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Resumo
Jean Laplanche propôs um novo modelo teórico baseado em Novos Fundamentos para a Psicanálise, centrado em uma atividade tradutiva. Afirma que seu modelo é “integrador”, sem que tenha explicitado todos os níveis de integração possibilitados por suas concepções, assim como não especifica a natureza dessa atividade tradutiva. Os objetivos deste artigo são ampliar a reflexão sobre a própria atividade tradutiva, conjecturar sobre sua origem e sobre os campos de integração possíveis a partir dessas articulações teóricas.


Palavras-chave
Jean Laplanche; Teoria da Sedução Generalizada; Situação Antropológica Fundamental; espaços psíquicos; atividade tradutiva; evolução.


Autor(es)
Jose Carlos Calich Calich
psicanalista, membro da Sociedade Psicanalítica de Porto Alegre. Docente do Instituto de Psicanálise da sppa. Professor Adjunto da Universidade de ny – nyu Postdoc. Psychoanalysis. Membro do Comitê Científico da Fundação Jean Laplanche – Institut de France. Editor (la) do International Journal of Psychoanalysis.


Notas

1.      J. Laplanche, "Três acepções da palavra inconsciente".

2.      Para um resumo do trajeto pessoal e científico de Jean Laplanche, bem como para obter referência de outras fontes sobre o tema, ver J. C. Calich, "Jean Laplanche e a fidelidade infiel a Freud: uma homenagem". Revista de Psicanálise da SPPA; J. C. Calich, "Apresentação à edição brasileira", in J. Laplanche, Sexual. A sexualidade ampliada no sentido freudiano - 2000-2006

3.      Tradução livre deste autor. Disponível em: . Acesso em: 5 set. 2016.

4.      J. Derrida e E. Roudinesco, De que amanhã ... diálogos

5.      J. Laplanche, Novos Fundamentos para a Psicanálise

6.      J. Laplanche, op. cit.

7.      J. Laplanche, op.cit.

8.      Problemática i - A Angústia; ii - Castração, Simbolizações; iii - A Sublimação; iv - O Inconsciente e o Id; v - A Tina (A Transcendência da Transferência) - todas publicadas pela Martins Fontes Editora (São Paulo). O livro Problemática vi - L'Après-Coup (Paris, puf, 2006) ainda não tem tradução ao Português. O volume vii - Freud e a Sexualidade - o desvio biologizante (Jorge Zahar Editores, 1997) foi primeiramente publicado em francês em 1993, fora da coleção Problemáticas. Em 2006 é integrado à coleção como Problemática vii - "Le fourvoiement biologisant de la sexualité chez Freud", juntamente com o texto "Biologisme et Biologie" (Paris, puf, 2006). 

9.      J. Laplanche, Novos Fundamentos...

10.     J. Laplanche, op. cit.

11.     J. Laplanche, op. cit.

12.     J. Laplanche, "Três acepções da palavra inconsciente", Revista de Psicanálise da sppa, Vol. x. Reproduzido em J. C. Calich e H. Hinz, The Unconscious. Further Reflections. Também em: "Le concept d'inconscient selon Jean Laplanche". Psychiatrie Française, Vol. xxxvii e em J. Laplanche, Sexual. A sexualidade ampliada no sentido freudiano - 2000-2006

13.     J. Laplanche, Le concept d'inconscient selon Jean Laplanche

14.     J. Laplanche, L'Après-Coup

15.     J. House, "Nota do Tradutor", in J. Laplanche, L'Après-coup

16.     J. Laplanche, Sexual. A sexualidade ampliada no sentido freudiano - 2000-2006

17.     S. Freud, Correspondência a W. Fliess, 6 de dezembro de 1896, in J. Moussaieff-Masson (ed.), A correspondência completa de Sigmund Freud a Wilhelm Fliess

18.     S. Freud, op. cit., p. 209.

19.     S. Freud, op. cit., p. 212.

20.     S. Freud op. cit., p. 209. 

21.     J. Laplanche, Novos Fundamentos... ; e L'Après-coup.

22.     J. Laplanche, Novos Fundamentos..., p. 139.

23.     J. Laplanche, Os fracassos da tradução, in Sexual.

24.     A. Houaiss, Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa

25.     Consulta às páginas da internet do Centre National de Resources Textuelles et Lexicales (cnrtl). Disponível em: , acesso em 6 set. 2016; Lexilogos, disponível em: , acesso em 6 set. 2016; Grand Larousse de la langue française en sept volumes, disponível em: , acesso em 6 set. 2016.

26.     J. Laplanche, "Três acepções da palavra inconsciente", p. 191.

27.     J. Laplanche, op. cit. 

28.     J. Laplanche, op. cit.

29.     Como definido por Laplanche em "Sexual", op. cit., aquilo que é o próprio da psicanálise, o sexual infantil, perverso-polimorfo, produto da fantasia, portanto, produto do psiquismo. 

30.     J. Laplanche, "Pulsão e Instinto", in Sexual.

31.     É importante aqui enunciar com clareza que aquilo que se pode inferir seria o psíquico para Laplanche. Uma propriedade emergente da mente, resultado da atividade tradutiva, vinculado especificamente à criação de sentidos para o sexual infantil do outro implantado no indivíduo e depois para toda experiência emocional, inclusive seu próprio sexual infantil criado por essa atividade tradutiva. Diferenciado, portanto, daquilo que seria o mental (capacidades intrínsecas ao humano, dentre outras, cognição, memória, emoções primitivas, defesas primitivas, uso da lógica, da dedução, que serão a posteriori inextricavelmente "comprometidas" pelo psíquico/sexual).

32.     J. Laplanche, "Pulsão e Instinto", "Sexualidade e apego na metapsicologia", "Castração e Édipo", in Sexual.

33.     J. Laplanche, J. "Sexualidade e apego na metapsicologia", in Sexual.

34.     J. Laplanche, 2006. p. 61. Tradução livre e grifos deste autor.

35.     J. Laplanche, "O crime sexual", in Sexual.

36.     J. Laplanche, "Três acepções da palavra inconsciente", p. 195-6. Grifos deste autor.

37.     J. Laplanche, "Pulsão e Instinto", in Sexual. 

38.     J. C. Calich, "Catastrophe et Traduction", in C. Dejours e F. Votadoro (org.), La Séduction a L'Origine: L'œuvre de Jean Laplanche.

39.     Ver a diferença entre implantação e intromissão da mensagem enigmática em J. Laplanche, "Intromission et implantation", in:  Le primat de l'autre en psychanalyse: travaux 1967-1992. Também em J. C. Calich, "Pour faire travailler la topique laplanchienne". Psychiatrie Française. Le concept d'inconscient selon Jean Laplanche.

40.     J. Laplanche, Novos Fundamentos para a Psicanálise

41.     J. Laplanche, "Três acepções da palavra inconsciente"

42.     J. C. Calich, "Catastrophe et Traduction", in C. Dejours e F. Votadoro (org.), La Séduction a L'Origine: L'œuvre de Jean Laplanche.

43.     J. Laplanche, "Três acepções da palavra inconsciente"; J. C. Calich, "Pour ‘faire travailler' la topique laplanchienne"; J. C. Calich, "Catastrophe et Traduction", in C. Dejours e F. Votadoro (org.), La Séduction a L'Origine: L'œuvre de Jean Laplanche.

44.     J. Laplanche, "Três acepções da palavra inconsciente".

45.     Ver figuras em J. Laplanche, "Três acepções da palavra inconsciente".

46.     Para um detalhamento de hipóteses psicopatológicas sobre estados psicóticos na tsg, ver J. C. Calich, "Catastrophe et Traduction", in C. Dejours e F. Votadoro (org.), La Séduction a L'Origine: L'œuvre de Jean Laplanche. (op. cit.). 

47.     S. Freud, "Sobre a Interpretação das Afasias, estudo crítico", in ocsf

48.     A. R. Damásio, O erro de Descartes: emoção, razão e cérebro humano; O mistério da consciência: do corpo e das emoções ao conhecimento de si

49.     A. R. Damásio, O erro de Descartes: emoção, razão e cérebro humano, p. 238.

50.     A. R. Damásio, op. cit., p. 237.

51.     A. R. Damásio, O mistério da consciência: do corpo e das emoções ao conhecimento de si, p. 239. Grifo deste autor.

52.     A. R. Damásio, op. cit., p. 239. Grifo deste autor.

53.     A. R. Damásio, op. cit., p. 221. Grifos deste autor.

54.     A. R. Damásio, O mistério da consciência: do corpo e das emoções ao conhecimento de si; "Consciousness: An overview of the Phenomenon and its possible neural basis (An evolutionary perspective)", in S. Laureys e G. Tononi, The Neurology of Consciousness: Cognitive Neuroscience and Neuropathology.

55.     Ver também J. C. Calich, "Catastrophe et traduction", sobre uma concepção imaginária de integração da tsg e a atividade tradutiva de base biológica e uma teoria para a psicopatologia, fundamentalmente as psicoses.



Referências bibliográficas

Calich J. C. "Catastrophe et Traduction". Apresentado no Colloque de Cerisy-la-Salle: La Séduction a L'Origine: L'œuvre de Jean Laplanche, jul. 2014 e publicado em Dejours C. et Votadoro F. (org.), La Séduction a L'Origine: L'œuvre de Jean Laplanche. Paris: PUF, 2016.

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Derrida J.; Roudinesco E. (2004). De que amanhã... diálogos. Trad. André Telles. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor.

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____. (2006). L'Après-coup. Paris: PUF.

____. (2015). Os fracassos da tradução. In Sexual. Porto Alegre: Dublinense.

____. (2015). Pulsão e Instinto. In Sexual. Porto Alegre: Dublinense.

____. (2015). Sexualidade e apego na metapsicologia. In Sexual. Porto Alegre: Dublinense.

____. (2015). Castração e Édipo. In Sexual. Porto Alegre: Dublinense.

____. (2015). O crime sexual. In Sexual. Porto Alegre: Dublinense.





Abstract
Jean Laplanche proposes a new theoretical model based on the New Foundations to Psychoanalysis, where a translating activity is the core concept. He states he offers an “integrative” model, without having it explicitly at all levels of integration made possible through his conceptions, as well as not specifying the nature of this translating activity. The goal of this article is to propose further reflections about the translating activity, conjecture on its origin and the possible fields of integration of this new theoretical enunciation.


Keywords
Jean Laplanche; General Seduction Theory; Fundamental Anthropological Situation; Psychic spaces; translating activity; evolution.

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 TEXTO

A atividade tradutiva da Teoria da Sedução Generalizada de Jean Laplanche

The activity in translation in Jean Laplanche’s Theory of Generalized Seduction
Jose Carlos Calich Calich

Jean Laplanche propôs um novo modelo teórico baseado em "Novos Fundamentos para a Psicanálise". No centro de sua formulação está uma "atividade tradutora", que, por sua solicitação, foi traduzida para o português como "atividade tradutiva", numa tentativa de afastá-la do uso corrente. Afirma que seu modelo é "integrador" sem que tenha explicitado os níveis de integração possibilitados por suas concepções, assim como não especifica a natureza desta atividade "tradutiva".

Tendo em vista os objetivos deste artigo, é recomendado ao leitor não informado sobre a teoria de Laplanche que consulte as fontes mencionadas, uma vez que um razoável número de conceitos é aqui apresentado, porém não detalhado. 

Trajetória 

Jean Laplanche era um reconhecido filósofo, professor da Universidade Sorbonne - Paris VII, antes de começar sua análise pessoal com Jacques Lacan e sua formação psicanalítica na Sociedade Psicanalítica de Paris. Alguns anos depois, fruto do que se pode conjeturar como parte de uma marcante independência pessoal e da liberdade de pensamento, observável ao longo de sua vida e obra, rompe ambas as relações e, após a passagem com outros colegas pela Sociedade Francesa de Psicanálise, participa da fundação da Associação Psicanalítica da França (APF). Esta última tem trajetória marcada pela busca de liberdade com rigor do pensamento psicanalítico e por procurar constituir uma estrutura institucional que não favorecesse os vínculos de poder, a feudalização ou o doutrinamento, os quais estão sintetizados nas frases da página "História", em seu site da internet: 

 

Assim, isso que foi presente e forte no gesto fundador da APF se continuou longamente e, até os dias de hoje, produz seus efeitos: aqueles de uma decisão fundada sobre a ética e o desejo. Porque seu gesto de fundação e ruptura foi um gesto de exigência de liberdade.

 

Em sua formação filosófica na prestigiosa École Normale Supérieure de Paris, Laplanche foi discípulo direto e influenciado de maneira decisiva por Jean Hyppolite, Maurice Merleau-Ponty e Gaston Bachelard. Este último dedicado, particularmente, à compreensão da construção do objeto científico e à filosofia da ciência. A característica mencionada de independência, de liberdade de pensar e do sólido fundamento filosófico/epistemológico instrumenta de forma crucial sua leitura de Freud e permite que desenvolva um método de investigação, em muitos pontos, semelhante ao que anos depois ficou conhecido como "desconstrução", através de Jacques Derrida. 

Laplanche, em uma expressão que se tornou afamada em seus escritos, propunha-se a "colocar Freud a trabalhar". Questionar todos os conceitos que lhe pareciam sob tensão, causar inquietudes, principalmente aqueles que foram resultados de "bifurcações no pensamento freudiano". Assim, não aceita ou cria justificações apenas por argumento de autoridade ou por uma ideia estar minuciosamente explicada na forma de uma exegese. Ao usar como referência e não como reverência, leva os conceitos freudianos de volta à sua origem, trabalha-os até o limite de, como a madeira que trabalha, "ouvir-se seu ranger" para buscar o contexto em que foram criados, a que necessidade atendiam, seu contexto filosófico-científico-cultural, e outras circunstâncias de seu surgimento.

Através desse método (ou prática, como preferem alguns epistemólogos), Laplanche foi encontrando vários pontos na obra de Freud que ficaram inconclusos, foram "desviados" de sua concepção original, permaneceram incoerentes com os princípios de sua formulação ou provocaram falsos equilíbrios na teoria. Esses afastamentos dos pontos de origem, segundo Laplanche, foram promovendo uma visão cada vez mais centrada do inconsciente ("ptolomaica", ao contrário da "revolução copernicana" com o descentramento do inconsciente que o próprio Freud descreve e se propõe a desenvolver), acompanhados de uma versão mais biologizante da pulsão e da sexualidade. A preocupação de Laplanche passou a ser uma reformulação dos fundamentos teóricos que envolveu progressivamente a integração da primeira e da segunda tópica freudiana, abrangendo tanto o universo da patologia (neurose, psicose, estados borderline, perversão, patologias de insuficiência simbólica) quanto uma dinâmica da "normalidade", servindo de base para o método, permitindo uma mais robusta teoria da técnica.

Inicialmente, o mais destacado desses pontos foi o abandono da teoria da sedução por Freud e, com ele, toda uma teoria do trauma e a participação de outra pessoa (alteridade, Der Andere) na constituição do inconsciente, a "outra coisa, o estranho dentro de nós" (Das Andere).

Parte desta longa, detalhada e meticulosa reflexão é desenvolvida por Jean Laplanche em seus seminários sobre a obra de Freud, na Sorbonne, na sua nova disciplina, agora psicanalítica, que passou a ser chamada de Ciências Humanas Clínicas. Esses seminários foram transcritos na coleção "Problemáticas" (sete volumes, seis dos quais traduzidos para o português), que discutem com rara profundidade diversos dos pontos cruciais, polêmicos da obra freudiana. Em 1987, publica a síntese de seu longo, sistemático e ininterrupto diálogo com Freud, propondo, então, Novos Fundamentos para a Psicanálise assentados em sua "Teoria da Sedução Generalizada" (TSG). Esta, dito de modo realmente muito esquemático, centra a origem do psiquismo no recebimento, pelo infans, de uma mensagem sexual dos adultos cuidadores (que o autor conceitua como sedução originária). Por não ter códigos de tradução nem para os "adultos" emissores - sendo, portanto, enigmática - estimula uma "atividade tradutiva" no interior do pequeno ser humano. Dessa forma, cria os espaços psíquicos e um significado para aquilo que é enigmático. A continuação perseverante dessa atividade tradutiva do sexual do outro faria com que o ser humano tendesse a traduzir e historizar, tornando-o, assim, permanentemente, narrativo, interpretante e "teorizante". Essa condição seria uma realidade originária para todos os seres humanos, portanto, uma "Teoria da Sedução Generalizada", em uma linha diversa à de Freud, que se manteve em uma "Teoria da Sedução Restrita", ligada a um nível estreitado da realidade, o da sedução factual, vinculado à psicopatologia da histeria e posta em segundo plano em 1897.

Laplanche segue em seus múltiplos desenvolvimentos, aprofundamentos, precisões e modificações de 1986 a 2007, com diversas publicações suas e, agora, de colegas que passam a acompanhar suas reflexões. Em 2003, publica no Brasil, na Revista da Sociedade Psicanalítica de Porto Alegre, um artigo original fazendo um primeiro detalhamento da relação da atividade tradutora com os espaços "da alma humana", resultando em uma nova tópica, baseada em dois espaços inconscientes e um pseudoinconsciente. Essa formulação tópica dá conta da sedução originária, da criação dos espaços psíquicos, das estruturas neuróticas e não neuróticas, da relação da tradução com os mitos e símbolos familiares geracionais, regionais e culturais. Laplanche introduz nesse texto um complemento basilar à Teoria da Sedução Generalizada, a "Situação Antropológica Fundamental", que permite uma teoria da universalidade e inevitabilidade da sedução originária e da atividade tradutiva. 

Em 2006, esse artigo é utilizado como tema da Revista Psychiatrie Française, em homenagem aos 80 anos de Jean Laplanche, quando dez psicanalistas são convidados a discutir a ampliação de sua teoria e a nova tópica por ele formulada. A cada um dos artigos, Laplanche escreveu uma resposta/comentário nessa mesma publicação, introduzindo precisões, retificando, explicando, apoiando seus comentadores ou deles discordando, especificando ainda mais seu modelo tradutivo.

Também em 2006, decide publicar L'Après-coup, o sexto volume da coleção Problemáticas, em que detalha com aprofundamento a atividade tradutiva. Essa obra teve uma surpreendente defasagem em relação aos seminários da Sorbonne que lhe deram origem, que datavam de 1989-1990, ou seja, 16 anos, o que nunca tinha ocorrido com qualquer outro escrito seu. A hipótese mais provável, segundo o editor das traduções americanas das obras de Laplanche, Jonathan House, é que nosso autor tenha deparado com uma hipótese ainda em construção, exatamente sobre a natureza da atividade de tradução, hipótese esta ainda incompleta, o que teria retardado sua publicação. Retomaremos esse tema adiante.

Em 2007, publica seu último livro, Sexual, traduzido para o português em 2015, quando o artigo formador e transformador "Três acepções da palavra inconsciente" é publicado em francês, pela primeira vez em um livro de Laplanche. Nesse livro, faz vários avanços sobre suas contribuições metapsicológicas (sintetizadas no capítulo "Incesto e sexualidade infantil") e sobre algumas consequências das reformulações decorrentes da atividade tradutiva de sua "Teoria da Sedução Generalizada" (principalmente nos capítulos "Gênero, Sexo e Sexualidade" e "Castração e Édipo como códigos e esquemas narrativos"). Em vários momentos desse livro diz que aquilo que ainda resta do muito a ser desenvolvido sobre a TSG deverá ser feito por aqueles que no futuro se dedicarem a seu estudo, chamando atenção para os aspectos ainda incompletos da teoria.

A escolha do termo "Tradução" ("tradutivo")

O termo "tradução" ("tradutivo"), cuidadosamente escolhido por Laplanche, provoca um tipo de incômodo inicial por sua tensão com seu sentido coloquial, que, como já dito, tenta diminuir com o uso do galicismo "tradutivo". Quase de imediato, o associamos à busca de um significado já existente, necessitando apenas ser "revelado", "transposto", "traduzido" a outro idioma. Sentidos que não se adequam à Teoria da Sedução Generalizada. 

Laplanche se baseia na ideia e no termo tradução, utilizado por Freud na carta 52 a Fliess datada de 6 de dezembro de 1896. Nessa carta, Freud aborda o processo de estratificação do material mnésico, sujeito de tempos em tempos a um rearranjo, uma retranscrição. Prossegue enfatizando que esses registros sucessivos representam "conquistas psíquicas" de fases consecutivas da vida. E que, "Na fronteira entre duas dessas fases é preciso que ocorra ‘uma tradução' do material psíquico" (grifos deste autor).

Descreve, então, um ‘trabalho tradutivo' como responsável pela expansão do psiquismo: "O fato de haver mais fases psíquicas se enquadraria perfeitamente em minha pressuposição de haver ainda mais ‘outras traduções e inovações do aparelho psíquico'" (grifos deste autor). E acrescenta uma subordinação da repressão e das neuroses a falhas da tradução: 

 

Explico as peculiaridades das psiconeuroses através da suposição de que essa tradução não se tenha dado no tocante a uma parte do material, o que acarreta certas consequências. [...]. ‘Uma falha de tradução eis o que se conhece clinicamente como recalcamento'. O motivo disso é sempre a liberação do desprazer, que seria gerado por uma tradução; é como se esse desprazer provocasse um distúrbio do pensamento que não permitisse o ‘trabalho de tradução' (grifos deste autor).

 

Segundo Laplanche , o modelo tradutivo de expansão do psiquismo não pode evoluir como teoria em Freud, por vários motivos, iniciados pelo próprio abandono da "Teoria da Sedução" e pela falta de "algo a traduzir" desde a origem, como explicitado na carta 52 a Fliess. 

 

É o esquema da carta 52 que aparece aqui, como uma espécie de programa, mas lembremos que, de início, deixava de maneira enigmática (e ninguém fez face a isso), o lu­gar vazio para a primeira inscrição chamada de Wz, ou seja, "signo de percepção": Com efeito, como, rigorosamente, a pura percepção pode fornecer signos? Se se trata apenas da percepção dos objetos inanimados, esta só fornece, na melhor das hipóteses, índices. Se se tratasse apenas de índices, de traços puramente factuais, de resquícios sem intencionalidade semiológica, como poderiam eles se propor uma primeira tradução pelo sujeito?

 

O modelo tradutivo é assim denominado e repetidamente aludido por Laplanche como sendo o cerne da Teoria da Sedução Generalizada. Uma "teoria tradutória do inconsciente", onde a criação de um psiquismo estaria na dependência da tradução das mensagens sexuais enigmáticas, cujo resultado seria o da criação de espaços no interior do indivíduo e a criação de significados, inicialmente das mensagens sexuais enigmáticas e, pela arborização do sistema de tradução/significação, a consequente e permanente historiagem, "narrativização", interpretação e teorização de toda experiência emocional pessoal, interpessoal ou transpessoal. Ou seja, a criação de um psiquismo se daria a partir da ativação do sistema tradutivo e do trabalho de tradução, quando a toda experiência emocional do indivíduo consigo mesmo ou com os outros é atribuído um significado e um contexto.

A etimologia da palavra tradução ofereceu um suporte fundamental a Laplanche (Comunicação pessoal, 2006) ao escolhê-la como a mais precisa para descrever o movimento de passagem de um lugar a outro no interior do indivíduo. A palavra traduzir (com a mesma origem para o português, francês ou inglês), segundo o Novo Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, provém do latim trad?co e transd?co,is,xi,ctum,c?re e tem como primeiro sentido "levar além, conduzir de um lugar para outro". Na etimologia francesa, a evolução da palavra passa por "entregar", "levar pela mão para o outro lado", "transpor para um novo universo"; "remover o corpo ou os restos de um santo para um novo lugar", que, com o tempo, foi ganhando a ideia de "transferência de significado" até chegar ao "transpor para outra língua".

Finalmente, diz Laplanche em 2003, "A noção de tradução é coerente com a concepção do ser humano como ser de linguagem e de comunicação e vem proveitosamente se substituir aos esquemas mecânicos utilizados na teoria clássica do recalcamento". 

Portanto, o termo "tradução" seria o mais representativo do movimento de construção de um sentido individual, subjetivante. A mensagem enigmática no interior do "pequeno ser humano" seria "tomada pela mão" para criar "um novo universo" (o psiquismo) com novas possibilidades de articulação e de registro, com suas propriedades conscientes e inconscientes. Portanto, aquilo que vem do outro, para individuar nossas experiências emocionais e buscar construir significados àquilo que percebemos da intimidade do outro, ou seja, a criação do "humano do humano".

A Situação Antropológica Fundamental

Em 2003, como já mencionado, Laplanche introduz o conceito de "Situação Antropológica Fundamental" que vem complementar o de "Sedução Generalizada", estruturando, psicanalítica e epistemologicamente, seu "originário" e ampliando o poder heurístico de sua teoria.

Nesta situação originária estão: "um pequeno ser humano" - sem espaços diferenciados da alma, portanto sem inconsciente sexual; os outros seres humanos cuidadores - cada um com uma trajetória de repressões, dissociações, desmentidas e forclusões de seu "Sexual", já com seus espaços "da alma" individualmente constituídos e imersos em um ambiente cultural repleto de mitos, de símbolos, de figuras dessignificadas de linguagem, além de uma comunicação pré-verbal contaminada pelo verbal .

Embora não tenha ainda um psiquismo, o pequeno ser humano tem várias capacidades decorrentes de suas aptidões mentais e instintivas. Dentre elas está a capacidade comunicacional de receber um sem número de mensagens de outros seres humanos. Poder-se-ia dizer, no intento de clarear um pouco mais, que o pequeno ser humano é um sistema comunicacional extensamente aberto predominantemente receptor de mensagens, porém com capacidade de também emitir mensagens.

Laplanche destaca, com ênfase, em diferentes situações o papel de reciprocidade do apego, portanto sua característica comunicacional e sua diferença com o psíquico/sexual. Para o autor, no terreno do domínio do autoconservativo (apego aí incluído) as mensagens têm códigos inatos de recepção (como para os mamíferos em geral). Portanto, sem criar uma "exigência de tradução" e com isso sem ativar o sistema tradutivo.

Já no domínio do sexual, não há códigos de tradução disponíveis. Nem "os outros emissores" os têm, nem o acervo cultural, a memória extracorpórea e, obviamente, nem o pequeno ser. Não sabemos o significado das mensagens enigmáticas em nosso interior, que foram incompletamente traduzidas, nossos desejos sexuais polimorfo-perversos. Podemos até "aceitá-los" como "naturais", o que quer que essas expressões possam significar no contexto de desejos polimorfo-perversos, mas não temos ou alcançamos seu significado e a turbulência do sistema do pequeno ser provoca, ativa o sistema tradutivo, uma "exigência de significação", baseada em um desequilíbrio econômico:

 

[...] Assim, a ideia de tradução, Übersetzung, já proposta na carta 98 vem substituir aqui, de alguma forma, o ponto de vista puramente econômico do Projeto para uma Psicologia Científica, mas sem removê-lo. Há passagens que mostram que mesmo uma interpretação econômica da ‘necessidade de traduzir é possível. Isto quer dizer que a necessidade mesma de traduzir deve ser explicada em termos fisicalistas'. Para entrar em mais detalhes na ideia de Freud, ‘a necessidade de traduzir' tem algo a ver com a tendência de "equalização quantitativa". A tendência de tradução pode ser deduzida da tendência do aparelho neural para igualar as quantidades de excitação nele. 

 

Desse modo, a "Situação Antropológica Fundamental" propõe uma dissimetria estruturante. Os "adultos" humanos têm seu "Sexual" e seu inconsciente sexual, e o pequeno não. Diz Laplanche que esses desejos polimorfo-perversos do "Sexual" (sexual infantil) dos "adultos" vão ser reativados no contato com o pequeno ser. Isso significa que os adultos têm, de modo diversificado, desejos sexuais polimorfo-perversos pelo pequeno ser, pelos bebês e crianças humanas. Isso não significa atuação em proporções patológicas desses desejos, ainda que possa ocorrer em situações de perversões clínicas, interessante e detalhadamente abordadas em "O crime sexual".

Esse desejo sexual é comunicado (sem consciência do "adulto" emissor), junto com ("por apoio") as mensagens autopreservativas ao pequeno ser, mas, por não terem, então, códigos para tradução são vividas como um "enigma". Essas mensagens enigmáticas conscientes/pré-conscientes comprometidas pelo inconsciente do "adulto" são recebidas, como qualquer desejo sexual, pelo corpo do receptor. Não são, por sua natureza intrínseca e também pela dissimetria, mensagens de inconsciente para inconsciente, assim como não são intersubjetivas (o pequeno ser ainda não é um "sujeito").

Uma vez no corpo do pequeno humano, essa excitação que provoca uma "desorganização no sistema" tem uma urgência de encontrar um "elemento estruturador", um "formatador". Não se trata aqui de seguir o exemplo do instinto que, pelo aumento do estímulo, vai em busca da descarga ou da quiescência, mas sim de um outro modelo que cria uma articulação, uma "estruturação progressiva":

 

Mas não é de maneira alguma a cópia do inconsciente adulto, por causa do duplo "metabolismo" que o sexual sofreu neste percurso: deformação na mensagem comprometida no adulto e depois, na criança receptora, ‘trabalho da tradução que remaneja completamente' a mensagem implantada.

 

Esse modelo do acúmulo, ao contrário da descarga, é o modelo que Laplanche destaca como sendo o próprio da pulsão sexual, ‘criada a partir do trabalho de tradução'. A mensagem enigmática agora no corpo do pequeno ser encontra aquilo que já está lá, uma capacidade tradutiva. Esse "já está lá" é uma dedução pessoal baseada em diferentes reflexões e comunicações de Jean Laplanche. Se a "Situação Antropológica Fundamental" é universal e inevitável e o modelo está centrado em uma atividade tradutiva, me parece o único caminho possível o de que essa capacidade tradutiva faça parte da "Situação Antropológica Fundamental".

Em meu entendimento, já expressado em trabalho anterior, a capacidade tradutiva é de natureza biológica, baseada em alterações evolutivas dos hominídeos, acompanhando a modificação das estruturas cerebrais. Provavelmente, seja a parte mais fundamental que transformou evolutivamente o ser humano em humano. Laplanche, como já foi repetidamente aludido, era um estudioso meticuloso que ia a fundo em todos os temas que desenvolvia. Escolhia os termos que definiam seus conceitos muito cuidadosamente, como vimos com o próprio termo "tradutivo". Não penso que possa ter sido diferente com a escolha do termo "Antropológica". Interessou-se intensamente pela evolução humana e fez várias alusões aos conceitos a ela relacionados em diferentes momentos de sua obra. Assim, creio que escolheu "Antropológica" para referir-se ao aspecto comum a todos e intransigente da conjunção originária (adulto, infans, cultura, atividade tradutiva), mas também para remeter ao evolutivo e à origem. Em conversa pessoal (Comunicação pessoal, 2006), esteve de acordo com a ideia de que a atividade tradutiva estava ligada à evolução da espécie humana e seu fundamento, mas não avançou em seu detalhamento.

Além disso, na citação acima sobre o aspecto econômico da atividade tradutiva, afirma: "Isso quer dizer que a necessidade mesma de traduzir deve ser explicada em termos fisicalistas". O que no ser humano pode ser chamado de fisicalista que não tenha natureza biológica?

Essas conjecturas dão sustentação à hipótese de Jonathan House, mencionada acima, de por que não ter publicado antes o livro L'Après-coup, e quem sabe o motivo do trajeto incomum, dentre outros fatores, da publicação de "Três acepções da palavra inconsciente na TSG". Talvez, com todos esses indícios, estivesse diante da hipótese da natureza da atividade tradutiva, mas com fundamentação ainda incompleta.

A atividade tradutiva e a criação dos espaços psíquicos

Como visto, a mensagem sexual enigmática implantada no corpo do pequeno humano promove uma exigência de tradução e estimula a atividade tradutiva. Enquanto nesse estado é um estímulo ainda desprovido de representação, um "espinho" não significado, ela tem um conteúdo não conhecível. Laplanche diz mais: a mensagem enigmática não conhecível é uma frase, não uma palavra. 

O iniciar da atividade tradutiva produz as primeiras imagens, descritas no modelo freudiano como representação-coisa. Portanto, um conjunto aberto de imagens, sem forma definida, com propriedades de associação metonímica (semelhança, proximidade, parte pelo todo, etc.), que podem, porém, ser nominadas (pela mesma atividade tradutiva) e ser utilizadas em processos mentais lógicos (dedutivos, por exemplo) como elementos concretos. Como a proteção do consciente aqui é muito frágil, podem exteriorizar-se com certa facilidade.

A sequência da atividade tradutiva vai em busca de um auxílio na complexização da imagem e de suas propriedades, visando ao equilíbrio do sistema. Encontra, então, a informação veiculada pelos mitos, símbolos e outras figuras da linguagem, inclusive palavras dessignificadas, do presente do grupo familiar e transgeracionais, do contexto cultural, da época, que Laplanche nomina o "pseudoinconsciente do mito-simbólico", que podem auxiliar ou perturbar o trabalho tradutivo. Esse encontro da mensagem enigmática com os elementos do mito-simbólico cria, simultaneamente, o pré-consciente e o inconsciente "encravado". A exemplo do aparelho freudiano, o primeiro é o lugar do encontro entre a representação-coisa (mensagem enigmática implantada), o afeto e a palavra (do pseudoinconsciente do mito-simbólico), criando através da atividade tradutiva a representação-palavra ("mensagem parcialmente traduzida"). O segundo espaço, o do "inconsciente encravado", é criado pela separação entre diferentes. O produto do encontro entre mensagem enigmática, atividade tradutiva e pseudoinconsciente do mito-simbólico cria a "mensagem parcialmente traduzida", que se separa da mensagem enigmática ("coisa"), radicalmente não traduzida, à espera de tradução ou que perdeu total ou parcialmente a tradução.

Essa separação vertical será fundamental para entender uma das integrações que Laplanche propõe. Um modelo que sirva para a neurose, a perversão e a psicose ou estados borderline, o psicossomático, que albergue o "não representado", o transgeracional, os elementos culturais: quanto maior o espaço do inconsciente encravado, maior a patologia não neurótica; quanto maior o espaço do inconsciente reprimido, maior a patologia neurótica.

Do mesmo modo, a ideia de que algumas mensagens traduzidas perdem sua tradução, no todo ou em parte, permite a inclusão do "negativo" em um único modelo integrado.

Uma vez sob essa ação transformadora em imagens com "forma", limitadas pela palavra, como sugere Freud no texto sobre afasias, elas podem ser articuladas, com propriedades metafóricas, favorecendo sua arborescência e a constituição da noção de identidade. Aquelas mensagens parcialmente traduzidas vão evoluir à consciência, ou serem utilizadas pelo pré-consciente para seu trabalho, ou vão ser recalcadas e mantidas inconscientes, pela intolerância a seu conteúdo. O resíduo não traduzido das mensagens parcialmente traduzidas será também mantido no inconsciente recalcado e Laplanche as considera os "objetos-fonte da pulsão", que manteriam o estímulo à atividade tradutiva ao longo da vida e seriam responsáveis pela permanente atividade narrativa, interpretante, historiadora do ser humano. Essa coexistência de elementos "pulsionais" com conteúdos recalcados auxilia a integrar a primeira e a segunda tópica freudiana, uma vez que é ao mesmo tempo uma fonte pulsional (nesse aspecto, semelhante ao "Id") e um local de manutenção dos conteúdos inconscientizados (nesSe aspecto, semelhante ao inconsciente da primeira tópica freudiana).

Exemplo de um modelo neurológico e sua relação com a atividade tradutiva 

Ainda que o estudo detalhado desse tema esteja além do escopo e do espaço deste artigo, apresento brevemente, à guisa de exemplificação, uma possível relação entre a atividade tradutiva e os modelos do neurologista Antonio Damásio sobre a construção da consciência e da subjetividade humana.

Antonio Damásio, neurocientista e escritor bastante conhecido e reconhecido, desenvolveu, desde os anos 1990, um modelo neurobiológico baseado em estudos de imagem e em patologias neurológicas para a consciência e a subjetividade humana (neurobiologia do si mesmo/self), sintetizado nas duas obras aqui utilizadas como referência. Seu modelo tem como premissa a necessidade de uma interação complexa entre diversas redes neuronais para poder criar o sentimento de si mesmo. 

O ponto de partida é a relação do organismo com o "objeto", definindo-o como qualquer estímulo que afete o cérebro: uma música, uma emoção, um rosto, uma dor em algum lugar do corpo, ou qualquer outro. Uma atividade que se inicia nos córtices sensoriais iniciais (incluindo os córtices somatossensoriais), regiões de associação cortical sensorial e motora e núcleo subcortical (especificamente a região do tálamo e gânglios basais). A função básica dessa atividade é a criação de imagens do "objeto", associadas à criação de imagens das respostas do próprio organismo a esse objeto e à "produção de imagens do organismo no ato de perceber e responder a um objeto". 

Segundo o autor, essa primeira atividade não usa a linguagem nem, portanto, narrativas para a construção do sentimento de si mesmo. Seriam vivências pré-verbais de subjetividade. O conjunto dessa atividade cria "mapas" da relação com o próprio corpo (tendo a pele como uma fonte destacada de estímulos), e essa "cartografia" jamais chegará à consciência, ou seja, serão representações básicas inconscientes do corpo. Esse proto-self (ou self-neural) será modificado pelas primeiras relações dos objetos com o corpo também sem interferência da linguagem e criará o Self (ou si mesmo) nuclear. 

Esses dois níveis de atividade inicial são integrados através da consciência nuclear, ou seja, da criação de imagens da representação da modificação do self-nuclear e do proto-self na experiência com o "objeto" e da observação dessas relações do objeto com o corpo. Essas experiências comporiam as emoções. O nível seguinte seria o self-autobiográfico, em que a função da linguagem e da recuperação da memória exerce papel central. A noção de consciência ampliada complementa o entrelaçamento entre os níveis de funcionamento do si mesmo. Nesta, o papel da narrativa, da construção de uma identidade, da personalidade, portanto de uma consciência da individualidade e da singularidade são o cerne. 

Damásio diz que no self autobiográfico e, consequentemente, na consciência ampliada há uma "tradução verbal irrefreável" que é "própria da natureza do ser humano". Conclui que o cérebro é um exemplar contador de histórias, o resultado de uma teia de relatos que amplia reciprocamente, e que, a cada momento, desencadeia na consciência "fluxos de interpretantes". Refere que "contar histórias precede a linguagem", e que é "afinal, uma condição para a linguagem".

O autor, em mais de uma publicação, aborda o aspecto evolutivo destas zonas cerebrais que permitem essa atividade de "consciência subjetivante". 

A atividade semiótica de criação de significados para experiências com "objetos" e com o "corpo como objeto", no modelo de Damásio, está nominada como atividade "tradutora"... "irrefreável", "própria da natureza do ser humano", que "permanentemente constrói narrativas", produz "fluxos interpretantes" constantes, e o contar histórias precede a linguagem e é condição para a ela.

A semelhança com o modelo de Laplanche me parece mais do que no nível da fenomenologia e da nominação. Se Damásio concordaria que a atividade tradutiva é a mesma na consciência nuclear que na consciência ampliada (nesta o acréscimo seria função auxiliar da linguagem e não outra função) é pergunta que aproximaria definitivamente os modelos. A afirmação de que o "contar histórias precede (e é condição para) a linguagem" me parece quase decisiva. Laplanche afirma que a linguagem (simbólica) é tornada possível pela atividade tradutiva. Na consciência nuclear seria a "tradução" de experiências sensoriais em imagens singulares, com produção de emoções, um núcleo pré-verbal da subjetividade. Enderecei a pergunta ao autor juntamente com outra sobre a "mensagem sexual" como ativadora do sistema córtico-sub-cortical-talâmico-gânglios da base. Se a resposta for afirmativa com relação à primeira pergunta, a hipótese de que a atividade tradutiva tem uma base biológica e evolutiva parece ganhar corpo, oferecendo mais um fundamental potencial integrador, este entre o modelo psicanalítico, a biologia e, consequentemente, a neurociência.


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Percurso é uma revista semestral de psicanálise, editada em São Paulo pelo Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae desde 1988.
 
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