EDIÇÃO

 

TÍTULO DE ARTIGO


 

AUTOR


ÍNDICE TEMÁTICO 
  
 

voltar
voltar à primeira página

Resumo
Resenha de Renato Tardivo, Girassol voltado para a terra, São Paulo, Ateliê, 2015, 104 p.


Autor(es)
Fernanda Sofio
é psicoterapeuta, mestranda em Psicologia Clínica pela PUCSP, membro do CETEC.


Notas

[i] M. Merleau-Ponty, O visível e o invisível. São Paulo, Perspectiva, 2000. (Originalmente publicado em 1964).

[ii] R. Piglia, Formas Breves. Barcelona, Anagrama, 2000 (Colección Narrativas hispánicas).

[iii] W. Iser, "The reading process: a phenomenological approach" New literary history, 3, 2, Maryland, EUA, 1972, p. 279-299.

[iv] Encontrei alguns de seus microcontos em livros anteriores,

[v] Fabio Herrmann (1944-2006) era médico e psicanalista. Sua

[vi] Sabemos que na ficção quem escreve é o narrador, não o

[vii] Ruptura de campo é a ação que define a interpretação

[viii] Escrever bem uma psicanálise, uma interpretação psicanalí

[ix] S. Santiago, "Meditação sobre o ofício de criar", Peixe-elétrico, 5, 2016 [revista digital].

[x] P. Meira Monteiro, "Como Falar a Verdade? A Ética da Ficção

[xi] F. Herrmann, "Conclusão: realidade e real na obra freudiana",

[xii] Fabio Herrmann define a ficção mais compreensivamente. "Vamos deixar clara a ideia: ficcional não significa falso,

[xiii] A tese de Piglia, op. cit., se aplica às ficções de Tardivo. Não a desabona o fato de tratar-se de micro e minicontos, as formas mais breves do conto.

[xiv] Crítico literário francês que tratou do tema do erotismo, discu

[xv] H. Osakabe, Fernando Pessoa entre almas e estrelas. São Paulo, Iluminuras, 2013


voltar à primeira página
 LEITURA

Ficções brevíssimas, metáforas de duplicação e o processo criativo

[Girassol voltado para a terra]


Very brief fictions, metaphors of duplication and the creative process
Fernanda Sofio

Com a epígrafe de seu livro, Renato Tardivo anuncia a impossibilidade da tarefa que me incumbe, resenhar seu livro. Cita Merleau-Ponty[i]: "Toda tentativa de elucidação traz-nos de volta aos dilemas" (p. 22-23).

 

É a única dica explícita de seu profundo e múltiplo conhecimento teórico, além da cuidadosa e informativa apresentação de Nelson de Oliveira; as demais encontramos na forma narrativa, na atenção com as palavras. Escritor, crítico de arte e doutor em Psicologia Social, Tardivo tem amplo conhecimento psicanalítico e das artes, entre elas a literária - sobretudo brasileira - e as artes plásticas, o cinema, a fotografia. Embora resenhar de fato seja impossível, essa paradoxal empreitada induz à reflexão, daí que farei uma espécie de comentário-resenha, não propriamente uma resenha.

 

Suspeito que Renato, criador de ficções poéticas, aguarde de seu narrador a transmissão de sentidos que ele ainda desconheça. Desconfio, sobretudo, que seus textos alberguem sentidos impensados.

 

A criação literária como tema
de escrita

El arte de narrar es un arte
de la duplicación [...] (p. 137)[ii]

 

Em Girassol voltado para a terra, é trabalhado de maneira magistral o tema da criação literária, da transposição do que chamamos realidade em ficção, associado ao enigmático processo pelo qual passa um escritor que vira texto, que parindo se duplica, e ao mesmo tempo se reconhece e não se reconhece em seu escrito, sua cria, seu semelhante.

 

Somos arremessados para esse campo de sentidos nas primeiras palavras, cada uma germinada com zelo e cuidado, quando o livro nasce - isto é, se é que ele não nasce nas últimas páginas, ao ficar "completo".

 

Ora, sendo o livro não para ser lido, mas para ser relido, fato é que sua unidade e seus temas (re)nascem muitas vezes. Com alguma ideia do conjunto, é nítido o objeto criação literária sempre à espreita, desde o primeiro, ou desde os três primeiros microcontos: Volta, Borboleta, Metamorfose, esses títulos-metáfora anunciam o que nos aguarda.

 

Volta

Há dias que, de tão reais, dão a volta toda. Viram ficção. (p. 17)

 

Borboleta

O passado desfilava no pincel que a tingia de vermelho. Seu corpo formigava, estalando. A menina voou. (p. 19)

 

Metamorfose

Ela arrancou o texto à unha, enrodilhou-se em suas frases. Envergonhadas, letras escorriam - como lágrimas - das pernas. (p. 20)

 

Poderia terminar aqui o comentário-resenha. Tudo está contido nas palavras de Tardivo. Mas vou procurar dizer algo do que implicam. (Resenhar, resumir, simplificar seria deveras ridículo, o leitor há de concordar comigo.) Vale ressaltar que o pedido de interagir com o texto foi feito pelo próprio narrador: "Recepção/Todo livro é, em certo sentido, uma cadeira vazia." (p. 55). Podemos pensar que Girassol é arte literária no sentido dado pelo crítico Wolfgang Iser[iii]: completa-se, "concretiza-se", ao dialogar com o leitor. A função do leitor, nesse sentido, é fundamental: "A convergência entre o texto e o leitor traz a obra literária à existência." (p. 279). Em poucas palavras: o livro não fala sozinho, nem quer.

 

O gênero literário dessas três ficções, como de tantas outras no Girassol, é inegavelmente o microconto - pensamento abstraído em poesia[iv]. Sua tinta contudo é evidentemente psicanalítica, e já podemos também chamá-las de ficções freudianas, nome cunhado pelo escritor psicanalista Fabio Herrmann[v], ou por um seu narrador desdobrado, como (ele?) nos diz. Fica a ambiguidade: quem fala?[vi]

 

No meu entender, a ficção freudiana é uma forma literária abrangente, que categoriza um sem-número de gêneros literários, sempre e quando formem unidade estética produzida como e a partir da ruptura de campo[vii].

 

Não é à toa que a reencontramos aqui. Entre outras, Tardivo é leitor da psicanálise brasileira, a meu ver vertente de nossa disciplina mais apropriada para se considerar a relação qualidade literária/psicanálises, as psicanálises literárias, como tenho discutido[viii]. Aliás, Tardivo é leitor no verdadeiro sentido da palavra; quando escreve, é notável como transforma os textos que lê (e, quem sabe, neles se transforma).

 

Vamos à ideia do primeiro microconto: "Volta/Há dias que, de tão reais, dão a volta toda. Viram ficção." É um resumo do que o livro nos reserva. De maneira enigmática, Tardivo nos revela que compartilhará suas ficções conosco (seja lá o que o pronome suas que escolhi queira dizer, afinal há mais de uma possibilidade). E as ficções do livro nascem de "tão reais".

 

Essas tão parcas quanto potentes doze palavras tocam temas entrelaçados fundamentais para a crítica literária e também para a psicanálise contemporânea. São: real, realidade (condensados na palavra reais) e ficção. Tardivo (?) os cita, não define. Não explicitamente. Delega esta segunda operação interpretativa, já que a primeira foi da escrita, ao seu leitor. Este pode ser criativo, mas não a ponto de trair a letra do texto. Aceitemos o desafio e ensaiemos: como definir os três termos?

 

Eis uma aspiração recorrente da crítica literária contemporânea. Para citar dois bons exemplos, consideremos uma resenha de Pedro Meira Monteiro, que toca nesses temas, e um artigo de Silviano Santiago[ix]. Meira Monteiro opõe ora real, ora realidade, ora experiencia a ficção e, por exemplo, propõe: "[...] a literatura acontece no espaço entre as imagens e a experiência, ali onde descansa tudo o que a memória não pode recompor senão quando se faz, ou se torna literatura. É preciso contar. Se não há compromisso com a ficção, nada do que se viu pode ser vivido como história"[x]. O compromisso com a ficção, a meu ver, implica transformação do que se conta em unidade estética. Já Silvano Santiago fala da mentira que é tornada verdade poética na literatura e, em particular, na autoficção.

 

Contempladas essas duas análises mais a fundo, posso concluir, talvez contraintuitivamente, que é na psicanálise brasileira que os três termos encontrados na ficção de Renato Tardivo se definem melhor: real como as regras estruturantes do sentido humano a que não temos acesso pela consciência; realidade, não mais em oposição ao prazer ou à fantasia, como poderíamos ler esquematicamente a partir de Freud, pois "afirmar a existência de dois mundos equivale a negar a de um só ou a de muitos" (p. 273)[xi], uma vez que as realidades são tantas quanto os indivíduos que interagem no mundo em que vivemos, e que formam acerca dele perspectivas que se modificam continuamente, mesmo que quase sempre imperceptivelmente; ficção, literária bem entendido, é unidade estética criada pelo escritor[xii].

 

Um conto são duas estórias, ensina Ricardo Piglia[xiii].

É de fato tentador concluir esta resenha sem escrever. Tardivo condensa melhor. Mas vimos que vai contra as regras do jogo e, como já prometi, procurarei comentar também Borboleta e Metamorfose.

 

Borboleta

O passado desfilava no pincel que a tingia de vermelho. Seu corpo formigava, estalando. A menina voou. (p. 19)

 

Metamorfose

Ela arrancou o texto à unha, enrodilhou-se em suas frases. Envergonhadas, letras escorriam - como lágrimas - das pernas. (p. 20)

 

Difícil ler o primeiro título sem pensar em Franz Kafka, imperador das formas breves, cujos relatos impossíveis-possíveis transformaram a parábola enquanto gênero literário. Difícil também não pensar no filósofo francês Merleau-Ponty, para quem o mundo se dá a conhecer pelo corpo; nosso saber está no corpo. O texto referido nesta ficção de Tardivo nasce das pernas, mais comumente associadas ao sexo que ao pensamento. Paralelamente, em Borboleta uma menina se corporifica a partir de um corpo anterior que formigava. O processo é da carne e é extremo e vivo. Não à toa, a menina foi tingida de vermelho, cor associada à agressividade, à sexualidade e à vida.

 

Também aprendemos com Merleau-Ponty que o corpo não equivale a suas partes; é inteiro. Havia tinta vermelha, que foi trabalhada a pinceladas, depois houve o corpo, depois a menina. Quando uma coisa se transforma na outra é absolutamente misterioso. Semelhantemente, é das pernas que as letras se soltam, escorrem em Borboleta - assim como as lágrimas se formam, onde antes não havia, o texto brota do corpo. O sangue, as unhas, as lágrimas sinalizam o luto que acompanha o processo criativo, nesta possibilidade de ler Tardivo.

 

Havia o nada; depois houve o texto. Também é uma possibilidade de leitura, que toca no mistério da criação, o mistério da vida, por exemplo como lemos no Gênesis bíblico. O tema da criação em Tardivo permite tal extrapolação.

 

Em Borboleta, o passado "desfila no pincel", o que poderia trazer alguma pista de qual seria a matéria-prima da criação: o passado. Mas o passado se foi e não é mais, já diagnosticava Santo Agostinho; e as psicanálises cada vez mais mostram que ele é passível de criação. Estofo sem substância, não possui objetividade, estabilidade. E está em constante mutação.

 

Mas cria uma menina. Isto é, alguém que comanda o pincel se vale do passado para fazê-lo. No entanto, no passado, antes da narrativa, tampouco havia o narrador.

 

O livro nos diz que o après-coup sim pode ser descrito: "Recalque/Todo escritor é feito das palavras que esquece." (p. 51) Temos um escritor. O que dele nasceu já são palavras esquecidas, as "borboletas-meninas". E o escritor as esquece. Temos um escritor?

 

O Merleau-Ponty de Tardivo é freudiano. E talvez ecoe Bataille[xiv], tomados os momentos de criação como fagocíticas: o uno se duplica. Os rastros desse Merleau-Ponty sui generis se observam em diversos momentos. Há no mínimo duas estórias movediças em cada texto, como nos que lemos juntos: a borboleta é a história da menina. A menina, metamorfose do escritor. Suspeito que há mais.

 

Linha de chegada

Perto do momento em que o livro se conclui, em suas penúltimas palavras, encontramos a ficção - um pouco menos breve, desta vez um miniconto, não mais um micro - que recebe o título Renascido (p. 95). É uma espécie de tradução torta, literária, do primeiro nome do protagonista da narrativa e de Tardivo, ambos chamados Renato. Agora, implicado no nome há um renascer. Estamos no fim do livro, e acontece um renascimento. Uma duplicação? O narrador duplicou-se do autor, o livro também. Já vimos como nascem os textos, processo muito mais complexo que o dos bebês.

 

Aqui é o nome próprio do autor que ecoa a primeira ficção deste livrinho: de tão real, deu a volta toda, virou ficção. De Renato, a re-nato, a Renascido; é a volta. Ora, quem dá a volta toda recua ao lugar de origem. Mas que já não é o lugar de origem. Real/realidade e ficção se encontraram: o mesmo e o diferente estão ao costado.

 

A ficção Renascido, de pouco mais de uma página, talvez possamos pensar paralelamente ao romance que Meira Monteiro resenha em sua referida análise - Divórcio, do escritor contemporâneo Ricardo Lísias. Digo isso por serem comparáveis as composições de Renascido e de Divórcio. No romance, quinze capítulos correspondem a quinze quilômetros da tradicional corrida paulista, São Silvestre, que por sua vez equivalem à trajetória do narrador, organizada na escrita como o que seriam seus momentos, seus capítulos. Inicialmente, Ricardo, o narrador, perde a pele. Depois vai nascendo outro; outra pele, outra carne, outro eu - carne e ser indivisíveis. O processo fora desencadeado por um baque amoroso.

 

No texto de Tardivo, é o menino Renato de sete anos que se esforça por fazer o trajeto do carro, portão da escola adentro, e que sabe da força que tem sua vontade de correr de volta pro colo dos pais. Sabe e não sabe. "Não compreende o que sente, sabe apenas que é ruim", explica o narrador. Ele não quer voltar. Quer vencer o passado e avançar para o futuro: em uma palavra, quer crescer.

 

No entanto, Renato de sete anos é personagem do livro, não esqueçamos, e a forma como o crescimento, um percurso, pode se dar fora descrita anteriormente. Não é encorajador: "Futuro do pretérito/O único destino àquele que viaja." (p. 57) Nada linear, o crescimento possível se dá "em oito". Avança, faz a volta toda, se entrelaça com a primeira história, o primeiro momento, retorna no sentido oposto, novamente faz uma volta, e segue adiante, a caminho do próximo retorno: eis a trajetória do pequeno Renato.

 

O duplo paradoxo está em ser trajeto invisível, para o sujeito e quem o cerca, e além e apesar disso o crescimento acontecer, imaginamos; "renascer" a cada momento, momento e sujeito sempre novos, um novo imperceptível; como o texto que vai sendo parido e, inexplicavelmente, se torna uma menina.

 

Considerando que a corrida acontece de fato nos dois textos, de Tardivo e de Lísias, não à toa pensamo-los paralelamente. O principal, entretanto, é o tema literário - o que são ficção e nascimento/criação? - a meu ver, espinha dorsal de ambos para a qual a metáfora do caminho de chegada apenas sinaliza.

 

Os dois mostram, não explicam. Qualquer explicitação de dentro de seu campo só pode ser matéria ficcional. Não há pausa da ficção dentro da ficção; ela segue sempre. Explicações quaisquer que porventura se encontrem nas linhas literárias, por diurnas que pareçam, possuem uma verdade que, no máximo, é sempre literária.

 

Assim, novamente leio as palavras do narrador do livro de Tardivo: "Cara e coroa/Há apenas duas coisas que, no espelho, nada refletem: a verdade e a mentira." (p. 39). Eis uma abstração sintética do que me refiro: no âmbito ficcional, na estética literária, verdade e mentira são tornadas indistintas, cada uma deu a volta toda, tornando-se a outra. Qualquer objetividade acerca delas reside para além do campo da ficção, da trama que as sustenta, e assim inexiste literariamente falando. No campo ficcional, verdade e mentira interessam não em si, mas enquanto produtoras de sentido.

 

Hipótese final: Tardivo e Lísias, entre outros, são herdeiros a uma tradição pessoana; criaram uma espécie de narrador-ortônimo contemporâneo, Tardivo em terceira pessoa e Lísias em primeira. As personagens Renato e Ricardo são protagonistas de suas ficções, tendo nomes (e histórias?) análogos aos de seus autores.   

 

Válida ou não a comparação, é de interesse para o texto de Tardivo o que disse Haquira Osakabe do ortônimo pessoano: "[...] que não corresponde necessariamente à pessoa do autor" (p. 18) "Mas [...] afinal o que é o autor senão aquilo que ele mesmo inventa? [...] Nesse sentido falar-se de um ortônimo [...] não passa de uma valise de fundo falso: no conjunto de seres criados por Pessoa, cabe perfeitamente um Fernando Pessoa que não terá identidade mais real que os demais heterônimos [...]. O fundo da valise pode não revelar nada além dessa inquietante multiplicidade de irrealidades tão verdadeiras quanto nós o parecemos ver" (p. 22)[xv].

 

Certa vez, há vários anos e como quem nada quer, perguntei ao Renato, este que algo tem a ver e que não tem a ver com o narrador de seu livro: "Você considera sua escrita Literatura ou Psicanálise?" O tema me é caro. Além disso, eu estava curiosa. Sua resposta foi jocosa: devolveu a pergunta na forma de dedicatória ao seu segundo livro literário, publicado em 2011: "Mais um dilema para nós: Literatura ou Psicanálise?" e autografou. Teve razão em não responder no sentido convencional do que é uma resposta. Ao não fazê-lo, Renato devolvia a autonomia ao seu texto, às suas criações. A criatura de um criador é um filho: tem vida própria e cabe aos pais respeitá-la.

 

Não resenhei o livro de Tardivo, já que a tarefa anunciou-se impossível de largada. Mas pudemos conversar, autorizados pela belíssima forma de escrita e a intrigante escolha de temas poéticos, interpretáveis.


topovoltar ao topovoltar à primeira páginatopo
 
 

     
Percurso é uma revista semestral de psicanálise, editada em São Paulo pelo Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae desde 1988.
 
Sociedade Civil Percurso
Tel: (11) 3081-4851
assinepercurso@uol.com.br
© Copyright 2011
Todos os direitos reservados