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Resumo
O presente artigo, construído na interface arte/psicanálise, pretende apresentar um diálogo entre literatura e psicanálise contemporânea. Através de um trecho literário e algumas vinhetas clínicas, traz à luz algumas questões suscitadas pelos adoecimentos fronteiriços e propõe a escuta polifônica como saída possível para o enquadre e manejo clínico de tais atendimentos.


Palavras-chave
Psicanálise contemporânea; escuta polifônica; adoecimentos fronteiriços; literatura e psicanálise.


Autor(es)
Camila Flaborea Flaborea
psicanalista, mestre em psicologia clínica pela pucsp.


Notas

1.      Psicanalista uruguaio, membro da fepal.

2.      M. L. Cançado, Hospício é deus.

3.      R. Roussillon, "Teoria da Simbolização: a simbolização primária", in: Exploration en Psychanalyse.

4.      R. Roussillon, op. cit.

5.      V. Guerra, "Palavra, ritmo e jogo: fios que dançam no processo de simbolização". Versão em português in Revista de Psicanálise - sppa, p. 15.

6.      Grifo do autor.

7.      Tradução livre da autora.

8.      Transmatricialidade é uma característica da prática clínica que usa a matriz freudokleinana suplementada pela matriz ferencziana. Cf. L. C. Figueiredo, As escutas da psicanálise.

9.      R. Roussillon, Le jeu et l'entre-jeu; B. Golse e R. Roussillon, La naissance de l'object.

10.     L. C. Figueiredo, B. Savietto e O. Souza (orgs). Elasticidade e limite na clínica contemporânea, p. 265.

11.     L. C. Figueiredo, As escutas da psicanálise.

12.     Mecanismos de defesa não neuróticos muito característicos de traumatismos precoces (Cf. R. Roussillon, "Teoria da Simbolização: a simbolização primária").

13.     M. L. Cançado, op.cit.

14.     V. Guerra, "Silencio de vida y Silencio de muerte". 

15.     Tradução livre da autora.



Referências bibliográficas

Bion W. (1998). Uma teoria sobre o processo de pensar. In Estudos psicanalíticos revisados. Rio de Janeiro: Imago.

Cançado M. L. (2015). Hospício é deus & O sofredor do ver. Belo Horizonte: Autêntica.

Figueiredo L. C.; Savietto B.; Souza O. (orgs.) (2013). Elasticidade e limite na clínica contemporânea. São Paulo: Escuta.

Figueiredo L. C. (2014). As escutas da psicanálise. Disponível em: .

Golse B.; Roussillon R. (2010). La naissance de l'object. Paris: puf.

Guerra V. (2015). Silencio de vida y Silencio de muerte. Texto apresentado na Conferência de Córdoba, fepal. Não publicado.

____. (2013). Palavra, ritmo e jogo: fios que dançam no processo de simbolização. Versão em português in Revista de Psicanálise - SPPA. Porto Alegre.

Naffah Neto A. (2012). René Roussillon e D. Winnicott: encontros e desencontros nos interstícios da construção teórica. Disponível em: . 

Roussillon R. (2008). Le jeu et l'entre-jeu. Paris: Puf.

____. (2012). Teoria da Simbolização: a simbolização primária. In: Exploration en Psychanalyse. Trad. Bianca Bergamo Savietto. Conferência proferida na Reunião Científica "A psicanálise e a clínica contemporânea - Elasticidade e limite na clínica contemporânea: as relações entre psicanálise e psicoterapia". São Paulo.

 





Abstract
?This article built in the interface art / psychoanalysis intends to present a dialogue between literature and contemporary psychoanalysis. Through a literary passage and some clinical vignettes, bringing to light some issues raised by borderline illnesses and propose polyphonic listening as a possible output for the clinical setting and management of such demands.


Keywords
Contemporary psychoanalysis; polyphonic listening; borderline illnesses; literature and psychoanalysis.

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 TEXTO

Maura e o espelho, ou a escuta polifônica na psicanálise contemporânea

Maura and the mirror, or polyphonic listening in contemporary psychoanalysis
Camila Flaborea Flaborea

Apresentação e proposta

 

Os adoecimentos não neuróticos têm surgido com uma frequência cada vez maior em nossa prática clínica. Adoecimentos que nos remetem às fundações do psiquismo: as questões narcísico-identitárias. Falhas nas primeiras bases de contorno, turvando a percepção do eu-não eu; do dentro-fora; da loucura-sanidade.

O que podemos fazer por esses pacientes? Que tipo de escuta podemos oferecer para quem habita o limite, o fio da navalha?

Na sala de análise, muitas vezes, é preciso inicialmente apenas cuidar de sobreviver à maciça carga de projeções e demandas; à ausência de palavras que nos acomete diante da carga mortífera que depositam em nós e, a despeito disso, responder à necessidade de uma presença empática, interessada e disponível.

Na interface entre arte e psicanálise encontram-se recursos valiosíssimos no sentido da sobrevivência do analista e da compreensão desses estados. Para um paciente limite, talvez a escuta analítica também deva flexibilizar seu limite até encontrar a fronteira com a arte. Esticar-se, ampliando suas possibilidades de percepção dos sons, dos silêncios, dos sentidos. Do espanto e da poesia. 

Neste artigo, a Arte pretende ser apresentada não só como um instrumento de enriquecimento e sustentação dessa escuta, como também, através de um trecho literário, tomado como fala de um sujeito que sofre: Maura Lopes Cançado, escritora mineira que nos anos 1940, durante sua internação psiquiátrica, escreveu um diário e um livro de contos, nos dando a ver seus traumas precoces e suas necessidades não atendidas.

Na sequência, serão usadas duas vinhetas clínicas de Victor Guerra, apresentando um menino com diagnóstico de autismo que vem, com contundência, pedir de seu analista não somente seu silêncio mas também sua escuta poética.

Alguns fragmentos, um literário e outros clínicos (ainda não publicados) que pretendem demonstrar o quanto precisamos da interlocução com a poesia e o fazer artístico para estarmos disponíveis e aptos a realmente escutar esses pacientes, que, se vivem no limite entre a sanidade e a loucura, também nos convocam a acompanhá-los até a beira do abismo para, quem sabe, resgatá-los.

E nesse limite, de qual ética e de que técnica falamos? 

Recorrerei ao conceito de escuta polifônica de Luís Cláudio Figueiredo para tentar responder a essas questões, dando aporte teórico consistente para o que entendemos ser a psicanálise contemporânea: Aquela que é feita "na terceira margem do rio".

Introdução

Visitei-me no futuro: a memória não tem culpa. Sou a desocupada no tempo,
a não fixada. Gota a gota esvaiu-se sangue róseo: estou branca, confundível. Perdi meus pés na areia - e choro os sapatos roubados. Não importa a estação - amoras machucadas ameaçam tingir-me os dedos. Esta grinalda de cerejeiras não tem pátria: o Japão está ali, onde meu braço alcança. Entrei num salão de festas, dancei ao lado de um rei. À meia-noite saí (brincava de Cinderela).

O pintor para quem posei desistiu das linhas, abandonou as tintas: meu retrato é uma tela branca.

 

A Arte se apoia em metáforas e símbolos que necessariamente têm inúmeras interpretações. No entanto, psicanalista que sou, escuto a autora dessas palavras tentando dar um contorno a si própria e a seus sofrimentos, evocando imagens contundentes. Então talvez possamos nos permitir o exercício de sonhar com ela e colocar, frente a frente, numa tentativa de diálogo, esse pequeno trecho literário com as chamadas patologias narcísico-identitárias, ou seja, sofrimentos narci?sicos que te?m conseque?ncias para o sentimento de identidade do sujeito - com a consciência de que esse é apenas um dos muitos caminhos possíveis diante da literatura e suas possibilidades tão amplas.

Maura nos ensina que para encontrá-la onde está é preciso ouvir além... é preciso ouvir em camadas, em múltiplos sons, com múltiplos sentidos. É preciso encontrar uma escuta polifônica - conceito que será explicitado mais adiante - para acessar essa dor, esse não lugar, essa ausência, esse desespero. Ela não tem pátria, é a não fixada, a desprotegida; a ameaçada, a não reconhecida, a não contornada. Maura prossegue dizendo que se viu do futuro e a memória não tem culpa. O problema foi o pintor para quem ela posava... ele desistiu das linhas que a contornariam. Ela tornou-se uma tela em branco, a não fixada. O que há de real é sanguíneo, volátil, dolorido, e se esvai. 

Quanto impacto essas palavras me causaram. Há uma honestidade absoluta em sua falta, em seu flanco para a loucura. Uma tentativa de dar a essa tela em branco desesperadora um contorno - ainda que coberto de contradições, de amor e ódio. Talvez pela arte tenha escapado da loucura absoluta. Sua tentativa de articular seus paradoxos? Uma tentativa de autocura? Ficou na fronteira entre a sanidade e a loucura com relatos explícitos nesse sentido. E sua obra, para quem se interessar, não deixa dúvidas de que era assim que ela se via e era vista por seus médicos. Deixou como legado um caminho possível para a compreensão de tantos outros que habitam esse lugar limite: quase um não lugar, quase uma inexistência... por um triz, um não ser.

Habitando a fronteira

Passemos a considerar que nossa autora padece de um adoecimento não neurótico, que não pode ser situado no terreno do recalque, mas sim das cisões e dos vazios. Partirei aqui da hipótese de que Maura descreve um sofrimento fronteiriço.

Suas palavras remetem aos traumas precoces, vividos no instante constitutivo do psiquismo. Estamos diante da lógica do traumático e do desamparo profundo. Autores importantes têm se dedicado a essa temática. Por exemplo, Balint e seu conceito de falhas básicas, apoiado em toda a teoria ferencziana do trauma precoce. Winnicott sem dúvida alguma, trazendo a necessidade da "continuidade do ser". Mas aqui não desejo me estender nessas abordagens, pois outro caminho tem ganhado maior reverberação em minha clínica. 

Vamos iniciar esse percurso com Freud e o jogo do fort-da: O infans joga o carretel e o traz de volta. Freud o observa. É seu neto que, diante da ausência da mãe, inicia a brincadeira. Cena clássica entre os psicanalistas, evoca a tentativa de elaboração do bebê do ritmo de presença-ausência da mãe, da continuidade do tempo, da espera e da mudança da posição passiva (de quem é deixado para trás) para a posição ativa, de quem manda o carretel embora mas, em seguida, o chama novamente para perto. Um jogo que não foi possível para tantos pacientes.

E é necessário entender isso um pouco mais. Que jogo é esse que o fort-da evoca? O jogo (uma relação) da presença (objeto primário) que torna possível, suportável, a sua ausência. Uma relação intersubjetiva (a dupla) que permite uma operação intrassubjetiva (a possibilidade de o bebê não se esvair a partir da ausência desse objeto). 

O enquadre clássico e a escuta do inconsciente recalcado não encontram eco em tal quadro. Na tela em branco, será preciso inicialmente gerar os contornos. É uma lacuna nas simbolizações primárias e que, segundo autores como R. Roussillon, devem ser feitas não na ausência (como classicamente se entendia todo e qualquer processo de simbolização), mas na presença do objeto primário. O autor passa a fazer a diferenciação entre simbolização primária - aquela feita em presença do objeto primário - e simbolização secundária, a que é feita a partir de sua ausência.

Referindo-se ao fort-da e relacionando esse jogo aos processos de simbolização primária, Victor Guerra pergunta: 

 

Como esse processo é gestado no bebê? De onde ele poderia adquirir esse recurso? Pode um bebê desenvolver um processo de deslocamento de representações, de metaforização, sem vivê-lo em presença com o outro, que em algum momento co-construiu com ele um espaço de jogo? Definitivamente, pode o bebê realizar um trabalho de elaboração intrapsíquica na ausência do objeto, sem antes ter transitado alguma forma de encontro intersubjetivo em presença simbolizante?

 

Para ilustrar clinicamente seu raciocínio metapsicológico, Guerra nos brinda com um brilhante relato de caso clínico de um menino com diagnóstico de autismo. Em particular, duas vinhetas me capturam a atenção, configurando todo um manejo de enquadre e escuta necessários para entrar em comunicação com sofrimentos não neuróticos, como esse que mostrava essa criança. Eis a primeira:

 

Chega e fica em silêncio [...] Reina um silêncio tranquilo e eu espero que ele emita um sinal para dar lugar à palavra. Ele parece cochilar, e por alguns momentos eu também me deixo perder em "ensonhamentos", relaxado (não integração). Continuo olhando para ele em silêncio. Depois de alguns minutos, se levanta, aproxima-se de mim e diz:

P: Você acha que os espelhos que refletem podem dar algo mais?

A: Como?

P: Esse espelho que reflete a lâmpada, pode dar luz? (Se refere, no conteúdo manifesto, ao vidro de uma parede do consultório)

 

Esse trecho, que é pura poesia na clínica, pode levar-nos a pensar sobre pelo menos dois aspectos:

       I.      A constituição psíquica engendrada pelo espelhamento e o que deve advir além disso: um espelhamento, digamos, devolvido com conteúdos digeríveis pelo infans. 

       II.     O outro lado, o do indivíduo espelhado, identificado e preso a essa imagem, ou seja, colado a uma determinada imagem pelo olhar - ou não olhar - do outro: a pergunta também pode ser ouvida assim: existe algo em mim para além do que me dão como imagem? 

 

Temos aí enclaves de constituição narcísica e também identitária, que, a meu ver, devem ser examinados à luz da dupla mãe-bebê. Para isso, passarei a recorrer a Bion e sua teoria da "digestão psíquica" encabeçada pela mãe, que torna possível ao bebê suportar suas experiências somato-psíquicas: a função alfa, tão presente também na sala de análise.

"O espelho que reflete
pode dar algo mais?"

Bion se mostra um autor bastante fecundo quando se fala em psicanálise contemporânea, pois está inserido numa tradição freudokleiniana e é capaz de conectar-se vivamente e com consistência à perspectiva suplementar que nos apresenta a linhagem ferencziana, ou seja, aquela que ilumina as questões dos traumas precoces que podem causar mortes psíquicas (por exemplo, cisões narcísicas radicais) ou até mesmo físicas (no caso extremo, o hospitalismo de Spitz).

Fundamentalmente nos interessa assinalar um aspecto da teoria bioniana do pensar: Bion começa a identificar funções antecipatórias no objeto primário. Uma atividade do objeto primário para além de um "simples espelhar". Por outro lado, a identificação projetiva realizada pelo bebê também ganha novas cores, pois deixa de ser entendida como um mecanismo de defesa como Klein postulara, e passa a ser compreendida também (não em vez de) como um meio de comunicação, ao qual é preciso que o objeto primário dê continência, ou seja, é preciso que o objeto primário receba e elabore os conteúdos projetados para que eles sejam devolvidos ao bebê como uma experiência emocional possível de ser contida pelo infans.

(Será esse o pintor para quem Maura posava e o qual a abandonou sem contorno próprio? Será esse o espelho que talvez pudesse dar algo mais?)

Falhas muito precoces e excessivas nessa função de continência podem gerar interrupções no desenvolvimento psíquico, a tal ponto de podermos falar em "nascimento incompleto"? Penso que sim.

Para Bion, existe a pré-concepção de que o ambiente irá desempenhar essa função de conter e elaborar e, portanto, as identificações projetivas seriam mecanismos de comunicação e defesa que estão dentro do campo da saúde da dupla mãe/bebê. Nesse cenário, há uma dominância de realizações positivas e episódios de realizações negativas (objetos maus). A tolerância às frustrações virá da capacidade de representação desses objetos maus e paulatinamente, pela identificação introjetiva, instala-se o aparelho de pensar (a experiência). A partir desse ponto, a simbolização pela ausência pode ser realizada, o fort-da se mostra como um recurso valioso da criança que já tem uma simbolização inicial, primária, bem estabelecida em presença. A primeira ausência a ser simbolizada será sempre a desse objeto primário simbolizante que garante algum enquadre interno, indicando fronteiras fundamentais do ser e estruturando o psiquismo.

E agora podemos explicitar um pouco mais por que Bion nos parece um autor apropriado para tratarmos das questões dos traumas precoces e dos adoecimentos gerados por eles (no presente caso, os adoecimentos borderline). 

Ora, a partir do ponto de vista proposto por Bion, as relações intrapsíquicas e intersubjetivas se relacionam constantemente, bem como as pulsões e as relações de objeto, e ainda as fantasias e os traumas ambientais. A psicanálise contemporânea - a transmatricial, segundo Figueiredo - ao ouvir os sofrimentos não neuróticos abre-se para desfazer essas oposições, articulando paradigmas e sobrepondo camadas de escutas e enquadres para cuidar de modo mais flexível e talvez mais eficaz desses pacientes profundamente traumatizados num momento anterior à organização total do eu. Voltarei a esse ponto mais adiante.

Por agora, Silvia Zornig pode nos conduzir a um passo além: 

 

O processo de simbolização depende da capacidade da criança de poder aceder à representação da ausência do objeto, ou seja, de transformar o objeto que contém seus conteúdos não elaborados em internalização e conteúdos de seu próprio psiquismo. [...] Assim, as condições necessárias ao processo de simbolização primária dependem da quantidade e da qualidade da presença do objeto primordial durante o processo de constituição psíquica do infante. [...] A presença materna favorece a representação da alteridade do objeto em sua presença. 

 

E então entramos no segundo ponto a ser abordado aqui: o da identidade adesivada nos casos não neuróticos, pois a dita "representação da alteridade" exige um passo a mais no jogo estabelecido nos primeiros encontros da criança com os pais ou cuidadores. Vejamos: a palavra espelhamento sugere-nos um tipo de fusão, inicialmente essencial, mas que necessariamente precisa ir abrindo espaço para a alteridade. É mais uma tarefa a ser desempenhada pelos pais, que devem começar a enxergar a criança como um indivíduo para além de si próprios, para além de seu narcisismo revisitado.

O termo identidade adesivada foi pensado para definir um tipo de identidade que é forjada quase que exclusivamente como especular, quase uma não identidade. A alteridade não entrou no jogo da dupla mãe/bebê. Para tentar ser mais clara, recorro à vinheta clínica citada acima, pensando que um paradoxo que frequentemente escutamos do paciente que sofre com os transtornos narcísico-identitários poderia ser posto da seguinte forma: preciso do outro para existir e o outro me invade. Preciso do outro para me constituir e ele também me anula como ser. Sua presença pode ser tão danosa quanto sua ausência. Uma outra face da simbolização mal-sucedida. 

A partir disso, de uma presença invasiva e que anula os contornos próprios do bebê é que voltamos à pergunta do paciente de Guerra: é possível ser algo a mais?

Essa questão aparece de muitas formas num processo de análise e para buscar em primeiro lugar formulá-la e depois tentar respondê-la é preciso que haja uma flexiblidade da escuta e do enquadre na situação analisante. É preciso rever o manejo. 

(Re)Pensando o manejo

No início deste artigo, propus uma metáfora amparada por Guimarães Rosa: a ideia de que a psicanálise contemporânea é aquela feita "na terceira margem do rio". É hora de falar um pouco mais sobre essa ideia, visto que, a partir da minha experiência clínica, este tem se mostrado o manejo mais adequado para os adoecimentos não neuróticos.

A psicanálise que se faz na terceira margem do rio sugere a possibilidade de habitar um lugar intangível, invisível, mas bastante real. Trata-se da psicanálise do sensível, do inaudível e, por que não dizer, do morto. Mas não é apenas isso. Leva em conta as duas outras margens, é claro. (Caso contrário, não seria a terceira margem.) Leva em conta e se sobrepõe às duas primeiras, aos primeiros contornos, que são, entenda-se bem, os parâmetros e assim continuarão sendo. Mas se sobrepõem a eles, numa conjugação que aumenta em tridimensionalidade e complexidade o ofício do analista.

Nas duas primeiras margens, nossos pontos de partida, está Freud e sua escuta do inconsciente recalcado e, mais adiante, sua segunda tópica; está Melanie Klein com as angústias precoces e as relações de objeto; e ainda Bion, com sua teoria do pensar, que talvez possibilite a ponte para essa terceira margem, convocando-nos a colocar a contratransferência e nossos estados de sonho num outro patamar. 

A essa sobreposição, Luís Cláudio Figueiredo dá o nome de escuta polifônica, aquela que gera condições para que possamos estar na terceira margem do rio, a psicanálise contemporânea, transmatricial, que seria capaz de escutar Maura (nos anos 1940, infelizmente, nos hospitais psiquiátricos do Rio de Janeiro, ela não teve chance alguma) e que foi capaz de escutar nosso pequeno poeta. Pela escuta sensível - e aqui entendida como polifônica - de Victor Guerra, ele teve sua chance de encontrar recursos para formular sua questão do espelho e inaugurar outro tempo em sua análise, um tempo onde a revitalização pode acontecer.

E a palavra revitalização nos leva ainda a outro pensamento, pois há um entrelaçamento de outra natureza na terceira margem do rio: o entrelaçamento entre vida e morte. Não me refiro somente às pulsões, eros e thânatos. Refiro-me às cisões profundas, às partes isoladas e mortas que figuram no psiquismo de nossos dois personagens poetas, mescladas a explosões de vitalidade. Maura, com sua vida abundante e criativa, nos fala de sua morte iminente, de seu desaparecimento subjetivo, de sua despersonalização:

 

Gota a gota esvaiu-se sangue róseo: estou branca, confundível. Perdi meus pés na areia - e choro os sapatos roubados. 

 

E o pequeno paciente de Guerra emerge de seu quadro autista, repleto de isolamento e sofrimento, para nos brindar com curiosidade, esperança e desejo de que "algo a mais" possa surgir de seu analista e de si próprio. 

Poder ouvir esse entrelaçamento, ou ainda, poder deixar surgir esse entrelaçamento é tarefa árdua. Para tanto, é preciso se desalojar dos contornos muito claros das primeiras margens e se entregar à terceira. Uma mudança de paradigma: saem as interpretações e entra o jogo: não mais, ou não ainda, as interpretações clássicas do inconsciente recalcado e das angústias defensivas, mas as interações organizadas e organizadoras em torno de ritmo, continuidade e sentido.

Gostaria de exemplificar essa mudança paradigmática através de um outro trecho do relato de Victor Guerra e aqui incluir uma passagem de minha própria clínica. 

Guerra, ainda descrevendo sua trajetória com seu paciente, nos conta que 

 

durante muitos meses, no início da sessão, meu paciente se esparramava em meu divã e podia passar quinze ou vinte minutos em silêncio. Se eu tentasse interpretar algo era imediatamente insultado e denegrido. Inicialmente isso me gerava incômodo, raiva, aborrecimento, até que pude pensar [...] que desta maneira meu paciente me trazia o silêncio do desencontro de seus inícios, um silêncio primordial que o atravessou sempre. 

 

Abre-se a escuta da transferência/contratransferência em outro nível.

Em minha experiência clínica, a primeira mudança da interpretação ao jogo não se deu com uma criança. Tratava-se de uma moça de 27 anos, em análise comigo há mais de três. Depressão, pânico e transtornos alimentares, além do abuso de álcool e drogas faziam parte de seu quadro. Extremamente avessa a qualquer interpretação, paradoxalmente, mostrava um bom nível de diminuição de seu sofrimento. Um dia, pontuei esse paradoxo. Ao que ela prontamente me responde: "Pra mim, não faz a menor diferença o que você me diz. Venho aqui três vezes por semana porque gosto de como você me trata. De como você me vê, me ouve. Me importa quem você é, como fala comigo e não o que você diz". A partir desse momento, pude perceber que o que estava ocupando uma função terapêutica não era apenas o dito, mas sim o vivido, num nível muito mais primário do que supunha até então. Não acreditava que ela fosse realmente indiferente às minhas palavras, mas passei a entender que outras vozes eram ativas em nossa relação transferencial, tanto no que se referia às suas necessidades quanto à minha presença. Abriu-se a polifonia diante de mim através do que Andréa assinalou como sua escuta, sua experiência em análise. Me fez perceber que nossos encontros, permeados de silêncios, palavras, presença/ausência, falhas e construções eram o que atendia suas necessidades mais profundas, eram o que a sustentava ali, ainda que sua analista não estivesse totalmente consciente da simultaneidade de todas essas vozes naquele momento. Esse evento inaugurou outra fase em sua análise e em minha clínica: uma escuta transmatricial e, portanto, muito mais complexa e maleável.

E agora, para finalizar nosso caminho, retomemos a pergunta inicialmente proposta sobre o manejo: de que ética e de que técnica falamos ao escutar esses pacientes não neuróticos? A terceira margem mantém-se atrelada à proposta inicial de Freud: a da ética da reserva respeitosa à alteridade que deve vir como puder vir, que seja bem-vinda e não colonizada, sem julgamentos ou moralismos. Essa ética da psicanálise une as três margens desse rio, moldando os enquadres e as escutas possíveis e necessárias a cada sessão, para cada paciente. Ao refazer o caminho, deixar que surjam as terceiras margens desses rios, do analista e do paciente, num encontro respeitoso com as alteridades ali presentes e esperar que as linhas possam ser (re)desenhadas a dois e que, mais além, ainda haja "algo mais"... 


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