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Resumo
Tanto o psicanalista Jacques Lacan quanto o antropólogo Claude Lévi-Strauss pensam os fenômenos fundamentais da vida e da alma como situados no âmbito inconsciente. Ambas as teorias são influenciadas pela linguística de Saussure e Jakobson. O presente artigo compara essa influência linguística na concepção de inconsciente para a psicanálise lacaniana e para a antropologia estrutural.


Palavras-chave
Inconsciente estrutural; linguagem; Lacan; Claude Lévi-Strauss; Simbólico.


Autor(es)
Janaina  Namba
é doutora em Filosofia pela UFSCAR, aluna do Curso de Psicanálise (2o ano) do Instituto Sedes Sapientiae.


Notas

[1] F. Dosse, "O nascimento de um herói: Claude Lévi-Strauss", p. 35.

 

[2] F. Dosse, op. cit., p. 37.

 

[3] A influência linguística de Lévi-Strauss não se deve somente aos linguistas, mas também à antropologia americana de Franz Boas.

 

[4] C. Lévi-Strauss, Anthropologie Structurale, p. 33.

 

[5] C. Lévi-Strauss, op. cit., p. 47.

 

[6] C. Lévi-Strauss, "Introdução à obra de Marcel Mauss", p. 28.

 

[7] C. Lévi-Strauss, op. cit., p. 28.

 

[8] C. Lévi-Strauss, op. cit., p. 29.

 

[9] C. Lévi-Strauss, op. cit., p. 29.

 

[10] F. Dosse, "O chamado de Roma" in op. cit., p. 130.

 

[11] F. Dosse, "Peçam o programa: o Mauss" in op. cit., p. 49.

 

[12] J. Lacan, Escritos, p. 496.

 

[13] R. T. Simanke, Metapsicologia lacaniana, p. 251.

 

[14] C. Lévi-Strauss, Les structures élémentaires de la parenté, p. 98.

 

[15] C. Lévi-Strauss, op. cit., p. 108.

 

[16] R. Jakobson, Studies on child language and aphasia, p. 8.

 

[17] R. Jakobson, op. cit., p. 9.

 

[18] R. Jakobson, op. cit., p. 12.

 

[19] R. Jakobson, op. cit., p. 13.

 

[20] C. Lévi-Strauss, Les structures..., p. 110.

 

[21] Lévi-Strauss, op. cit., p. 110.

 

[22] Lévi-Strauss, op. cit., p. 108.

 

[23] C. Lévi-Strauss, Anthropologie structurale, p. 233.

 

[24] C. Lévi-Strauss, op. cit., p. 232.

 

[25] C. Lévi-Strauss, op. cit., p. 232.

 

[26] F. Dosse, op. cit., p. 129.

 

[27] F. Dosse, op. cit., p. 129.

 

[28] F. Dosse, op. cit., p. 131.

 

[29] B. Ogilvie, Lacan, a formação do conceito de sujeito, p. 41-42.

 

[30] J. Lacan, Les quatre concepts fondamentaux, p. 28.

 

[31] B. Ogilvie, op. cit., p. 43.

 

[32] R. Simanke, op. cit., p. 249-250.

 

[33] J. Lacan, "Os complexos familiares na formação do indivíduo", in Outros escritos, p. 30.

 

[34] J. Lacan, op. cit., p. 31.

 

[35] Cf J. Lacan, De l'impulsion au complexe in Revue Française de Psychanalyse, p. 137-141.

 

[36] R. T. Simanke, op. cit., p. 253.

 

[37] R. T. Simanke, op. cit., p. 256.

 

[38] B. Ogilvie, op. cit., p. 110-112.

 

[39] B. Ogilvie, op. cit., p. 117.

 

[40] B. Ogilvie, op. cit., p. 120.

 

[41] J. Lacan, "O estádio do espelho como formador da função do eu tal como revelado na experiência psicanalítica", in Escritos, p. 97.

 

[42] Em julho de 1953, na conferência inaugural da Sociedade Francesa de Psicanálise, Lacan apresenta uma primeira definição sistemática das categorias de Simbólico, Imaginário e Real. Essas categorias, assim expressas, mostram como o psicanalista retoma a letra freudiana.

 

[43] B. Ogilvie, op. cit., p. 123.



Referências bibliográficas

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Ogilvie B. (1988). Lacan, a formação do conceito de sujeito. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.

Simanke R. T. (2002). Metapsicologia lacaniana. São Paulo: Discurso; Curitiba: Ed. UFPR.





Abstract
Both the psychoanalyst Jacques Lacan as the anthropologist Claude Lévi-Strauss thinks the fundamental phenomena of life and soul as located within unconscious. Both theories are influenced by linguistics of Saussure and Jakobson. This article compares this linguistic influence in the design of unconscious to the lacanian psychoanalysis and structural anthropology.


Keywords
Structural inconscious; language; Lacan; Claude Lévi-Strauss; Symbolic.

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 TEXTO

Lacan, Lévi-Strauss e as estruturas do inconsciente

Lacan, Lévi-Strauss and the structures of the uncounscious
Janaina  Namba

De acordo com François Dosse, em História do Estruturalismo (parte I), Marx foi "um dos três amantes" de Lévi-Strauss, juntamente com Freud e com a geologia. De Marx ele haveria adquirido, precocemente, "um conhecimento profundo", ao qual o antropólogo se refere em Tristes Trópicos como o ensinamento de que "as ciências sociais não se constroem no plano dos acontecimentos, do mesmo modo que a física não se assenta em dados da sensibilidade"[1]. O que quer dizer que um investigador proveniente de uma ciência qualquer não tem como edificar o seu saber em dados manifestos e aparentes; ao contrário, deve construir um modelo, que lhe permita ultrapassar a aparência sensível, submetida à contingência.

Com relação a Freud, apesar de Lévi-Strauss se opor a ele incisivamente ao longo de toda a sua obra, podemos supor que sua influência se encontre no gesto de ruptura de Lévi-Strauss com a "filiação naturalista e biologista da antropologia francesa, [...] cuja pesquisa fundamentava-se essencialmente num determinismo biológico"[2]. A grande inovação de Lévi-Strauss para a antropologia teria sido transpor para essa disciplina o modelo linguístico, aproximando-a da semântica ao colocar as leis da linguagem no centro da inteligibilidade da estrutura inconsciente dos fenômenos sócio-culturais[3]. Para além dessa transposição, realizada a partir dos diálogos que teve com Jakobson, Lévi-Strauss acabou por incorporar o método linguístico e considerar "os termos de parentesco como elementos de significação, que, tais como os fonemas, só adquirem-na sob a condição de se integrarem a sistemas"[4].

Dessa forma, Lévi-Strauss, à melhor maneira freudiana, não se identifica nem com a filosofia, onde iniciou seu percurso, nem com a etnologia da época, na qual se formou. A antropologia estrutural se destaca do saber constituído e propõe um problema que se pode chamar de "filosófico", ou seja, o lugar por ela ocupado em relação às demais ciências. E a linguística será decisiva para definir esse lugar, uma vez que o antropólogo considera o sistema de parentesco, ele mesmo, como uma linguagem: "postulamos, portanto, a existência de uma correspondência formal entre a estrutura da língua e a do sistema de parentesco"[5]. Com isso, as relações de parentesco são compreendidas, não importa onde se manifestem - e elas se encontram por toda parte onde há sociedade - de acordo com um modelo fixo constante, capaz de apreender, com uma mesma grade, as variações que ocorrem de uma sociedade para outra.

Também graças à linguística, especialmente a linguística estrutural, é que o antropólogo diz, na Introdução à obra de Marcel Mauss, ter se familiarizado

com a ideia de que os fenômenos fundamentais da vida do espírito, os que a condicionam e determinam suas formas mais gerais, situam-se no nível do pensamento inconsciente. O inconsciente seria assim o termo mediador entre eu e outrem[6].

Para a antropologia estrutural, os fatos sociais e culturais são vistos pela perspectiva do inconsciente, que faz com que coincidam as mesmas formas de atividade humana, para todas as épocas[7]. Dessa maneira, para a antropologia estrutural, há uma comunicação entre os homens que se dá pela via dos fatos sociais, que ocorre de maneira inconsciente e tem sua "estrutura inata no espírito humano"[8].

Nesse mesmo texto, Lévi-Strauss aproxima a psicanálise da antropologia estrutural, ao dizer que em ambas disciplinas há uma operação do mesmo tipo. Pois a psicanálise permite reconhecer "o nosso eu mais estranho" enquanto a antropologia estrutural torna acessível "o mais estranho dos outros, bem como um outro em nós"[9]. Isto é, pressupõe a existência de mecanismos inconscientes, ou ainda, de uma estrutura que subjaz nossas atitudes manifestas.

A convergência entre etnologia e psicanálise, tal como preconizada por Lévi-Strauss, é bem diferente do modo como Freud buscou, na antropologia de sua época, fontes para suas próprias teorias. Não se trata, para Lévi-Strauss, de tornar uma ciência subsidiária da outra, mas de encontrar o que há de comum entre elas, e extrair daí consequências metodológicas de monta para a compreensão do homem. Nesse sentido, pode-se considerar que foi Jacques Lacan quem melhor compreendeu, junto aos psicanalistas, as implicações dessa aproximação - explorando-a numa direção bastante singular.

Desde 1953, em Roma

Lacan, ao utilizar as concepções linguísticas de Ferdinand Saussure para assentar a noção de inconsciente, a partir de 1953, vê na linguística o papel de ciência piloto, que lhe servirá de guia, assim como o foi para Lévi-Strauss desde 1949. No entender do psicanalista, as estruturas de linguagem, ou fonológicas, estariam diretamente implicadas nas regras de aliança terapêutica, que é uma aliança inconsciente[10]. Seu mote é a famosa declaração de Saussure: "os fatos da língua situam-se num estágio do pensamento inconsciente"[11].

No célebre texto sobre A instância da letra no inconsciente (1957)[12], Lacan afirma que a experiência analítica descobre no inconsciente a estrutura inteira da linguagem, o que lhe permite introduzir em seu interior uma clivagem entre inconsciente linguístico e inconsciente corporal, sede das pulsões. E acrescenta que não devemos confundir ainda a linguagem com outras funções somático-psíquicas. Isso porque a estrutura da linguagem é pré-existente ao desenvolvimento mental do sujeito. Em outras palavras, a criança nasce inserida no mundo simbólico da linguagem, e é em relação a essa linguagem que ela irá se desenvolver cognitivamente. O inconsciente é a dimensão onde o sujeito será determinado e estruturado apenas pelos efeitos da palavra. Os efeitos do corpo, diferentemente, não são responsáveis por influenciar a estruturação desse inconsciente. Vê-se assim, pela teoria lacaniana, que o inconsciente, ainda que apoiado no corpo, encontra-se dele dissociado, pois a materialidade corpórea lhe é indiferente enquanto instância estruturante.

Assim como para a antropologia estrutural, a psicanálise lacaniana concebe uma estrutura que é inconsciente subjacente aos fenômenos psíquicos. No entanto, dizer que há um desenvolvimento cognitivo não significa dizer que exista um desenvolvimento dessa estrutura inconsciente. A criança nasce imersa no mundo da linguagem, no mundo da família, lugar que representa a cultura, que por sua vez é transmitida por "estruturas de comportamento e de representação cujo jogo ultrapassa os limites da consciência"[13]. Podemos assim entender a célebre frase de Lacan o "inconsciente encontra-se estruturado como linguagem", isto é, a partir das identificações resultantes da configuração familiar, bem como a constituição do sujeito, decorrente dessas identificações, há a expressão de uma linguagem inconsciente.

Vemos assim que tanto a antropologia estrutural quanto a psicanálise lacaniana têm seus fundamentos na linguística, e consideram que haja uma estrutura inconsciente que rege as relações humanas. Quais seriam então as diferenças existentes no que diz respeito ao inconsciente para a etnologia de Lévi-Strauss e para a psicanálise de Lacan?

Lévi-Strauss e o inconsciente

No capítulo VII de As Estruturas elementares do parentesco (1949), Lévi-Strauss se propõe a compreender algumas das "estruturas fundamentais do espírito humano"[14] e a buscar pelo método que lhe permitiria alcançá-las e analisá-las. Tais estruturas fundamentais são estruturas mentais universais.

Essas estruturas fundamentais seriam um fundo comum e indiferenciado que cada indivíduo traz em esboço consigo ao nascer, e é a partir de tais estruturas que ele irá definir suas relações com o mundo e com o outro. Essas estruturas compõem de maneira embrionária a soma de todas as possibilidades de determinada cultura, e a particularidade das relações a serem estabelecidas depende de como as escolhas feitas pelos indivíduos são determinadas pelas relações previamente estabelecidas no seio da organização social em que ele se encontra inserido: trata-se de "uma escolha que o grupo impõe e perpetua". O pensamento do adulto se caracteriza pelas escolhas que faz conforme as exigências do grupo, e se diferencia, portanto, do pensamento infantil, pela cristalização ocorrida na experiência individual[15].

Para a análise e compreensão dos circuitos mentais que compõem a estrutura mental, Lévi-Strauss recorre ao modelo linguístico de Roman Jakobson, no qual as estruturas do pensamento infantil passam por um processo de especialização e regressão. Jakobson diz que "durante o período de balbucio, a criança produz uma ampla variedade de sons, sendo que quase todos são eliminados ao passar para um estágio em que são faladas poucas palavras"[16]. Ou seja, nesse período, é comum na criança a repetição dos sons, fazendo com que se tornem familiares as representações motoras de palavra na presença das representações acústicas da palavra correspondente, fazendo com que a palavra adquira um valor fonológico. Assim, para a criança, aquilo que ela ouve serve como referência para o que irá falar, há uma inscrição na memória auditiva, de modo que ela se torna capaz de diferenciar aquilo que ficou retido daquilo que é reproduzido. Ao realizar tais distinções, torna-se capaz de separar o que é próprio do que não é, e os valores fonológicos tornam-se intersubjetivos, e não apenas subjetivos, impelindo assim a própria linguagem na direção da significação. Como diz Jakobson, "ao desejo de comunicar é acrescido agora o desejo de comunicar algo"[17].

Além disso, de acordo com Jakobson, é possível reconhecer na formação do sistema fonético da criança certa regularidade na sucessão das aquisições, o que diz respeito, no mais das vezes, à constituição de uma sequência temporal e invariável. Isto é, as aquisições compõem uma hierarquia universal constante baseada na ordem temporal dessas aquisições. Isso quer dizer que os valores fonéticos também se encontram ligados a elas de modo temporal e hierárquico, o que implica uma relação de solidariedade irreversível, ou ainda, uma relação em que um valor secundário não pode existir sem um valor primário, que, por sua vez, não pode ser eliminado sem eliminar também o secundário. Jakobson ainda afirma que é possível observar essa ordenação em qualquer sistema fonológico, e que ela comanda também todas as mutações[18]. Ou seja, assim como há uma hierarquia na construção do sistema, também nas desordens fonológicas essa hierarquia reaparece como regressão e desintegração. Por exemplo, em alguns tipos de afasia, há uma reprodução inversa da própria aquisição da linguagem infantil[19].

Na antropologia estrutural, Lévi-Strauss se baseia nesse mesmo modelo para compreender a multiplicidade de estruturas de pensamento e de atitudes: a criança oferece uma espécie de esboço do domínio das relações inter-individuais, porém sem valor social: trata-se de "um material bruto, apto à construção de sistemas heterogêneos, do qual cada um pode reter apenas um número, para atender a um valor funcional"[20].

Assim como para o linguista, que observa a multiplicidade de sons a ser eliminada, para o antropólogo também haveria uma multiplicidade de possibilidades para a construção de sistemas de relações a serem estabelecidas dentro da cultura à qual a criança pertence. E o próprio fato de pertencer a determinada cultura, e ser esta última a determinar suas escolhas sociais, faz com que a criança retenha apenas um determinado número de relações inter-individuais. Nas palavras de Lévi-Strauss, "é por esta incorporação da criança à sua cultura particular que essa seleção se produz"[21]. Ou seja, a cultura comporta e sustenta a criança para que esta possa estabelecer e delimitar suas relações. Sabe-se que apesar de os esquemas mentais do adulto serem provenientes de um fundo universal, eles variam conforme a cultura à qual pertencem. Também a criança traz consigo "sob uma forma embrionária, a soma total das possibilidades de cada cultura e de cada período da história", no entanto só desenvolverá algumas[22].

Em outras palavras, para Lévi-Strauss, o pensamento infantil se comporta de acordo como o modelo linguístico de Jakobson, e os esquemas mentais, apesar de serem esboços do que serão os dos adultos, passam por um processo de especialização e especificação de acordo com cada cultura e com sua época, de modo que esses esquemas são, eles mesmos, determinantes do funcionamento do inconsciente estrutural, que, para Lévi-Strauss, é "sempre vazio [...], órgão de uma função específica, que se limita a impor leis estruturais que esgotam sua realidade nos elementos desarticulados como pulsões, representações e emoções"[23]. Ou seja, o inconsciente não é conteúdo da história de cada um, ou mesmo de suas emoções, nem dos mecanismos psíquicos, ele apenas impõe suas leis, que são comuns a todos os seres humanos, e se reduz a uma única função, a função "simbólica"[24]. Lévi-Strauss distingue aí o inconsciente do subconsciente. Enquanto o subconsciente guarda em si uma memória, sendo ele, "um reservatório de imagens" de cada um, o inconsciente tem a função de atribuir a essas "imagens" um significado[25].

Lacan e o inconsciente

Se a antropologia estrutural atribui ao inconsciente uma função simbólica, o mesmo se dará no campo da psicanálise para Lacan, como veremos a seguir.

Dissemos que Lacan considera a linguística como uma ciência piloto, e recorre a ela num empenho de retomada da teoria freudiana pela via da linguagem, uma vez que, em seu entender, "a psicanálise só tem um veículo: a fala do paciente". Isso porque a psicanálise foi uma descoberta conjunta (do médico e da paciente) como uma cura pela fala (talking cure), e o psicanalista pretendia marcar uma diferença do que seria uma verdadeira psicanálise da psicanálise que era propagada nos EUA, "onde ela se perdeu no pragmatismo", ao deixar-se influenciar por uma psicologia adaptativa às normas sociais[26].

No texto Discurso de Roma (1953), Lacan diz que "é o mundo das palavras que cria o mundo das coisas"[27]. Dessa ideia de que a linguagem é criadora, Lacan não considera outro modo para a existência humana que uma existência simbólica, pois considera a língua falada como um órgão que é exterior ao próprio corpo[28]. Dessa maneira, ao colocar a linguística como verdadeiro suporte para a psicanálise, consagrava-a como um verdadeiro objeto científico que revolucionava as ciências humanas.

Segundo Ogilvie, é no seminário 11 (Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise) que Lacan apresenta pela intermediação da obra de Lévi-
Strauss a ideia de uma cultura anterior e determinante "que interfere na natureza dos elementos empíricos", concepção de acordo com a qual a cultura irá determinar "o lugar" e delinear a "função" da própria experiência individual. Essa elaboração da experiência ocorre na linguagem, e é através da linguística de Saussure que Lacan pensa o estabelecimento das leis de funcionamento desse sistema. Nas palavras do psicanalista francês,

Lévi-Strauss rotulou com nome de pensamento selvagem aquilo que organiza antes de qualquer experiência ou dedução individual, antes mesmo que se inscrevam as experiências coletivas que só são relacionáveis com as necessidades sociais[29].

Na interpretação que Lacan oferece de Lévi-Strauss (neste ponto, bastante fiel), haveria, portanto, um modo de pensamento inaugural pré-existente e responsável por organizar e determinar as inscrições tanto individuais quanto coletivas da experiência. Esse pensamento teria, assim, uma função classificatória primária, que, embora se encontre no âmbito da natureza, "fornece as palavras, os significantes"[30], verdadeiras estruturas que servem de modelos para as relações humanas. Para a teoria lacaniana, o que importa é esse momento anterior à formação do sujeito, pois é aí que se apresenta, através da linguística, a estrutura inconsciente. De acordo com Ogilvie, a linguística nos liberta da subjetividade "original", motora e autônoma, mas deixa como questionamento uma subjetividade que será produzida, a qual, em Pensamento selvagem (1962), Lévi-Strauss atribui ao meio ambiente e à cultura, mas nada diz a respeito da sua produção[31]. Pode-se dizer que para Lacan esse meio ambiente é reduzido principalmente à família: é ela que garante as condições do meio ambiente, pois a crê como uma "unidade social [...] uma instituição extremamente complexa"[32]. Dessa maneira nos perguntamos: como então ocorre esse processo de subjetivação para Lacan?

Num de seus primeiros textos, Os complexos familiares na formação do indivíduo (1938), Lacan se refere à família como portadora de um "papel primordial na transmissão da cultura"[33], pois dela parte uma educação precoce, assim como a repressão dos instintos, o que a torna responsável, em termos gerais, "pela transmissão de estruturas de comportamento e da representação cujo funcionamento ultrapassa os limites da consciência"[34]. Disso pode-se depreender, como ressalta Simanke em Metapsicologia lacaniana (2002), que a família, enquanto instituição social, é colocada, originalmente, no âmbito da cultura, diferenciando-se assim da posição de Lévi-Strauss que pensa a família localizada no âmbito da natureza em seu artigo A Família, de 1956.

A transmissão de estruturas de comportamentos é pensada por Lacan como uma realização da família, pela via dos complexos, nunca dos "instintos". E aqui cabe uma breve observação com relação ao instinto que vem a ser um comportamento animal hereditariamente fixado, e, portanto, pensado no âmbito da natureza e não da cultura[35].

O psicanalista define então o complexo de maneira dupla, por nós traduzida do seguinte modo: 1) como uma forma que está ligada à gênese de uma etapa específica do desenvolvimento psíquico, e 2) à atividade de repetir a realidade à qual se fixou, toda vez que assim lhe for suscitado. Esses complexos são três: o de desmame, o de intrusão e o de Édipo.

Lacan é enfático em dizer que há uma transmissão de estruturas, mas, apesar do que se possa pensar, ela se dá de maneira independente de uma hereditariedade da espécie, dado que ocorre pela via dos complexos. Esses últimos estão relacionados às etapas do desenvolvimento psíquico e, portanto, ligados à estrutura desse psiquismo; mas também estão relacionados às realidades individuais que dizem respeito à vivência conjuntural. Isso quer dizer que a transmissão se deve tanto a fatores internos ao indivíduo quanto a fatores externos, sendo que estes últimos são a própria família. Segundo Simanke, o complexo "dá margem ao surgimento de uma ordem especificamente humana"[36], já que é condicionado por fatores culturais e por estar diretamente envolvido na formação do sujeito. Ou seja, o homem não só se encontra inserido num mundo comum a todos os outros homens, como também ocupa o centro de um mundo "construído a partir de suas vicissitudes identificatórias a que foi submetido no interior do grupo familiar"[37]. Portanto, o processo de subjetivação do indivíduo ocorre mediante a transmissão dos complexos enquanto estrutura de relações que podemos dizer simbólicas.

Estádio do espelho

O primeiro texto de Lacan sobre o estádio do espelho é datado de 1936. O título completo é: O estádio do espelho. Teoria do momento estruturante e genético da constituição da realidade concebida com relação à experiência e à doutrina psicanalítica. Nesse período, o psicanalista tinha uma concepção de que a formação da personalidade constituía-se por etapas. Desse modo, uma criança (de seis a dezoito meses), ao reconhecer-se no espelho, estaria cumprindo uma etapa do desenvolvimento psíquico de maneira inconsciente. A descoberta de seu corpo unificado na imagem do espelho viria a ser o momento estruturante da formação do eu, como consequência de uma superação da etapa anterior a essa, em que o corpo encontrava-se dividido.

No entanto, Lacan reescreve esse texto do estádio do espelho e o apresenta novamente em 1949, guiado por outra concepção, que se pode dizer estruturalista, sobre o que significa o reconhecimento, por parte da criança, de sua própria imagem no espelho. Lacan afirma que há um júbilo no reconhecimento da imagem especular pelo ser que se encontra mergulhado na impotência motora e na dependência da amamentação. Pode-se dizer que essa seria então a primeira relação que a criança tem consigo mesma e que ocorre de maneira irremediável, com consequências profundas e duradouras. A formação do eu tem um valor exemplar na sequência do desenvolvimento, pois alcança uma estrutura definitiva, fundadora de uma identificação que é uma relação estabelecida pelo sujeito entre uma interioridade e uma exterioridade que se configura de um modo não ultrapassável[38].

Ainda que Lacan, em 1949, não tenha colocado a linguagem em primeiro plano e, portanto, não tenha destacado a primazia do significante sobre o sujeito, chega a algumas formulações importantes a partir desse texto. Há um júbilo, um fascínio no reconhecimento de uma imagem total que o impulsiona a desejá-la, como imagem de si. No entanto, a imagem antecipa algo que ainda não aconteceu, isto é, vê-se através da imagem do eu, uma forma fictícia de uma totalidade bem acabada de uma motricidade e de uma independência vital que também não foram alcançadas. Se, por um lado, há o reconhecimento de uma imagem de si, por outro, a antecipação daquilo que ainda não o é, é tomado enquanto forma de um outro: "o homem se concebe como outro que não ele mesmo"[39]. É possível reconhecer, na formação do eu, algumas operações psíquicas fundamentais, a saber, que a imagem é investida pelo desejo e que a partir dela ocorre uma identificação. Isso quer dizer que, para Lacan, o estádio do espelho tem uma função exemplar nas relações imaginárias, já que nesse estádio se desenrola uma história negativa, uma vez que ela vem a apresentar uma falta primordial (a imaturidade do nascimento) na qual se precipitará posteriormente uma imagem ideal (como ego-ideal) com a qual irá se identificar.

Somente a partir da década de 1950, Lacan passa a linguagem para um primeiro plano ao dizer que é nela que se anunciam as relações imaginárias. O sujeito se encontra imerso em sistemas que só remetem a eles mesmos, isto é, encontra-se em meio a sistemas em que lugar e significação já estão dados desde sempre: "o registro do significante se institui do fato de que um significante representa um sujeito para outro significante"[40]. Isso quer dizer que a partir da formação do eu, ou de uma imagem, é que surge uma relação de significantes, ou ainda, em que os significantes passam a ter significação. Nas palavras de Lacan é "a linguagem que restitui sua função de sujeito"[41], pois vai alçá-lo ao campo simbólico, é ela que determina a posição do sujeito com relação ao mundo exterior (relações entre o campo imaginário e real)[42].

Se antes Lacan pensava a transmissão de complexos por uma via da família, isto é, a transmissão da cultura de uma maneira inconsciente, a partir de 1949, ele também se refere à formação do sujeito a partir do estádio do espelho, como processo inconsciente. No entanto, o que antes poderia ser remetido a um individualismo subjetivo passa a ser calcado nos complexos herdados. A partir da formação do sujeito e da preponderância do papel da linguagem em sua teoria, o inconsciente deixa de representar o indivíduo humano, ou parte do psiquismo, e passa a ser esse jogo de forças de relações que ocorrem no plano do Real; uma fragmentação inalcançável da prematuridade da criança que se dá no plano Imaginário, e, no plano Simbólico em que atuam o desejo pela imagem e a sujeição a esse desejo ao qual se identifica, que se apresenta sob a forma da linguagem.

Inconscientes

Vemos assim que o percurso de Lacan em sua definição linguística do inconsciente tem duas etapas, e que pode ser diferenciado pelo modo como ele se posiciona em relação à antropologia de Lévi-Strauss. Na primeira etapa, em seu texto sobre os complexos familiares na formação do indivíduo, Lacan se refere à transmissão dos complexos como "uma transmissão de estruturas de comportamento". Ora, se há uma transmissão inconsciente desses complexos que fazem parte das estruturas de comportamento, o inconsciente não é propriamente uma estrutura vazia, como pensa Lévi-Strauss: haveria nele representações. Esse conceito de inconsciente será revisto à luz do estruturalismo, e particularmente à luz da antropologia estrutural de Lévi-Strauss, a partir da década de 1950.

Ao formular as concepções da noção de sujeito (do inconsciente), Lacan reconduz o processo de subjetivação às concepções linguísticas, afirmando assim que o sujeito estabelece uma relação de dependência do significante. O sujeito é então descentrado, pelo efeito dos deslizamentos que o remetem para outros significantes. O inconsciente é pensado como efeito da linguagem, de seus códigos e regras. Ora, a diferença que podemos ressaltar vem a ser justamente a da relação que ambas disciplinas mantêm com a linguagem. Se, por um lado, a antropologia estrutural pensa a relação entre inconsciente e linguagem em termos de analogia, isto é, o inconsciente organiza e inscreve as experiências coletivas, de modo tão desconhecido para a comunidade, quanto determina e organiza os fonemas da linguagem para o falante; a psicanálise lacaniana, por outro lado, pensa o inconsciente numa relação de homologia com a linguagem, como se ele compartilhasse com ela uma mesma origem e uma mesma estrutura: "o inconsciente é estruturado como linguagem". Mas pode-se dizer ainda que essa relação ultrapassa a homologia, uma vez que é a partir da linguagem que se forma o sujeito do inconsciente: "o sujeito do inconsciente não conhece, efetivamente, outra sociedade que a das palavras"[43]. Trata-se aí de uma reconfiguração radicalmente nova da convergência entre etnologia e psicanálise, tal como fora entrevista por Lévi-Strauss.


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