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TÍTULO DE ARTIGO


 

AUTOR


ÍNDICE TEMÁTICO 
56/57
Jean Laplanche
ano XXIX - Junho/ Dezembro 2016
230 páginas
capa: Calabi Yau
  
 

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Resumo
Resenha de Dominique Fingerman (org.), Os paradoxos da repetição, São Paulo, Annablume, 2014, 274 p.


Autor(es)
Paulo Antonio de Campos  Beer
é psicanalista, mestre e doutorando no Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (ip-usp). Membro do Laboratório de Teoria Social (latesfip – usp), Filosofia e Psicanálise, e da Sociedade Internacional de Psicanálise e Filosofia (SIPP-ISPP). Editor de Lacuna: uma revista de psicanálise.

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 LEITURA

Repetição, entre retorno e acontecimento

[Os paradoxos da repetição]


Repetition, between return and event
Paulo Antonio de Campos  Beer

Se a repetição pode ser considerada um conceito central para diversos campos e práticas, isso não significa, entretanto, que estabelecer articulações produtivas a partir dos diferentes modos como esse conceito pode ser encontrado seja uma tarefa simples. Muito pelo contrário, pode-se facilmente cair tanto numa pura mesmice, produzida por uma proximidade entre os modos de tratamento do conceito, quanto no seu oposto, pois é possível perder-se na amplitude do tema apresentado. É esse o risco que o projeto organizado por Dominique Fingermann enfrenta com coragem, ao reunir autores de diferentes áreas a partir de um potente articulador para reflexão da temática: o paradoxo presente na repetição.

 

Embora não se trate de uma obra composta exclusivamente por psicanalistas, é possível reconhecer que mesmo nas mais diferentes apresentações a clínica está presente, ainda que indiretamente. Isso se mostra logo no primeiro texto, com Oswaldo Giacoia Junior, cuja articulação entre Nietzsche e Kierkegaard aponta o caráter paradoxal da repetição: o repetido só pode ser percebido enquanto tal uma vez que traz semelhanças com algo já vivido, ao mesmo tempo que apresenta diferenças suficientes para que possa ser reconhecido enquanto algo outro. Se fosse exatamente igual, não poderia ser entendido como outra experiência, entretanto carrega consigo traços incontornáveis de algo que já foi. Nesse sentido, a repetição mostra, já de saída, uma tensão interna, que condensa em si um movimento de retorno ao mesmo tempo que um ponto de desidentificação àquilo que se repete.

 

Desse modo, pode-se pensar, com Nietzsche, a repetição como um modo de subjetivação, de apropriação pelo sujeito daquilo que aparece novamente. Mais que isso, reconhece-se também uma dimensão de escolha, presente na consideração limite de que a vida deveria ser vivida como se cada momento fosse se repetir eternamente, de modo que a repetição seria uma afirmação de algo do mais singular do sujeito: "trata-se de dar à própria vida a forma de uma obra de arte, de tal maneira que se possa viver sem se arrepender de nenhum instante" (p. 23). Nesse ponto Giacoia toma como interlocutor Kierkegaard, a partir do modo como a questão da repetição condensa em si o instante e a eternidade, e se apresenta não somente como eterno retorno, mas também como retomada, reapropriação de si.

 

Uma reflexão bastante próxima, embora com acento absolutamente clínico, pode ser encontrada no texto de Maria Rita Kehl, que localiza com precisão o duplo caráter da repetição na clínica psicanalítica: se ela aparece enquanto compulsão, como repetição patológica de experiências não elaboradas, também se faz presente enquanto direção de tratamento, uma vez que a apropriação pelo sujeito de sua própria história torna possível um outro modo de viver. Nesse sentido, a clínica não se limita ao sofrimento individual a ser tratado no setting tradicional, mas deve ser pensado também na cultura, como relatado pela autora a partir de sua participação na Comissão da Verdade.

 

O modo como se lida com determinado momento traumático de uma cultura, marcado pela violência e pelo apagamento da alteridade, pode tanto ter como efeito a compulsão sintomática, causada pela negação do vivido e pela repetição de violações que não são assumidas enquanto tais (como vemos na violência policial, apontada pela autora em continuidade com a violência de estado da ditadura), como pode produzir algo novo, processo que passa pela nomeação e pela narrativa do ocorrido. Essa dimensão é trabalhada a partir de uma articulação entre o pensamento freudiano e a obra de Walter Benjamin. A noção benjaminiana de redenção figura uma interessante possibilidade de encaminhamento, que permite explorar uma dimensão incontornável em que repetição e memória se cruzam: "[...] é necessário se recuperar esse passado, com suas lutas e derrotas, a fim de fazer uma aliança simbólica com os antepassados e retomar tais lutas, num outro plano, num outro nível, numa outra ordem, de modo a, enfim, superar a possibilidade de uma infinita repetição de barbáries." (p. 125).

 

Freud é retomado em diversos textos, e por meios absolutamente distintos. Se Kehl apresenta a articulação com o pensamento de Benjamin, Christian Dunker opera o conceito de repetição a partir de um embate com Darwin, o qual revela uma grande proximidade entre os autores. As diferentes maneiras como Freud desenvolve a questão da repetição mostram-se não somente compatíveis com o trabalho de Darwin, mas também se pode pensar uma influência mais profunda do que uma leitura desavisada consegue perceber, como, por exemplo, sobre a questão do afeto: "Vemos assim o subsídio darwiniano da teoria freudiana dos afetos. Ao realizar tal duplicação, a repetição abre-se para a emergência de uma posição terceira, que distingue o chiste do cômico" (p. 146). Nesses momentos, uma discussão aparentemente teórica revela-se extremamente clínica.

 

Freud não é o único autor cuja presença no livro é recorrente. O mesmo pode se dizer de Nietzsche, Kierkegaard, e, especialmente, Lacan, autor referido em diversos momentos por sua abordagem do tema. Vladimir Safatle aponta que a repetição é desenvolvida pelo psicanalista francês num primeiro momento enquanto obstáculo, e num segundo enquanto acontecimento.

 

[...] Dessa forma, compreender a construção do conceito passa, principalmente, por reconstruir o sentido dos debates filosóficos nos quais Lacan se introduz por meio de suas apropriações de Aristóteles e Kierkegaard. Tais debates filosóficos, como gostaria de mostrar, adiantavam aquilo que a filosofia francesa contemporânea tentará tematizar anos mais tarde por meio do conceito de "acontecimento". Neste sentido, o conceito de repetição é o que permitirá a Lacan definir o lugar da noção de "acontecimento" no interior das estratégias clínicas da psicanálise (p. 59).

 

É nesse sentido que apresenta a divisão entre a repetição imaginária (ligada à fantasia), simbólica (automatismo da cadeia significante) e Real. Se as duas primeiras podem ser entendidas como retorno, a última ganhará um estatuto diverso, ao ser associada a lacunas que estariam presentes na significação, pontos irredutíveis de resistência à simbolização.

 

Nesse sentido, a repetição real, para além da reaparição de conteúdos recalcados ou de efeitos da cadeia significante, traz à tona a insistência daquilo que não pode ser absorvido enquanto sentido. Uma situação paradoxal, na qual por um lado se tem a impressão de que poderia haver certa racionalidade naquilo que acontece, por outro tem-se a certeza do acaso, ou, mais especificamente, da fortuna. Aqui o autor traz uma bela imagem, a do desencontro dos amantes: ao reconhecer a porção de desencontro sempre presente nos encontros reais, demonstra-se a incompletude das intencionalidades frente a isso que inevitavelmente se mostra algo a mais. É nesse encontro com o desencontro incontornável, na insistência da impossibilidade da racionalidade, nessa repetição da incompletude que o sujeito pode justamente experienciar aquilo que talvez seja sua faceta mais singular.

 

De modo ainda mais amplo, a centralidade da questão da repetição na obra de Lacan é profundamente explorada nos textos de Dominique Fingermann, ao estabelecer uma cartografia dos modos como essa noção é paradoxalmente desenvolvida no ensino do psicanalista francês. Tal esforço, de tamanha verticalidade, poderia causar certa vertigem ao leitor, não fosse a costura entre clínica e teoria que oferece certos pontos de apoio em caminhos sinuosos:

 

Contudo, se a filosofia extrai dessa temporalidade paradoxal algo que volta, sempre atual e único, nunca passado, se a arte e a música usam seus recursos para produzir o mais novo e surpreendente, se a poesia joga com o seu ritmo para lançar mão de sua rima e da sua pulsação própria, na psicanálise o fenômeno se apresenta quase sempre como um estraga prazer! Uma análise pode chegar até esse ponto de passe, e de extração de seu alcance ético, mais além que sua redundância patética (p. 207).

 

Seus textos se articulam de modo interessante com a organização do livro, pois desbravam a potência do tema, seja no ensino de Lacan, seja na clínica psicanalítica, e mostram ainda uma abertura para outros encaminhamentos.

 

E é justamente na pluralidade que o livro ganha um colorido interessante: tanto nas considerações de Luiz Orlandi acerca do modo como repetição e diferença se conjugam no pensamento de Deleuze, como na apresentação de Manuel da Costa Pinto sobre as nuances da repetição na vida e obra do escritor Albert Camus, o caminho que se constrói mostra como o mesmo conceito pode ser retomado de modo inventivo, mas sem causar grandes rupturas. Juliano Pessanha, ao tomar para si a voz de Nietzsche, coloca na forma aquilo que excede os conteúdos, reafirmando a repetição no gesto. Nessa direção, a participação de José Miguel Wisnik é notória ao apresentar a questão da repetição na poesia e na música, sob a forma de áudio, por meio de um cd que acompanha o livro.

 

Alguns textos não fizeram parte do ciclo de palestras, mas justificam claramente sua presença no livro. O de Vinícius Castro Soares, em que há um aprofundamento da repetição em Kierkegaard, e o de Michel Bousseyroux, que discute a repetição a partir de uma posição marcadamente psicanalítica, trazem grande contribuição aos que os antecedem. Sergio Fingermann, por sua vez, termina o livro falando da repetição na pintura, de maneira delicada e sensível.

 

Em linhas gerais, a repetição é colocada no livro como como uma questão que vai para além de seu conteúdo racional. Algo que se assemelha, em diversos momentos, à obra de Walter Hugo Mãe, escritor que mostra como se pode, ao mesmo tempo, falar sobre algo e fazer esse algo falar. Trata-se, portanto, de uma excelente curadoria de Dominique Fingermann, uma vez que o livro é capaz de conjugar teoria, clínica e arte, bem como mostra que o caráter paradoxal da repetição pode ser colocado em ato, desvelando seu caráter disruptivo. Se, por um lado, podemos ler este livro apenas como um conjunto de argumentações teóricas, por outro podemos encontrar nele uma possibilidade de leitura (e escuta) implicada que nos convida a experienciar a obra, o que pode vir a causar efeitos inesperados. O paradoxo da repetição coloca-se assim de modo potente, não somente enquanto explicação racional, mas como possibilidade de experiência da obra. Possibilidade que entretanto só existe, acompanhando Juliano Pessanha, quando se está disposto a deixar-se tocar por aquilo que se encontra.


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Percurso é uma revista semestral de psicanálise, editada em São Paulo pelo Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae desde 1988.
 
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