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Resumo
A partir de um fragmento clínico de um grupo de psicoterapia de base psicanalítica no qual se apresenta uma questão referente ao preconceito contra o negro no Brasil, este trabalho analisa como o racismo presente no metaenquadre social pode determinar parte da constituição psíquica da população brasileira. O conceito de alianças inconscientes permitirá pensar o campo do intermediário, a passagem do intersubjetivo para o intrapsíquico, que efeitos a aliança selada pela sociedade brasileira que estabelece, inconscientemente, o mecanismo de defesa utilizado para lidar com o preconceito racista contra o negro – a recusa – tem sobre a constituição psíquica do sujeito.


Palavras-chave
racismo; psicoterapia psicanalítica de grupo; mediação; psicossomática; enquadre psicanalítico grupal.


Autor(es)
Cristiane Curi Abud
é psicanalista membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae. É professora do curso de Psicossomática do Instituto Sedes Sapientiae. Professora afiliada da Universidade Federal de São Paulo, coordena o Programa de Assistência e Estudos de Somatização do Departamento de Psiquiatria da unifesp. Mestre em Psicologia Clínica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (pucsp) e doutora em Administração de Empresas pela Fundação Getúlio Vargas (fgvsp). Escreveu o livro Dores e odores, distúrbios e destinos do olfato (Via Lettera, 2009). É coautora do livro Psicologia Médica Abordagem Integral do Processo Saúde-Doença (Artmed, 2012). Organizadora do livro A subjetividade nos grupos e instituições (Chiado, 2015) e O racismo e o negro no Brasil: questões para a psicanálise (Perspectiva, 2017).

Luiza Sigulem Sigulem
é colaboradora no Programa de Assistência e Estudos de Somatização – unifesp. Acompanhante terapêutica e Terapeuta-aprimoranda na clínica psicológica do Sedes Sapientiae, está no segundo ano do Curso de Psicanálise do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae. Fotógrafa profissional, trabalha em diversos meios de comunicação como fotojornalista, além de desenvolver, em paralelo, projetos autorais. Fez parte da Mostra São Paulo de Fotografia, em 2013, com o trabalho “Além Rio”, além de ter realizado exposições em espaços como a Doc Galeria, com os trabalhos “A distância entre dois corpos” e “Atlas”.


Notas
1. N. M. Kon; M. L. Silva; C. C. Abud, O racismo e o negro no Brasil: questões para a psicanálise.
2. E. S. Costa, Racismo, política pública e modos de subjetivação em um quilombo do Vale do Ribeira.
3. Segundo Kaës, 2011, Freud recorre à noção de formação intermediária quando precisa pensar o vínculo entre duas ordens descontínuas como dentro e fora, consciente e inconsciente, exigências do ego, id e superego, indivíduo e grupo, etc. O psiquismo disporia de instâncias ou sistemas especialmente afeitos ao trabalho dos processos intermediários, como o pré-consciente, o ego, a pulsão, sistemas fronteiriços.
4. T. C. Veríssimo, O racismo nosso de cada dia e a incidência da recusa no laço social.
5. Este tema foi amplamente discutido por Caterina Koltai no lançamento do livro O racismo e o negro no Brasil: questões para a psicanálise, realizado pelo Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae em 16 de setembro de 2017.
6. J. Bleger, Psicanálise do enquadre psicanalítico.
7. R. Kaës, Um singular plural, a psicanálise à prova do grupo, p. 68.
8. P. C. G. Castanho, Um modelo psicanalítico para pensar e fazer grupos em instituições, p. 98 e 99.
9. Utilizamos o termo instituição segundo a definição proposta por Bleger (1967): uma relação que se prolonga durante anos, com a manutenção de um conjunto de normas e atitudes. Neste sentido, o enquadre é uma instituição, seja ela um consultório privado, seja uma instituição pública.
10. P. C. G. Castanho, op. cit., p. 70.
11. E. S. Costa, op. cit.
12. Schwarcz; H. M. Starling, Brasil: uma biografia.
13. Para Sérgio Buarque de Holanda, que toma o termo emprestado do escritor Ribeiro Couto, para definir uma característica típica do povo brasileiro, esse cordialismo tem a ver com "coração". Porém, nada tem a ver com bondade, obviamente, mas tampouco com polidez ou com um fingimento e/ou hipocrisia. O termo remete ao que ele chama de uma "ética de fundo emotivo", ou seja, que traduzimos o mundo a partir dos laços primordiais sem nos deixarmos de modo algum ser atravessados pelas instituições, pelos rituais ou pelas tradições sociais. "Nosso temperamento admite fórmulas de reverência, e até de bom grado, mas quase somente enquanto não supram de todo a possibilidade de convívio mais familiar." Segue: "E um dos efeitos decisivos da supremacia incontestável, absorvente, do núcleo familiar - a esfera, por excelência, dos chamados ‘contratos primários', dos laços de sangue e de coração - está em que as relações que se criam na vida doméstica sempre forneceram o modelo obrigatório de qualquer composição social entre nós".
14. S. Souza, Tornar-se negro.
15. J. F. Costa, Violência e Psicanálise.
16. F. Lopes, "Experiências desiguais ao nascer, viver, adoecer e morrer".
17. J. A. Bombana, Somatização e conceitos limítrofes: delimitações de campos.
18. J. A. Bombana; C. C. Abud; R. A. Prado, Assistência e ensino de psicoterapia no programa de atendimento e estudos de somatização (PAES-UNIFESP).
19. Vacheret; G. Gimenez; C. C. Abud, Sobre a sinergia entre grupo e o objeto mediador.
20. Abud, "A questão do racismo em um grupo de mediação com fotografias".
21. R. Kaës, O grupo e o sujeito do grupo, elementos para uma teoria psicanalítica do grupo.
22. J. Bleger, Temas de psicologia: entrevistas e grupos.
23. P. C. G. Castanho, op. cit.
24. R. Fonanari, A noção de punctum de Roland Barthes, uma abertura da imagem?
25. J. Bleger, op. cit.
26. Trata-se de um jogador de futebol, para quem, durante uma partida, foi atirada uma banana dentro do campo; ele a pegou e comeu em resposta ao ataque do torcedor.
27. R. Kaës, Um singular plural, a psicanálise à prova do grupo.
28. Para Piera Aulagnier, a mãe é o porta-voz do pai e da cultura no sentido de levar ao bebê os interditos estruturantes; também o analista de grupo porta a palavra de um outro ao enunciar os interditos estruturantes da situação analítica (Kaës, 2011).
29. R. Kaës, op. cit., p. 122.
30. S. Freud, O estranho.
31. P. Gonzaga, Se esse corpo fosse meu... Considerações sobre o estranhamento na anorexia.
32. M. A. Miranda, A beleza negra na subjetividade das meninas "Um Caminho para as Mariazinhas": Considerações psicanalíticas.
33. Abud, Dores e odores, distúrbios e destinos do olfato.
34. Nogueira, Significações do corpo negro.
35. Nogueira, op. cit.
36. J. Lacan, "O estádio do espelho como formador da função do eu".
37. Nogueira, op. cit., p. 95.
38. R. Barthes, Oeuvres completes.
39. N. M. Kon; M. L. Silva; C. C. Abud, O racismo e o negro no Brasil, questões para a psicanálise.


Referências bibliográficas

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Abstract
From a clinical fragment of a psychoanalytic psychotherapy group in which an issue regarding prejudice against the black people in Brazil is presented, this paper analyzes how the racism present in the social meta-setting can determine part of the psychic constitution of the Brazilian population. The concept of unconscious alliances will allow us to think of the intermediary, the transition from the intersubjective to the intrapsychic, what effects the alliance sealed by Brazilian society that establishes, unconsciously, the defense mechanism used to deal with racist prejudice against the black – refusal – has in the subject's psychic constitution.


Keywords
racism; psychoanalytic psychotherapy group; mediation, psychosomatic; psychoanalytic group meta-setting.

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 TEXTO

O racismo entre a cultura e o sujeito

Racism between culture and the subject
Cristiane Curi Abud
Luiza Sigulem Sigulem

Este trabalho é uma continuidade da pesquisa que realizamos há alguns anos acerca da questão do racismo no Brasil. Desde a elaboração do primeiro artigo[1], fruto desta pesquisa, temos participado de diversas discussões e eventos sobre o tema, que trouxeram novos elementos, possibilitando aprofundar e especificar a noção de metaenquadre e seus efeitos sobre o sujeito singular.

 

No trabalho anterior, apontamos o racismo enquanto um elemento do metaenquadre, presente nas diversas expressões culturais do Brasil, mas não demos tanta ênfase a este conceito. A partir da noção desenvolvida por Eliane Costa[2] em sua tese de doutorado, qual seja, o racismo enquanto metaenquadre, o presente trabalho problematiza como esse elemento cultural atravessa os diversos enquadres institucionais, grupais e os sujeitos que os compõem. O conceito de alianças inconscientes permitirá pensar os processos e formações intermediários[3], a passagem do intersubjetivo para o intrapsíquico e os efeitos que a aliança selada pela sociedade brasileira tem sobre a constituição psíquica do sujeito, ao estabelecer, inconscientemente, como mecanismo de defesa utilizado para lidar com o preconceito racista contra o negro a recusa[4]. A recusa, enquanto desautorização da percepção da violência exercida contra os negros pelo simples fato de serem negros, dificulta ou impede a inscrição simbólica do traumático e a possibilidade de sua superação[5].

Enquadrando conceitos

Partimos da noção de enquadre proposta por Bleger[6]. Diferenciando-se de Winnicott, que define o setting como "a soma de todos os detalhes da técnica", Bleger propõe o termo situação psicanalítica para a totalidade dos fenômenos incluídos na relação terapêutica entre analista e paciente, sendo que parte dessa situação compreende fenômenos que constituem um processo, aquilo que analisamos e interpretamos, e parte inclui um "não processo", no sentido de que são as invariáveis que formam a moldura dentro da qual se dá o processo. O enquadre corresponderia às invariáveis da situação psicanalítica. Sua função equivale àquela da simbiose com a mãe que permite à criança o desenvolvimento de seu Eu, uma vez que serve de suporte, de moldura para a relação entre analista e analisando. O horário da sessão, honorários, espaço, presença física do analista são constantes que favorecem a reedição da relação simbiótica com a mãe, recebem e estabilizam conteúdos arcaicos, para que ocorra o processo, movimentação e criatividade.

 

Ocorre que "todo enquadre é enquadrado por um enquadramento que o contém, sustenta, atrapalha ou entrava"[7]. De forma que a noção de metaenquadramento refere-se ao estabelecimento no qual ocorre o trabalho, ou, num sentido mais amplo, refere-se à cultura e sociedade que contêm o estabelecimento. O sintoma em um grupo dentro de uma organização pode ser muitas vezes compreendido como originado em um outro grupo dentro da organização. Para Bleger esse deslocamento, geralmente, se dá no sentido descendente do enquadramento, dos níveis hierárquicos mais elevados aos mais baixos. O inverso também pode ocorrer e as instituições assim padecem do mal que visam tratar[8].

 

O paciente em questão neste trabalho participa de um grupo de psicoterapia, cujo enquadre inclui sessões semanais, numa mesma sala onde dispomos cadeiras em círculos - sendo o número de cadeiras igual ao número de participantes do grupo, mesmo que haja faltas -, a presença da analista e de duas estagiárias de psicologia, e a presença do objeto mediador, no caso, fotografias. Seguindo o modelo das bonecas russas, este grupo é enquadrado pelo Programa de Assistência e Estudo de Somatização que, por sua vez, é enquadrado pelo Departamento de Psiquiatria, enquadrado pela Universidade Federal de São Paulo, enquadrada pelo Ministério da Educação e da Saúde, e, por fim, pela sociedade brasileira.

 

No sentido descendente, examinaremos como a questão do racismo vem se apresentando na sociedade brasileira, atravessando as camadas institucionais descritas e os sujeitos que as compõem, para que possamos repensar o enquadre e "propor instituições[9] cujos efeitos de subjetivação estejam alinhados aos objetivos e à ética da psicanálise"[10].

 

A noção de sujeito na qual nos baseamos inspira-se nas teorizações de René Kaës, para quem a constituição do sujeito se apoia no corpo e nos vínculos intersubjetivos. Kaës propõe pensar a articulação entre a realidade psíquica do grupo e a do sujeito singular, tentando explicar como o sujeito participa da formação do grupo e qual o papel desempenhado pelo grupo na constituição do sujeito do inconsciente.

 

A concepção de sujeito de Kaës é muito influenciada pelo aporte freudiano em Introdução ao Narcisismo, segundo o qual o sujeito vive uma dupla existência, submetido à tensão entre ser um fim para si mesmo e ser o elo beneficiário, servidor e herdeiro de uma cadeia intersubjetiva e transgeracional.

 

Seguindo esta linha, outra influência é o conceito de contrato narcísico de Piera Aulagnier, segundo o qual, ao nascer, é atribuído e garantido ao bebê um lugar de pertença no grupo familiar que irá investi-lo narcisicamente, ensinando-lhe os costumes, valores, tradições e ideais do grupo. Em troca, o sujeito assume a missão de garantir a continuidade do conjunto ao qual pertence. Para Kaës, esta noção mantém o duplo estatuto do sujeito tensionado entre ser um fim para si mesmo e ser o elo de uma cadeia transgeracional entre o outro e nós mesmos, entre o singular e o plural.

 

Assim, Kaës postula que a constituição psíquica do sujeito do inconsciente se constrói no espaço do grupo originário. Além do contrato narcísico, os mecanismos de recalque ou de denegação conjunta, os contratos que fundam o narcisismo do sujeito e do conjunto, e as alianças inconscientes desempenham um papel determinante nas modalidades constitutivas do inconsciente do sujeito, em seus conteúdos, nas condições do retorno do recalcado e da formação de sintomas. O grupo familiar determina que conteúdos devem ser recalcados, silenciados, não ditos, malditos e não representados dentro do grupo, definindo para o psiquismo do bebê conteúdos que podem ser representados, pensados, ou recalcados e silenciados. Por isso o autor sustenta que o sujeito do inconsciente é, indissociavelmente, sujeito do grupo, e que o sujeito do grupo é uma dimensão do sujeito do inconsciente, de forma que parte das formações inconscientes do sujeito está fora dele, deslocada no grupo.

 

É dentro desta concepção que podemos articular como a questão do racismo presente na sociedade brasileira, ou seja, no metaenquadre[11] do grupo de psicoterapia, atravessa o grupo determinando suas alianças inconscientes e o destino pulsional nele e em cada um dos sujeitos que o compõem. E ainda, como o grupo pode transformar esta questão e devolvê-la ao metaenquadre.

 

O metaenquadre social e institucional:
o racismo no Brasil

A experiência da escravidão é responsável por várias facetas da cultura e da sociedade brasileira e, mesmo após seu término oficial, suas marcas persistem de forma profunda. Na arquitetura contemporânea, a divisão entre "área de serviço" e "área social" insiste simbolicamente na separação entre casa grande e senzala. Podemos encontrar na língua palavras e expressões como "denegrir", "a coisa está preta" e "passado negro", que atestam como as atitudes racistas estão incorporadas às estruturas sociais, mesmo que inconscientemente[12].

 

A sociedade dos brasileiros "cordiais"[13] é extremamente violenta com os negros. Paira sobre o cotidiano brasileiro um silenciamento em forma de recusa das diferenças e discriminações, e sobre a nossa história uma tentativa de branqueamento da população. Neusa dos Santos Souza[14] entrevistou diversas pessoas negras e muitos entrevistados relataram os conselhos de seus pais de se casarem com pessoas brancas para branquear e melhorar a raça. Nota-se uma tendência a fragilizar a identidade do negro impondo ideais brancos cujas identificações formam um Ideal de Ego branco, incompatível com seu corpo, que se torna um perseguidor e não fonte de prazer constituinte de uma estrutura psíquica harmoniosa[15]. Assim, estabelece-se, dentre as alianças inconscientes, um contrato narcísico que garante o lugar de pertencimento social ao branco e um pacto denegativo que impede a inscrição do negro e recusa a existência do preconceito. Existe um mito no Brasil de que não somos preconceituosos com os negros, recusamos o preconceito, mas vivemos e tratamos as pessoas negras com extrema violência.

 

Dentro desta sociedade, temos as instituições médicas que não ficam de fora desse panorama, e os negros, além de acesso desigual ao do restante da população aos serviços de saúde, sofrem preconceito nas instituições. Os profissionais de saúde tendem a não notar as desigualdades ou a persistir em sua inexistência, colaborando para a inércia do sistema diante delas e, por consequência, em sua conservação e expansão[16].

 

Dentre as instituições médicas brasileiras, encontra-se a universidade onde funciona uma faculdade de medicina na qual realizamos nosso trabalho. Trata-se de uma universidade pública sustentada pelo governo federal e composta de profissionais de saúde hegemonicamente brancos, que prestam assistência a uma população majoritariamente negra (53% da população brasileira). Essa assimetria de lugares é representativa das divisões sociais no Brasil.


O enquadre grupal

Retomando o modelo das bonecas russas, dentro da Universidade Federal existe então o curso de medicina, que contém diversos departamentos, dentre eles o Departamento de Psiquiatria. O Departamento é composto de diversos programas de assistência, pesquisa e ensino, sendo um deles o Programa de Assistência e Estudos de Somatização (paes) que assiste pacientes somatizadores[17]. É neste metaenquadre que o grupo de psicoterapia acontece. A equipe era - até pouquíssimo tempo -, exclusivamente composta por pessoas brancas e de nível sócio-econômico-educacional elevado. Nota-se que as alianças inconscientes contratadas no metaenquadre - lugar de pertença aos brancos e recusa da inscrição do negro - se repetem nos vários níveis do metaenquadre.

 

A população com a qual trabalhamos é, na maioria, composta por pacientes de nível socioeconômico baixo, com uma proporção significativa de migrantes de outros estados, particularmente do Nordeste[18]. Sua problemática caracteriza-se por intensas queixas de dores e desconfortos físicos sem que se encontrem substratos orgânicos que as justifiquem.

 

Propomos o dispositivo grupal como parte de sua terapêutica, uma vez que seu funcionamento psíquico apresenta especificidades - falha do funcionamento pré-consciente, discurso concreto, limitação na capacidade de simbolização e relação de objeto simbiótica - que desafiam as constantes de um enquadre psicanalítico tradicional, quais sejam a associação livre, a transferência e a interpretação[19].

 

O grupo e a foto, enquanto objeto mediador, cumprem a função de construção de representações psíquicas para afetos que se encontram desligados da cadeia associativa[20], função normalmente exercida pelo pré-consciente que, nestes pacientes, encontra-se comprometido em seu funcionamento.

 

O grupo psicoterapêutico se estrutura e se sustenta a partir de um contrato narcísico - "somos todos pacientes com alguma doença não detectada pela medicina e aqui no paes os médicos irão descobrir o que eu tenho" - e de um pacto denegativo - destacamos a repressão dos afetos, "minha doença não tem nada a ver com minhas emoções e com minha história". Além dessas alianças inconscientes[21] que sustentam o enquadre, não perdemos de vista a disposição das cadeiras, o número de cadeiras dispostas sempre igual ao número de participantes, a sala na instituição onde acontece, a presença corporal do analista[22], e no nosso caso as fotos como material estimulante da sensorialidade e como apoio figurativo pulsional.

 

O enquadre grupal que utiliza as fotos como mediação pode ser compreendido como um "molde figurativo"[23] no qual aspectos psíquicos, originalmente indiferenciados, ganham forma ao serem projetados no enquadre. Figurativo, pois é no mundo exterior que o psiquismo encontrará resposta para a exigência de figurabilidade do processo primário, é no enquadre que a pulsão pode ser colocada em imagens e palavras, é onde ocorre o processo de simbolização, de tal forma que as fotos fazem parte do enquadre grupal. Mas não somente do enquadre: as fotos são produzidas no metaenquadre social, enquanto elementos da cultura, o que lhes confere também a função de veículo de transmissão cultural.

 

Neste sentido, pudemos tomar consciência de outra aliança inconsciente no grupo. Aprendemos a técnica de Fotolinguagem com colegas franceses e utilizamos no grupo fotos importadas da França, que já vinham organizadas em dossiês. É verdade que muitas das fotografias francesas podem ser culturalmente compartilhadas e, portanto, servem como apoio pulsional no trabalho de figurabilidade, de transformação da pulsão em imagens e palavras. Porém, a dimensão intelectual[24] das fotografias estrangeiras revela signos que nos são desconhecidos, porque não fazem parte da nossa cultura. Assim, a experiência sensível despertada pelas fotos fica cindida da cultura nacional. A cultura deixa de cumprir, ou cumpre de maneira tendenciosa, sua função de aporte de elementos necessários ao processo de significação e simbolização.

 

Mais além: o uso de fotografias importadas da França por analistas brasileiros com pacientes brasileiros fere uma ferida silenciada, revela um ponto cego: quase não encontramos negros nas fotos estrangeiras, eles ficam invisíveis no grupo, contribuindo para o aumento de seu fosso narcísico. À medida que não inserimos imagens de negros no enquadre grupal reproduzimos o sintoma originado no metaenquadre institucional e social[25] e sua respectiva aliança inconsciente, na qual é recusado ao negro um lugar e uma legitimidade social. Recusamos ainda a existência do preconceito racial uma vez que silenciamos a questão do racismo brasileiro no grupo, cordialmente. Foi a partir da introdução de fotos brasileiras de gente brasileira no grupo que o tema do racismo pôde vir à tona, possibilitando alguma perlaboração, conforme a sessão a seguir.

 

O intersubjetivo e o intrapsíquico: do plural ao singular

Estava presente no grupo um paciente mestiço que sofre de tremores no corpo, tremores que intensificam diante dos doutores no hospital, segundo o paciente porque ele é muito "vergonhoso". A propósito da fala de uma paciente que dizia para o grupo que viajaria para o Chile, ele comentou:

 

Eu não tenho curiosidade pra conhecer o estrangeiro, outros lugares fora do Brasil. Eu tenho vontade de conhecer o Brasil mesmo. Se eu tivesse dinheiro eu conheceria lá pelos lados de Mato Grosso. Eu também mal sei falar português, imagina outras línguas, mas nem é por isso não, é porque eu não tenho interesse mesmo.

 

Sugeri que respondêssemos o que é o estrangeiro com uma foto. Todos escolheram as fotos e voltaram para seus lugares. As fotos escolhidas apresentavam um senhor nordestino; um homem negro preso numa cela cuja porta tem uma abertura pequena, por onde é permitido ver apenas sua boca, seus dentes e suas mãos; o rosto de um índio coberto por uma maquiagem bem espessa (como maquiagem de palhaços); e o rosto de um homem negro, sorridente, com a imagem fora de foco, sugerindo movimento. Os conteúdos associados às fotos remeteram ao medo do estrangeiro, do desconhecido, das ameaças que os estrangeiros evocam - ameaça de vida, de empregos, de não conhecer a língua, os costumes. Conteúdos relativos à oralidade apareceram com muita frequência no decorrer da sessão, do que os estrangeiros costumam comer, os chineses comem cachorros que é um animal doméstico no Brasil, e o grupo afirmou sentir fome no decorrer da sessão. O paciente mestiço fala de sua foto:

 

- Olhei essa foto e lembrei uma situação que aconteceu ontem no ônibus. Um homem alimentando suas duas filhas. Acho que ele era haitiano, aí lembrei essa foto. Na verdade, eu não sei se é um homem ou um macaco na foto.

 

Os outros pacientes comentam:

- Eu vejo um homem negro.

- Eu também.

- Quando olhei pensei que era uma pessoa fantasiada com moedinhas, no carnaval.

 

O paciente responde:

- Mas eu vejo essa pessoa muito triste porque os negros sofrem muito. Eu não tenho preconceito. Se eu morasse lá fora me considerariam negro. O meu patrão me chamava de negão e eu tenho orgulho disso. O que diferencia um dos outros é só a pele, mas no final todo mundo vai pro mesmo lugar. Eu acho que as pessoas não deveriam ligar e fazer que nem o Daniel Alves que comeu a banana[26].

 

Segundo Kaës[27], o grupo é uma entidade com uma realidade psíquica própria com pontos de passagem para o espaço intrapsíquico. Os pontos de passagem e ruptura entre o espaço intrapsíquico e o espaço intersubjetivo podem ser as identificações comuns, as fantasias e as representações partilhadas, as formações do ideal, a matriz onírica comum, as alianças inconscientes. Vejamos como as mencionadas alianças inconscientes contratadas no metaenquadre e no grupo com relação ao lugar do negro e do preconceito contra o negro possibilitam compreender parte da constituição psíquica deste paciente que nesta sessão grupal funcionou como um porta-ideal do grupo.

 

Antes, vale definir a noção de porta-ideal que se refere ao que Kaës conceituou como funções fóricas: alguns sujeitos do grupo encarnam e realizam funções intermediárias entre o espaço intrapsíquico, o espaço intersubjetivo e o espaço do grupo. Elas encarnam figuras como o herói, o ancestral, a morte ou funções de porta-palavra[28], porta-silêncio, porta-sintoma. O sujeito fala no grupo não apenas em nome próprio, mas em nome das alianças inconscientes ali contratadas. "Desse modo, a cadeia associativa do sujeito, tomado em sua singularidade, encontra uma cadeia associativa que poderia ser chamada de grupal e que pode ser conceituada como produto das alianças inconscientes estruturantes do grupo e dos vínculos intra e extragrupais"[29]. Ao falar, o paciente manifestou o ideal de um corpo branco e saudável presente nele e no grupo.

 

Voltando à constituição psíquica do paciente, recorreremos à noção de estranho familiar em Freud[30], ao narcisismo primário e à constituição dos ideais psíquicos e faremos uma aproximação entre as somatizações e a anorexia para pensar as qualidades do sentir o corpo negro.

 

Para falar sobre o estrangeiro, os participantes do grupo escolheram fotos que nos são muito familiares, muito brasileiras. Os medos do estrangeiro e os conteúdos referentes à oralidade remetem a essa fase do narcisismo primário, tal como apontado por Freud. Na fase do narcisismo primário, indiferenciado do mundo externo, o bebê vive uma ilusão de onipotência, segundo a qual ele é imortal e seu amor próprio é ilimitado. Essas crenças deverão ser superadas e o resultado dessa inversão é que o guardião da imortalidade torna-se o anunciador da morte; o caráter amistoso do duplo converte-se em objeto de terror. Essa inversão explicaria os medos infantis de escuro, espíritos, palhaços, etc. Parte dessa fantasia se transformará numa função de autocrítica no psiquismo como agente auto-observador (superego) e como agente que cobra projetos futuros (instâncias ideais). Essas atividades dissociadas do ego tratam o restante do ego como objeto e são herdeiras do duplo do narcisismo primário.

 

Freud inicia o texto "O estranho" definindo a estética não apenas como a teoria da beleza, mas a teoria das qualidades do sentir. A aproximação entre a questão da estética nas anorexias, no corpo negro e nas somatizações aconteceu em função da leitura do texto de Gonzaga[31] sobre as anorexias e a leitura do texto de Miranda[32] sobre a questão da estética para meninas negras. Neste texto Miranda destaca a questão dos cabelos das meninas negras, tidos como "cabelo ruim" na nossa sociedade e que, portanto, devem ser raspados, alisados, presos, numa tentativa de se formatar ao ideal de estética branco. Outro exemplo citado por Miranda, o de um menino que raspava a pele com uma gilete porque não queria ter cor de macaco, permitiu essa conexão com a anorexia no sentido da busca da satisfação de um ideal à custa da mutilação do corpo.

 

No estudo sobre as anorexias, Gonzaga afirma que as jovens têm dificuldade em discernir seu mundo interno da realidade; sentem o corpo como um estranho, não conseguindo decodificar o que sentem. Nas somatizações os pacientes também apresentam sensações corporais "estranhas", sensações que a realidade dos exames médicos não detecta ou justifica, sugerindo a existência de um corpo imaginário assombrado pelo terror da morte anunciado pelo duplo. Segundo Gonzaga, devido à intensa angústia de separação do objeto, essas pacientes o conservam imaginariamente como medida preventiva contra a angústia de separação, comprometendo os futuros processos de introjeção de novos objetos que possibilitariam a expansão e independência do ego em relação ao objeto.

 

Gonzaga retoma Piera Aulagnier, para quem a constituição do aparelho psíquico do sujeito é inaugurada pelo imaginário materno que sonha a criança. No caso das anorexias, parece que as mães cristalizaram uma imagem ideal da qual não conseguem se desvencilhar, impedindo ou dificultando o desprendimento da criança desse ideal.

 

Nas somatizações, o estranho não se refere a sensações estéticas visuais, mas às sensações em geral. É bastante frequente notar alterações qualitativas e quantitativas da senso-percepção (hiperestesias, hipoestesias e analgesias) nos somatizadores. Sua sensibilidade sensorial é muito intensa e queixas como zumbido no ouvido, dores no corpo, sensação de queimação, congelamento, formigamento, gosto estranho na boca, sensibilidade à luz, ver tudo em preto e branco, são muito frequentes. Por exemplo, uma paciente se queixava de sentir cheiro de borracha queimada, sendo que se tratava de um estímulo sensorial olfativo[33] ausente para as pessoas do seu convívio, deixando dúvidas se poderia significar um componente alucinatório. Ou uma paciente que se queixava de que sentia sua perna congelar. Perguntamos se era "como se" estivesse gelada e ela respondeu "não, ela está gelada mesmo!". Neste sentido, o da distorção da imagem corporal, é que os somatizadores se aproximam das anoréxicas. Uma das diferenças é que a imagem distorcida não se limita apenas ao visual, ela é também olfativa, auditiva, tátil e do paladar; diz respeito à estética no sentido daquilo que Freud chamou de "qualidade do sentir". A literatura descreve as mães (ou aqueles que cumprem a função) de pacientes somatizadores como operatórias, quer dizer, mães que cumprem todas as atividades de cuidado com seus bebês de forma autômata, sem poder oferecer um olhar para a subjetividade da criança, mães que interpretam todo e qualquer sinal do corpo de seus bebês como doença ou possibilidade de doença, uma vez que não têm condição psíquica de nomear e suportar as angústias dos bebês; e que atacam qualquer tentativa de pensamento mais criativo por parte da criança. Constatamos esse dado da literatura na aliança inconsciente descrita acima, quando os pacientes em grupo assumem o contrato narcísico de que no grupo todos são doentes, aguardando um diagnóstico e tratamento médicos, e o pacto denegativo de que o que sentem nada tem a ver com seus afetos e sua história.

 

Somados a esse corpo imaginário doente, na sessão descrita aparecem conteúdos relacionados à cor da pele, a esse corpo "vergonhoso" que, além de não se adequar a um ideal de saúde, não se adequa ao ideal estético de brancura. Para Nogueira[34], esse ideal de brancura é transmitido ao bebê já nas inscrições originárias da relação com a mãe.

 

Um homem ou um macaco? O patrão chama de negão, mas só lá fora o paciente seria considerado um negro. Essa dúvida revela, conforme descreveu Nogueira, uma repulsa, uma projeção da negação imaginária do semblante oferecido pela imagem especular, uma vez que essa imagem não coincide com a totalidade do desejo materno, que inclui o desejo de brancura. O "orgulho de ser negro" e o fato de "que vamos todos para o mesmo lugar" revelam aquilo que coincide com o desejo materno.

 

Isildinha Batista Nogueira[35] retoma a fala de Costa e vai além das questões de Ideal de Ego, uma vez que, segundo a autora, a vivência de discriminação se manifesta, para a criança negra, muito antes de sofrer qualquer experiência social de discriminação.

 

Segundo a autora é na fase do "estádio do espelho"[36] que se produz a experiência de domínio do corpo como uma totalidade, em substituição àquilo que anteriormente era vivenciado em fragmentos. Mas, diz a autora:

[...] a particularidade que a experiência do espelho, na criança negra, envolve, diz respeito ao fato de que o fascínio que essa experiência produz é acompanhado, simultaneamente, por uma repulsa à imagem que o espelho virtualmente oferece... Tal dualidade vai marcar a experiência do espelho na criança negra... produz-se um mecanismo complexo de identificação/não identificação, que reproduz, para a criança negra, as experiências do adulto negro: o fato de sua identificação imaginária ser atravessada pelo ideal da "brancura". Para reconciliar-se com a imagem do desejo materno - a brancura - a criança negra precisa negar alguma coisa de si mesma![37]

 

Nogueira apoia sua tese na teorização do psicanalista Sami-Ali, para quem o horror que a criança manifesta diante do rosto estranho faz parte da experiência da alteridade, quando a criança se dá conta de que há outros rostos, diferentes do rosto da mãe, o que abre a possibilidade de ela própria ter um rosto diferente do da mãe, um rosto estranho. É nesse processo que o sujeito se descobre como duplo, pois a imagem de si garantida num primeiro momento pela identificação com o rosto da mãe se vê afetada pela dimensão de alteridade, que produz para o sujeito uma perda de si mesmo no estranho, uma "angústia de despersonalização".

 

O paciente se pergunta "um homem ou um macaco?" - diante da foto que expressa, extraordinariamente, a dúvida, pois a foto é um tanto desfocada, sugerindo uma imagem dupla -, mostra-se dividido entre o ideal de brancura e o orgulho de ser "negão". A aliança inconsciente, socialmente contratada, na qual são recusados ao negro um lugar e uma legitimidade social, assim como é recusada a existência do preconceito racial, constitui parte do psiquismo do paciente, determinando seus ideais, sua relação com esse corpo que traz sensações estranhas, que se agita em forma de tremor diante dos doutores, como se uma força estranha a ele o fizesse tremer, uma sombra que assombra. Pelo mecanismo de recusa do preconceito consideramos as pessoas negras como seres humanos, mas as tratamos como macacos. E mais grave, recusamos praticar qualquer forma de discriminação. Desautorizamos a percepção do trauma, trauma cotidiano e secular, impedindo ou dificultando sua inscrição simbólica e decorrente superação.

 

Efeitos da alteração do enquadre

Criamos o dossiê de fotos nacionais e o temos utilizado desde janeiro de 2015. Notamos uma diferença muito grande no efeito que essas fotos têm sobre os participantes do grupo, quando comparado aos efeitos das fotos importadas da França. Percebemos uma imensa diferença no estímulo do trabalho do pré-consciente a partir da imagem de um animal (macaco) conhecido desde a infância, ou da planta (mandacaru), típica da região do Nordeste, e dos personagens afrodescendentes, índios e mestiços, muitas vezes "parecidos" com os pacientes e seus familiares, permitindo uma identificação maior com as imagens. Mas o efeito mais notável se dá na relação transferencial, pois a coordenadora que era tida como a doutora, a que sabe das coisas porque estudou, porque é rica, passa a aprender sobre a cultura dos pacientes, cultura que ela não tem. Os papéis se invertem, o saber e a cultura mudam de mãos, permitindo que os pacientes saiam da situação de oprimidos no grupo, e que as coordenadoras saiam do lugar de opressoras.

 

Um ponto importante de discussão é que as fotografias brasileiras também repetem o lugar de exclusão do negro, uma vez que encontramos nas fotografias os negros em situações de pobreza e marginalidade. Não se encontram fotografias que apresentem negros em situações de vida e de trabalho mais dignas. Esse é o retrato da sociedade brasileira até este momento da história e, a esse respeito, estamos neste momento à procura de fotografias que contemplem essa questão, quem sabe fotografias feitas por fotógrafos negros. Mesmo assim, as fotografias brasileiras tiveram esse efeito de inverter os papéis, e os pacientes que eram os estrangeiros no grupo apropriam-se da imagem e as coordenadoras passam a ser as estrangeiras olhando-os através das grades que os separam.

 

Demos um passo adiante ao nos reconhecermos repetindo a história. Identificados com o agressor, não oferecíamos ao grupo um material que retratasse a realidade cultural e social brasileira, material no qual pudéssemos nos reconhecer para além de um ideal imposto desde os tempos coloniais. Entre colonizadores e colonizados, nós, os coordenadores do grupo, colocávamo-nos do lado dos colonizadores, e assim, sem o saber, permanecíamos colonizados pelo ideal estrangeiro. Os pacientes perguntavam sobre as fotos francesas: "de onde são essas fotos", "que roupa é essa", "da onde são essas pessoas", revelando um desconhecimento do aspecto cultural das fotografias. Num primeiro momento achávamos graça na sua ignorância, e às vezes nos dispúnhamos a ensinar sobre as fotos. Mas percebemos que, na sua ignorância, os pacientes questionavam o ideal e reivindicavam um lugar autêntico e legítimo nas fotografias, um lugar diferente deste da exclusão social. Um ano depois da sessão descrita acima, o paciente que confundiu um homem com um macaco, e que antes se queixava de ter muita dificuldade para ler, comemora o fato inédito de ter conseguido ler um livro inteiro.

 

Os pacientes apontavam para o ponto cego da foto[38], aquilo que não pode ser apresentado ao olhar senão pela falta, pelo negativo, e, portanto, não pode ser dito. Apontavam para a aliança inconsciente, que sempre gerou nas coordenadoras um mal-estar terrível, sem nome, sem inscrição psíquica, que pôde nesta sessão, de alguma forma, ganhar corpo e palavra.

 

Ao postular sobre o narcisismo das pequenas diferenças, Freud afirmou que espontaneamente nos opomos ao estranho, e isso é algo que não se pode mudar. Mas é preciso refletir sobre as diferenças, para que não se convertam em desigualdades, e assim fazer a cultura trabalhar.

 

Desdobramentos

A dedicação ao estudo do tema do racismo tem transformado nossa escuta na clínica. Mas notamos mudanças mais estruturais no trabalho institucional. As mudanças do enquadre clínico, no caso as fotografias, geraram mudanças no metaenquadre institucional e social. Através da divulgação do trabalho no Brasil e no estrangeiro, via participação em congressos no Brasil e na França, organização e publicação de um livro sobre o tema[39], atraímos para a instituição profissionais negros que hoje, ineditamente, compõem nossa equipe e que formaram um grupo com alunos da graduação da unifesp, campus Vila Clementino, para pensar sobre a questão do racismo na universidade. De alguns anos para cá, desde o advento das cotas, recebemos mais alunos negros na universidade, o que traz diversas questões para serem metabolizadas. Nota-se que a mudança se dá em dois planos do metaenquadre: a equipe do PAES e os alunos da unifesp. Alunos que se tornarão profissionais e ampliarão o quadro de funcionários negros na instituição.

 

Neste trabalho de formiga seguimos com a certeza de, felizmente, se tratar de um caminho sem volta. Assim, o aparelho psíquico grupal devolve a problemática perlaborada ao metaenquadre social, e segue nesta dialética onde restos são mentalizados, na tentativa de evitar que adoeçamos do mal que tratamos.



[1]     N. M. Kon; M. L. Silva; C. C. Abud, O racismo e o negro no Brasil: questões para a psicanálise.

[2]     E. S. Costa, Racismo, política pública e modos de subjetivação em um quilombo do Vale do Ribeira.

[3]     Segundo Kaës, 2011, Freud recorre à noção de formação intermediária quando precisa pensar o vínculo entre duas ordens descontínuas como dentro e fora, consciente e inconsciente, exigências do ego, id e superego, indivíduo e grupo, etc. O psiquismo disporia de instâncias ou sistemas especialmente afeitos ao trabalho dos processos intermediários, como o pré-consciente, o ego, a pulsão, sistemas fronteiriços.

[4]     T. C. Veríssimo, O racismo nosso de cada dia e a incidência da recusa no laço social.

[5]     Este tema foi amplamente discutido por Caterina Koltai no lançamento do livro O racismo e o negro no Brasil: questões para a psicanálise, realizado pelo Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae em 16 de setembro de 2017.

[6]     J. Bleger, Psicanálise do enquadre psicanalítico.

[7]     R. Kaës, Um singular plural, a psicanálise à prova do grupo, p. 68.

[8]     P. C. G. Castanho, Um modelo psicanalítico para pensar e fazer grupos em instituições, p. 98 e 99.

[9]     Utilizamos o termo instituição segundo a definição proposta por Bleger (1967): uma relação que se prolonga durante anos, com a manutenção de um conjunto de normas e atitudes. Neste sentido, o enquadre é uma instituição, seja ela um consultório privado, seja uma instituição pública.

[10]   P. C. G. Castanho, op. cit., p. 70.

[11]   E. S. Costa, op. cit.

[12]   L. M. Schwarcz; H. M. Starling, Brasil: uma biografia.

[13]   Para Sérgio Buarque de Holanda, que toma o termo emprestado do escritor Ribeiro Couto, para definir uma característica típica do povo brasileiro, esse cordialismo tem a ver com "coração". na vida doméstica sempre forneceram o modelo obrigatório de qualquer composição social entre nós".

[14]   N. S. Souza, Tornar-se negro.

[15]   J. F. Costa, Violência e Psicanálise.

[16]   F. Lopes, "Experiências desiguais ao nascer, viver, adoecer e morrer".

[17]   J. A. Bombana, Somatização e conceitos limítrofes: delimitações de campos.

[18]   J. A. Bombana; C. C. Abud; R. A. Prado, Assistência e ensino de psicoterapia no programa de atendimento e estudos de somatização (paes-unifesp).

[19]   C. Vacheret; G. Gimenez; C. C. Abud, Sobre a sinergia entre grupo e o objeto mediador.

[20]   C. C. Abud, "A questão do racismo em um grupo de mediação com fotografias".

[21]   R. Kaës, O grupo e o sujeito do grupo, elementos para uma teoria psicanalítica do grupo.

[22]   J. Bleger, Temas de psicologia: entrevistas e grupos.

[23]   P. C. G. Castanho, op. cit.

[24]   R. Fonanari, A noção de punctum de Roland Barthes, uma abertura da imagem?

[25]   J. Bleger, op. cit.

[26]   Trata-se de um jogador de futebol, para quem, durante uma partida, foi atirada uma banana dentro do campo; ele a pegou e comeu em resposta ao ataque do torcedor.

[27]   R. Kaës, Um singular plural, a psicanálise à prova do grupo.

[28]   Para Piera Aulagnier, a mãe é o porta-voz do pai e da cultura no sentido de levar ao bebê os interditos estruturantes; também o analista de grupo porta a palavra de um outro ao enunciar os interditos estruturantes da situação analítica (Kaës, 2011).

[29]   R. Kaës, op. cit., p. 122.

[30]   S. Freud, O estranho.

[31]   A. P. Gonzaga, Se esse corpo fosse meu... Considerações sobre o estranhamento na anorexia.

[32]   M. A. Miranda, A beleza negra na subjetividade das meninas "Um Caminho para as Mariazinhas": Considerações psicanalíticas.

[33]   C. C. Abud, Dores e odores, distúrbios e destinos do olfato.

[34]   B. Nogueira, Significações do corpo negro.

[35]   B. Nogueira, op. cit.

[36]   J. Lacan, "O estádio do espelho como formador da função do eu".

[37]   B. Nogueira, op. cit., p. 95.

[38]   R. Barthes, Oeuvres completes.

[39]   N. M. Kon; M. L. Silva; C. C. Abud, O racismo e o negro no Brasil, questões para a psicanálise.


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