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TÍTULO DE ARTIGO


 

AUTOR


ÍNDICE TEMÁTICO 
58
Interfaces da clínica
ano XXIX - Junho 2017
160 páginas
capa: Lília Malheiros
  
 

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Resumo
Realização:?Camila Junqueira, Cristiane Abud Curi, Gisela Haddad, Thiago Majolo e Vera Zimmermann


Autor(es)
Ivanise Fontes
é psicanalista, doutora em Psicanálise pela Universidade Paris 7 – Denis Diderot, com pós-doutorado no Laboratório de Psicopatologia Fundamental do Núcleo de Estudos Pós-Graduados em Psicologia Clínica da PUC-SP. Autora dos livros La mémoire corporelle et le transfert (Presses Universitaires du Septentrion, 1999) e Memória corporal e transferência – fundamentos para uma psicanálise do sensível (Via Lettera, 2002).

Maria Regina Margini Marques Marques
terapeuta ocupacional pela usp, acompanhante terapêutica, artista plástica, fotógrafa e designer têxtil. Desde 1989 fundou o Atelier Bricoleur onde desenvolve, com psicóticos, um trabalho singular de criação e expressão. É membro do Projeto de Investigação e Intervenção na Clínica das Anorexias e Bulimias do Instituto Sedes Sapientiae, e membro candidata regular do Instituto Brasileiro de Psicanálise Winnicottiana.

Pablo Castanho Castanho
é professor doutor do Departamento de Psicologia Clínica do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (IPUSP). Supervisor externo para os grupos psicoterapêuticos do Projeto Ponte, como parte dos projetos de extensão universitária da Clínica de Grupos e Instituições na Abordagem Psicanalítica (Cligiap). Líder do grupo de pesquisa (CNPq) da Cligiap no IPUSP?- Psicologia Clínica (PSC).

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 DEBATE

A sensorialidade em destaque

Sensoriality highlighted
Ivanise Fontes
Maria Regina Margini Marques Marques
Pablo Castanho Castanho

A importância da sensorialidade para a formação do psiquismo esteve presente desde o início da Psicanálise. No texto Afasias (Freud, 1891) encontra-se um modelo de como os objetos da percepção sensorial se organizam para formar a linguagem e o aparelho psíquico. No Projeto (Freud, 1895), a ideia de um aparelho psíquico constituído a partir do acúmulo dos registros das percepções sensoriais será mantida. Percorrendo a obra freudiana, encontramos reiteradamente a importância do aparelho perceptivo na formação e na instalação das pulsões e constituição psíquica, ainda que, com a ênfase na representação e na linguagem, as referências à sensorialidade tivessem ficado fora de cena. Será sob a pressão da exploração clínica da problemática da psicose e de pacientes que apresentam falhas na constituição do psiquismo, tais como autismo e as diversas patologias limites (entre elas os transtornos psicossomáticos, adições e patologias alimentares), que os estudos sobre o corpo e o sensório consolidarão a grande importância dos contatos primordiais para a formação do sujeito, aprofundando as teorias acerca da sensorialidade e diversificando as possibilidades de intervenção nesse campo tanto na clínica com bebês quanto na de adultos. Autores pós-freudianos como Aulagnier, Bion e Winnicott, entre outros, contribuíram significativamente com aportes teóricos e clínicos, e assim sob diferentes nomes - pictogramas, significantes, etc. - foram descritos processos derivados da sensório-motricidade, da passagem dentro para fora ou de fora para dentro, etc. 

 

Também as pesquisas derivadas da observação do vínculo entre mães e bebês revelaram como os déficits no plano sensório-motor podem fazer com que o bebê seja pouco responsivo aos investimentos e cuidados maternos, prejudicando a qualidade do vínculo e causando danos à função parental, uma das possíveis causas do autismo. Como o estímulo sensorial depende da relação objetal (transferencial, no caso da clínica) para alcançar um estatuto psíquico enquanto imagem ligada pelo afeto, é na presença do objeto que ele ganha nome e qualidade afetiva; e é na intermitência com a ausência do objeto que ele passa a representar a coisa. Um delicado trabalho em busca do que ainda não foi criado.

A abordagem pela sensorialidade também tem ampliado a escuta e os manejos da psicanálise, demonstrando que tanto o sintoma físico, como a memória sensorial e as sensações vividas do corpo do analisando e do analista podem dar figurabilidade na relação intersubjetiva em registros com pouca representação psíquica. Se nas experiências subjetivas arcaicas predominam as trocas corporais e a sensorialidade com o objeto, abre-se um novo campo de interação que pode permear a relação analítica, e surgem recursos técnicos que envolvem o corpo e o sensório.

O uso da mediação, por exemplo, tem como objetivo ativar ou reanimar certos processos psíquicos com o propósito de possibilitar um trabalho psíquico de ligação simbolizante, e o objeto mediador (massa de modelar, argila, fotografia, colagem, fantoches, etc.) fornece e produz elementos que podem ser apropriados pelo trabalho do pré-consciente.

É sobre esse campo de descobertas e aportes clínicos que convidamos nossos autores ao debate.

 

Referências

 

Freud, S. (1891[1977]). A Interpretação das Afasias: um estudo crítico (Antonio Pinto Ribeiro, trad.). Lisboa: Edições 70. 

____ (1895[1989]). Projeto para uma Psicologia Científica. In Edição standard das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, vol. 1. Rio de Janeiro: Imago. 

 

Ivanise Fontes

O retorno ao Projeto de 1895 de Freud se faz realmente imprescindível diante do estudo das relações entre Corpo e Psicanálise. Não há dúvida de que este trabalho dos primórdios da obra freudiana nos traz uma série de elementos sobre a base somática das pulsões, assim denominadas posteriormente.

Quando consideramos atualmente uma memória corporal das experiências precoces de cada indivíduo, antes mesmo da aquisição da linguagem, o fundamento já poderia estar ali. Freud falava em imagem motora quando apontou que o bebê move sua cabeça em direção ao lado do seio que ele se acostumou a mamar, mesmo antes de visualizá-lo!

Mas é preciso nos deter mais ainda no que Ferenczi ressaltou em relação aos registros no corpo, nas sensações do corpo. A sedução incestuosa, por exemplo, relatada pelas histéricas, e vista como fantasia inconsciente por Freud, vai ganhar outro olhar com este autor. Em vários casos ele constata a presença do ato real, de um abuso propriamente dito por parte de um adulto à criança. E nos brinda com a noção de desmentido, que seria o trauma principal, quando alguém desmente o ocorrido com o abusado e "a lembrança fica impressa no corpo e somente lá é que ela pode ser despertada".

Será a partir dos anos 1980 que se verificará um impasse à técnica analítica. Pacientes considerados personalidades regressivas ou atualmente denominadas organizações narcísicas - como os casos-limite (borderline), as adições, os psicossomatizadores e certos casos de depressão - criam dificuldades para o analista por não conseguirem fazer associação livre de ideias, como os neuróticos. Há uma incapacidade de representação psíquica que aponta para uma insuficiência do ego. 

Foi a partir dos métodos de observação de bebês, como mencionado no texto para este debate, e da clínica analítica do autismo que tivemos a descrição detalhada do processo de construção do ego, a partir das experiências sensoriais. Lembrando aqui Freud mais uma vez, em 1923, "o ego é antes de tudo um ego corporal". Ele tinha razão!

Faz-se muito importante destacar aqui a contribuição das psicanalistas Frances Tustin - inglesa - e G. Haag - francesa, cujas obras vão tratar do que podemos chamar de "gestação psíquica", a partir do corpo.

Baseado na obra dessas autoras foi realizado um curta de animação, que compõe o livro que escrevi em coautoria Virando gente - a história do nascimento psíquico, onde o personagem Bruno, um bebê, mostra seu percurso para construir um ego. O relato começa de forma contundente: "Hoje é o dia do meu aniversário (ele está diante de um bolo com uma velinha representando a festa de 1 ano), e esse é o dia em que eu nasci para eles... mas sabe que tem um dia que eu nasci para mim? Eu vou contar como é que foi!"

O corpo passa a ter uma importância primordial na constituição do psiquismo. São três as angústias básicas, ou, como diria Winnicott, impensáveis, do início da vida: liquefação ou dissolução, explosão e queda sem fim. Para cada uma delas será preciso que o bebê sinta que seu próprio corpo e o corpo de sua mãe, ou de quem dele cuida, seja um recipiente/continente, assegurando assim sua existência. Tustin dizia: "o bebê normal nasce num berço de sensações". Nomeou esse período bem inicial de autossensualidade, afirmando que o autoerotismo seria posterior. Haag completou com a noção de simbolização primária, que são as primeiras analogias que um bebê começa a fazer com seu próprio corpo, ou com objetos, e a capacidade de conter algo.

Portanto falar que é "um delicado trabalho em busca do que ainda não foi criado" faz muito sentido. Porque um bebê não está somente brincando, ele tem um trabalho a realizar que é nascer psiquicamente. Jogos de encaixe, colocar-se dentro de caixas, tudo vai servir para que possa iniciar as analogias entre aquilo que o contém e ele próprio, que pode vir a conter suas emoções, sentimentos. É no corpo que se aprende o psíquico.

Freud chegou a dizer em nota de pé de página no texto "Ego e o Id" (1923) que é na pele que discriminamos a sensação do dentro e do fora. Por isso, segundo ele, "o ego seria a projeção mental da superfície do corpo". 

Embora ele ainda não deparasse, naquela época, com as psicopatologias contemporâneas, declarou, no entanto, que o futuro da Psicanálise, ou a sua tarefa maior, seria a compreensão do Ego. Anunciava, desde 1917, que as patologias que viriam assolar a civilização seriam as narcísicas.

Nas organizações narcísicas, a questão principal é a necessidade de consolidação de um ego, ainda com falhas básicas. Pacientes adictos (toxicomanias e outras adições), por exemplo, sofrem de uma incerteza de suas existências que os faz construírem "próteses psíquicas" - os envelopes artificiais de continência. Ao contrário do que parece, a qualificação "narcísicas" dada a essas organizações indica a insuficiência do narcisismo constitutivo do si mesmo.

Dentro dessa perspectiva venho destacando a dimensão corporal da transferência. A memória corporal dessas experiências sensoriais pode ser despertada pelo fenômeno transferencial, e o manejo desse instrumento essencial é o que diferencia, inclusive, a Psicanálise de outras terapias. Os pacientes têm a oportunidade de um Novo Começo ("new beggining" para M. Balint), sendo ajudados, através da transferência, a reconstruir o caminho que vai do ego corporal ao ego psíquico.

Esses pacientes, que não puderam ser ajudados a criar seus envelopes psíquicos, nas palavras de D. Anzieu, estarão no lugar propício para, com um analista "côncavo", construir o caminho de sua gestação psíquica.

Outro autor que merece ser destacado e mencionado no tema da sensorialidade é Pierre Fédida. Foi ele, a meu ver, um dos autores que mais desenvolveu noções sobre o "uso da mediação" no processo analítico e defendeu o retorno do conceito de regressão, deixado de lado até então. Segundo ele, para esta clínica, muito irá depender da capacidade imaginativa do analista, isto é, o quanto ele poderá "ressoar" criativamente seu paciente. Portanto o corpo do analista estará em jogo também. 

Em meu recém-lançado livro A descoberta de si mesmo na visão da Psicanálise do sensível, procuro aprofundar estes dois temas centrais: a construção do ego e a transferência. Venho denominando "Psicanálise do sensível" esse resgate do corpo sensível na Psicanálise. Estou, portanto, envolvida de "corpo e alma" nesse debate!

 

Maria Regina Margini Marques
A importância da sensorialidade na formação
do psiquismo

No desenvolvimento das teorias psicanalíticas contemporâneas, há mudanças paradigmáticas essenciais, que implicam modificações na postura do analista junto ao analisando. As novas teorias, de certa forma, surgem a partir de questões relacionadas com suas antecessoras e posteriormente tomam caminhos singulares e particulares, ampliando o conhecimento e a prática clínica. Winnicott é um desses autores que contribuiu, a partir de sua clínica e de suas formulações teóricas, para rupturas paradigmáticas fundamentais. Enquanto na psicanálise tradicional o símbolo seria derivado de uma pulsão interditada - seja da sexualidade ou da destrutividade -, em Winnicott o símbolo é fruto de uma relação de comunicação intersubjetiva entre a mãe e o bebê, o que modifica a maneira como se compreendem e se vislumbram os fenômenos clínicos. Para debater o tema da sensorialidade proposto pela seção Debate, escolhi fazê-lo a partir da perspectiva de Winnicott, para quem toda a conceitualização sobre os fenômenos transicionais está determinada por certa maneira de se conceber a constituição do psiquismo. O período que antecede o nascimento do bebê é de fundamental importância e recebe a denominação de "preocupação materna primária". A relevância desse período está no fato de a mãe se identificar maciçamente com o bebê que carrega em seu ventre e experimentar um processo de regressão, que lhe permite resgatar algo da sua história pessoal como bebê e como criança, inclusive a maneira como foi tratada. Tal identificação lhe permite, no momento do nascimento de seu bebê, reconhecer suas necessidades singulares. Neste processo, mãe e bebê experimentam um estado de indiferenciação, e uma comunicação e uma relação sui generis se estabelece entre o par.

O bebê nasce com núcleos de ego funcionando, isto quer dizer que ele participa ativamente da constituição da sua subjetividade; entretanto, suas características biológicas e sua potencialidade psíquica necessitam de cuidados e necessidades especiais, ou seja, ele carece de condições para emergir. Daí a importância da relação do bebê com sua mãe, principalmente, se encontrar nela as funções e os cuidados necessários para o desenvolvimento de suas características pessoais, as quais se apresentam de diferentes formas: no seu ritmo, no seu potencial muscular, na sua irritabilidade. Essa relação se dá em duas direções: tanto a mãe contribui para a formação psíquica do bebê com a sua cultura e com o que viveu, quanto o bebê influi na construção da maternidade da mãe. Nesse processo, é muito importante que a relação se constitua de maneira a permitir ao bebê existir não só como ser biológico, mas também psíquico. Existir psiquicamente, neste processo, significa que o bebê possa ser reconhecido pela mãe, que, se sintonizada com ele, poderá permitir que este inscreva suas características próprias na subjetividade da mãe, de maneira tal que possa se ver espelhado, em seu modo de ser, em seus afetos, em seus sentimentos, através do rosto da mãe. Esta sintonia materna que oferece ao bebê, ao longo do tempo, o senso de continuidade existencial, permite que ele vá constituindo uma visão de que é constante e, mais tarde, que possa reconhecer que se relaciona com um ser que também é constante em suas características e na sua maneira de ser. Winnicott aponta para o fato importante de que o bebê nasce com potencial à alucinação, e que ele utiliza esse potencial para constituir seu mundo imaginário a partir das experiências que foi construindo na relação com a mãe e que ganharam registro ao nível da sensorialidade. 

Temos, então, em um primeiro momento, um período de indiferenciação, ou seja, um período de ilusão no qual a mãe se coloca ali onde o bebê a "cria"; e um segundo momento, em que o bebê, a partir das experiências que foram importantes na relação com a mãe, faz uso do seu potencial alucinatório e passa a preencher a ausência da mãe com algo da sua imaginação, com a sua vida imaginativa. Nesse processo de diferenciação é que se estabelece o espaço potencial que vai se caracterizar pela ausência, pelo vazio recortado pela vida imaginativa do bebê. Mas, para que isso aconteça, é indispensável que anteriormente tenha ocorrido um período de ilusão relacionada a uma experiência anterior intersubjetiva. Com o passar do tempo, essa capacidade do bebê deverá permitir-lhe, por períodos cada vez mais longos, suportar a ausência da mãe com sua vida imaginativa, fazendo com que, em um determinado momento, possa recortar um pedaço da sensorialidade do mundo compartilhado com a mãe e criar um objeto especial, que garanta e ofereça a ele um senso de continuidade. Tal objeto especial, que pode ser qualquer coisa que tenha feito parte da relação mãe/bebê, e que é criado, recriado e animado pelo bebê, é o que Winnicott denomina de objeto transicional. O objeto transicional, na sua sensorialidade, é parte das experiências que o bebê teve com a mãe e fruto dessa relação intersubjetiva. Nesse sentido, não é interpretável e não pode ser decodificado, uma vez que representa o vínculo, o modo de ser do bebê, a mãe, o próprio bebê, o seio e a boca. O objeto transicional é, portanto, a primeira organização que tende à simbolização da criança, ou melhor, a primeira articulação da experiência existencial da criança no sentido de ser e existir.

 

Pablo Castanho
Grupos com objetos mediadores: a dimensão sensorial do funcionamento psíquico em foco.

Tiago tem 62 anos, teve dois relacionamentos duradouros ao longo da vida. Não quiseram ter filhos. Nunca foi próximo da única irmã e desde a morte dos pais, há cerca de um ano (no momento do início do grupo), seu vínculo mais forte é com a primeira ex-mulher, com quem às vezes fala ao telefone e que o ajuda financeiramente. Na primeira sessão grupal de Fotolinguagem©, Tiago escolherá a foto de um jovem andando de patins, com imagem ligeiramente desfocada podendo dar a impressão de velocidade. Ao apresentar sua foto, Tiago diz que a vida passa muito rapidamente. Diz se sentir solitário e afirma que as fases da vida e os grupos são passageiros. Tiago é evasivo durante as sessões, evita sempre responder a questões ou o faz de modo superficial e estereotipado. Utilizamos o método de Fotolinguagem© em sua vertente psicanalítica, tal como proposta por Claudine Vacheret. Nesta vertente as sessões clínicas de Fotolinguagem© podem seguir por anos a fio, mas, por razões específicas da instituição onde este grupo ocorre, foi decidido que realizaríamos apenas cinco sessões iniciais com o método, passando posteriormente para um formato de grupo analítico clássico, estruturado pelo convite aos pacientes de associarem verbalmente o mais livremente possível. O grupo já segue em seu terceiro semestre de atividade no momento de escrita deste texto. 

Tiago retoma a foto do patinador algumas vezes nos grupos verbais: "É ele", afirma. Também retoma e comenta algumas outras fotos em sessões posteriores. Parece se identificar profundamente (ou desesperadamente?) com estas imagens que escolheu. A dimensão visual também sempre se impôs aos coterapeutas em relação a Tiago, que desde o início destacam aspectos de sua presença física, gestual e corporal em suas trocas sobre as sessões. Tiago apresenta-se como excessivamente grande, não só pelo tamanho objetivo de seu corpo, mas porque o corpo parece transbordar-lhe, escapar-lhe a todo momento. Ele transborda os limites do enquadre também. Desobedece à regra de abster-se de contatos com pacientes fora do grupo, critica abertamente colegas, desqualifica as falas dos coterapeutas. É particularmente agressivo com novos integrantes do grupo. Certamente que nisso exerce uma função defensiva a serviço do grupo como um todo, mas também em benefício próprio. Tiago ataca a diferença entre gerações, busca deter a passagem do tempo, "reter seu patinador". Vemos uma subjetividade constantemente ameaçada e em busca de fronteiras seguras. 

De fato, Tiago parece se encaixar naquela categoria de pacientes que com crescente frequência têm demandado cuidados de psicanalistas e que temos localizado no campo das patologias narcísicas e identitárias. Neste grupo encontraríamos grandes beneficiários dos dispositivos terapêuticos com mediações, segundo Anne Brun, docente da Université Lumière Lyon 2 e especialista nas questões das mediações terapêuticas. Claudine Vacheret, docente aposentada da mesma instituição, sublinha a impossibilidade de metaforizar como critério para a indicação de pacientes para grupos com objetos mediadores. Notemos que, no caso do grupo de Tiago, não tínhamos hipóteses diagnósticas prévias dos pacientes que nos procuraram para atendimento clínico na instituição. O uso da Fotolinguagem© tivera outra intenção, também mencionada por Claudine Vacheret, a de fomentar as interações, acelerando "a formação de vínculos". Mas jogamos um anzol e parece que pegamos Tiago nele. 

Em 2013, em uma palestra na Universidade de São Paulo, René Roussillon faz referência a temas do Manuel de Médiations Thérapeutiques, livro lançado em 2013 e organizado juntamente com Anne Brun e Bernard Chouvier. Ao responder a uma pergunta sobre as influências dos colegas da Université Lumière Lyon 2 no seu trabalho sobre o assunto, Roussillon minimiza o papel de Claudine Vacheret, mas sugere a existência de uma escola do pensamento sobre o intermediário em Lion, relacionado aos estudos de René Kaës sobre o assunto. De fato, a problemática do intermediário, extremamente abrangente no tratamento dado por Kaës, permite-nos aprofundar questões da constituição e do funcionamento intrapsíquico, dos grupos, do uso de objetos e de suas inter-relações. É bem verdade que a problemática do objeto como intermediário já inclui a dimensão intersubjetiva e intrapsíquica em seu próprio percurso. Do jogo do carretel freudiano, ao objeto transicional winnicottiano ou ao meio maleável de Marion Milner, o objeto existe na e para a relação intersubjetiva na qual está inserido, com evidentes conexões com processos intrapsíquicos. Ainda assim, a discussão no campo do intermediário realiza aportes para o entendimento da relação entre objeto e psiquismo, com destaque para as funções do grupo no processo. 

Claudine Vacheret já havia assinalado como o uso da Fotolinguagem©, ou de qualquer outra mediação, dispara e sustenta uma série de associações sensoriais. Isso talvez fique mais evidente quando transitamos entre vias sensoriais diferentes, quando, por exemplo, frente a uma foto com um armário, um cheiro de lavanda é revivido por uma paciente que se lembra então das férias na casa da avó. Mas a associação sensorial ocorre o tempo todo na Fotolinguagem©, por vezes as lembranças visuais vêm imediatamente, outras vezes precisamos nos deter nas fotos por algum tempo. À medida que ouvimos diferentes percepções de uma mesma foto no grupo, podemos ter a experiência de ver a própria foto se transformar aos nossos olhos, indicando o quanto a percepção depende do trabalho da intersubjetividade. 

De fato, as percepções se encadeiam umas às outras, diretamente entre si, acompanhadas pelas palavras nos dispositivos de mediações, mas não necessariamente subordinadas a elas. Esta propriedade de associar percepções sensoriais entre si Anne Brun denomina de associatividade sensório motora. Transitar entre essas percepções sensoriais, que se puxam umas as outras, e palavras que as narrem, possuem importantes propriedades de simbolização e de subjetivação nos dispositivos terapêuticos de mediação. Para Anne Brun, o analista que anima um grupo de mediação pode contribuir oferecendo narrativas pictóricas. É neste sentido que Anne Brun fala que o analista deve "interpretar" nestes grupos, deixando claro que tal atividade neste contexto se distingue da interpretação psicanalítica clássica, remetida à ideia de recalque. Anne Brun localiza a dimensão sensorial também do lado do fazer do analista: o corpo, a entonação de voz, etc. são recursos muito relevantes na construção de uma narrativa que se propõe, ela mesma, como uma imagem em movimento. As palavras recobrem e se entrelaçam com o sensorial em nossas intervenções como analistas nesses grupos. 

Se a sensorialidade assume tamanha importância na técnica, isso remonta ao seu papel no processo de simbolização. Antes de debruçar-se especificamente sobre as mediações, em seu estudo sobre o enquadre psicanalítico (Logiques et archéologiques du cadre psychanalytique), Roussillon nos brinda com um perspicaz entendimento da função psíquica da sensorialidade. A realidade psíquica em sofrimento é exteriorizada no enquadre, cria-se uma ilusão na coincidência entre o sujeito e seu meio, mas se o enquadre é suficientemente inflexível, em algum momento a realidade irá destoar do psiquismo, abrindo-se aí a oportunidade de reinteriorização da realidade psíquica. Mas sublinhe-se que, neste segundo momento, não retornamos ao instante zero, pois, para Roussillon, a realidade externa funciona como um molde figurativo. A partir de então, e só pela mediação da sensorialidade, neste intercâmbio com o mundo, é que a matéria psíquica poderá povoar sonhos, formar sintomas, enfim, transmutar-se em elementos utilizáveis pelo processo primário. 

 

Esta reflexão também importa justamente por indicar o papel da sensorialidade muito antes, ou de modo independente, do uso intencional e contemporâneo de objetos mediadores em psicoterapia. O enquadre, poderíamos pensar, sempre funcionou e funcionará como arsenal de objetos mediadores; neste ponto, o grupo, mesmo verbal, seria mais diverso em estimulação que a cura tipo, mas esta, tão pouco, prescinde do sensorial. Se as construções aqui mencionadas derivam e apoiam o trabalho com objetos mediadores em psicanálise, elas também podem fertilizar um olhar sobre como operar com a dimensão sensorial que existe e se apresenta em qualquer dispositivo analítico. No caso de Tiago, seguimos atentos aos efeitos que a Fotolinguagem© ainda exerce sobre ele, assim como sobre sua motricidade, sua voz e sobre as imagens e associatividade sensório-motora que são despertadas na equipe de coterapeutas durante as sessões.


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