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Resumo
Resenha de John Forrester, A interpretação dos sonhos: a caixa-preta dos desejos, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2009, 98 p. Coleção Para Ler Freud. Joel Birman, As pulsões e seus destinos: do corporal ao psíquico, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2009, 168 p. Coleção Para Ler Freud. Oswaldo Giacoia Jr., Além do princípio do prazer: um dualismo incontornável, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2008, 112 p. Coleção Para Ler Freud.


Autor(es)
Mário Eduardo Costa Pereira
é professor do Departamento de Psicologia Médica e Psiquiatra da Faculdade de Ciências Médicas da UNICAMP. Doutor em Psicopatologia Fundamental e Psicanálise pela Universidade de Paris 7. Diretor do Laboratório de Psicopatologia Fundamental da FMC-UNICAMP. Professor do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Spapientiae, São Paulo.

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 LEITURA

Relendo Freud no século XXI

A interpretação dos sonhos – a caixa-preta dos desejo; As pulsões e seus destinos: do corporal ao psíquico; Além do princípio do prazer: um dualismo incontornável


Re-reading Freud in the 21st century
Mário Eduardo Costa Pereira

Lançada em 2008, a coleção Para ler Freud, da Editora Civilização Brasileira, do Rio de Janeiro, tem como proposta a apresentação dos textos fundamentais da obra do criador da psicanálise sob uma dupla perspectiva. Por um lado, a de delinear de forma acessível a qualquer leitor, psicanalista ou não, a racionalidade e a consistência interna de cada um dos escritos escolhidos, situando- o no contexto de sua produção. Ao mesmo tempo, busca refletir sobre a atualidade de cada um deles. Trata-se, pois, de uma introdução ao pensamento de Freud, concebido não como um mero capítulo inerte da história das ideias, mas em seu caráter dinâmico e vivo, capaz de inspirar novas e inéditas leituras e, assim, interpelar nossas interrogações contemporâneas. Nas palavras da organizadora da coleção, Nina Saroldi, “a cada autor foi solicitado que apresentasse de maneira didática o texto que lhe coube e que, num segundo momento, enveredasse pelas questões que ele suscita em nossos dias” (in Giacoia Jr., p. 9).

Com o objetivo de melhor situar a proposta da coleção, nesta resenha serão discutidos três volumes em particular (dos seis já publicados), dedicados a alguns dos textos mais decisivos do pensamento freudiano: A interpretação dos sonhos (apresentada por John Forrester), As pulsões e seus destinos (por Joel Birman) e Além do princípio do prazer (por Oswaldo Giacoia Jr.). A John Forrester, célebre diretor do Departamento de História e Filosofia da Ciência da Universidad

e de Cambridge e editor da Revista Psychoanalysis and History, coube o volume intitulado A interpretação dos sonhos: a caixa-preta dos desejos. A referência explícita no título à noção de “caixa-preta”, tão cara à tradição behaviorista em seus esforços de situar a psicologia como ciência dos comportamentos objetivamente observados e que renuncia a qualquer especulação quanto aos pretensos processos mentais que lhes seriam correspondentes, não deixa de constituir uma provocação e uma resposta. Trata-se claramente de sugerir que o método de pesquisa proposto por Freud em A interpretação dos sonhos, assim como a teoria do funcionamento psíquico que decorre de sua aplicação, constituem uma via legítima de investigação do “aparelho da alma” enquanto tal. A partir dela, a suposta “caixa-preta” dos processos mentais torna-se susceptível de uma abordagem racional e sistemática, controlável pela lógica e pela observação, bem em consonância com a inspiração iluminista presente em toda a obra freudiana.

A proposta de Freud, diz Forrester, situase em ruptura em relação à visão científica tradicional, segundo a qual toda pretensão de se resgatar significados supostamente ocultos nos sonhos não constitui nada mais que um retorno de antigas superstições pré-científicas relativas a esses fenômenos mentais noturnos e psicologicamente primitivos. Mobilizado pelos resultados obtidos com a técnica de livre-associação aplicada em sua terapia catártica, e sobretudo por sua autoanálise, fundada no exame de seus próprios sonhos, Freud assume uma posição teórica que lhe permite desenvolver, dessa vez de forma sistemática e racional, as intuições já presentes na “psicologia popular” relativas ao caráter propriamente semântico, tal como uma mensagem velada, do material onírico.

O método, amplamente conhecido, centrava- se na decomposição dos elementos relatados de um sonho, aplicando a cada um deles a técnica de associação livre (Forrester, p. 26). Uma vez que esse procedimento fosse levado até o extremo, revelava-se de maneira clara que os sonhos constituíam a realização disfarçada de desejos inconscientes proibidos. De tal constatação decorrem inúmeras interrogações e problemas teóricos da maior importância. Em primeiro lugar, coloca- se a questão da gênese desse famoso desejo que se realizaria pelo processo onírico. O ponto de ancoragem do processo desiderativo, segundo Freud, estaria situado nas primeiras vivências de satisfação, nas quais o bebê totalmente desamparado em face de suas necessidades vitais mais urgentes encontra socorro e apaziguamento através dos cuidados prestados pelo outro. Essa primeira vivência de satisfação inscreve um traço mnêmico que associa a experiência imperiosa da necessidade à descarga prazerosa obtida pela intervenção da pessoa que lhe dedicava cuidado. Dessa forma, nas vezes subsequentes em que o bebê voltará a experimentar a urgência de suas insatisfações, ele almejará restabelecer de forma alucinatória, logo imediata, a situação de satisfação original. Esta seria, nesse momento inicial da obra de Freud, a modalidade primária, fundamental, de funcionamento do psiquismo: toda a vivência de desprazer deverá ser aliviada de maneira automática pela via da realização alucinatória do desejo. Tal situação – incompatível com a sobrevivência, uma vez que as realizações desse tipo não podem se concretizar de maneira efetiva, pois não levam em consideração a realidade – impõe ao psiquismo o trabalho de identificar e inibir a satisfação alucinatória da excitação até que tenha obtido sinais de que a descarga irá decorrer de uma modificação efetiva, isto é, da transformação concreta da realidade que dá origem ao desprazer. Esse é um processo secundário, de natureza fundamentalmente inibitória, pois deve refrear a tendência mais primária – no duplo de sentido de primeira, primitiva e de fundamental – de resolução do desprazer pela via alucinatória: “Portanto, diz Forrester, essa atividade psíquica inicial visa a uma identidade de percepção, ou seja, visa repetir a percepção associada à satisfação da necessidade” (p. 31). É precisamente nesse sentido que o processo secundário do pensamento “é a garantia de que a satisfação possa ser obtida na realidade” (p. 32). Freud identifica assim o processo primário de funcionamento mental: a tendência a resolver de maneira imediata e alucinatória os acúmulos de excitação, vividos assim como desprazer. A incompatibilidade desse mecanismo com a obtenção de uma descarga efetiva e duradoura obriga o aparelho psíquico a desenvolver um processo secundário – no sentido temporal, mas também de derivação em relação ao primário – pelo qual a tendência à descarga é inibida até que essa possa decorrer de uma modificação efetiva da realidade, capaz de permitir uma satisfação concreta.

Para isso, o aparelho psíquico lança-se à busca do reencontro do objeto que, na vivência primária de satisfação, propiciou a descarga almejada. O psiquismo abre-se, pois, ao mundo, não como uma tábula rasa, deixando-se impressionar passivamente pelas percepções que encontra ao acaso. Pelo contrário. Seu funcionamento, sua atenção, são ativos, buscando com determinação e de forma automática captar indícios que permitiriam o reencontro da Coisa perdida. Todo o traço que desta porte o índice serve de orientação para o esforço em se restabelecer a identidade de percepção. Nesse sentido, poderíamos afirmar, em uma perspectiva lacaniana, que tais indícios, que condensam a descoberta existencial da falta e a esperança de uma futura satisfação, funcionariam como causa do desejo.

Na leitura proposta pelo autor inglês, a Interpretação dos sonhos já pressupõe uma certa concepção intuitiva de transferência, pelo menos a do leitor em relação ao texto, mas também a de Freud em relação a seus leitores imaginários. A esse respeito, diz Forrester: “Freud coloca o leitor na posição de um crítico agressivo e se vê na defensiva, confrontado com um interlocutor incrédulo. É exatamente isso que ele quer” (p. 49). E mais adiante, para explicitar a estratégia retórica e argumentativa de Freud, Forrester o cita literalmente: “A rigor, é de se esperar que muitos leitores reajam da mesma forma: disponham- se a sacrificar um desejo em um sonho, simplesmente para realizar o desejo de que eu esteja errado” (p. 53). Nesse sentido, a hipótese freudiana da realização do desejo, propõe Forrester, “destinava-se a pôr às claras a relação que os sonhadores mantinham com... Freud” (p. 55). Tal ponto de vista se estende ao caráter efetivo do dispositivo psicanalítico de interpretação onírica junto aos pacientes. Quando Freud solicita ao sonhador que reconheça seus próprios anseios embutidos no sonho, não se trata unicamente de uma diretriz técnica. Trata-se de explicitar o desejo do próprio analista junto a seu analisante, o qual passa a pressupor que seu sonho comporta um núcleo desiderativo. Dessa forma, “a transferência leva ao desejo” (p. 59). Jamais neutro, o desejo expresso no sonho pressupõe e dialoga com o desejo atribuído ao intérprete, quer ele seja ou não materializado na figura do analista.

A conclusão a que chega Forrester é expressa em termos de uma “ontologia do desejo” (p. 32), segundo a qual o pensamento, em última instância, constitui um esforço no sentido da realização do desejo, dessa vez levando em consideração as exigências da realidade. No sonho, esse desejo se expressa de forma menos dissimulada. Contudo, em um e outro, evidencia-se o fato de que somente o desejo é capaz de colocar em funcionamento o aparelho psíquico. Com tal descoberta, a teoria de Freud opera a desconstrução da moral vitoriana reinante, que colocava a vontade, em sua correlação íntima com a responsabilidade, como centro motor da conduta humana. Aqui, a razão e a consciência teriam nas mãos as rédeas da subjetividade. Correlativamente, o aperfeiçoamento da vontade, sua firme orientação calcada sobre os valores estabelecidos, constituiria uma missão maior da medicina, educação e da filosofia do final do século xix. Com Freud, a linguagem da vontade começa a entrar em declínio e o desejo e a pulsão passam a ocupar o centro da cena da subjetividade.

É sob essa mesma óptica, a um só tempo metapsicológica e histórico-epistemológica, que Joel Birman situa sua leitura de As pulsões e seus destinos: do corporal ao psíquico. A abordagem proposta pelo autor consiste inicialmente em situar o artigo de Freud no contexto das concepções epistemológicas em vigor quando de sua elaboração, de modo a esclarecer o estatuto propriamente científico e conceitual de sua metapsicologia em vias de elaboração naqueles anos de guerra da década de 1910. Em seguida, Birman discutirá separadamente por um lado a noção de pulsão, enquanto excitação psíquica constante claramente diferenciada dos estímulos de natureza fisiológica e, por outro, seus destinos no autoerotismo, na constituição da alteridade, na estruturação da sexualidade e na genealogia do Eu.

Concebido por Freud como o primeiro de uma série de doze artigos que deveriam integrar um volume de escritos teóricos sob o título de “Preliminares de uma metapsicologia”, Triebe und Triebeschiksal, redigido em 1915, compõe uma espécie de pilar maior do edifício teórico freudiano. Esse conjunto de textos constituiria “seu testamento teórico para a psicanálise e a comunidade analítica” (p. 23) e visava, como diz Freud em uma passagem de “Complemento metapsicológico à teoria do sonho”, a “clarificar e aprofundar as hipóteses sobre as quais um sistema psicanalítico pode ser fundado”. A pulsão e seus destinos situa-se, assim, como ponto de partida e referência central de toda sua metapsicologia.

O termo “metapsicologia”, lembra Birman, “aparece precocemente no discurso freudiano, datando pelo menos de 1896, quando foi usado na correspondência de Freud com Fliess” (p. 28). Seu conteúdo, entretanto, só vai se constituindo aos poucos, progressivamente ao longo de textos como a Interpretação dos sonhos e Três ensaios sobre a teoria da sexualidade, até obter uma formalização mais sistemática nos cinco artigos remanescentes de sua “Metapsicologia”. O prefixo grego “meta”, que integra o neologismo freudiano, em sua significação de “mais além”, de “além de”, indica não apenas a pretensão de instalar seu debate em um registro epistemológico, filosófico e em relação à metafísica, como também o projeto de fazer desse registro uma espécie de condição de possibilidade teórica para toda a psicologia com aspirações científicas.

Joel Birman lembra que o discurso teórico da psicologia no final do século xix assentava-se na descrição minuciosa das chamadas “faculdades psíquicas”, tais como a memória, a atenção e a senso-percepção, entre muitas outras. O conjunto de tais faculdades funcionaria, segundo essa concepção, de forma integrada sob a égide da consciência e da razão, as quais, em sua condição de instância racional, capaz de realizar a vontade e transparente a si mesma, constituiria o Eu como sede autoevidente da subjetividade. Acompanhando a leitura tornada célebre por Lacan, Birman propõe que “a psicologia como teoria das faculdades psíquicas, centradas na consciência e no eu, se inscrevia na tradição da filosofia do sujeito, iniciada por Descartes, no século xvii” (p. 36). “A certeza do ser do sujeito”, continua o texto algumas páginas depois, “se sustentava no registro do pensamento, superando então as dúvidas metafísica e metódica, de forma que o pensamento se enunciava sempre pelo eu, no campo da visibilidade da consciência” (p. 39).

Uma segunda exigência integrava as pretensões científicas da psicologia da passagem do século xix ao século xx: aquela de descrever as faculdades psíquicas não apenas no campo da observação, mas sobretudo através do registro da anatomia e da fisiologia do sistema nervoso. Toda a perspectiva e linguagem fisicalistas que impregnavam o Zeitgeist científico dessa época eram familiares a Freud, que fora formado intelectualmente no seio dessa tradição. Seu percurso teórico porta as marcas dessa influência, com as quais ele se debate o tempo todo e não sem ambiguidades. Contudo, é inegável que as consequências diretas da descoberta e da teorização freudianas conduzem a um descentramento do sujeito em relação à consciência e à razão. Elas passam a exigir a elaboração de uma inédita descrição dos fenômenos psíquicos, respeitosa não apenas da constatação – propiciada pela aplicação do método psicanalítico – da existência de processos psíquicos do sujeito enquanto tal, mas que funcionam de maneira inconsciente, como também do caráter altamente organizado e estruturado dessa dimensão fundante da subjetividade e que será doravante denominada na teoria pelo o termo de “o Inconsciente” (das Unbewusste). Este conceito metapsicológico igualmente decisivo constitui o reconhecimento no plano teórico tanto de que certos processos psíquicos marcados por uma tomada de posição de sujeito operam inconscientemente, quanto do fato de que a própria subjetividade comporta uma lógica e uma organização inconscientes.

O conceito de pulsão, tema central do artigo de Freud apresentado no volume assinado por Joel Birman, constitui um esforço para traduzir no registro metapsicológico o fato, evidenciado pela experiência psicanalítica, de que o psiquismo parece funcionar não apenas a partir de uma rede organizada de representações inconscientes, como também pela circulação, nessa rede, de algo que se assemelhava a intensidades. O estudo dos sonhos, da psicopatologia da vida cotidiana e a nascente clínica psicanalítica das neuroses indicava “que o psiquismo seria permeado pela conflitualidade e que seria essa que o conduziria inequivocamente à dissociação e à divisão” (Birman, p. 59). Na medida em que o aparelho psíquico concebido por Freud pressupunha a existência de diferentes lugares psíquicos, “o que se enuncia agora é que tais espaços são atravessados por forças e investimentos” (idem). Dar conta teoricamente dessa dimensão quantitativa e circulante do funcionamento mental: eis aí o fundamento da introdução do conceito metapsicológico de pulsão.

Do ponto de vista libidinal, que a pulsão se expresse segundo uma modalidade ativa ou passiva ou ainda mediana (se fazer agredir, por exemplo), que ela invista eu ou o outro, que ela se satisfaça pelas vias do prazer ou da dor, em todos os casos, mostra Joel Birman em sua leitura do texto freudiano, esse constructo fundamental da metapsicologia é constituído de elementos heterogêneos, organizados segundo montagens e circuitos específicos. Impulso, fonte, objeto e alvo se articulam em torno de uma montagem sempre singular para cada sujeito, que permite sua funcionalidade efetiva (p. 104).

Birman mostra como, no argumento freudiano, a pulsão – apesar da evidente analogia com a noção de estímulo fisiológico – destaca-se irredutivelmente do registro da natureza. Tratase de algo que opera como uma força constante agindo a partir do interior do psiquismo, em relação à qual não há qualquer possibilidade de fuga e que não pode ser eliminada por uma simples ação reflexa. Encontra-se aqui um dos elementos determinantes da criação de uma fronteira delimitando interior e exterior do campo subjetivo: apenas as excitações vindas do exterior são passíveis de aplacamento pela atividade reflexa ou pela fuga. Os estímulos pulsionais seriam constantes e inescapáveis. Tal referência permitiria ao organismo situar-se no mundo.

A dualidade de tendências na qual se joga o conflito, nesse momento da teoria freudiana, dá-se fundamentalmente entre as exigências eróticas pulsionais inconscientes e a autoconservação do eu, que antecipa os riscos de se permitir uma satisfação sem se tomar em consideração as consequências disso em face da realidade. Evidentemente, ao introduzir a noção de narcisismo e ao considerar que não apenas os objetos externos, mas também o próprio eu poderiam ser alvo de investimento erótico, Freud se confronta a um abalo radical em sua teoria do conflito psíquico. Como sustentar essa hipótese se os dois polos supostamente em oposição eram de natureza libidinal, seja investindo o objeto, seja investindo o Eu? Rapidamente ele compreenderia o caráter precário de tal solução conceitual. Em todo caso, para Freud, “o aparelho psíquico teria sido de fato constituído para realizar o domínio das excitações pulsionais, impossíveis de serem reguladas pelo aparelho nervoso” (p. 90). Sob essa perspectiva, psiquismo teria por função “diminuir as intensidades geradoras de desprazer [...] Diminuir o desprazer e restaurar o prazer, portanto, seriam as finalidades básicas do aparelho psíquico” (p. 90-91). Ora são justamente os limites de tal maneira de se conceber o funcionamento psíquico que serão questionados no texto freudiano, o qual será tema do terceiro livro aqui tratado.

Além do princípio do prazer: um dualismo incontornável, de Oswaldo Giacoia Jr., aborda esse momento crucial da virada da metapsicologia freudiana, a qual, a partir dos anos 1920, passa a recorrer a um novo dualismo para dar conta do conflito e da clivagem psíquica imediatamente demonstrada pela clínica psicanalítica, doravante opondo vida e morte. O primeiro grande eixo de leitura proposto por Giacoia se ocupa, tal como na abordagem de Birman, da delimitação do estatuto epistemológico da metapsicologia freudiana, enquanto infraestrutura teórica da psicanálise. Em particular, ele interroga as relações entre metapsicologia e metafísica. Aqui, o leitor é beneficiado pela formação do filósofo Giacoia, que expõe essa temática tão espinhosa e técnica de maneira rigorosa, mas acessível.

Profundamente marcado pela concepção heurística de Kant, em voga nas ciências de seu tempo, Freud considerava que o valor fundamental dos conceitos metapsicológicos residia em sua capacidade de fornecer um substrato intelectual apreensível à intuição ordinária e facilmente manipulável pela razão crítica, de forma a tornar inteligível e racionalmente delimitável um determinado elemento abstrato necessário à teoria. Exige-se aqui uma correspondência meramente formal, mas não substancial, entre o conceito e aquilo que se pretende com ele delimitar. “Construções auxiliares” (Hilfekonstruktionen), “ficção”, “nossa mitologia” são expressões que reaparecem com frequência sob a pena de Freud quando este tenta explicitar o estatuto de seus conceitos metapsicológicos. Observa-se, assim, uma renúncia desde o início a qualquer pretensão de dotar de consistência ontológica os elementos recortados pela metapsicologia. Ao contrário, busca-se mais modestamente a criação de ficções teóricas provisórias, utilizáveis para a apreensão e intervenção sobre dimensões significativas da experiência analítica. Trata-se, pois, de elementos teóricos especulativos, mas não arbitrários, uma vez que devem ser capazes de permitir a descrição, a previsão e a intervenção em certos fenômenos delimitados pela observação e, sobretudo, pelo próprio dispositivo da clínica psicanalítica. Seu estatuto é sempre provisório, uma vez que uma ficção metapsicológica pode e deve ser substituída por uma outra dispondo de maior capacidade explicativa, a cada vez que a teoria for invalidada pela experiência ou mesmo pelo avanço lógico da própria teoria enquanto tal.

O elemento teórico-clínico central de Além do princípio do prazer é, sem dúvida, a compulsão à repetição. Contrariando aquilo que poderia prever a teoria até então central do pensamento de Freud, segundo a qual o processo mais fundamental do funcionamento psíquico seria a hesitação do desprazer e a busca da satisfação prazerosa pelas vias mais curtas possíveis, independentemente de qualquer consideração pela realidade (processo primário), a observação demonstra de forma contundente a existência de fenômenos mentais que não obedecem a tal premissa. A neurose traumática – na qual o sujeito revive sem cessar, pela via dos sonhos de angústia ou pelos acessos de ansiedade, situações que foram terríveis desde o início – constitui aqui uma espécie de paradigma clínico de contradição do princípio do prazer. A reação terapêutica negativa, a repetição inelutável de vivências catastróficas, as neuroses de destino que conduzem o sujeito à realização inexorável das mesmas desgraças de um passado do qual se queria escapar, e mesmo certas brincadeiras infantis como esforços de elaboração de situações penosas constituem demonstrações dificilmente contestáveis da insuficiência do princípio do prazer para dar conta das bases do funcionamento psíquico. Dois aspectos se destacam imediatamente à luz dessas observações: primeiro, o papel central, determinante, desempenhado pelas marcas deixadas pelas situações traumáticas na organização do psiquismo. Segundo, o caráter compulsório, compulsivo, independente da vontade consciente do sujeito, da tendência à repetição do traumatismo. A repetição daquilo que desde o início foi brutalmente desprazeroso se instala de forma automática: aqui claramente o eu não é senhor de sua própria morada. O sujeito se vê prisioneiro de um sistema de repetição que se impõe de forma cega e automática. Sob diferentes roupagens, o mesmo – sempre terrível – retorna, se instala na vida. Esse fenômeno reveste-se não apenas das grandes consequências teóricas já indicadas. Ele passa a constituir um problema clínico central: o tratamento psíquico (psychische Behandlung) não pode mais se contentar em repatriar para a consciência os elementos insuportáveis sufocados pelo recalque. Passa a ser necessário e crucial romper com a cadeia automática da repetição do pior.

Em ressonância evidente com a concepção de Nietzsche do eterno retorno, a compulsão à repetição proposta por Freud visa, de forma compulsória, à reinstalação de uma condição regressiva, de um estado anterior de não excitação. Em última instância, o objetivo último do aparelho psíquico, na teoria freudiana, seria o da descarga absoluta, instalando uma condição de completa não excitação (Princípio do Nirvana), tal como um retorno ao inorgânico.

O aspecto central da leitura proposta por Giacoia repousa justamente em seu esforço por demonstrar a hipótese segundo a qual o dualismo entre as pulsões de vida e de morte constitui “a base ontológica da metapsicologia” (Giacoia, 2008, p. 23). O autor lembra que um esboço bastante claro da ideia segundo a qual o objetivo último do funcionamento psíquico seria o de evacuar integralmente toda a excitação que a ele chega já está presente no Projeto para uma psicologia científica, de 1895. De fato, o princípio de inércia neuronal ali proposto por Freud estabelece que a tendência fundamental do sistema nervoso é a de descarregar toda energia (Qn) que venha excitá-lo. O princípio da constância constitui uma aquisição secundária, um funcionamento imposto pela necessidade de armazenar no sistema neuronal um mínimo de energia capaz de colocar em movimento as ações necessárias a uma descarga mais duradoura e eficaz da excitação.

De maneira análoga, o próprio princípio do prazer teria de ser submetido ao princípio da realidade, pois somente a tomada em consideração efetiva da radical alteridade do mundo poderia ensejar uma descarga mais duradoura e efetiva.

Em Além do princípio do prazer, a compulsão à repetição é estabelecida em relação às vivências traumáticas de maneira paradoxal: por um lado, o aparelho psíquico retorna aos elementos traumáticos em um esforço de, finalmente, poder dominar as grandes quantidades de excitação liberadas nessa experiência. Contudo, tal processo “que ocorreria não em oposição ao princípio do prazer, há que se constatar, mas que ocorreria também a despeito dele e, até certo ponto, sem levá-lo em consideração” (p. 57). Ou seja, haveria uma dimensão primária e autônoma de retorno ao ponto de ruptura traumática do sistema psíquico. O elemento traumático constitui, assim, um nódulo de fascinação, de atração irresistível, que arrasta todo o processo psíquico justamente em torno daquela ruptura que precisa ser dominada para que o esvaziamento de excitação possa voltar a ser o mais completo possível. Daí, conclui Giacoia, “a meta final de todo impulso é a redução ao grau zero de quantidades de excitação no organismo, o que mostra que a morte vem a ser a meta, ao mesmo tempo originária e derradeira, da vida” (p. 65).

O aspecto conflitivo da vida pulsional torna- se assim problemático na teoria freudiana. Se toda a pulsão visa, em última instância, à descarga completa, de forma a instituir um estado de absoluta não excitação, onde estaria o conflito? A teoria da libido traz aqui o recurso teórico necessário ao respeito da natureza fundamentalmente conflitiva da vida mental. Com ela, Eros é concebido como atividade vital de ligação, estabelecendo conexões cada vez mais amplas e duráveis. Em sua tendência de preservação e de unidade, Eros não se opõe de maneira absoluta a Tânatos, uma vez que a unificação absoluta corresponderia à abolição de todas as fronteiras e diferenças, à fusão em um Grande Todo nirvânico. Levados a seus extremos, um e outro dos dois princípios pulsionais conduziriam à extinção do organismo enquanto forma singular diferenciada. Contudo, lembra Giacoia, para Freud “cada organismo se esforça por evitar a perempção ocasionada por causas externas. Sendo assim, os impulsos de autoconservação asseguram, em verdade, que todo organismo vivo se defenda das ameaças externas de destruição, com o propósito último de morrer sua própria morte” (p. 83). Dessa forma, o retorno ao inorgânico não é algo de imediato, mas, antes, depende de um caminho singular a cada sujeito para alcançá-lo. A subjetividade se constitui, assim, através do estilo erótico singular pelo qual a vida atinge seu desenlace, segundo seus próprios desígnios e seguindo seu próprio percurso.

Tal ponto talvez permita um novo olhar sobre a coleção aqui examinada. O aspecto vital de uma proposta de releitura da obra de um grande autor, Freud em ocorrência, não reside no esforço de cristalizá-la em uma leitura canônica, que fixaria seu sentido de uma vez por todas. Isso equivaleria a matá-la, ou seja, esterilizá-la congelando- a como língua morta. Reler, aqui, situa-se em um esforço de ruptura da compulsão à repetição, de modo a propor à obra novas perguntas, a esperar dela a abertura de novos horizontes, a colocação de novos problemas, a retransferir vida sobre ela, para que esta se mantenha viva. O que não deixa de nos interpelar com uma crua constatação: uma obra permanece viva enquanto ela é capaz de suscitar transferência que nos faz esperar dela novas respostas. Ou, mais simplesmente, podemos nos perguntar: o que mesmo confere vida à obra e imortalidade a um autor?

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