo e se distinguindo umas das outras ao longo do tempo - é, portanto, uma maneira de compreendermos as diferentes abordagens psicanalíticas como construções, e, portanto, como tendo uma história e um contexto de desenvolvimento.

Tradição e vanguarda

No período turbulento em que as escolas de Londres e de Viena se digladiavam sobre conceitos fundamentais, foi Ernest Jones quem mediou o debate e, com sua notável capacidade diplomática, impediu que as divergências culminassem em um rompimento.

Isto não é pouca coisa: o que se garantiu, então, foi a coexistência de modelos de pensamento psicanalítico um tanto incompatíveis, e que, até nossos dias, tanto as obras de Melanie Klein, como as de Anna Freud (ou de Winnicott, Balint e outros, do chamado Grupo Independente) tenham seu lugar nas prateleiras e se apresentem como teorias e concepções passíveis de debate.

Mas como é possível acolher o novo e ao mesmo tempo manter a tradição? Para nos ajudar a resolver esse paradoxo precisaremos de Italo Calvino. Em Por que ler os clássicos, o escritor italiano postula 14 possíveis definições de uma obra clássica; sigamos com ele, pois, pelos caminhos não da literatura, mas da Psicanálise:

1. Os clássicos são aqueles livros dos quais, em geral, se ouve dizer: "Estou relendo ..." e nunca "Estou lendo ..."[5].

Esta primeira definição de Calvino é interessante: parece que os clássicos são apenas relidos, nunca lidos como uma experiência inaugural. É evidente que quando um sujeito começa a ler Interpretação dos sonhos (1900) - geralmente na faculdade de Psicologia - esta é de fato sua primeira vez, sua primeira leitura de uma obra clássica, mas o interessante é que mesmo nessa leitura virginal o clássico opera de um modo diferente do que um não clássico. Como e por que isso acontece? Calvino completa: melhor ainda é ler os clássicos - pela primeira vez - um pouco mais velhos, em melhor condição de apreciá-los, do que decorre sua segunda definição:

2. Dizem-se clássicos aqueles livros que constituem uma riqueza para quem os tenha lido e amado; mas constituem uma riqueza não menor para quem se reserva a sorte de lê-los pela primeira vez nas melhores condições para apreciá-los[6].

Porém, quando seguimos para a terceira definição, as diferenças entre a leitura e a releitura se borram um pouco:

3. Os clássicos são livros que exercem uma influência particular quando se impõem como inesquecíveis e também quando se ocultam nas dobras da memória, mimetizando-se como inconsciente coletivo ou individual[7].

Se o clássico traz, portanto, algo da memória do "inconsciente coletivo ou individual", nas palavras de Calvino, então mesmo a primeira leitura é, de fato, uma releitura. O que o clássico atinge, seja na literatura, seja em Psicanálise, é uma rememoração de caráter cultural, já sentida, vivida e/ou testemunhada como experiência, como obra ou como sonho. Renato Mezan, em seu Interfaces da psicanálise, nos lembra de que Freud fazia uso de uma série de elementos clássicos da cultura ocidental para respaldar a sua criação (recriação?) das concepções psicanalíticas:

Sabemos que, desde o início da década de 1890, Freud considera a cultura um dos pilares da construção da sua teoria: junto com a clínica e com a autoanálise, a cada vez que inventa uma ideia ou propõe uma hipótese muito ousada, recorre ao seu amplo repertório de referências para dali "pescar" um elemento, uma obra de arte, uma peça de teatro, uma instituição social, algum produto cultural, em suma, que tem a função de legitimar a descoberta. Essa função da referência à cultura fica clara se estudarmos as cartas a Fliess e os primeiros trabalhos de Freud. Ela consiste em dizer: "Vejam, o que estou descrevendo não acontece somente comigo ou com meu paciente; é um fenômeno, senão universal, pelo menos já percebido e acessível por meio de obras culturais que todos valorizam"[8].

O Complexo de Édipo, pilar da Psicanálise de Freud, é justamente o exemplo último dessa conjunção entre cultura - o que nós já sabíamos - e a criação da Psicanálise, que, se ao mesmo tempo é completamente nova, inédita, por outro é a reedição de um fenômeno já intuído ou sussurrado pelas obras artísticas, expressão máxima do inconsciente.

Daí decorrem as definições subsequentes de Calvino:

4. Toda releitura de um clássico é uma leitura de descoberta como a primeira.

5. Toda primeira leitura de um clássico é na realidade uma releitura.

6. Um clássico é um livro que nunca terminou de dizer aquilo que tinha para dizer.

7. Os clássicos são aqueles livros que chegam até nós trazendo consigo as marcas das leituras que precederam a nossa e atrás de si os traços que deixaram na cultura ou nas culturas que atravessaram (ou mais simplesmente na linguagem ou nos costumes)[9].

Convite ao futuro

É importante nos determos aqui, com um pouco mais vagar, na definição de número seis. Se, como vimos, um clássico - em Literatura ou Psicanálise - é aquele que de certa forma reitera, ou reafirma, aquilo que já conhecíamos de algum modo, por que será que Calvino também o define como aquele que ainda "não terminou de dizer o que tinha para dizer"?

Dito dessa forma, é como se o clássico trouxesse em si mesmo o germe da sua renovação, isto é, como se, após tocar os mesmos pontos já tocados e reconhecidos ("toda leitura é uma releitura", em Calvino; e o Complexo de Édipo, por exemplo, em Freud), o clássico também fornecesse uma chave para um porvir, um vir a ser, um diálogo com outras concepções e abordagens, e assim não apenas fosse, a um só tempo, novo e antigo, mas também tradicional e inovador. O clássico, deste modo, traria em si mesmo um convite a novas aberturas.

Em seu prefácio da obra kleiniana Progressos da Psicanálise, Jones considera que as inovações de M. Klein são justamente desdobramentos do legado de Freud:

[...] o emprego dos métodos que ele (Freud) inventou devem conduzir, logicamente, a novas descobertas, além daquelas que o próprio Freud realizou, e a hipóteses que ampliem ou retifiquem até as dele - um processo que ele próprio aplicou, sem hesitações, aos seus trabalhos. [...] O que certamente é ilegítimo é o princípio procustiano de avaliar todas as conclusões em comparação com as alcançadas por Freud, por maior que possa e deva ser o nosso respeito por ele. [...] Uma boa parte das descobertas e conclusões de Melanie Klein tinha sido esboçada nos começos por Freud [...][10].

O que concluímos a partir deste prefácio - apresentando a obra de uma psicanalista que em grande medida divergiu de Freud - é que a própria inovação está ancorada e até mesmo garantida pelo clássico, porque nele se baseia, a partir dele nasce e, em certo sentido, a ele retorna. O paradoxo está em compreender que a vanguarda surge, então, a partir de uma introjeção da tradição, como, por exemplo, o próprio Freud recomendou - e fez. Ao tornar sua a teoria e as bases freudianas da Psicanálise, Klein pode, então, avançar sobre os esboços freudianos transformando-os em descobertas autorais.

Daí decorre a oitava definição de Calvino:

8. Um clássico é uma obra que provoca incessantemente uma nuvem de discursos críticos sobre si, mas continuamente os repele para longe[11].

A mágica do clássico psicanalítico freudiano ocorre quando, mesmo na ocasião de divergências contundentes, o clássico permanece em seu posto, não perdendo, nem com a crítica mais ácida, o seu lugar de relevância atemporal. E é por esta razão que:

9. Os clássicos são livros que, quanto mais pensamos conhecer por ouvir dizer, quando são lidos de fato mais se revelam novos, inesperados, inéditos[12].

Aqui é inevitável nos lembrarmos da resposta de André Green quando questionado sobre o que haveria de novo em Psicanálise: Freud. Ler ou reler Freud, especialmente depois de ter feito incursões com outros autores ou teorias, é uma experiência de descoberta, de novidade, mas, para utilizar uma metáfora musical, em outra oitava. Talvez por isso Calvino compare o clássico com algo que tenha um alcance da ordem do universal:

10. Chama-se de clássico um livro que se configura como equivalente do universo, à semelhança dos antigos talismãs[13].

E ainda que universal, o clássico pode ser incorporado de maneira absolutamente pessoal, singular, assim como Lacan se apropriou de um Freud diverso daquele de Klein ou de André Green. Lacan desenvolveu seus conceitos de real, imaginário e simbólico a partir da obra freudiana; Klein enxergou o Complexo de Édipo nas fases mais precoces do desenvolvimento; Green se aprofundou na metapsicologia freudiana e trabalhou a teoria do negativo, a pulsão de morte; e assim por diante... Não apenas a obra freudiana é selecionada pelos autores que o sucederam - e se detiveram exatamente naqueles pontos que faziam mais sentido para o desenvolvimento de sua conceituação própria - como também a teoria de Freud é, em si mesma, ao mesmo tempo universal e singular, à medida que propõe para a humanidade um modelo de psiquismo que aprendeu, em boa parte, através da análise de um só homem: ele mesmo.

11. O "seu" clássico é aquele que não pode ser-lhe indiferente e que serve para definir a você próprio em relação e talvez em contraste com ele[14].

12. Um clássico é um livro que vem antes de outros clássicos; mas quem leu antes os outros e depois lê aquele, reconhece logo o seu lugar na genealogia[15].

Podemos compreender, com Calvino e com a história da Psicanálise, que o que se torna um clássico depende, sobretudo, do tempo. Houve muitos teóricos e muitas abordagens psicanalíticas foram criadas, mas nem todos sobreviveram com consistência à passagem dos anos, talvez por não encontrarem essa espécie de ressonância - a um só tempo universal e singular - que um clássico traz.

E ainda: o clássico freudiano dialoga com a contemporaneidade. É comum em nossos dias - quase lugar-comum nos debates em Psicanálise - se falar em "psicopatologias da contemporaneidade", ou supostas especificidades psíquicas de nosso tempo. Embora não seja nosso intuito nos debruçarmos aqui sobre essas formas de sofrimento psíquico da atualidade, o que é seguro afirmar é que de algum modo parte-se do clássico - ou do clássico que veio do clássico, como na genealogia de Calvino - para fundamentar as reflexões desse novo.

Calvino chama de "barulho de fundo" estas influências da contemporaneidade - com as quais o clássico necessariamente dialoga:

13. É clássico aquilo que tende a relegar as atualidades à posição de barulho de fundo, mas ao mesmo tempo não pode prescindir desse barulho de fundo.

14. É clássico aquilo que persiste como rumor mesmo onde predomina a atualidade mais incompatível[16].

E acrescenta: "O dia de hoje pode ser banal e mortificante, mas é sempre um ponto em que nos situamos para olhar para a frente ou para trás. Para poder ler os clássicos, temos de definir ‘de onde' eles estão sendo lidos, caso contrário tanto o livro quanto o leitor se perdem numa nuvem atemporal. Assim, o rendimento máximo da leitura dos clássicos advém para aquele que sabe alterná-la com a leitura de atualidades numa sábia dosagem"[17].

"Teoria é bom, mas..."

Esta é a importância da compreensão do contexto histórico em toda leitura psicanalítica. Se por um descuido deixarmos de lado o fato de que as concepções e escolas psicanalíticas são construções e que, portanto, dizem respeito a um momento histórico e uma série de influências, repertórios e heranças culturais, corremos o risco de tomá-las como verdade absoluta, transformando-as em objetos de fé e não de pensamento. Ou, em outras palavras, ficamos apenas na primeira etapa da recomendação de Freud, isto é, a de incorporar tudo o que foi dito como verdade - mas sem passar para a fase seguinte, de trazer essa verdade à luz do pensamento crítico e do escrutínio, bem como ao diálogo com novas abordagens.

Voltemos agora ao prefácio da obra de Klein, publicada em um contexto de polarização na Sociedade Britânica: o que se conclui a partir desta apresentação é que a acolhida ou abertura ao novo estaria, afinal, no próprio espírito da Psicanálise. O método psicanalítico de Freud a um só tempo sustentaria, portanto, a si próprio e também a sua retificação, garantindo simultaneamente a teoria já consolidada e a investigação de novas descobertas. Na realidade, tal concepção se baseia em uma postura epistemológica adotada e assumida pelo próprio Freud, que viu - e admirou - em Charcot uma posição que, de antemão, relativiza as teorias. Conta Freud:

(Charcot) costumava olhar repetidamente as coisas que não compreendia, para aprofundar sua impressão delas dia a dia, até que subitamente a compreensão raiava nele. Em sua visão mental, o aparente caos apresentado pela repetição contínua dos mesmos sintomas cedia então lugar à ordem. [...] podia-se ouvi-lo dizer que a maior satisfação humana era ver alguma coisa nova - isto é, reconhecê-la como nova; e insistia sobre a dificuldade e importância dessa espécie de "visão". Poderia indagar por que, na medicina, as pessoas enxergavam apenas o que tinham aprendido a ver. E diria ser maravilhoso alguém poder subitamente ver coisas novas - novos estados de doença -, provavelmente tão velhas quanto a raça humana, e devia confessar-se que via agora em suas enfermarias inúmeras coisas que desprezara por trinta anos. [...] Charcot, na verdade, era infatigável na defesa dos direitos do trabalho puramente clínico, que consiste em observar e ordenar coisas, contra as usurpações da medicina teórica[18].

Em seguida Freud conta uma cena em que um pequeno grupo de estudantes (entre eles, ele próprio) testava a paciência de Charcot com inúmeras dúvidas sobre as inovações. Em um dado momento, um estudante retruca ao professor que um determinado fato clínico não poderia ser verdadeiro, pois contrariaria uma teoria. Em resposta, Charcot teria dito: "‘La théorie, c'est bon, mas ça n'empêche pas d'exister'. (‘Teoria é bom; mas não impede as coisas de existirem.' Esta era uma citação favorita de Freud, e ele a repetiu através de toda a sua vida.)"[19].

E se as coisas insistem em existir, são as abordagens de pesquisa e a produção de conhecimento que devem a elas se submeter, e não o contrário - senão, como vimos no relato de Freud, só se enxerga o que se aprendeu a enxergar.

Os clássicos em Psicanálise cumprem seu lugar de sentido no tempo se, e somente se, forem como o clássico dos clássicos nos ensinou: tomados primeiro como verdade, para depois, já incorporados (ou se preferirmos, introjetados), serem escrutinados, criticados, refutados, complementados.

É preciso, pois, ler os clássicos - em Literatura e em Psicanálise. E Calvino defende:

E se alguém objetar que não vale a pena tanto esforço, citarei Cioran (não um clássico, pelo menos por enquanto, mas um pensador contemporâneo que só agora começa a ser traduzido na Itália): "Enquanto era preparada a cicuta, Sócrates estava aprendendo uma ária com a flauta. Para que lhe servirá?", perguntaram-lhe. "Para aprender esta ária antes de morrer"[20].

Pós-escrito

A defesa dos clássicos em Psicanálise parece um pouco demodé ou um nadar contra a corrente nos dias atuais, em que cada vez mais se fala, nos círculos psicanalíticos, em "novas formas de subjetivação", "novas psicopatologias", "novas formas de sofrimento psíquico". Sem entrarmos na relevância da questão, que de fato é pertinente, o que salientamos aqui é a importância do retorno aos fundamentos, do fortalecimento das bases que estão nos ditos clássicos.

No entanto, se os clássicos em Psicanálise forem utilizados como a cama de Procusto, instantaneamente perdem sua razão de ser, uma vez que fecham possibilidades, viciam o olhar e estreitam as opções de pensamento - que, necessariamente, só podem vir a ser originais se deixados em liberdade, em livre associação. Um clássico utilizado como medida estabelecida de antemão para a leitura de outras - e novas - abordagens se transforma facilmente em dogma.

Em tempos de discursos totalitários, se faz urgente atentarmos, nos círculos psicanalíticos, para grupos ou guetos (escolas) psicanalíticos fechados em si mesmos, avessos uns aos outros e estudos que apenas enxergam o que já se aprendeu a ver[21].

Que nosso meio psicanalítico tenha como bandeira, não uma ou outra teoria - ou autor tomado como profeta -, mas o próprio exercício do pensamento e o espírito de abertura que seu próprio método garante. Que a receptividade que se teve em Londres há muitos e muitos anos, ainda que permeada de tensões - o clássico abraçando a vanguarda - seja, então, amplamente imitada e nos inspire hoje e por todos os tempos - mesmo que seja apenas para aprender uma ária, completamente nova, antes de morrer.


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